Trevon 6 (parte 2)

 

1. Trevon

2. A-348

3. Órion

4. Novo Mundo

                                                                                                                                                     5. Júpiter 

                                                                                                                          6. Uiliam (Primeira parte)

   Segunda parte

                                Desde que decidiu descer ao interior de Trevon e desbravar o desconhecido, Órion tinha noção de que sua investigação possivelmente era um caminho sem volta. Mas diferentemente da missão desempenhada por Uiliam, anos atrás, o disfarce de A-348 justificava uma necessidade de saber mais a respeito de Júpiter e seu bando, que além de possuir um laboratório impressionantemente moderno e equipado perto de uma cachoeira potável, também tinha o incrível poder de controlar robôs do Comando e invadir o sistema do CCC, constantemente monitorado. Ou seja, o que quer que outrora tivesse motivado a colega a se fingir de civil era besteira perto do que Órion investigava agora, pelo simples fato de que não havia nada mais grandioso do que isso.

            Sua decida não foi exatamente conforme o planejado, tampouco chegou ao alvo da forma que pretendia, mas ainda assim obteve êxito e desde que Júpiter havia chegado estava claro que para ter todas as respostas que buscava, Órion teria que segui-la no escuro, literalmente. A insurgente demonstrou que falava sério ao afirmar que não carregaria nada e deixou para trás, no laboratório, até mesmo sua minúscula lanterna. Não levou nada além da própria roupa no corpo e seguiu descalça escuridão adentro, assim como Órion, com a diferença de que ela conhecia muito bem o chão que pisava.

            As duas caminharam em silêncio a mesma trilha utilizada anteriormente para acessarem o laboratório, com o som da cachoeira aumentando gradualmente a cada passo, assim como a luz trêmula da fogueira, que de um pontinho brilhante se transformou em uma enorme pira cintilante que contrastava com a umidade da água barulhenta e incessante. O chão, inicialmente forrado por pedriscos duros e pontiagudos, alguns metros adiante virou uma lama bastante confortável que cobria a rocha por onde pisava e amortecia o espaço entre os dedos do pé, conforme Órion avançava. O ar fresco a fez a fechar os olhos ao respirar fundo, sem perceber que Júpiter a observava.   

– É melhor você umedecer a sua roupa antes de partirmos – Júpiter recomenda, parando de repente e se banhando com a água límpida da cachoeira. Primeiro ela se molhou de maneira um pouco tímida, depois se segurou nas pedras e enfiou o topo da cabeça careca debaixo da queda d’água molhando o corpo inteiro, atraindo a atenção das rebeldes que permaneciam por ali – Para onde nós vamos é necessário seguir por uma trilha que passa por uma região que é muito quente, então quanto mais molhadas estivermos até lá, melhor – complementou, ainda debaixo da água, falando um decibel mais alto.

            Órion não teve tempo de responder porque no mesmo instante uma corrente de ar frio envolveu todo o seu corpo, fazendo a pele arrepiar até debaixo do gesso feito de lama dura. Que por sinal era outro motivo para impedi-la de copiar os movimentos da subversiva submersa na água transparente e gelada. Jamais que ela colocaria em risco uma atadura tão necessária, inclusive antes mesmo de saírem dali. Ossos quebrados expostos doem demais!

            Júpiter se permitiu ficar alguns segundos debaixo da água que caía com uma força implacável, formando em volta de seu corpo uma cortina úmida de neblina e vapor. Imóvel, permaneceu apoiada em duas pedras lisas que serviram de corrimão, segurando-se para não ser nocauteada por uma série de golpes aplicados por punhos congelantes e incansáveis. Primeiro a cascata enxaguou sua cabeça por quase um minuto, depois os ombros receberam uma massagem natural, relaxando os músculos que a distância se mostravam retesados.

Órion desejou ter o poder de ler sua mente, pois adoraria saber no que ela pensou enquanto se manteve ali. Pareceu ser algo bom porque ao se virar em sua direção, com a fogueira à sua direita, seu rosto era de uma paz admirável. Embora aquele fosse um ambiente completamente hostil, era nítido o quanto estava relaxada após o banho.

– Já está pronta para ir? – Cael perguntou, caminhando contra a correnteza. Ao contrário de Júpiter, que veio até a beirada da cachoeira erguendo bem as pernas, afundando os joelhos no chão, ele andou chutando a água, despreocupado se com o gesto acabaria molhando Órion, ou seu curativo – Você vai com ela? Sério? – o menino de peruca perguntou, sem que ninguém dissesse nada. Seu tom foi divertido e combinou com o olhar que direcionou à Órion antes de se virar às amigas – Ninguém jamais poderia imaginar um desfecho desse! – Cael complementou, parecendo que conversavam por alguma frequência que Órion obviamente não acessava.

– Preparei alguns mantimentos para você levar – Íris informa, agindo como se a companhia de Órion junto a Júpiter fosse mero detalhe, totalmente desimportante – É pouca coisa e Gilles vai gostar.

– Tá bom, vou me esforçar para fazer chegar até lá – Júpiter responde, aproximando-se mais de Órion, carregando no tecido quase transparente de sua roupa um punhado de água, que escorreu pelo caminho como se fosse uma peneira.

            Sem dizer nada, Júpiter despejou o que restou do líquido gelado contra a camiseta de Órion, que não esperava por aquilo e se assustou, dando um passo para trás. Primeiro, se espantou com o gesto em si; sentiu-se atacada, ainda que apenas com água (muito, muito gelada). O líquido a atingiu em cheio no peito e desceu impiedosamente pela barriga, acomodando-se no cós de sua calça apertada.

Depois, a policial reagiu à sensação despertada pela água gelada, propriamente, uma vez que cada gota pareceu ser uma agulha feita de gelo, penetrando profundamente em sua pele, enviando arrepios por todo o corpo e contraindo todos os músculos instantaneamente. Com o frio, o bico de seus seios ficou eriçado, bem marcado no tecido encardido colado à pele, armado na direção de Júpiter.

Por fim, Órion se assustou com o choque provocado pelo contraste do frio da água com o calor que repentinamente incendiou o interior de seu corpo inteiro, em especial nas partes baixas. Inesperadamente, sentiu-se queimar exatamente como a fogueira ao seu lado, só que de maneira muito mais inflamável. E o combustível que deu todo o toque para a combustão generalizada foi a mão gelada de Júpiter deslizando por seu corpo molhado.

            A rebelde repetiu o gesto e a molhou novamente, agora a partir do pescoço, imperturbada quanto ao teor dos pensamentos de Órion. Ou o fez exatamente porque era capaz de escutar tudo aquilo que a mulher pensava. E sua mente naquele momento se ardeu em conteúdos altamente libidinosos porque inevitavelmente Órion se lembrou da sensação da língua macia e molhada de Júpiter encostando na sua. Mais: se recordou quando, ao lamber sua boca, Júpiter encaixou os seios e roçou a cintura na dela, esfregando os ossos do púbis nos seus. O contato, tão sutil, mesmo breve foi capaz de deixá-la molhada de um jeito que cachoeira nenhuma jamais seria capaz de deixar.

            Iluminada pelo clarão da fogueira, embora estivesse séria, Júpiter pareceu sorrir quando deslizou novamente as mãos molhadas pela camiseta de Órion, colando ainda mais o tecido desgastado na pele arrepiada, que por instinto se ouriçou outra vez diante do toque. De baixo para cima, umedeceu primeiro a barriga de Órion, depois os ombros, antes de se direcionar para a lateral dos seios e costelas, passando ainda as mãos ao longo de suas costas, numa espécie de abraço, tomando cuidado para não molhar a atadura dos braços.

Ao terminar de deixá-la acesa e molhada, Júpiter ainda parecia sorrir quando puxou uma pedra qualquer do leito da cachoeira e cortou a lateral da calça apertada de Órion, que soltou um suspiro assim que a costura parou de esganar sua cintura.

– É preciso tomar bastante cuidado porque o Comando não desistiu e continua no nosso encalço – Dien comenta, observando Júpiter improvisar um extensor na calça de Órion – Eles perderam o sinal, mas isso não os impede de reencontrar.

– Será que dá tempo de chegarmos ao Fosso da Morte antes da Polícia nos achar? – Júpiter pergunta, parecendo querer apenas puxar papo com a amiga. Seu rosto não transparecia nem um traço de preocupação.

– Talvez... talvez não – Dien responde, parecendo sincera. Levou alguns segundos até olhar para Órion, a fitando por um longo instante.

– Vai dar tudo certo – Júpiter diz, quebrando o silêncio, como se visualizasse o campo mental da rebelde, permeado de inquietude – Em último caso, vocês sabem o que devem fazer – ela complementa, amarrando nas costas a trouxa com os mantimentos separados por Íris.

– Espero que não seja necessário, então por favor se cuide – Cael pede, abraçando a amiga.

– Pode deixar, você também – Júpiter responde, dentro do abraço – Se cuidem todas – ela abraçou brevemente Dien e Íris, que acenou com a cabeça para Órion, numa espécie de despedida informal – Avisem assim que estiverem em Trevon ou diante de qualquer novidade.

– Combinado! Faça tudo brilhar, Júpiter! – Íris exclama, se despedindo também do moço de peruca – Vamos fazer história!

            Aparentemente a debandada seria geral e simultânea, e apenas Cael permaneceria por ali, junto da cachoeira, o laboratório e a peruca de Uiliam. Todas enfrentariam a partir de agora desafios para poder se deslocar, fosse em direção à Trevon ou à superfície, lá fora, mas isso nem de longe significava que ficar sozinho em um local inóspito e escuro como aquele era algo mais fácil de lidar.

Muito mais do que mero gozo à liberdade, ser marginal exigia uma dose cavalar de ousadia, mas também de determinação e coragem para encarar uma rotina recheada de situações fatigantes. Um preço altíssimo para quem decidia não seguir às leis que, ali, pareciam só um conjunto de normas bobas e sem sentido. Afinal, o que é o Corpo de Comando e Controle quando se tem a chance de se afastar alguns quilômetros das sirenes de Trevon?

No caso, Órion estava longe o suficiente para conseguir perceber que a vida significava muito mais do que ela acreditava dias atrás. E isso pareceu suficiente quando considerou que talvez não chegasse ao ponto de descobrir a real motivação de Júpiter (que tipo de lugar se chama “Fosso da Morte”, afinal de contas?), mas tudo bem porque bastava, já sentia-se satisfeita. Nenhum outro motivo parecia ter o poder de ser mais importante que o existencial.

Interrompendo o fluxo de seus pensamentos, Júpiter fez um gesto em direção a uma trilha que nascia no canto esquerdo da cachoeira, que até então Órion não havia reparado. O fato é que muitos detalhes passaram despercebidos pelo simples motivo de que havia milhares deles ali, desde caminhos escondidos a tesouros naturais que ela não teve tempo de analisar e catalogar mentalmente, embora o tempo todo tenha se esforçado para absorver cada minúcia, cada elemento do ambiente mais incrível que já conheceu em vida.

Órion seguiu Júpiter com a roupa molhada e a pele doendo de frio, mas já nos primeiros esforços para acompanhá-la o calor surgiu em forma de gotículas de suor que se acumularam primeiro na testa, depois acima do lábio, formando um bigode. O chão era extremamente escorregadio, o espaço por onde entraram consistia num caminho estreito e abafado, e o fato de não poder contar com os braços dificultava ainda mais a travessia, que já começou com nível alto de dificuldade.

Para piorar, Órion tinha escoriações em ambas as pernas, que se arranharam no contato com as rochas assim que a claridade da fogueira ficou para trás e junto com Júpiter ela mergulhou numa escuridão absolutamente silenciosa. Mesmo com o tecido fino da calça a protegendo parcialmente, Órion seguiu com as canelas de fora e os tornozelos foram os primeiros a se rasgar pelo caminho composto inicialmente por uma ladeira íngreme, com muitas pedras soltas e pontudas. Sim, para subir, antes elas precisaram descer. Ainda mais.

Se valendo da força dos músculos inferiores, especialmente os da coxa, Órion se concentrou em não agravar suas lesões enquanto se contorcia e se espremia por passagens apertadas, atrás de uma rebelde que caminhava logo à frente em uma constância rápida e num silêncio perturbador. Por sorte, embora fosse um rota cheia de obstáculos, Júpiter ficou mais fácil de ser rastreada a partir do instante em que não havia mais som para distrai-las. Na quietude da escuridão, ouvir a respiração da subversiva foi a missão de Órion durante os primeiros metros. 

Para tanto, ela esticou o braço engessado (o esquerdo, que doía menos), para evitar de bater com o rosto em alguma encosta ou parede de pedra. Como os ombros iam praticamente raspando no teto do túnel, dava para sentir com o corpo quando havia alguma curva mais acentuada, ou algum desvio. Sem conseguir enxergar, Órion precisou inclinar a cabeça para o lado, de modo que a audição a guiasse.  

As duas seguiram quietas por um atalho quente que serpenteava embaixo da terra, envolto numa escuridão quase palpável, que as engolia enquanto avançavam em direção ao centro da Terra. Em dado momento, Órion sentiu-se enterrada viva, perdida num labirinto subterrâneo que se estreitava mais e mais a cada passo, enquanto avançavam por um buraco que ela não fazia ideia de onde ia terminar.

Anos e anos de treinamento impediam que a claustrofobia a enlouquecesse, mas mesmo assim naquele momento o desespero surgiu incauto em seu encalço, despertando ao redor um odor metálico provocado pela ansiedade. O ar úmido e empoeirado começou a pesar nos pulmões e mesmo se esforçando para afastar a sensação de pânico prestes a dominá-la, o túnel apertado parecia esmagá-la, o que combinava com a pressão que sentia no peito.

Sua respiração se acelerou e ficou imediatamente entrecortada, e nem foi por causa do esforço físico. Embora não fosse sua primeira crise de ansiedade, era inédito vivenciar a experiência sem o uniforme da Polícia, que nessas horas acabava servindo como escudo e proteção. Em desespero, além de tudo, Órion sentiu-se vulnerável.

– Nós vamos precisar correr – Júpiter avisou, virando-se de repente, parecendo alheia à situação que ocorria logo atrás – Você está preparada?

            “Preparada para o que, exatamente?”, Órion sentiu vontade de perguntar. Por acaso Júpiter queria saber se ela estava pronta para correr até sabe-se lá onde, descalça e com os dois braços quebrados? Ou sua dúvida era quanto a estar preparada para morrer afundada no breu da angústia despertada por pensamentos terríveis, quase incontroláveis, numa crise terrível de ansiedade?

– Órion, a Polícia está vindo, nós precisamos correr e rápido – Júpiter insiste, a puxando pelo ombro.

O toque, embora sutil, serviu para despertar Órion do transe, no mesmo instante em que sua nuca começou a latejar, de um jeito bem dolorido, como se Aness acionasse novamente o dispositivo de pedra, ou pior: como se o Comando a estivesse controlando pelo chip. Maldita Uiliam!

Completamente às escuras, Órion só teve tempo de esticar o braço duro e engessado e segurar firme na mão de Júpiter, que saiu em disparada trilha adentro, mostrando-se exímia conhecedora daquele território. A mulher correu a puxando atrás de si como se fosse capaz de enxergar no escuro, ou tivesse dentro da cabeça algum sistema de GPS a orientando a cada curva. Órion nem pensou nos incômodos que o tranco da corrida causava em seu corpo machucado porque a cada segundo a dor na nuca piorava consideravelmente, dando a impressão de que elas corriam em direção ao local ao qual deveriam fugir.

– Eu não aguento mais – ela deixou escapar, quando a tontura tirou a força de suas pernas, estremecendo o corpo todo num espasmo, a derrubando no chão. A dor era tão insuportável que, ao cair de joelhos, sentindo-se fraca e rendida, Órion se contorceu enquanto gemia – Socorro... – murmurou.

– A gente não pode desistir – Júpiter gritou, puxando-a para apoiá-la em suas costas. Logo ela, que disse que não carregaria ninguém, sustentou o peso de Órion nos ombros e não parou de correr.

Órion não reparou em que momento desmaiou – se é que perdeu a consciência por completo. O latejar em cima do chip implantado décadas atrás despertou memórias antigas, bloqueadas por motivos de preservação, como parte do mecanismo de seu instinto de sobrevivência. Enquanto era carregada ela conseguiu se lembrar da dor original daquele implante e das contrações dolorosas que um único ponto disparava e irradiava para o resto do corpo, num efeito cascata repleto de incômodo. Órion tinha dias de vida, mas o trauma foi suficiente para uma existência inteira. Tanto que mais tarde ela jamais se interessaria em se modificar. A cicatriz do chip, embora antiga, encobria com o tempo uma ferida emocional que jamais foi realmente curada.

E não era só o incômodo do implante. Havia o desconforto do chip em si, que foi regulado ao longo de seus primeiros três anos de vida e usado como método de controle e punição. Não há birra ou malcriação que resista a castigos físicos, por exemplo, choques corporais aplicados a distância por alguém cuja função é impor disciplina para quem depois vem a exercer exatamente o mesmo papel com outras pessoas – muitas delas igualmente inocentes, como um bebê.

E agora todas as lembranças que durante a vida inteira Órion empurrou para debaixo do tapete da consciência vinham à tona como se fossem uma lâmina afiada fatiando sua mente, perfurando emoções e memórias com uma intensidade insuportável, consumindo cada fibra de seu corpo. Ao mesmo tempo, a dor implacável crescia de potência de um jeito quase enlouquecedor, em sintonia com as batidas cada vez mais aceleradas de seu coração, que bombeava ondas de agonia para todo o seu organismo, contaminando-o com um pânico bastante subjetivo e personalizado.

Apoiada nos ombros de Júpiter, com os braços estendidos sobre o seu tronco enquanto a mulher corria, em dado momento Órion deixou que o peso da cabeça cedesse e tombasse, virando o rosto levemente para trás. Com os olhos semicerrados ela identificou, projetada na parede do túnel, a luz azulada dos robôs do CCC e num primeiro momento sentiu alívio. Levou alguns segundos para lembrar que o sistema representava perigo, não amparo.

A compreensão foi clareada ao som da respiração acelerada da rebelde, que sabia mesmo ser rápida enquanto corria, entrando em caminhos que se abriam conforme avançavam. Órion também ouviu a sinfonia metalizada provocada pelo zumbido mecânico das articulações dos robôs, que naquele silêncio ressoavam pela trilha de modo tão amedrontador quanto a sirene da Polícia.  

Embora a atmosfera daquela rede de túneis fosse sufocante, com a temperatura elevada e o ar bastante úmido, não parecia se tratar de um conjunto de trilhas novas. Ao contrário, davam a impressão de ser bastante antigas e abandonadas, cavadas nos formatos antigos, bem estreitas. Talvez por isso o Comando estivesse na área: para proteger um patrimônio desprezado pelo tempo.

Em todo caso, fosse por motivos anteriores ou não, as duas agora eram consideradas invasoras de uma área restrita, de propriedade do Corpo de Comando e Controle, eficiente na arte de defender estruturas de cimento. Seus robôs realizavam sempre uma abordagem tática e coordenada, valendo-se de sensores de movimento para rastrear qualquer tipo de invasão, mesmo na escuridão de uma galeria subterrânea. Tudo meticulosamente projetado e comandado por policiais humanos, engenheiros de inteligência do CCC, que também criaram um tipo de comunicação feita por transmissões codificadas.  

O sistema, muito complexo, era também bastante eficiente. Agora mesmo o pelotão compartilhava informações sobre a localização das fugitivas enquanto traçava estratégias para interceptá-las. Em tempo real! Por sorte, mesmo com Órion nas costas, Júpiter se movia com agilidade pelo labirinto de túneis, desviando por atalhos e passagens que pareciam secretas, algumas escondidas. Sua familiaridade com o ambiente evitou que cruzassem os pontos de patrulha da Polícia, mantendo-se sempre um passo à frente dos perseguidores.

Em dado momento, as rochas foram substituídas por paredes de metal, que ecoaram de um jeito assustador a movimentação dos policiais robôs, que passaram a bater os cassetetes contra os escudos, provocando estrondos perturbadores que reverberavam nas paredes frias. Os rastreadores infravermelhos brilhavam como faróis, cortando a escuridão à medida que avançavam atrás delas.

Um pouco alheia aos riscos que corriam, semiconsciente, Órion tinha a impressão de que o chip sussurrava palavras de tormento diretamente dentro do cérebro, amplificando a dor e penetrando profundamente em sua psique, desencadeando visões distorcidas como se fossem pesadelos reais. Ela teve certeza de que seria seu fim.

Na batalha desesperada para resistir ao colapso iminente de sua mente, quando a agonia avassaladora a levou à beira da loucura, ao abismo de suas piores e mais terríveis recordações, Júpiter parou de correr e a dor parou também. Assim, do nada, de repente.

– Que foi, você morreu? – Júpiter pergunta, sem deixar transparecer se era uma dúvida séria, cutucando a mulher desabada no chão.

– O que você fez? – Órion se ouviu perguntar, ainda se contorcendo. Os ecos da aflição continuavam gerando espasmos e arrepios em sua pele. Do modo como tudo aconteceu, pareceu que Júpiter era a responsável tanto por provocar a dor quanto por cessá-la.

– Como assim, o que eu fiz? Eu salvei a gente! – a mulher responde, triunfante – Te carreguei até aqui e nos trouxe em segurança para um lugar que aparentemente o CCC não nos vê – ela tosse, harmonizando a respiração acelerada – O curioso é que até você chegar, o Comando não tinha conhecimento da trilha em que estávamos... Então me diz: como é possível que o seu chip não seja perceptível ao toque? – Júpiter interroga, apalpando a nuca de Órion sem anunciar.

– Então você... – Órion balbucia, incapaz de completar a frase.

Desde quando ela sabia do chip e por que não disse nada? Do que mais saberia? E quem mais sabia o que ela sabia? Órion quis xingar Júpiter e acusá-la de provocar todo aquele mal-estar de propósito, por pura maldade, mas sentia-se fraca para falar, então só afastou a mão da mulher, que permaneceu alisando sua nuca por alguns segundos.

– Eu o quê? – Júpiter pergunta, com ar divertido. Mesmo no escuro deu para perceber que sorria – Então eu sei do seu chip? Ora, é claro que sei. Não me subestime, Órion... – ela tosse mais uma vez, parecendo cansada – A Polícia só nos achou naquela trilha porque te rastreou, isso é óbvio. E todo mundo em Trevon sabe que o radar do CCC só capta quem é chipado. É procedimento normal do Comando meter chip em quem é levado para interrogatório, eles fazem isso até como uma forma de opressão: raspam a cabeça e deixam o queloide exposto. Mas o seu...

– Mas por que voc... – Órion diz. Incapaz de concluir a pergunta, respirou fundo, como se também tivesse corrido. Sentia-se esgotada!

– São muitas questões, eu sei – Júpiter fala, após permanecer um tempo em silêncio – Vamos sair daqui e, se houver tempo, conversamos. Quem sabe posso te dar algumas respostas se você me fornecer outras, em troca. Vou te dar a oportunidade de me contar tudo.

            Sem dizer mais nada, Júpiter a puxou do chão, escorando-a na parede de rocha, a segurando pelos ombros até que ela firmasse bem as pernas em pé. Órion sentia que sua nuca ainda doía, mas mais como resquício daquilo que tinha provocado tamanha dor e que, por algum motivo, não causava mais. Restava saber o que teria interrompido a frequência da agonia. Ou o porquê.

– Sinceramente, acreditei que teríamos mais tempo até o Comando nos encontrar, a minha roupa ainda nem secou... – Júpiter se lamenta com um muxoxo, caminhando agora bem devagar. Ela falou de um jeito como se a umidade de sua camiseta fosse alguma referência de tempo ou espaço – Mas já avançamos bem, mesmo com o desvio forçado. Agora precisamos atravessar o Fosso da Morte e chegar lá do outro lado, até a base daquele penhasco, mais adiante – explicou, encostando a mão de leve em seu ombro.  

Com o toque, Órion quase conseguiu enxergar a geografia do local em que estavam, apesar do manto que cobria tudo na mais profunda escuridão. Ela vislumbrou inclusive o túnel que haviam atravessado, sendo carregada no final, num trecho até que considerável do que parecia ser uma fábrica desativada. Mais à frente visualizou um campo aberto e uma parede de rocha enorme ao final de um espaço descampado, com cerca de 1,5km de extensão. Avistou também uma torre bem alta, quase em linha reta de onde se encontravam, e entendeu que passariam por ali para chegarem à próxima trilha.

A visualização durou poucas frações de segundos, mas pareceu manchar sua vista porque mesmo depois de Júpiter tirar a mão, Órion ainda foi capaz de ver a rota por onde teriam que seguir. Honestamente, não pareceu nada demais considerando o percurso que já haviam trilhado até ali, com as dificuldades encontradas no caminho ladeirento, envolvendo até a Polícia. Além do mais, subir provavelmente seria mais fácil do que descer, especialmente se não fossem perseguidas de perto pelos robôs do Comando.

– Não se iluda porque a subida vai ser mais desafiadora que a descida – Júpiter fala, como se claramente tivesse capacidade de ler os pensamentos de Órion – Mas vamos nos focar em uma coisa de cada vez. Antes de mais nada, temos que chegar ao lado de lá, com cuidado, porque essa é uma área altamente vigiada pelo CCC.

            O comentário permitiu que Órion contemplasse diversas linhas de contenção invisíveis, próximas ao chão, como se estivesse usando o capacete da Polícia e pudesse enxergar os limites que o Comando impunha aos moradores de Trevon. Com os olhos físicos ninguém via nada, mas com a tecnologia certa os esquadrinhos se revelavam, como armadilhas feitas de laser meticulosamente alinhados, prestes a afugentar presas fáceis em barreiras praticamente intransponíveis.

Os raios de luz laser à sua frente formavam diversos quadrantes que lembravam um enorme tabuleiro de xadrez, que em verdade representava uma legítima sentença de morte. Refletir sobre isso fez a adrenalina pulsar novamente em suas veias, enquanto estudava a melhor maneira de chegar até o outro lado, atravessando aquele campo minado.

Ciente de que qualquer erro poderia ser seu fim, e o de Júpiter, e o de seu plano ainda incipiente, Órion respirou profundamente o ar denso que vinha do centro do desfiladeiro, carregado de uma atmosfera opressiva e sombria. Ainda como se pudesse enxergar sob efeito da miragem produzida pelo toque de Júpiter, a policial reparou que toda a área ao redor daquela enorme garganta geográfica formada pelo vale de duas encostas de rocha era cercada e magnetizada, criando uma intrincada rede de segurança que cobria cada centímetro do perímetro, impedindo que qualquer movimento passasse despercebido pelos sensores do Comando. Então só havia uma direção a seguir e talvez fosse prudente correr porque parecia impossível desviar no escuro de todos os feixes de luz invisível escondidos pelo caminho.

– Dá para chegar do outro lado desviando dessas linhas de monitoramento – Júpiter diz, como se os pensamentos de Órion fizessem parte da conversa – Mas não é tão difícil atravessar, faz de conta que é uma brincadeira de criança. Vem comigo – ela chama.

Ao circundá-la, Júpiter encaixou o corpo atrás de Órion, colando o peito quente e úmido em suas costas. Com os braços bem presos em sua cintura, demonstrou qual era sua intenção ao empurrar o joelho de Órion com a perna, pulando com o pé direito e depois com o esquerdo, alguns centímetros adiante. Juntas, as duas se movimentaram com suavidade e destreza, como se estivessem jogando amarelinha. Ou dançando.

            Devido à ausência de luz era impossível enxergar um palmo que fosse diante do nariz, mas mentalmente Órion traçou todo o espaço do Fosso, baseando-se na visualização que Júpiter a permitiu ter, pintando na mente a paisagem perigosa pontilhada por ameaças invisíveis, mergulhada na mais completa escuridão da Terra. Se valendo de todos os sentidos exceto a visão, Órion sentia o deslocamento de ar conforme Júpiter avançava, as conduzindo de pulo em pulo, como se seguisse cegamente aos movimentos de alguém que bailava com graça em meio a um local com potencial de explosão, flutuando no ar por um breve momento e depois aterrissando num impacto suave e controlado, mais adiante. De olhos fechados, foi como se conseguisse vê-la.

            A distância entre os espaços vazios parecia enorme, mas ainda assim Júpiter seguiu saltando cada vez mais alto e mais longe, determinada e destemida, como se desafiasse a própria gravidade, brincando com a sorte. Cada salto era praticamente um teste de sua agilidade e coragem, copiado milimetricamente por Órion, que se deixou ser conduzida e junto com a rebelde encenou uma espécie de balé perigoso no centro daquela arapuca.

            Concentrada e ciente do risco que corriam, Órion se esforçou para manter-se em silêncio, atenta às movimentações de Júpiter para poder copiá-la, mas a cada salto correto deixava escapar sem querer um suspiro de alívio, mais sonoro quando descia com uma das pernas, pois seu joelho direito doía mais que o esquerdo. Talvez estivesse até rachado ou fissurado em algum ponto do osso, considerando o inchaço ao redor e sua aparência, um pouco disforme. Para não pensar na dor e se focar no objetivo da missão, Órion considerou que cada passo a mais significava um passo a menos em direção ao destino final. Que, a propósito, ela ainda desconhecia completamente, mas que por algum motivo já considerava como o local em que fatalmente descansaria. Fosse de um jeito ou de outro.

            Foram longos minutos de um deslocamento tenso, porém suave, com Órion se esforçando ao máximo para evitar que qualquer passo em falso disparasse algum alarme ou liberasse uma armadilha. Por conhecer muito bem o sistema, sabia que a ausência de robôs no local indicava que havia outras formas de contenção policial que envolviam desde redes que disparavam choques à liberação de gás paralisante, passando por fossos que podiam se abrir no chão de repente, engolindo os mais desavisados em crateras profundas, além de outras estratégias e armadilhas cruéis elaboradas pelo Comando.  

Contudo, mais do que confiar nos reflexos afiados de Júpiter e na sincronização perfeita de seus movimentos enquanto pulavam juntas, Órion se viu testada a também controlar seus pensamentos em um nível jamais exigido. Era a primeira vez que ficava tanto tempo em contato pele a pele com outra mulher e isso a desnorteava mais do que estar perdida embaixo da terra correndo risco de vida.

            Com o tronco da subversiva colado às suas costas, separadas apenas por uma fina camada de tecido úmido, a proximidade de seus corpos suados era carregada com a eletricidade da adrenalina imposta pelo desafio de atravessarem o tal Fosso da Morte, repleto de perigos. Todavia, mesmo em risco era inevitável não sentir a pressão corporal a cada salto, que com o impacto do esforço gerava uma sensação de intimidade avassaladora e bem-vinda, ainda que totalmente fora de hora. O conjunto de sensações desconhecidas criou um turbilhão de emoções dentro de Órion, estimulado pela sincera energia do tesão.

            Também, pudera, seu corpo era acostumado à solidão. Agora naturalmente apenas reagia ao calor da pele de outra pessoa contra a sua, com o contato se transformando em uma descoberta sensorial, uma explosão que despertou partes adormecidas de sua alma. Mesmo sob risco de morte, Órion sentiu-se viva como nunca!

– Espera, não podemos mais continuar nessa direção – Júpiter alerta, interrompendo a constância dos pulos. Pelo retorno do eco de sua voz, estavam próximas do paredão final – Vamos caminhar, não precisa mais pular. Conta cinco-sete-nove.

            Júpiter segurou firme na lateral de sua cintura e com movimentos regulares e cadentes arrastou-as para a esquerda, contando: um, dois, três, quatro e no quinto passo parou. Seus dedos pressionaram a carne dos flancos de Órion, como se as parabenizasse pelo feito. Aí caminharam sete passos para a frente, começando com o pé direito, seguido pelo esquerdo logo na sequência, parando na sétima passada. Um segundo depois contaram nove passos novamente para a esquerda, fazendo Órion pensar em quantas vidas teriam se perdido até chegarem àquela sequência. Certamente um passo errado comprometia a saída do local, que tinha o sugestivo nome relacionado à morte.

– Faz muitos anos que o Comando tenta nos controlar e faz o mesmo tanto de tempo que a gente tenta fugir – Júpiter diz, ao soltá-la. A ausência de seu corpo atrás de Órion a fez sentir frio, mesmo suando – Em algum momento esse lugar foi descoberto, assim como tantos outros que até hoje servem como mina terrestre, prontos para explodir alguém. Muita gente precisou andar (e morrer) para que hoje a gente pudesse correr. Não por acaso, dizemos que o futuro é ancestral.

            Impactada com a fala, pensando nas pessoas como uma sociedade organizada ao longo da História, e não individualizada como era a estrutura da Polícia, Órion avistou ao longo de todo o campo atrás delas centenas de corpos, ou o que restou deles. Havia pilhas e pilhas de ossos em praticamente todos os quadrantes cercados pelo laser invisível no chão, impiedoso ao longo de vários anos e muitas gerações. A cena era tão chocante que Órion compreendeu porque Júpiter não lhe mostrou antes de atravessarem.

– Aqui costumava ser uma fábrica de queima de combustíveis fósseis – Júpiter diz, com a voz ecoando no paredão natural, enquanto caminhava devagar – Quer dizer, isso no passado, centenas de anos atrás. Depois, para tentar resolver as coisas, o CCC converteu o espaço em uma usina de produção de energia de antimatéria. Esses lugares ficaram famosos por terem longas torres enterradas com sistemas de captura e armazenamento de carbono. É por lá que vamos subir.

            Em silêncio, Órion segurou na barra de sua blusa e a seguiu breu adentro, sem precisar se valer do esforço para escutá-la – o que seria muito mais difícil agora, considerando que a respiração de Júpiter encontrava-se tranquila, provavelmente porque estavam perto do fim desta parte da jornada, e o terreno era plano.

            Incapaz de ver por conta do escuro, era perceptível mesmo assim que à volta havia maquinários antigos cercando a estrutura metálica e concreta que se erguia diante delas como um monumento solitário em meio ao cenário desolador de um mundo em colapso, que obviamente falhou na transformação daquele lugar. Ao pararem, depois de alguns metros, a policial sentiu com a ponta dos dedos a superfície áspera da torre, desgastada pelo tempo. O som duplo de uma tranca pesada foi seguido por outro rangido, mais alto e mais longo, quando uma porta de ferro se abriu, dando passagem ao interior da torre abandonada. Assim que entraram, Órion foi invadida por uma sensação que há muito tempo não sentia. Ficou feliz!

            Apesar de não estar diretamente conectada à superfície, a qualidade do ar dentro da torre era consideravelmente diferente devido às tecnologias de captura de carbono outrora em operação. Mesmo desativado, o sistema de filtragem e purificação de ar mantinha a atmosfera deliciosamente respirável, livre de poeira ou qualquer tipo de poluente.

– Vamos nos esgueirar pela borda, use esse corrimão como guia – Júpiter diz, tirando a mão de Órion de sua cintura e a apoiando num guarda-corpo gelado de metal – Vamos ter que subir vários degraus, mas não precisamos ter pressa. Porém, também não podemos demorar porque essas torres ainda costumam entrar em operação eventualmente, não sabemos por quê.

            O que seriam vários degraus para Júpiter? Cem? Mil degraus? Órion quis perguntar, mas estava concentrada no som que a mulher fazia, já ascendendo pela escadaria enferrujada que serpenteava a torre. O som de seus passos ecoava pelo vazio cavernoso do interior da estrutura, com o metal rangendo sob seus pés a cada degrau, numa demonstração sonora da ação corrosiva do tempo.

– Você já esteve no fosso de um elevador do CCC? – Júpiter questiona. Pelo volume de sua pergunta, estava vários metros adiante, escada acima.

– Eu, não... – Órion responde, finalmente encontrando o primeiro degrau, ao tropeçar nele. Por que alguém conheceria a cava de um elevador?

– Ah, que pena. Subir por aqueles buracos é uma experiência... única – Júpiter demorou a encontrar o adjetivo que buscava. Sua voz soou mais próxima agora – Aqui me lembra muito o fosso de um elevador do Comando, com a diferença de que lá não tem escada – ela ri, como se tivesse acabado de contar uma anedota.

– Mas aqui não há o risco de sermos esmagadas, há? – Órion pergunta. Não tinha entendido a piada – Digo, nenhum elevador vai despencar a qualquer momento lá do alto... Vai?

– Não, mas se você despencar, o seu corpo se esmaga lá embaixo – a resposta foi imediata.

            Órion não teve tempo de contra-argumentar porque um clique fez uma luz forte acender lá embaixo, iluminando o interior da torre como dois sóis. Desacostumada com a claridade e sentindo que seus olhos ainda não estavam totalmente curados dos golpes da maçaneta de seu dormitório, mesmo parcialmente cega viu que Júpiter estava perto, apenas dois degraus acima e exibia no rosto um sorriso maroto, que se desvaneceu assim que a luz se acendeu.

– Se segura! – a rebelde gritou, jogando-se de costas contra parede da torre, que pareceu rodopiar quando um tipo de ventilador industrial foi acionado, fazendo um barulho extremamente alto. De repente, uma enorme massa de ar se movimentou.

            Com o acionamento muita poeira foi levantada, revelando que, embora não parecesse, aquele era um lugar inabitado que acumulava em seu interior muito do passado, inclusive sujeira. Órion se cortou com um pedrisco atirado contra o rosto e se sentiu enfrentando um vendaval de areia enquanto se esforçava para se manter firme naquele corrimão. O vento uivante ecoava no interior da torre criando uma cacofonia de sons agudos e estrondosos que reverberavam no espaço vazio. Através das fendas na estrutura, o ar sugava o que podia do buraco lá fora e cuspia de volta contra elas lá dentro.

            Lutando para manterem-se a salvo e não serem atiradas lá embaixo contra a vontade, as duas foram surpreendidas pelo som agudo de um sensor sendo ativado em algum lugar bem acima delas. Imediatamente a corrente de ar se intensificou ainda mais, transformando-se em uma tempestade realmente furiosa que as empurrou com força em direção ao chão. Órion esticou os braços engessados na escada, buscando meios para se segurar. Seu cabelo voava em todas as direções, chicoteando a testa e espalhando sangue, enquanto o corpo todo era sacudido pela força do vento.

– Nós precisamos sair daqui – Júpiter diz.

            Quer dizer, ela não disse, ao menos não verbalmente, mas foi como se dissesse, dentro da cabeça de Órion. Falou da mesma forma que Uiliam, só que sem os óculos intermediando a comunicação.

            Numa demonstração, a rebelde ficou em pé e escorou-se completamente na parede da torre, mostrando que desta maneira era possível se locomover e continuar a subida, mesmo que devagar. Com a luz acesa, deu para perceber que já haviam subido quase metade da escada, o que acabou servindo como estímulo.

            Com cautela, Órion rolou no chão e com muito esforço conseguiu se levantar, num empenho descomunal porque, além do vento forte, seus braços imobilizados não eram de muita ajuda. O ar, anteriormente agradável para respirar, se transformou numa névoa suja e pesada de poeira, dificultando ainda mais suas ações e ela só se ergueu depois de várias tentativas.

            Cada degrau se tornou uma batalha contra as rajadas intensas de vento que ameaçavam arrastá-las para trás, enquanto Júpiter e Órion se agarravam firmemente aos corrimãos e às paredes da estrutura da torre para evitar de serem jogadas em direção ao abismo lá embaixo. A primeira, notadamente acostumada a enfrentar obstáculos e desafios de todos os tipos, inclusive aquele, seguiu tão confiante que inspirou a segunda, que mesmo com limitações físicas manteve-se perto durante a subida inteira, de modo que em nenhum momento a perdesse de vista. A luz se apagou e o vento parou assim que Órion venceu o 480º e último degrau.

            O ambiente que acessaram era úmido e cavernoso, o limbo entre o mundo subterrâneo de Trevon e a Terra lá fora. O ar úmido e fresco, com aroma extremamente terroso, impregnava tudo ao redor.  

– Se prepara porque você está prestes a ver algo incrível! – Júpiter anuncia, ao entrar dentro de um buraco, num tom carregado de contentamento. Parecia cansada, mas a alegria se sobressaiu em sua voz.

            Órion a seguiu, sem conseguir imaginar o que poderia encontrar adiante. Depois da última declaração do tipo, Júpiter a levou para conhecer o incrível laboratório das rebeldes, então aparentemente tudo era passível de ser encontrado por ali.

            De repente, a turbina da torre voltou a ligar. Com o acionamento, alguns feixes invadiram o espaço fechado onde estavam, criando um cenário de meia-luz que adicionou uma aura de mistério ao local, produzindo um efeito com as partículas de pó que oscilaram como se fossem fadas bailarinas. Filtrados pelas fendas na terra, os raios de luz lançavam sombras irregulares e indistintas que dançavam nas paredes da apertada cova, ao gosto do vento que movimentava tudo na torre, logo atrás. Com a claridade foi possível ver que a área era particularmente pequena e se comprimia alguns passos adiante, até o buraco. Ou seja, para sair seria preciso engatinhar.

Tentando ao máximo não encostar as mãos no chão, Órion se agachou e se moveu lentamente. Seu corpo inteiro doía, principalmente o lado direito, e teve dificuldades em encostar o joelho no chão também porque o tecido da calça apertada limitava bastante seus movimentos.

            Depois de atravessar o buraco ela só percebeu onde estava quando pôde se levantar novamente alguns metros à frente e aí se viu simplesmente dentro do tronco de uma árvore enorme, milenar. Que infelizmente estava morta, por isso encontrava-se complemente oca, mas ainda assim permanecia majestosamente em pé, com resquícios de vida. Órion nunca tinha entrado em uma árvore, muito menos rastejado por dentro de uma raiz. Achou a experiência sublime!

A atmosfera ali era densa e carregada de umidade, como se a própria essência da floresta se recusasse a abandonar o santuário da árvore morta. A temperatura era agradável, tendendo a um clima mais abafado por conta do que pareceu ser um tipo de orvalho que gotejava lá de cima, da copa. Havia também um leve odor de decomposição vegetal no ar, diferente, que Órion não conseguiu identificar. Um cheiro de mata.

Com a sola dos pés, sentiu que o chão ali era mais gelado, quase úmido, forrado por um emaranhado de raízes menores que deixavam o solo irregular. Certamente era o mais diferente de todos que havia pisado até aqui. Combinava com a textura áspera e fria do tronco, percebido com a ponta dos dedos, depois que ela não se conteve e esticou o braço esquerdo para poder tocar. Órion se perguntou quantas outras mãos tiveram a oportunidade de encostar em algo tão especial e desejou ter a chance de um dia conhecer uma árvore viva.

Júpiter não disse nada, mas seu silêncio desta vez pareceu ter outro significado. Quieta, apoiou as duas mãos no interior do tronco e fechou os olhos por um momento, como se estivesse meditando ou se comunicando com algum antepassado. Seus dedos, marcados pelas agruras da vida, se curvaram levemente em torno das imperfeições da madeira morta, parecendo buscar uma conexão com a história gravada nas rugas daquela árvore. Concentrada, a subversiva parecia absorver a força de todo o lugar, ao mesmo tempo em que recebia orientações, ou se recarregava.

Embora o ambiente estivesse parcialmente escuro, a energia concentrada naquele ponto quase iluminava, tamanha potência. Por isso foi fácil ver quando Júpiter atravessou o diâmetro da árvore ainda em silêncio e se esgueirou pelo outro extremo da raiz, que dali certamente as levaria para o mundo lá fora.

O interior da árvore era realmente incrível, assim como Júpiter havia prometido, mas o lado externo conseguia ser ainda melhor, pelo simples fato de não ser subterrâneo. Constatar isso deixou Órion aliviada, assim que se pôs em pé perto do buraco da enorme raiz por onde saiu. Suja, com a roupa cheia de terra e vestígios do sangue que ainda escorria de sua testa, quis pular de alegria quando percebeu que tinham saído debaixo do chão, mas se conteve, pois estava cansada e ferida. Se deslocar exigiu muito de seu corpo e pensar nisso reforçou seu lado humano, fazendo com que sentisse fome também.  

Porém, ainda que não fosse exatamente uma convidada não quis atrapalhar sua anfitriã a interrogando com detalhes bobos, por exemplo, que horas se alimentariam ou se Júpiter pretendia dormir em algum momento. O mundo lá fora estava escuro, como sempre esteve, só que mais claro do que era lá embaixo, e na ausência das sirenes, Órion não tinha noção de que horas poderiam ser. Seu estômago roncando indicava que era algo perto do toque das cinco da tarde.

– É perigoso ficarmos aqui – Júpiter diz, anunciando com a fala também sua intenção de se deslocar – Mas agora falta pouco, não estamos muito longe – complementou na sequência, sem especificar o destino ou a distância. No mesmo instante o zumbido de um drone foi percebido, sobrevoando bem perto dali.

            Órion não fazia a menor ideia de onde estavam, tampouco para onde iriam. Considerando a fiscalização aérea, calculou que também haveria no entorno algumas câmeras de segurança espalhadas e com certeza radares do Comando, capazes de detectar seu chip. Mesmo que corressem escondendo-se nas sombras, no meio do caminho poderiam facilmente se deparar com sensores de movimento móveis, que tinham capacidade de alertar e mobilizar patrulhas robóticas que sem dificuldade se apresentariam ali em menos de um segundo.

Lá fora elas estavam infinitamente mais expostas do que nas galerias clandestinas de Trevon, especialmente Órion, que há dias representava um ponto piscante e luminoso no radar do CCC – algo que não seria um problema se por acaso Uiliam tivesse seguido seu pedido de desligá-la do sistema.

– Eu preciso que você se mantenha focada e corra – Júpiter diz, como se novamente falasse dentro da cabeça da policial – Não vou me desculpar por isso – emendou, sem explicar ao que se referia.

            Imediatamente após a fala, Órion sentiu a nuca latejar mais uma vez, da mesma maneira como aconteceu quando precisaram correr dentro do túnel. A sensação serviu de prenúncio para a dor que veio logo depois, quase tão intensa quanto a primeira.

– Ah, droga... De novo não... – Órion resmunga, frustrada por antecipação. Se por acaso não estivesse com os braços imobilizados e alcançasse o próprio pescoço, nesse momento teria tentado tirar o chip na mão. Arrancaria na unha!

– Precisamos correr. Agora, rápido! – Júpiter grita, saindo em disparada.

Mesmo descalça, os pés da rebelde produziram um som ao entrar em contato com o chão, indicando uma velocidade que Órion achou improvável de conseguir acompanhar. Seu corpo era inteiro alvejado por um mal-estar generalizado e até andar seria difícil, que dirá correr.

A dor que se irradiava pela nuca apertava seu pescoço como a mão invisível do Corpo de Comando e Controle, e esganava também sua cabeça e comprimia seu peito, afetando o fluxo sanguíneo de um jeito que os membros ficavam adormecidos, com um formigamento intenso e doloroso.

Embora houvesse um comando interno ordenando que corresse, até porque havia o sério risco de morrer se ficasse parada ali, Órion foi incapaz de se mover. Novamente ela não soube dizer se desmaiou, porque nessas horas sentia-se acometida por uma confusão mental que misturava passado e presente com devaneios do futuro, ao tempo em que seu corpo paralisava, ou criava vontade própria, considerando os espasmos que o chacoalhavam reiteradamente. 

Mas ao menos desta vez, talvez por estar em uma área aberta e não comprimida embaixo do chão, Órion manteve-se minimamente consciente do que ocorria à sua volta porque pôde perceber o momento exato que Júpiter voltou e se reaproximou. No meio da balbúrdia cerebral que a deixou fisicamente travada ao lado da enorme árvore morta, sentiu o cheiro da rebelde quando ela voltou para resgatá-la.

– Eu não acredito que você vai me fazer te carregar... de novo! – Júpiter reclama, acomodando-a em suas costas. Ela trançou os braços engessados de Órion na frente da barriga, travando os curativos de um jeito que deixou seus corpos bem próximos, com o rosto da policial colado em seu pescoço. O lábio de Órion se depositou em cima de uma veia que pulsava num ritmo frenético. Provavelmente por causa do esforço porque Júpiter não fazia o tipo emocionada.

            A corrida não durou muitos minutos, mas Órion perdeu a noção do tempo enquanto era transportada. Tanto que instantes depois de ter sido apoiada sobre o corpo ágil de Júpiter, logo já sentiu o afastamento entre as duas, com o frio se apossando do espaço onde a rebelde havia produzido calor, assim que foi posta no chão. Do mesmo modo como na ocasião anterior, a dor na nuca foi embora tão rápido quanto chegou, como se tivesse sido ligada e depois desligada, sei lá, através de um interruptor.

– Estamos seguras aqui – Júpiter anunciou, como se estivessem de alguma forma protegidas. Pareciam localizar-se na encosta de alguma montanha, considerando o eco de sua voz, que revelou a geografia do lugar. Porém, a entrada da caverna dava a impressão de ser bem ampla, com acesso fácil para qualquer tipo de invasor ou sensor.

            Ao fundo, um som bem longe, quase despercebido, sincronizou-se com as batidas do coração de Órion. Era a sirene do Comando, anunciando o fim do dia em Trevon. Um ruído simultâneo foi emitido de dentro de seu âmago, num rugido faminto de quem estava há muito tempo sem comer.

– Tá, já entendi, você está com fome – Júpiter resmungou, emendando um suspiro contrariado – Espera aí que vou ver o que temos por aqui...

            Seus pés produziram um sussurro conforme se afastava, demonstrando que a caverna era muito maior do que parecia. Sozinha, valendo-se apenas dos músculos do abdômen para se levantar do chão e gemendo involuntariamente de dor, Órion só conseguiu se sentar depois de despender um grande esforço. E ela nem teve tempo de esboçar nenhum tipo de reação quando, de repente e sem se anunciar, alguém surgiu sorrateiramente no meio do escuro e cravou algo afiado em cima de sua jugular. Imediatamente um fio de sangue quente desceu em direção à gola de sua camiseta desfiada e embora não pudesse ser visto, o rastro vívido e vermelho-escuro pôde ser sentido enquanto Órion tentava entender o ataque sofrido.

            Diferentemente de seu caminhar inaudível sobre o piso frio e liso antes de dar o bote, a respiração pesada de quem arremetia contra Órion era fácil de ser detectada e percebida. A proximidade a permitiu ouvir cada inspiração profunda e cada expiração ofegante, num som áspero e agitado. Longe de aparentar irritação, o agressor parecia era estar tomado por uma fúria desmedida.

– Faça um único movimento e eu juro que acabo com você em uma piscada – a pessoa disse, num tom feroz. A fala saiu entre os dentes, num contraste com seu timbre, de menina. Revelando se tratar de uma mulher, Órion não reconheceu como sendo a voz de ninguém do bando de Júpiter.

            Imóvel, ela nem teria como fazer algo para se defender, já que seus braços pesavam vários quilos com a atadura feita por Alec, mais cedo. Por isso obedeceu e ficou quieta, sentindo a ardência no pescoço aumentar de intensidade. A mulher permanecia pressionando o que parecia ser uma faca em sua garganta.

– Identifique-se! – ela ordenou, rosnando.

            Antes que sequer pudesse abrir a boca para responder algo, uma luz alaranjada iluminou todo o ambiente, revelando que a gruta, cravejada de milhares de pedras coloridas, era bastante ampla e profunda. Assim como Órion supunha, sua entrada era estranhamente devassada e no mesmo nível do chão, de modo que qualquer pessoa ou robô realmente conseguia entrar, se quisesse.

– É a Polícia! – a agressora gritou, tão logo o rosto de Órion se iluminou, junto com o ambiente.

Em um movimento rápido e preciso, a mulher chutou o peito de Órion com força, derrubando-a de costas no chão. Arfando, sem ar, instintivamente a policial levantou o braço direito para se defender, quando a mulher feroz virou o punhal em direção ao seu estômago, onde ficava o comando central dos robôs do CCC.

– Não! – Órion gritou, parecendo em vão – Thaian! – ela então chamou, ao reconhecer quem era a responsável por carregar o foco de luz. No caso, a amiga de Júpiter segurava um dispositivo que lembrava um graveto e emitia uma cintilação artificial parecida com a de uma fogueira.

            A menção ao nome certamente foi útil para frear a mulher enfurecida, que entretanto manteve a pedra que servia como arma suspensa no ar, numa posição que conservou a intenção do gesto e também a força aplicada. Pela expressão explícita em seu rosto ela parecia convencida estar diante de uma humanoide e disposta a desligar seu suposto sistema com apenas uma única pedrada, certeira.

– Gilles – Júpiter chama, com a voz serena, do fundo da gruta.

Esse chamado, sim, desarmou a rebelde em cima de Órion, que se desmontou assim que reconheceu a voz de Júpiter, embora não tenha se movido nem um milímetro. Rendida e sem ar por causa do pontapé que tinha levado, Órion considerou que um segundo de atraso certamente teria sido fatal e, ao respirar fundo, suspirou de alívio. Era só o que faltava, chegar tão longe para morrer agora!

Thaian manteve-se imóvel, estática, parada na entrada da caverna, com os olhos refletindo a luz que trazia na mão. Em nenhum momento não disse nada que pudesse barrar a ação da colega. Se por acaso Júpiter não aparecesse de repente, ela provavelmente teria deixado que a tal de Gilles acabasse com sua vida, sem tentar impedi-la. Nada novo, de novo.

Iluminada pela luz que ela mesma carregava, a rebelde parecia ainda mais perigosa no claro do que quando Órion a viu pela última vez, na cachoeira, lá embaixo. Seu rosto era salpicado de manchas escuras de sujeira e poeira, e inúmeras cicatrizes cortavam sua face quase inteira, dando-lhe uma aparência bastante hostil. Sob as sobrancelhas sujas, os olhos de Thaian brilharam com uma intensidade ferina ao cruzarem-se com os olhos da policial. De alguma forma, a mulher também parecia pronta e sem dúvida alguma disposta a acabar com a vida de Órion, talvez até mais rápido do que num simples piscar.

Ainda posicionada pronta para o ataque, Gilles ostentava a cabeça raspada, assim como Júpiter, e seu rosto não era conhecido – Órion até tentou resgatar na memória, mas em vão. E ela certamente se lembraria de alguém como aquela mulher, que tinha a lateral do crânio achatada, provavelmente por ter sido vítima de um golpe brutal e certeiro aplicado com alguma barra de ferro ou o cassetete da Polícia. Sua aparência, por causa disso, era um pouco desfigurada, com a testa e parte da maçã do rosto afundadas como se tivessem sido pressionadas para dentro, com a ação da pancada. Surpreendentemente ela ainda estava viva.

E igualmente admirável era o fato de Gilles ter sido capaz de reconhecer Órion – e visualmente, considerando que enquanto estava escuro, até que Thaian surgisse, ela pareceu acreditar que se tratava de uma pessoa qualquer, uma invasora. Sob a luz, contudo, ao ver o rosto de Órion, Gilles imediatamente a acusou de ser do CCC. E pelos movimentos que fez, revelou acreditar que a policial era algum robô.

– Encontrei esse protótipo no nosso esconderijo – Gilles exclama, exibindo dentes manchados – Você prometeu que aqui era seguro...

– E é seguro – Júpiter responde, impassível – Ela não é um robô, Gilles. Robôs não sangram – a rebelde aponta para o pescoço de Órion, sujo por causa do corte feito pela mulher.

            Robôs também não beijam e Júpiter tirou essa prova mais cedo, a beijando. O que mais será que pretendiam fazer para confirmar que Órion era bem humana?

– Fui eu que a trouxe até aqui – Júpiter então explica, aproximando-se delas.

– Mas... – Gilles resmunga, contrariada, olhando para Thaian por um breve instante.

            A mulher com a cara deformada encarou Órion com hesitação, como se procurasse em seu rosto pistas que denunciassem algo mecânico, de alguma forma não humano. Só então ela finalmente tirou a pedra de seu pescoço, abaixando-se para cheirar a região cortada. Não satisfeita, esfregou um dos dedos no rastro vermelho de sangue, cheirando mais uma vez. Fez isso sem desviar dos olhos da policial.

– Não entendo como é possível... – Gilles volta a resmungar e seu olhar torna-se repentinamente opaco, como se ela mergulhasse fundo dentro de si mesma. Ou conversasse com Júpiter em alguma frequência mental.

– Ainda acho que é muito capricho para o tanto de risco... A gente conseguiria sozinha, sem a ajuda dela – Thaian resmunga também, mas seu tom foi muito mais zangado. Se havia algum diálogo acontecendo por ali, ela com certeza era capaz de acessá-lo.

– Partimos quando? – Gilles pergunta, enfim saindo de cima de Órion, com os olhos voltando à aparência mais vívida. O que quer que tivesse sido falado entre elas foi suficiente e pareceu convencê-la.

– Antes da próxima sirene – Júpiter responde, postando-se atrás de Órion e ajudando-a a se sentar – Precisamos chegar até o fim antes do amanhecer.

– Certo. Estivemos bem perto de lá durante o protesto de 05 de maio – Gilles revela, sentando-se também. Seu gestual mostrava o quanto era capaz de ignorar a presença de Órion naquela caverna, bem ao seu lado – Na ocasião a Thaian até comentou que da próxima vez que voltássemos seria já para a etapa final. Quando fôssemos concluir o plano – ela comenta, fazendo um aceno para Thaian se aproximar.

– E foi tudo tranquilo, sem novidades? – Júpiter interroga, sentando-se entre Gilles e Órion que, embora à parte, permanecia ali.

– Sem novidades, tudo tranquilo – Gilles rebate, imediatamente – Mas a gente ficou morrendo de vontade de ver os robôs dançarem – ela dá uma gargalhada alta, que ressoa nas paredes da gruta.

– É, Cael disse a mesma coisa – Júpiter sorri, um sorriso cansado, enquanto desamarrava a trouxa das costas – Mas está tudo filmado, um dia podemos combinar de assistir, todos juntos. Por ora, fico feliz que embora tenham perdido vocês tenham conseguido avançar enquanto distraíamos o CCC lá na praça. Esse ano foi muito melhor que o ano passado.

– Mas desta vez nem teve o gato – Gilles ri, conferindo os itens enviados por Íris e outros ingredientes que Júpiter pegou na própria caverna.

– Ai, ainda bem que não – Júpiter ri também, mais relaxada – Imagina, no meio daquele caos, com bomba e tiro de polícia para tudo quanto é lado, quando viro, do nada me aparece o gato no meio da praça... Ainda bem que o CCC não consegue ver – ela ri mais alto.

– É, nem eu sei como é que ele foi parar lá... – Gilles confessa, agora sorrindo porque Thaian sentou-se perto delas – Nossa sorte é que na hora não tinha nenhum guarda humano para vê-lo porque com certeza um gato levantaria muitas suspeitas.  

            Então era isso. Uiliam já havia lhe mostrado, mas com o avançar da investigação, a informação acabou ficando meio de lado. Mas antes de descer, Órion já sabia que no protesto do ano passado, enquanto a Polícia avançava contra os manifestantes, Júpiter se abaixou no meio da praça e guardou um gato dentro da própria roupa. O fato não foi compartilhado com ninguém porque a imagem foi mostrada por Uiliam instantes antes de Órion descer infiltrada, o que de certa forma era bom porque ninguém da Polícia jamais acreditaria se ela mencionasse a possibilidade da existência de um gato. 

Agora, o que lhe causava estranheza era o fato de “o CCC não conseguir ver”, como Júpiter havia revelado, o que indicava alguma mudança na configuração das câmeras e dos robôs que os impediam de detectar qualquer felino. Por isso não existiam registros recentes. Ainda assim, porém, Uiliam conseguiu o feito de mostrar a ela. Como?

Por outro lado, hackear o sistema de vídeo pode ser simples, se com as ferramentas corretas. E aquelas mulheres pareciam ter uma coleção delas e inteligência suficiente para sabotar qualquer tipo de programa. 

Animais antigos, os gatos foram exterminados da Terra há vários anos; Órion mesma nunca tinha visto um pessoalmente. Quer dizer, até onde se sabia, não existiam mais gatos no mundo, ao menos não em Trevon. Mas Júpiter e seu bando aparentemente tinham um. Como isso era possível, ela não fazia a mais remota ideia, mas as rebeldes tinham até plantação de alho, cachoeira potável e, claro, um laboratório bem equipado. Ao que tudo indica, o mais difícil em se ter um gato era só a parte de mantê-lo longe dos olhos físicos do Comando.

            Gilles ainda tagarelava sobre o protesto que não pôde ver quando Júpiter e Thaian encenaram a cena de maior intimidade vista até aqui. Mesmo notadamente durona, Thaian demonstrou o auge da delicadeza ao limpar o rosto de Júpiter que, assim como Órion, também se feriu com os estilhaços disparados enquanto subiam a torre abandonada.

            Mais cedo, Júpiter havia revelado que somente Gilles e ela tinham chegado até o tal “final”. Ou melhor, até o “fim”. A rebelde usou este termo, duas vezes: agora e anteriormente, em sua conversa com Aness, quando ela lhe perguntou sobre o “souvenir” de Ptônio Niavva. A peruca de Cael. O DNA de Uiliam que perambulava com o grupo de subversivas embaixo da terra.

            Agora as três estavam ali, juntas, prontas para concluir o plano. Júpiter e Gilles conheciam os passos para chegar “até o fim”, e se Thaian estava com elas era por ser dotada de algum tipo de prestígio. Pelo cuidado limpando o rosto de Júpiter, Órion desconfiou qual seria.

            Foi assim que a policial percebeu que os testes contra ela, demasiadamente humanos, impostos por Júpiter e sua turma, envolviam tesão despertado por um beijo molhado, sangue provocado por facada na veia e agora ciúmes, que a queimou por dentro mais do que a fome que já a devorava.

            Com raiva, mas incapaz de desviar o próprio olhar, Órion só resistiu a se atirar no drama que começou a se criar dentro dela porque um barulho subitamente a despertou. O som, vindo da entrada da gruta, se assemelhava a um pequeno motor que foi aumentando de volume sem que nada indicasse nenhum tipo de movimentação. Todas se calaram ao escutar aquilo, mas ninguém transpareceu o menor traço de preocupação.

– A barreira de contenção da caverna é toda feita por uma matriz avançada de nanorrobôs dispersos no ar, nos camufla até dos olhos físicos, robô nenhum nos detecta, câmera alguma nos vê, mas o gato sempre passa pelo bloqueio, é impressionante – Gilles puxa o animal para o colo. O bicho notadamente era o responsável por emitir aquele som, que tinha o incrível poder de acalmar – Você é foda, cara – ela beija o bichano e espirra duas vezes.  

– É, Ostrac e Niavva podiam perfeitamente gostar de cachorro, de peixe, de minhoca... – Júpiter foi listando nos dedos – Minhoca teria sido muito apropriado! Mas não. Foram gostar logo de um ser indomável como um gato – ela acaricia o bichinho, rajado de amarelo.  

– Não, quem gostava de gatos era a Uiliam – Gilles corrige.

– Uiliam? – Órion se ouviu dizer. Ao perceber que perguntou em voz alta, emendou um pigarro e tentou tossir. Inutilmente, porque todas a escutaram perfeitamente.

– Uiliam, a amante de Ptônio Niavva – Thaian responde, com os olhos brilhando de satisfação. Ela escolheu um tom ardiloso para falar, como se soubesse que aquele era um ponto sensível de Órion.

– Uiliam é uma policial que trabalhou infiltrada em Trevon, alguns anos atrás – Júpiter também responde, quase ao mesmo tempo. Ao contrário da amiga, escolheu um tom mais ameno e informações muito mais relevantes para compartilhar – Ela foi designada a investigar o suposto sequestro de um bebê do Comando quando conheceu o Niavva. Os dois se apaixonaram perdidamente e, junto com Idélia Ostrac, construíram o laboratório que você conheceu lá embaixo.

            Uauuuuu!, Órion gritou. Mas desta vez conseguiu que fosse uma manifestação estritamente mental.

– Ela não ajudou a construir – Thaian corrige, impaciente – Quando os dois se conheceram, o laboratório já existia.

– Sim, mas com a ajuda da Uiliam, Ostrac e Niavva não foram denunciados e por isso o laboratório existe até hoje – Júpiter emenda, erguendo os ombros. Seu corpo dizia que aquele era um detalhe meramente semântico.

            Imediatamente, infinitas perguntas surgiram na cabeça de Órion, em forma de enxurrada. Uiliam por acaso saberia para onde estava indo quando a Comandante ordenou que a acompanhasse por Trevon? Porque certamente Aira Acachi conhecia o histórico dela. Ou haveria algo que não passasse pelo conhecimento da maior patente do CCC? Órion desconfiava que não, o que a levou a crer que sua comunicação foi toda gravada, inclusive enquanto permaneceu sem sinal.  

Longe de ser um teste para Órion, sua missão parecia agora representar na verdade uma prova para Uiliam, por seu histórico com aquele lugar. E ela discretamente não deixou transparecer, em momento algum, a pessoalidade que guardava com o caso, mas ainda assim deu sinais. Por exemplo, quando mencionou a respeito da peruca. Por que será?

Talvez por isso a policial tenha negado constantemente os pedidos de Órion para desligar seu chip e desativá-la do sistema. Se a Comandante do Comando estava realmente na frequência, copiada na conversa entre elas, uma atitude como essa acarretaria punições incalculáveis para Uiliam, que já parecia estar sendo duramente castigada, ao ter que trabalhar fisicamente confinada no prédio R. O “prédio das aberrações”.

Pela primeira vez, Órion ficou satisfeita por não pertencer mais à Polícia, mesmo que legalmente continuasse vinculada ao CCC. Porque se as sanções contra Uiliam já seriam duras, para o caso de ela desligá-la, a punição imposta contra Órion por persuadir uma oficial a fazer isso seria muito pior.

Em outras palavras, agora era ainda mais importante fugir dos radares do Comando, porque se antes os robôs já a machucaram sem saber quem ela era, com certeza seriam muito mais cruéis se a abordassem sob este comando. E eles agiriam exatamente assim, com violência, Órion não tinha dúvidas.

– Às vezes, uma única resposta dispara outras milhares de questões – Júpiter sorri. Ela sem dúvida lia os pensamentos de Órion.

– Mas... – Órion fala, com um pigarro. Não conseguiu se conter, tinha mesmo muitas perguntas, sentia-se quase se afogando em meio a tantas indagações novas – O Niavva não era um cientista do CCC?  

– Tem muita gente disposta a mudar de rumo quando descobre do que a vida é feita – Júpiter explica, num tom poético, porém sincero – O fato de Ptônio Niavva ter sido criado e escravizado pelo sistema não o impediu de ver que existia o outro lado. O lado humano. Ele e Idélia Ostrac revolucionaram Trevon por causa disso. Uiliam também, ao seu modo.

– E o bebê? – Órion questiona – O que houve com o bebê que Uiliam investigava, supostamente sequestrado, antes de ela e Ptônio se conhecerem?

            Júpiter se limitou a responder erguendo novamente os ombros, como se aquilo fosse apenas um simples detalhe. Pela expressão em seu rosto, não pareceu esperar por aquela pergunta, havendo tantas outras que poderiam ser feitas no lugar. Talvez porque detivesse todas as respostas.

            Órion não perguntou mais nada porque se deixou ser consumida pelos próprios pensamentos. Enquanto se alimentava com as sobras descartadas pelo Comando observando o gato comer o que pareceu ser uma ração enviada por Íris, sentiu que a revelação de que Uiliam sabia da existência do laboratório serviu como a ponta de uma linha que, ao ser puxada, revelou um novelo muito mais complexo do que jamais imaginou ter que costurar. Nunca cogitou que sua missão estivesse tão relacionada com a da colega!  

            A questão era saber por que a Comandante decidiu enviá-la de volta a Trevon, ainda que vendo o mundo pelos olhos de Órion. Aira Acachi não era do tipo que dá ponto sem nó; absolutamente tudo sempre passava por ela, então ela simplesmente sabia de tudo, sempre. Sabendo disso, que outra relação poderia haver entre Órion e Uiliam, além da investigativa? Seu instinto gritava que com certeza havia algo a mais.

            Cansada, assim que finalmente terminou de comer, Órion recostou-se numa pedra, longe de estar satisfeita, mas pelo menos não sentia-se mais com tanta fome. Seus pensamentos estavam compreensivelmente acelerados, mas seu corpo implorava por descanso. A temperatura na caverna era propícia para isso, bastante amena e agradável, e mesmo iluminadas as paredes projetavam um clima calmo de tranquilidade. Combinava com o ronronar do gato, deitado bem ao lado, que serviu para embalar seu sono.

Exausta depois de um dia extenuante, Órion cochilou sem perceber, mas reparou o momento em que Júpiter se recolheu para dormir porque, para se aquecer, a mulher se encostou em seu corpo. Ela deitou-se às suas costas, amoldou o quadril em sua cintura e se aninhou, como se fosse uma peça de quebra-cabeça que faltasse. Seus corpos ajustaram-se naturalmente, parecendo ter sido projetados para se encaixar. Com os braços quebrados esticados para a frente, Órion permitiu-se ser abraçada por um braço forte que, longe de pesar sobre ela, despertou um sentimento gostoso de proteção e aconchego.

As pernas da rebelde se engataram sobre as suas, trançando-se numa junção perfeita e quentinha, coordenada. Com a respiração suave de Júpiter roçando seu pescoço, Órion experimentou as horas de sono mais agradáveis que teve em toda a sua vida, mas que infelizmente foram encerradas da pior maneira, no susto.

            No meio da madrugada, cobertas pelo silêncio enquanto todas dormiam, um estrondo ensurdecedor irrompeu de repente no ambiente, estremecendo as paredes da gruta, que tremeram junto com o chão. Tentando se segurar em algo, sem alcançar a mão de Júpiter, Órion acordou confusa, com a impressão de que o mundo inteiro desmoronava. Ou o CCC investia em algum ataque pesado, derrubando montanhas como aquela em que se encontravam.

– Nós temos que sair daqui – Júpiter grita, puxando Gilles e depois Thaian – A Polícia nos achou, vamos, precisamos correr – ela insiste, tirando Órion do chão.

            O barulho alto e crescente do que pareceu ser um terremoto raivoso ecoou novamente pelas paredes da gruta, causando uma melodia estranha com as rochas rolando e se chocando enquanto tudo chacoalhava, afundava e cedia. Poeiras e detritos começaram a chover do teto, que tremeu assim que se puseram a correr no escuro. Pedaços de pedras enormes se soltaram e caíram velozes em direção ao chão, causando uma troada que lembrava a explosão de um canhão. Mesmo com a lanterna de Thaian acesa, a cortina de fragmentos rochosos rapidamente obscureceu a visão de todas.

            No meio da confusão, Thaian vacilou por um segundo, parando durante a fuga. Aos gritos, afirmou ter ouvido o miado do gato, que podia estar preso debaixo de alguma pedra. Foi um breve momento de hesitação enquanto ela olhava para os lados, mas tempo suficiente para ser atingida por um penedo do tamanho de uma nave, que se soltou do alto, bem em cima de onde estava. Instantaneamente a massa firme a esmagou sobre o solo rochoso, prendendo suas duas pernas.

– Não! – Gilles gritou, voltando em sua direção, apesar dos tremores e perigos que envolviam a caverna em colapso.

– Vão, vocês precisam sair daqui – Júpiter empurra Gilles e Órion para a direção contrária, voltando para resgatar Thaian.

            Valendo-se de toda a sua força, Júpiter puxou os dois braços da amiga presa, que gritou junto com ela por conta do esforço, ou de dor. O granito maciço nem se moveu, mesmo diante do empenho para tirá-lo dali. As rochas continuavam caindo ao redor delas, enchendo o ar com uma névoa cada vez mais densa, impregnada por um odor acre.

– Você precisa ir, mana... – Thaian diz, claramente desistindo de lutar. Seu tom de voz foi de lamento e derrota – Acabe com eles por mim, por todos nós, faça tudo brilhar!

– Thaian, não! – Gilles grita, tentando também tirar a pedra de cima da amiga. Seus dedos cavaram desesperadamente as fendas e saliências da rocha maciça, na tentativa desesperada de encontrar alguma alavanca para libertá-la. Em vão.

– Gilles, vocês precisam sair daqui! – Júpiter grita, puxando Thaian mais uma vez – Vai! – ela insiste, urrando após a terceira tentativa de puxar Thaian debaixo da pedra imensa.

            Forçada a correr depois que Júpiter a empurrou mais uma vez, Órion seguiu o rastro de Gilles, quase como se conseguisse enxergar, apesar do caos que reinava dentro daquele lugar. Instintivamente desviou de pedras de variados tamanhos que caíram perto de atingi-la e cada vez que uma rocha maior desabava próximo delas, o chão tremia em dobro, dando a impressão de que em algum momento se abriria e as engoliria com a gruta que despencava.

Junto com um último grito sentido de Júpiter, Órion ouviu atrás de si o alvoroço geográfico provocado quando a caverna ruiu e tudo desabou, formando uma nuvem imensa de poeira que, lá fora, foi visível contra o céu poluído. O que se seguiu depois disso foi um silêncio ensurdecedor.

 


                                                  (continua, aguarde...)


Clique aqui para acessar o menu completo com todas as histórias.

Ajude esta escritora independenteclique aqui e faça uma doação
Você não precisa se identificar, se não quiser! 
💙


Postagens mais visitadas