Trevon 5
5. Júpiter
No instante
em que a sirene de Trevon começou a tocar lá em cima, a expectativa imediatamente
preencheu cada centímetro quadrado daquela caverna iluminada lá embaixo,
conforme previsto por Órion, que claramente não era a única que aguardava ouvir
aquele som. Pela movimentação, ficou evidente que havia uma ansiedade
generalizada pelo retorno de Júpiter, é claro, mas parecia existir também uma espera
para algo que seria feito a partir de sua soltura. A ansiedade se estampou no
rosto de cada uma e de repente todas ficaram bastante animadas, comemorando a
sirene como se aquilo já representasse algum tipo de êxito.
Por não
conseguir entender o motivo da celebração, Órion compreendeu o que Uiliam havia
comentado mais cedo sobre ter ouvido conversas veladas enquanto estivera na
companhia de Alec. As mulheres agora mesmo pareciam conversar sem dizer muita
coisa, mas não porque se preocupassem com a possibilidade de que aquilo que era
dito vazasse de alguma forma; parecia só ser um hábito mesmo, como se
estivessem acostumadas a falar desse jeito.
O curioso é
que na perspectiva da Polícia a primeira sirene era simplesmente detestada por praticamente
toda a população, o que contrastava com a reação das rebeldes, que batiam
palmas e os pés em consonância com o que pareceu ser algum tipo de grito de
guerra. É verdade que aquele era o sinal de que estava permitido sair às ruas,
mas ao mesmo tempo também indicava o começo das Horas Úteis, que representava o
início de muitas jornadas de trabalho que terminariam dali quase 12 horas, perto
de quando soasse a próxima sirene. Órion demorou alguns segundos para se
lembrar de que estava junto de um grupo que não trabalhava e que tampouco fazia
questão de ir lá para fora. Era difícil não pensar com cabeça de policial!
Ainda
assim, a alegria lhe pareceu desproporcional e mesmo se esforçando ela não
conseguiu assimilar tamanha inquietação com tantos toques e contatos físicos que
ocorreram de diferentes formas. Não sabia que as pessoas faziam isso quando
estavam felizes, em partes porque nunca tinha visto alguém feliz. Contabilizou
três abraços entre as integrantes do bando sem que houvesse o menor motivo para
isso, apenas nos primeiros segundos do sinal sonoro.
Reparou que
os troncos ficavam encostados, bem juntinhos. Talvez “espremidos” fosse uma
palavra melhor. Colados, dos ombros aos ossos do púbis. Algumas cinturas se roçavam,
outras não, mas os braços sempre davam voltas por trás das costas, como se
enlaçassem. Órion achou o abraço um gesto muito bonito de se ver pessoalmente,
mas muito íntimo também. Não se imaginou fazendo algo do tipo com alguém,
embora tenha sentido vontade de experimentar.
– Está
chegando a hora, mulherada, se preparem! – Thaian diz, com sua voz imponente e
poderosa ressoando entre as paredes de rocha. Um sorriso meio exagerado
estampava seu rosto. Descomedido – Quem ficar por último que apague a luz!
O
comentário fez todas gargalharem, exceto Órion e Uiliam que, observando à
agitação iniciada pela sirene, percebeu que a policial se apegava a certos
detalhes que ela própria daria pouca importância, para não dizer nenhuma. Por
exemplo, agora mesmo Órion observava um beijo molhado entre Alec e Minu, que claramente
eram um casal e só afastaram os corpos de dentro de um abraço depois que a
sirene parou de tocar. Na opinião de Uiliam, Órion deveria investir tempo e seu
foco para estudar o gestual de Thaian, que falava mais do que as palavras que
ela proferia. Sua ficha no sistema da Polícia não indicava nada de grave, mas talvez
por instinto Uiliam considerou que a forma como Thaian encarava Órion merecia mais
atenção.
– Quando a
Ju chegar a gente precisa comemorar de novo! – Eoni fala, estendendo um dedo
para o alto, conseguindo a atenção do bando – A gente segue o plano, mas
comemora a volta dela antes.
Órion estava
se comendo de curiosidade para saber que raios de plano era esse, qual seria a
meta, o objetivo traçado, quanto já teriam avançado desde o começo de sua
execução, em qual estágio exato estariam agora. De tudo o que havia pesquisado
no último ano inteiro, e foi bastante coisa, nada em nenhum momento indicou a
mais remota possibilidade de algo grandioso estar acontecendo em Trevon, e bem
debaixo dos olhos do CCC.
Pensar
nisso a fez sentir um pouco de vergonha alheia porque era muito embaraçoso observar
como o Comando era refém de uma situação assim. A incompetência do órgão em
vigiar a população que o sistema supostamente controlava era cristalina e se
encontrava completamente exposta. Que constrangedor!
Seu faro policial
gritava alto e em bom som que essa história de plano, qualquer que fosse, com
certeza tinha ligação com o desvio dos drones no ano passado e lembrar-se dos
robôs dançando no protesto de três dias atrás a irritou brevemente, porque
agora Órion sabia que realmente tinha algo acontecendo. E era coisa grande!
Analisando
o que se passava neste momento dentro daquela gruta, sentiu falta de seu
capacete e de todos os gadgets da Polícia, úteis para organizar anotações,
suposições e pensamentos. Órion era perfeitamente capaz de montar quadros
mentais, mas poder visualizar as referências tornava a tarefa de investigação
muito mais prática e ágil. Sabia, é claro, que com os aparatos do CCC ela
jamais teria conseguido chegar tão longe, mas ainda assim temeu que a falta das
ferramentas de trabalho afetasse de alguma maneira sua capacidade
investigativa.
Quando
considerou a possibilidade de descer para ver de perto o que Júpiter estaria aprontando,
de imediato soube que o grande empecilho de se fingir de civil era não poder
contar com as facilidades que a tecnologia do Comando propiciava, mas agora constatava
o quanto era dependente de tudo isso também. Desconcentrada, não soube por onde
começar.
– Eu posso
organizar todas as pistas e informações para você – Uiliam diz, acompanhando
seus pensamentos preocupados – Temos os drones desviados do protesto passado e
os robôs bailarinos deste ano. São eventos relacionados, ok. Aí Eoni e Aness te
desviaram, você desceu por aquela escada clandestina, veio a emboscada, um
grupo de rebeldes aparece...
Conforme
Uiliam listava, Órion quase conseguiu contemplar o quadro que a colega montava com
a ajuda de um software específico para isso, que separava os assuntos
por colunas. Organizar as pistas de uma investigação era a primeira lição
repassada aos cadetes da Polícia, que precisavam do auxílio de computadores
para realizar esse afazer. Ou dispositivos eletrônicos implantados diretamente no
cérebro. Ela não tinha nem uma coisa e nem outra.
– Registra aí: mais de 50 horas despistando
dois robôs, ouvi uma menção a “Horas Mais Úteis”, o que indica que com certeza
há quem saia de Trevon à noite... – Órion complementa – E tem o gato, Uiliam.
Não esquece do gato.
– Certo – a
policial diz – Sumo de alho, cânhamo, som de água – ela continuou anotando – Analisei
nos últimos minutos a rota feita entre aquela escada clandestina e essa caverna,
e aparentemente trata-se de uma subida. Você está numa rota feita de aclive,
como se fosse um tipo de rampa. A diferença entre aqui e o último posto habitado
por marginais é de 2km para cima e 11 em linha reta.
– Como elas
me trouxeram até aqui? – Órion pergunta porque foi inevitável não pensar no
trabalho que esse deslocamento teria causado. Poderiam simplesmente tê-la abandonado,
a largado para trás, mas em vez disso a puxaram junto com o bando, por vários
quilômetros de subida.
– Não sei
dizer, houve um momento de desencontro depois que você foi atacada e essa turma
de rebeldes te resgatou. Quem te carregou e te trouxe para cá foi aquela ali –
Uiliam comenta e por algum motivo Órion imediatamente soube que a policial se
referia à Thaian – Mas quem pediu para te salvar depois do ataque dos robôs foi
a outra, que ainda ficou algumas horas com os óculos dentro do bolso – ela
complementa, falando agora de Eoni – Foram precisamente três horas, até que enfim
os entregasse para Alec, em outro ponto, 12km adiante. E depois se passaram mais
dois dias até que Alec reencontrasse Eoni. Foi quando reestabelecemos o nosso contato.
Órion achou
aquilo estranho e considerou que algo no relato não fazia sentido. Por que
Thaian teria aceitado salvá-la em um momento, se depois, logo na sequência, dava
a entender que sua presença não era bem-vinda junto ao clã? Desde que havia
acordado a mulher era a única que ainda não tinha se aproximado dela, afinal. E
nem parecia fazer questão de algum tipo de contato, considerando o olhar ressabiado
que lançou em sua direção enquanto Órion amarrava tudo isso em pensamento. O
que teria mudado no meio do caminho?
Nenhum
manual da Polícia ensinava a lidar com a instabilidade humana, em partes porque
as pessoas eram tratadas como seres desprovidos de qualquer tipo de
inteligência emocional. Se havia algo, resumia-se a sentimentos considerados extremos,
sempre fortemente combatidos pelo CCC porque representavam risco para a ordem e
a segurança de Trevon. Essa era a alegação oficial, ao menos.
Ainda que
fosse uma policial astuta, o problema de Órion é que ela não tinha o menor traquejo
social e isso lhe criava dois problemas diferentes: primeiro, havia o fato de
que não contava com nenhuma bagagem prática propriamente dita e, em segundo
lugar, a falta deste conhecimento a fazia criar teorias das mais variadas e a
maioria a colocava sempre em algum tipo de perigo. Isso transformou Thaian em
uma óbvia ameaça.
Também,
pudera, assim como acontecia com todas as pessoas, ao nascer Órion foi
encaminhada para o Corpo de Comando, que a criou e a educou, como fez com todas
as crianças sob sua tutela e que mais tarde também viraram agentes da lei a
serviço do CCC. Todavia, ao crescer e decidir não fazer nenhuma alteração no
corpo, A-348 foi sendo cada vez mais isolada dentro do agrupamento ao qual
pertencia. Primeiro, pelo próprio Comando, que tentava persuadi-la para que ela
mudasse de ideia; depois, passou a ser excluída pelos colegas, que viam em sua
coragem de se manter intacta um verdadeiro ato de covardia.
A falta de modificações
corporais, por sua vez, a empurrou para o serviço burocrático, que forçou Órion
a um trabalho maçante e solitário. O prédio da Expedição, por exemplo, onde
trabalhava desde sempre, não era habitado por mais ninguém, para se ter uma
ideia.
Por causa
disso, o isolamento enfrentado durante toda a vida foi muito mais austero que aquele
vivenciado por seus colegas de corporação. E a situação toda se agravou quando
Órion não conseguiu escolher um parceiro amoroso/sexual, porque aí todos ao seu
redor se casaram e pareceram mudar de patamar por causa disso, numa escala
injusta construída e alimentada por um sistema que estimulava os policiais a
tomarem decisões que Órion nunca quis. Ou que jamais conseguiu.
Naquela
caverna, ao mesmo tempo em que pacientemente aguardava a volta de Júpiter e tentava
traçar o perfil de Thaian, Órion considerou que enquanto tratava as pessoas
como meros corpos se movimentando para cá e para lá, tudo era muito mais fácil
de lidar. E em partes chegou a essa conclusão porque ineditamente sentia-se
acolhida de alguma forma, até mesmo cuidada e protegida, algo que nunca
considerou ser necessário, o que transformava radicalmente a ideia de rejeição.
E esse foi o primeiro motivo que a fez querer descobrir o que teria provocado a
mudança de comportamento da subversiva que atendia pelo nome de Thaian.
Ao planejar
a investigação, antes de descer para a verdadeira Trevon, a policial não
considerou que poderia ser um desafio ter que lidar com as pessoas envolvidas
naquela missão, muito menos que o desprezo de uma civil pudesse representar algum
contratempo. Órion não imaginou que sequer havia o risco de ter que se ocupar
com isso. Mas agora, uma vez que era tarde demais para se arrepender pela falta
de um preparo mais direcionado, considerou que era preciso trabalhar com as
ferramentas disponíveis, e rápido, porque reconhecia o poder de persuasão de
Thaian em relação ao seu grupo. Bastava um “a” vindo dela e tudo acabaria antes
mesmo de começar. Então era fundamental descobrir o que teria acontecido nas
horas em que ficou desacordada, sem os óculos.
Humanos
eram imprevisíveis, emocionados e surpreendentes. Órion sabia que também eram
inconstantes e não costumavam seguir nenhuma lógica quando porventura suspeitavam
de alguma coisa. A desconfiança os transformava em seres ariscos e arredios, e
foi refletindo sobre isso que concluiu que Thaian provavelmente suspeitava de
algo. Isso justificava uma mudança em seu comportamento e claramente
representava uma ameaça para a investigação em curso.
Uiliam
preferiu não interferir na linha de pensamento porque embora tenha se valido de
outros métodos, Órion chegou à conclusão que ela esperava que fosse alcançada.
Parecia mesmo haver algo de errado com Thaian e era fundamental considerá-la
suspeita, assim como manter-se vigilante quanto suas ações. Cautela e prudência
nunca fizeram mal a ninguém, afinal.
– De alguma
maneira ela sabe, só pode ser isso. Essa Thaian conseguiu descobrir que eu sou uma
policial do CCC – Órion declara, convicta.
Sua
mensagem chegou um pouco fraca até Uiliam, pois Alec caminhou com os óculos até
quase a saída da gruta e a distância de mais de 5m afetava a comunicação entre
as policiais, que precisavam de um mínimo de proximidade para que funcionasse o
pareamento entre a tecnologia embutida nos óculos e o chip que Órion tinha
implantado na nuca sob a pele.
– Se ela tivesse
mesmo descoberto que você é da Polícia já teriam te matado – Uiliam rebate,
alguns segundos depois. Seu argumento, válido, chegou com falhas e carregado de
ruídos – Parece que tem alguém se aproximando.
– É a
Júpiter? – Órion pergunta, animada com a possibilidade – Uiliam? – ela chama,
mas a colega não responde.
– Órion? –
Eoni se aproxima, com seu sorriso amigável – E aí, você está bem? Como estão
suas pernas? Consegue andar, quer dar uma levantadinha para esticar um pouco os
músculos?
– ... uma conversa...
comprovar sua história... – Uiliam dizia algo dentro da cabeça de Órion, ou ao
menos tentava. A mensagem soava incompleta e com chiado – ... tramando contra
você... na ficha da Polícia... nada no sistema... – a policial continuou.
– Não sei
se consigo... – a resposta foi para Uiliam, mas também servia para Eoni, por
isso foi dita em voz alta. Era impossível compreender o que a mulher dizia e
Órion de verdade não sentia-se capaz de se levantar.
– É
importante tentar! Peraí, vou ver se alguém me ajuda – Eoni diz, indo atrás de
Minu, a mais mirradinha do grupo.
– Uiliam? –
Órion chama, mas foi como se apenas pensasse sozinha porque não recebeu nem
mesmo um sussurro como resposta – Você disse que eu estaria segura aqui, mas estão
querendo que me levante. É possível que em algum momento seja necessário deixar
essa caverna também.
– Bora,
Órion – Minu diz, aproximando-se com Eoni, batendo palma duas vezes – Nós vamos
tirar você desse chão – ela emenda, convencida de que realmente faria isso.
– Eu não
sei se...
Órion se
cala porque Eoni se abaixa e sem dizer nada puxa seu braço engessado para cima
do pescoço dela, a segurando perto da cintura. O gesto foi copiado por Minu, do
outro lado, que apesar de pequena era bem forte.
– Ah, não, por favor, me solta, me solta... – Órion
resmunga, sentindo a dor irradiar em várias partes dos braços quebrados, ao
serem esticados para cima. Parou de se lamentar apenas porque embora a um preço
altíssimo ela conseguiu ficar em pé, sustentando quase sozinha o peso de seu
corpo. Suas pernas estavam trêmulas, mas creditou a fraqueza à falta de
movimento nos últimos dias.
– Nossa, você
é muito molenga! Como foi que sobreviveu tantos anos lá em cima? – Minu
questiona, mas não parecia ser uma pergunta séria porque foi feita com um
sorriso.
– Meus
braços... – Órion balbucia, mas não diz mais nada.
Estava
contente por conseguir ficar em pé, inclusive por conta própria, depois que
Eoni soltou sua mão. O sentimento de alívio contrastava com seus olhos
lacrimejados e com a dor que realmente latejava forte em diferentes pontos,
principalmente no braço direito, mas ao menos suas pernas não estavam tão danificadas
quanto imaginou e constatar isso foi muito gratificante.
Ela então
esticou bem as costas, alongando os músculos que estiveram em total descanso
por quase três dias, puxando os ombros para perto das orelhas, ouvindo os
estalos dos ossos se reencaixando, conforme ampliava o movimento, respirando
fundo, enchendo os pulmões com o ar úmido e fresco da caverna. Na sequência, permitiu
que suas mãos pesadas caíssem em direção ao chão, soltando o ar bem devagar, descendo
os ombros para baixo enquanto estendia o pescoço para frente, ampliando sua
consciência corporal.
Aproveitou
a oportunidade e tentou se espichar o máximo possível, o tanto que conseguiu, uma
vez que encontrava-se limitada pela tala que pesava os dois braços para baixo, mas
ao encostar o topo da cabeça no teto da caverna imediatamente se enrijeceu, percebendo
ser bem mais alta que as mulheres perto dela. Quase todas pareceram reparar neste
detalhe ao mesmo tempo que Órion, ou sua mente boicotadora é que a fez
acreditar nisso enquanto se contraía, tentando disfarçar a própria estatura
(como se fosse possível).
Por causa
disso, achou por bem voltar a se sentar, ainda que sua vontade fosse permanecer
em pé, mas ao menos no chão não chamava tanta atenção. Para voltar a se
acomodar em cima de sua esteira desgastada contou com o auxílio de Eoni, sempre
prestativa, que lhe deu o apoio necessário, passando o braço atrás de suas
costas, com uma das mãos a segurando firme pela cintura.
– Está
vindo alguém! – Aness fala e seu anúncio desperta automaticamente um alvoroço
entre as rebeldes.
– Não é a
Júpiter – Uiliam afirma, dentro da cabeça de Órion, praticamente ao mesmo
tempo, assim que a comunicação entre as policiais foi reestabelecida – O nome
dela é Íris. Trouxe alimentos e informações. Fique atenta e cuidado com tudo o
que for falar.
Nem seria preciso
anunciar que quem chegava não era Júpiter, porque de longe foi possível
constatar que se tratava de outra pessoa, que em nada se parecia com o foco de
Órion. Quer dizer, com o foco de sua investigação. A mulher que surgiu
acompanhada por Alec e por uma Thaian visivelmente preocupada tinha o corpo comprido
e esguio, cabelos curtos e olhos diligentes, que varreram a caverna inteira até
localizar Órion sentada no chão.
Seus braços
eram cobertos por tatuagens de gosto duvidoso, ou eram apenas machucados em
diferentes fases de cicatrização e que a distância se pareciam com desenhos mal
feitos. A marca de um corte profundo dividia sua sobrancelha em duas e descia
na transversal pela bochecha, provocando um sulco na lateral do rosto, próximo
à boca. A mulher tinha um rosto marcante, fez Órion imediatamente ter a certeza
de já tê-la visto antes e tentou buscar na memória qual teria sido a ocasião em
questão. Alguém como ela era difícil de se esquecer.
Sem dizer
nada, Íris largou no meio da caverna a trouxa de pano que trazia amarrada nas
costas, atraindo as rebeldes para perto da comida que carregava ali dentro. O
tempo todo manteve os olhos em cima de Órion, de um jeito inquiridor.
– Então quer
dizer que você esteve presa lá em cima – Íris finalmente fala, em tom de
pergunta, embora tenha sido uma afirmação.
A mulher sentou-se
ao seu lado e bateu as mãos nas pernas para tirar a poeira acumulada durante o
trajeto até ali, tossindo ao fazer o esforço, com o peito carregado chiando
alto. Hematomas em diferentes tons de roxo se revelaram escondidos debaixo do
pó, principalmente nas coxas.
– É, eu... –
Órion balbucia e se cala. Finalmente se lembrou da abordagem realizada em Íris,
antes de ela ganhar a cicatriz no rosto.
– Cuidado
com o que vai responder – Uiliam recomenda, assim que Órion abre a boca.
– Cadê a
Júpiter? – Eoni pergunta, ao mesmo tempo. Pareceu frustrada por ver que a
mulher havia chegado sozinha, acompanhada apenas por um punhado de comida –
Íris? – ela insiste, porque a amiga não lhe dá atenção.
– Eu não
sei, ela não está comigo! – Íris respondeu, parecendo irritada num primeiro
momento. Mas logo foi possível perceber que estava apenas tomada pela mais
sincera frustração, quando deixou os ombros caírem, num claro desalento – Está
uma confusão terrível lá para cima... A Polícia está emputecida, revistando
todo mundo e prendendo um monte de gente.
– Na rua? –
Minu quer saber, agachada ao lado da trouxa de comida. Cortou um pedaço de pão seco
com as mãos encardidas e lambeu as migalhas que caíram em cima da perna, como
se estivesse se preparando para saborear um verdadeiro banquete – Ou a confusão
é dentro de Trevon?
– Na rua e dentro
de Trevon. Está cheio de barricada perto dos elevadores do CCC... ergueram
várias trincheiras em torno das saídas da cidade e nas entradas das fábricas.
Um caos! Os primeiros níveis estão tomados de mulas, geral está levando
enquadro... – Íris relata.
– Ué, mas
por quê? – Aness pergunta, com a boca cheia – Qual é o motivo da histeria do
Comando desta vez?
– Não sei
direito, mas pelo que pude apurar, parece que algum policial idiota desapareceu
na última sexta-feira – Íris responde, por um momento se esquecendo completamente
de Órion ali.
– Nós
fizemos isso? – Alec pergunta. Pareceu ser uma dúvida genuinamente sincera.
– Nenhum
grupo assumiu a autoria, então não – Thaian responde, sentada um pouco mais
afastada. Uma ruga marcava de preocupação o meio de sua testa – Aposto que isso
é só história, uma droga de invenção qualquer para justificar de nos atacarem. Ninguém
jamais ouviu falar sobre o sumiço de mulas!
– Uiliam...
– Órion diz, mas não completa a frase. Não precisou.
– Já tentei
enviar seu relatório algumas vezes, mas faz algumas horas que estamos sem sinal
nenhum – Uiliam responde, ciente de que a ação policial era a mando de Aira. A
comandante disse que iria atrás de Órion na ausência de um contato!
– Mesmo
assim, em algum momento o radar volta a me pegar e a Polícia só vai parar de
procurar quando realmente me encontrar... Me comprometi a enviar relatórios todos
os dias e o meu silêncio fez a comandante armar um cerco atrás de mim. Algo
precisa ser feito senão o CCC vai me achar, ninguém se esconde do Comando –
Órion insiste, nitidamente ansiosa, como se estivesse tentando se convencer
antes de negociar alguma coisa com a colega.
– Aham... –
Uiliam não pareceu muito disposta a conversar porque imediatamente percebeu
onde aquele papo ia descambar. Só havia uma maneira de sumir completamente da vigília
do Comando e ela jamais sugeriria algo tão terminativo assim.
– Preciso
que você desligue o meu localizador e desative meu chip – Órion então pede,
porque compreendia que este era o único jeito de desaparecer de verdade das
vistas da Polícia.
– Órion... –
ainda que soubesse que ela falaria exatamente isso, Uiliam não ficou
confortável com o pedido.
– Se o CCC
continuar me procurando, em algum momento vai acabar me encontrando! – Órion
rebate, falando apenas verdades – Por favor, desligue o meu localizador e
desative meu chip, não posso continuar visível no sistema do Comando. Um
batalhão vai chegar aqui em pouco tempo e eu não sobreviveria nem mesmo para
dizer que sou quem eles procuram, você sabe disso...
– Se eu te
desconectar, te desvinculo da Polícia – o alerta foi sério, ainda que a
modulação da voz de Uiliam fosse quase sempre a mesma – Uma vez desincorporada do
sistema você não retorna mais, Órion. Fazer isso seria o equivalente a
desativar para sempre o perfil A-348.
Órion
compreendia perfeitamente quais eram as implicações de um pedido como esse, mas
sabia também que se a Polícia continuasse em seu encalço, a procurando, em
alguma hora iria encontrá-la. Isso colocaria a perder todo o progresso de sua
investigação, ainda tão prematura, para não dizer inexistente. Claro que não
fazia o menor sentido priorizar um trabalho se a função deixasse de existir de
repente, mas descobrir o que se passava em Trevon já tinha virado quase uma
missão pessoal. E, na balança, a vida de Órion pesava muito mais do que a
credencial de A-348, então não era exatamente uma questão muito difícil de se resolver.
– Será que
mataram a Júpiter? – Minu questionou. Era a dúvida que todas tinham e trouxe
Órion de volta para a conversa na caverna.
– Eu não sei...
Não encontrei ninguém que tenha ouvido falar dela e nem vi sinal de que tenha
sido solta em algum momento – Íris respondeu, bebendo algo que Alec lhe
ofereceu – Onde você estava? – a pergunta foi para Órion.
– Responde “Pavilhão
4” – Uiliam sugere.
– Pavilhão
4 – Órion responde, quase na mesma hora – Bom, ao menos é onde acredito que tenham
me prendido. As mulas não são de confiança, afinal... Nada me garante que
falaram a verdade quanto a isso...
– Ótima
resposta – Uiliam quase aplaudiu.
– Por
favor, desliga meu localizador e desativa o meu chip – Órion pede em pensamento,
mais uma vez.
– Também fiquei
presa lá – Íris afirma, puxando algo de dentro de uma bolsinha que carregava presa
na cintura.
– Deve ser
mentira. A ficha dela no sistema está limpa, sem nenhum registro de detenção –
Uiliam informa.
–
Impossível – Órion retruca, no mesmo instante – Já revistei essa mulher. Ela me
desacatou e eu mesma a levei para a Central.
– Me
trancaram no Pavilhão 4, mas antes me torturaram um tempo no 3, aí depois precisei
passar um período no 7 – ela continua, rasgando com os dentes o que pareceu ser
uma embalagem de plástico, com o emblema do CCC pintado na cor branca.
Os números
mencionados pela rebelde, longe de serem meramente aleatórios, referiam-se aos
blocos de prisão preventiva, de interrogatório e o prédio da enfermaria, respectivamente.
Até a ordem fazia sentido, seguia o ciclo normal de uma prisão, o que
comprovava que a mulher sabia do que estava falando.
E Órion
tinha certeza de que ela reunia conhecimento de causa pelo simples motivo de
ter sido quem a prendeu. Havia uma óbvia alteração no sistema do CCC, se agora
sua ficha apresentava-se limpa, mas isso não era nada demais para quem tinha a
habilidade de desviar drones e fazer robôs dançarem. A dúvida era como elas faziam
isso. Ou melhor: de que maneira Júpiter teria conseguido esses feitos.
– Até hoje
quando vou dormir ainda consigo escutar aquelas lamúrias... – Íris continua,
cabisbaixa.
– Quais
lamúrias, amiga? – Eoni pergunta.
– Os
lamentos de quem está preso no que é conhecido como “o corredor final” – Órion diz,
repetindo o que Uiliam respondia – O último estágio antes de serem encaminhados
para o prédio R.
– É, “o prédio
das aberrações” – Íris complementa – É onde o CCC prende as pessoas para sempre
e as usa como cobaias em vários experimentos absurdos. Quem entra lá nunca mais
sai.
Órion se
esforçou para não pensar em nada porque o silêncio repentino de Uiliam diante
daquela conversa foi um pouco inquietante e até constrangedor. Era lá que a policial
ficava alocada, afinal. Mas ao mesmo tempo foi impossível não se perguntar como
é que Íris poderia saber de tanta coisa e mesmo assim ter sido liberada da
prisão em algum momento.
– Por que foi
que te soltaram? – Íris perguntou, como se pudesse acessar seus pensamentos.
Atirou algo em direção à Órion, que não conseguiu pegar por conta dos braços
imobilizados.
– Não sei –
Órion tentou ser sincera dizendo aquilo. Tinha em mente outras opções de
resposta, mais verossímeis, algumas inclusive em linguagem oficial que com
certeza justificariam uma soltura, mas seguiu o que Uiliam sugeriu que ela
falasse.
– Ela está
te testando – a policial disse, dentro de sua cabeça – A Thaian desconfia de
você e lá na entrada da caverna pediu para que essa Íris de alguma forma te arrancasse
a verdade. Aparentemente a tal da Alec também suspeita de algo.
Órion ergue
os ombros, como se estivesse rendida. Ou como se estivesse se rendendo. Pareceu
falar com Uiliam e com Íris ao mesmo tempo, embora sem dizer nada.
– Um dia eu
simplesmente acordei e eles anunciaram que iam me soltar – Órion então continua,
baixando os ombros, ainda seguindo o que Uiliam orientava que ela dissesse.
Aquilo não fazia muito sentido, mas considerou prudente acatar. A recomendação
anterior tinha dado certo, afinal, e sua resposta não causou o menor espanto.
– Eu acredito
– Íris então responde, mascando algo azul com a boca ligeiramente aberta,
provocando um ruído alto de mastigação – Eles fizeram o mesmo comigo.
O desfecho
pareceu agradar a Alec, que sorriu para Órion e desembrulhou o chiclete
anteriormente atirado por Íris. Thaian permaneceu afastada, mas seu rosto nesse
momento indicava preocupação com Júpiter, que ainda não tinha voltado, e não parecia
mais nutrir tanta desconfiança quanto à Órion, que saboreou o doce restrito à
alta cúpula do CCC. O chiclete, extremamente macio, era doce demais e tinha
gosto artificial, mas era bom.
Era a
primeira vez que experimentava aquilo, mas Órion já tinha lido alguma coisa a
respeito. Havia uma forma correta de desembrulhar o chiclete, que
definitivamente não era com os dentes, e a policial riu por dentro ao constatar
que desta maneira também era eficiente. Não fazia ideia de que maneira Íris
teria pegado aquilo, mas ficou feliz por ela ter conseguido.
– Está
vindo alguém – Uiliam anuncia, antes que os ouvidos humanos pudessem captar
alguma coisa.
– É a Polícia?
– Órion questiona, no ímpeto de se levantar.
– Que
barulho foi esse? – Thaian pergunta, se erguendo do chão em um pulo, armando-se
numa posição de ataque.
– Uiliam, por
favor desliga o meu localizador! – Órion aproveita a deixa para reforçar o
pedido, mais uma vez – Preciso que você desative meu chip, a Polícia vai me matar
aqui!
– Se a
Polícia chegar até essa gruta, nós vamos todas morrer – Alec fala, sua voz
quase inaudível em meio à breve confusão que se instaurou de repente.
– Eu
protejo você, amor. Se não conseguir, prometo que morrerei lutando – Minu
afirma, um pouco romântica demais para o momento, tomando a iniciativa de
correr em direção à entrada da gruta, de onde veio o som.
– Uiliam! –
Órion já estava perdendo a paciência. Se recusava a acreditar que sua missão
acabaria assim – Desliga logo essa bosta de localizador!
– Não é a
Polícia! – Uiliam rebate, séria. Ela nitidamente era contrária à ideia de
desligamento.
– É só a
Dien, galera, está tudo bem – Minu grita lá da frente. O anúncio imediatamente acalmou
os ânimos por dois ou três segundos. Talvez menos.
Uma mulher então
entrou correndo pela gruta, despenteada e com os olhos estatelados, manchados
de terror. Assim como Órion, estava descalça e moveu as mãos antes de conseguir
falar algo, como se buscasse à sua volta o fôlego que lhe faltava internamente.
– Eles
estão vindo – Dien então disse, bastante ofegante – Vocês precisam correr e
rápido. O CCC está vindo para cá.
– Você tem
certeza disso? – Íris apertou os ombros da mulher e a chacoalhou de leve,
incrédula diante do que ouvia – Como isso é possível? Como o Comando descobriu o
nosso esconderijo?
– Não sei,
mas é uma questão de minutos até eles chegarem aqui. Vim o mais rápido que pude
para avisar vocês – Dien responde, apoiando-se nos joelhos, ofegante, tentando
estabilizar a respiração.
– Aposto
que foi ela! – Thaian berra, apontando o dedo para Órion – Essa mulher é obviamente
uma traidora!
– Não seja
boba, Thaian. A Órion estava aqui o tempo todo – Eoni sai em sua defesa,
ajudando a policial a se levantar do chão – Vem, nós precisamos fugir.
– Uiliam, eu
não quero morrer assim! – Órion reclama, brava, sendo colocada em pé com a
ajuda de uma estranha – Você está prejudicando a investigação ao não seguir o meu
pedido. Enquanto o localizador permanecer ligado, continuarei atraindo o CCC
para perto.
– Abaixa a
cabeça para não se machucar – Alec recomenda, fazendo um gesto para que Órion
caminhasse à sua frente.
A caverna
era mais estreita na entrada e para sair foi preciso desviar de várias colunas
feitas de rocha, num trajeto quase labiríntico. O teto era todo pontudo, com
estalactites que escorriam em direção ao chão, como esculturas naturais, e a
água evaporada da parte de baixo também criava formações rochosas que furavam a
sola dos pés, conforme Órion avançava no escuro junto com o grupo. As paredes
também tinham pequenas lanças que rasgavam a pele diante do mínimo contato e a
umidade do ambiente contrastava com o suor que rapidamente brotou em cada parte
de seu corpo.
Após caminhar
alguns poucos metros, com nítida dificuldade por conta da geografia escorregadia
e apertada do lugar e também porque não podia contar com os braços para se
esgueirar nas pedras, Órion ouviu um som alto e crescente que surgiu como se
viesse do centro da Terra, fazendo o chão tremer. O barulho, amedrontador e
ritmado, eriçou cada um dos pelos de sua nuca, talvez porque ficou em estado de
alerta. Ou porque sentiu medo. Era a primeira vez que ouvia aquilo sem que estivesse
produzindo aquele ruído.
– A Polícia
está vindo – ela anuncia em pensamento, falando com Uiliam.
Órion reconhecia
de longe o estrondo que era provocado pelos cassetetes sendo batidos com força contra
os escudos do Comando e sabia que a intenção daquilo era justamente atemorizar
quem ouvia. Achou eficiente, mais ainda somado aos ecos embaixo da terra.
O som ia
fazendo “bum... bum... bum...” sem parar, ritmado com muitos pés marchando em
sincronia, e como estavam no meio de uma trilha debaixo da Terra não dava para
precisar de onde exatamente a Polícia vinha, tampouco calcular a distância
exata a que os policiais se encontravam. Mas escutá-los obviamente era um
péssimo sinal de proximidade.
– Enquanto
meu localizador permanecer ligado eu vou ser igual a um ponto piscante no meio
de um mapa – Órion diz, em nova tentativa de convencimento – Preciso que você
desative o meu chip, Uiliam. Estou ciente de tudo o que uma decisão como essa acarreta.
Por favor!
– Não é
justo você decidir algo assim só porque se encontra em apuros – Uiliam
argumenta. Entendia o que levava a policial a querer aquilo, mas também reconhecia
o peso de uma decisão como essa.
– E o que é
justo nessa vida, me diz? – Órion rebate, quase escorregando no chão coberto de
limo.
Onde quer
que estivesse neste momento, encontrava-se cada vez mais perto de alguma fonte
de água e o musgo no chão era uma comprovação. Isso a fazia contrair os
músculos das pernas para se manter em pé, o que de alguma maneira causava dor no
corpo todo, inclusive nas costelas e principalmente nos braços quebrados.
Uiliam não
respondeu e se limitou a acompanhar a travessia de Órion e o grupo de rebeldes por
um caminho estreito debaixo da terra, praticamente mergulhado no escuro. O breu
só não era completo porque mais à frente Thaian ia com uma luzinha indicando
para onde todas deveriam seguir.
A caminhada
durou quase uma hora, em partes porque Órion atrasou todo o grupo, apresentando
sérias dificuldades para caminhar. A trilha era muito estreita, o teto era
extremamente baixo e o chão escorregava a cada passo que dava. Além de não
enxergar direito, sentia-se mesmo vagarosa, com dores intensas que a impediam
de ser mais célere e ela só não se preocupou porque em dado momento o som produzido
pelos policiais repentinamente parou. O silêncio fez com que todas paralisassem
e Órion chegou até a esperar que um ataque surpresa fosse começar de repente.
Porém, nada aconteceu e elas seguiram em frente, numa trilha inclinada para
cima.
Ainda que Órion
não pudesse enxergar, Uiliam analisou que o caminho pelo qual seguiam era feito
de muitas bifurcações, com diversos trechos que simplesmente se desviavam do
nada, o que certamente atrapalhou a caçada do CCC. Embora a policial de fato
brilhasse como um ponto luminoso no mapa do Comando, o sinal ali embaixo era
realmente uma lástima, o que gerava inúmeras interrupções no envio automático
de suas coordenadas para a Polícia.
Enquanto
isso estivesse acontecendo, Uiliam sabia que Órion permaneceria totalmente fora
de perigo, assim como as rebeldes que a acompanhavam em sua fuga. Logo, não era
preciso desligar o localizador, muito menos desativar o chip da policial. Ao
menos não por enquanto.
A evasão começou
a chegar ao fim no instante em que um gotejamento passou a tornar-se mais audível,
aumentando de volume até se transformar em um som contínuo e forte de água
corrente, tão alto que impedia até que conversas normais pudessem acontecer por
ali. A primeira impressão de Órion foi a de entrar em uma espécie de gruta, por
causa da acústica do lugar, que ecoava seus passos e até mesmo sua respiração, mas
o espaço que encontrou ao final da caminhada era surpreendentemente muito maior
do que uma simples caverna; equivalia a quase uma cidade inteira de tão grande.
Órion se
viu obrigada a andar num ritmo ainda mais devagar quando o caminho deixou de
ser íngreme e passou a se tornar declive. Embora agora enxergasse mais do que
no começo da debandada, continuou seguindo a luzinha de Thaian logo à frente,
que na verdade era uma tocha que a mulher usou para primeiro iluminar a fuga e
depois para acender uma enorme fogueira, na beira do que pareceu ser um lago.
Um lago! A piscina natural, formada pelas águas límpidas de uma cachoeira de
pouco mais de três metros de altura, brilhou ao tremular a luz do fogo e
refletiu o alívio estampado nos olhos das subversivas, que lavaram o rosto e os
braços para se refrescar. Órion as copiou, do jeito que pôde, satisfeita pela
abundância e por poder fazer isso sem medo de julgamentos ou punições pelo
desperdício.
Era a
primeira vez que via uma formação rochosa do tipo, assim como era inédito o
fato de se banhar em um lago. Água era artigo de luxo que nem mesmo o CCC, todo-poderoso,
ousava esbanjar.
Com a
claridade da fogueira acesa por Thaian, uma figura se revelou sentada perto da
água e, ao ser reconhecido, foi cumprimentado pelas fugitivas, que lhe deram
beijinhos e abraços breves.
– As mulas
descobriram o nosso esconderijo – Thaian lhe diz, as palavras combinando com as
expressões cansadas de seu rosto. Mesmo com voz imponente, para ser ouvida precisou
falar tão alto que as veias do pescoço se saltaram.
– Nós já sabíamos
que isso aconteceria, mais dia, menos dia, mona... Era só uma questão de tempo –
o menino responde, com a voz bem pastosa. Ele tinha trejeitos delicados e, ao voltar
a se sentar sobre uma pedra, cruzou as pernas da mesma forma como faziam as
mulheres de Trevon.
– Sim, e
agora precisamos colocar em prática a última parte do nosso plano. Chegou a
hora – Thaian anuncia.
Por algum
motivo o comentário gerou imediatamente a ira das mulheres, que começaram a
protestar de maneira contrária, quase todas gritando ao mesmo tempo. A
discussão tinha como fundo musical a cachoeira, que abafava boa parte das
queixas e reclamações, mas também a voz de Uiliam, que falava dentro da cabeça
de Órion.
– Mas e a
Júpiter? – Aness perguntou, berrando, indignada.
– Isso não
está certo, Thaian, isso não está certo! – Eoni complementou, no mesmo volume.
– Gente, calma,
vamos fazer uma enquete, quem aqui é a favor de uma votação? – Alec arriscou,
tentando apaziguar.
– Vamos
destruir o CCC! – Minu gritou, empolgada – Vou matar uma mula na unha!
– Ei, olha
só! Eu conheço essa peruca – Uiliam disse, no meio do falatório. Sua voz foi a
única a soar nítida dentro da cabeça de Órion, que só então observou que o moço
da cachoeira não tinha um cabelo de verdade. O visor de seu capacete indicaria
este detalhe sem dificuldades, mas com a ausência do equipamento, teve que
aguçar o próprio olhar – Eu que fiz essa peruca, olhe como ainda está intacta!
– Você fez
na época em que se disfarçava e zanzava por aí? – a pergunta de Órion foi num
tom meio jocoso. Ela estava zangada porque ainda não tinha conseguido que a
colega desligasse seu localizador e isso afetava parte de seu discernimento e de
seus bons modos. Sentia-se cansada também e com dor, o que também justificava
em partes seu azedume.
– Na época
em que trabalhei como infiltrada, sim – Uiliam a corrige, sem parecer ofendida ou
incomodada com o mau humor da policial – Fiz com o meu próprio cabelo,
inclusive.
Órion fica
em silêncio, refletindo sobre como se sentiria se soubesse que parte de seu DNA
perambulava solto por aí. Sem notar, ficou encarando o garoto da peruca
enquanto pensava a respeito. Será que teria DNA seu passeando por aí e ela nem
sabia?
– E você? O
que foi, hein, perdeu alguma coisa aqui? – o garoto a olhou de cima a baixo ao fazer
o questionamento, com cara de poucos amigos. Pareceu rosnar, entre os dentes.
– Cael,
essa é a Órion – Eoni apresenta, com uma das mãos perto da boca para amplificar
o que dizia. A outra apoiou no ombro de Órion, talvez para demonstrar algum
grau de intimidade – A gente a salvou de um ataque lá fora, alguns dias atrás.
– Ah... “A”
Órion? – ele confirma, mas falando com Thaian. Manteve, contudo, os olhos
presos na policial.
Os dois pareceram
conversar por códigos, porque a mulher a encarou, também dos pés à cabeça, e
não disse nada. Aparentemente Thaian ainda desconfiava de Órion, sim, e a
olhada que ela deu em sua direção comprovava isso. Mas surpreendentemente a
rebelde se manteve quieta mesmo após a análise e deliberadamente se levantou. Talvez
estivesse cansada e precisando de um cochilo, ou afastou-se porque era a única
que queria levar adiante o plano de Júpiter e a falta de apoio e adesão a deixou
frustrada. O fato é que Thaian sumiu no escuro e reapareceu minutos depois, desta
vez acompanhada.
Órion
considerava-se uma boa policial. Era vigilante e atenta, muito observadora, prestava
sempre atenção nos detalhes, acreditava que fazia boas conjecturas. Mas foi
pega completamente de surpresa com a chegada de Júpiter. Logo Júpiter, aguardada
há tantos dias!
Thaian, ao
contrário, percebeu a proximidade da amiga antes mesmo de qualquer outra coisa.
Porque estava ansiosa para colocar em prática o que haviam planejado com
afinco, mas porque acima disso estava angustiada com a demora, temia que algo
de ruim tivesse acontecido com a amiga. Encontrá-la machucada a alguns metros dali,
porém a salvo, a fez gritar a plenos pulmões, só que de alegria.
Esse grito
Órion ouviu porque se destacou no meio do som da água. Já tinha decorado o
acorde vocal de Thaian, sabia que ela é que tinha gritado e tentou buscar no
escuro alguma resposta para aquilo.
– Vou pedir
novamente para que você por favor desligue a droga da minha localização e
desative meu chip – Órion suspira mentalmente, junto com a fala – E continuarei
pedindo nem que isso acabe sendo a última coisa que solicito nesta vida.
– Nossa, como
você é dramática, Órion! – Uiliam pareceu rir. Rir!
Órion
estava muito cansada e cheia de dor, por isso não quis discutir. Considerou que
se corresse algum perigo, por exemplo, Uiliam não usaria aquele tom ameno, tampouco
faria um comentário tão indelicado numa hora tão inoportuna.
Para não se
desgastar, a policial permaneceu olhando na direção para onde Thaian tinha
saído, mas foi surpreendida porque a rebelde resolveu voltar pelo outro lado,
às suas costas. Como o barulho da água camuflava todo o resto, ao ouvir sua voz
imponente vinda de trás dela, quase deu um pulo de susto.
– Olhem só quem
voltou! – Thaian anuncia, aos berros, e as rebeldes imediatamente começam a
gritar, entusiasmadas ao verem Júpiter ali. Talvez de fato não existisse mesmo uma
líder entre elas, mas claramente havia uma preferida no bando.
Júpiter chegou
bastante machucada, debilitada e parecia abatida; sem dúvida estava muito
cansada. Seu rosto apresentava-se sujo e encovado, e tinham cortado seu cabelo bem
rente à cabeça, como faziam com os interrogados apreendidos pelo CCC, o que lhe
dava uma aparência de prisioneira. De longe, parecia fraca e doente, mas também
feliz com a recepção que recebeu das amigas, satisfeita por conseguir finalmente
voltar para junto de sua gangue. A que custo só ela sabia, considerando o
estado deplorável em que se encontrava.
Sem nenhuma
pressa, fez questão de cumprimentar uma por uma, respondendo tudo o que lhe era
perguntado. “Precisei me esconder até as coisas se acalmarem um pouco, Trevon
está uma loucura”, ela gritou para uma. “A Polícia parecia que não queria que
eu descesse, acho que gostam mesmo de mim”, respondeu para outra. “Assim que a
sirene tocou, eu já estava pronta para vir, mas não era prudente descer”,
comentou com uma terceira. “Na próxima vez, tento te trazer um souvenir”, ela
prometeu para Minu.
Aquele
ambiente inóspito, escuro e úmido, vários quilômetros abaixo da terra, de algum
jeito combinava com Júpiter e com suas roupas, empoeiradas devido ao trajeto feito
até ali. Sem se importar com os julgamentos que Uiliam faria a partir de seus
pensamentos, Órion criou diversas histórias, mil teorias e um milhão de fanfics,
e ao final elegeu como sua favorita a versão que dizia que Júpiter não era
obviamente a responsável por construir aquele lugar, mas certamente era quem
havia descoberto a região. Essa possibilidade combinava com a astúcia da
subversiva.
Sentada
numa pedra, iluminada apenas pela luz gerada por uma pequena fogueira, que
refletia numa água que não cansava de jorrar, Júpiter não se parecia com a
mulher que confrontou a policial na praça, durante o protesto, dias atrás. Na
verdade, se assemelhava mais com uma simples menina, cansada depois de levar
uma surra do CCC. A distância, Órion a observava como quem admira uma ídola, ou
até mais que isso, considerando que tinha passado as últimas horas insistindo
para que Uiliam a desligasse do sistema só para poder descobrir mais a respeito
daquela mulher.
O que
sentia por Júpiter já beirava o fascínio, se duvidar, tamanho era o interesse
que nutria, e a policial até gelou quando de repente ela a viu no escuro,
parecendo escutar o que Órion pensava a seu respeito. Ao se ver alvo de suas
análises, conjecturas e confabulações, imediatamente o sorriso da rebelde se
desmanchou e seu queixo quadrado ergueu-se para cima, desafiador, ao avistá-la sentada
ali. Seu olhar foi do mesmo jeito que a encarou quando se enfrentaram durante o
protesto, como se a reconhecesse.
– Uiliam –
Órion chamou mentalmente, de um jeito como se a colega pudesse fazer algo a
distância, ao observar Júpiter caminhar em sua direção, mancando um pouco da
perna direita.
– Não entendo,
tem alguma coisa errada... a ficha dela no sistema está completamente zerada,
como se alguém tivesse apagado todas as informações, até mesmo as ocorrências
mais recentes – Uiliam diz, como se a informação fosse realmente importante
neste momento.
– Uiliam, quero
que você desligue a porra do meu localizador. Agora! E peço para que também desative
meu chip, por favor – Órion pede em pensamento, levantando-se com dificuldade
da pedra em que estava escorada – ...mesmo que eventualmente eu acabe morrendo
aqui – o complemento à frase ocorreu numa frequência diferente, como se o
pensamento fosse mais íntimo, quase particular. Combinou com a expressão de seu
rosto, que transmitia dor.
– Eu
conheço você? – Júpiter perguntou, assim que se aproximou. Chegou tão perto que
seu hálito até balançou a franja suada de Órion – Eu conheço você – ela então
repetiu, desta vez numa afirmação, aproximando-se ainda mais.
Qualquer
que fosse a desconfiança que Thaian nutria em relação à Órion, aparentemente foi
um assunto logo compartilhado com Júpiter, já nos primeiros instantes em que as
duas se reencontraram, minutos atrás. De alguma maneira, Alec sabia seu nome
antes mesmo de ela dizer, vai saber o que mais não saberiam a seu respeito.
Porque a esta altura, Órion já estava convencida de que sabiam muita coisa.
Se as
rebeldes decidissem matá-la por causa disso, nem tinha como ficar zangada. Elas
estariam totalmente no direito de fazer algo do tipo com uma infiltrada que,
além de tudo, ainda colocou o CCC em peso atrás do bando. Isso sem falar no tal
do plano, que Órion infelizmente desconhecia, mas que também estava em risco
por causa da investigação que ela conduzia.
Havia
também o singelo detalhe de ela ser policial, odiada por dez entre dez
moradores de Trevon, responsável pela revista e detenção de muitos deles. Os
aparatos da Polícia sempre valeram para protegê-la, inclusive sua identidade, mas
era fato que, neste instante, encontrava-se munida apenas das talas que
imobilizavam seus braços quebrados. Ou seja, estava em completa desvantagem,
sem a menor chance de defesa. Especialmente se as rebeldes ao seu redor realmente
soubessem quem ela era de fato.
Por isso, torceu
só para que fosse algo rápido. Se possível, uma morte indolor. Ok, sabia que
era pedir demais, dado o tratamento que o Comando dispensava a seus “convidados”...
e considerando que ela própria também tinha sido a causadora de pelo duas ou
três cicatrizes no rosto bonitinho de Júpiter.
Órion
chegou a fechar os olhos, esperando receber um golpe qualquer, vindo de algum
lugar. Mas aí, agindo em total desacordo com todas as expectativas do momento,
em vez de machucá-la, Júpiter simplesmente a beijou. Sim, tacou-lhe um beijo e um
beijo na boca! Usou a língua para isso! Órion não pôde fazer nada a não ser
ceder e retribuir, mesmo sem entender o porquê do gesto. Era a primeira vez que
beijava alguém, achou a sensação estranha, mas prazerosa. Gerou um comichão
gostoso entre as pernas, deu vontade de se esfregar inteira na mulher, que com
muita facilidade a deixou completamente rendida. Como se o beijo fosse uma arma
letal.
Sem saber o
que fazer com as mãos, ela teria copiado o movimento de Júpiter, que a segurou
pelo pescoço, mas as talas pesadas deixavam seus braços imobilizados e pesados.
Porém, em todo caso teria parado nisso porque a rebelde de repente começou a
esfregar a ponta dos dedos em sua nuca, em cima da região onde Órion tinha o
chip da Polícia implantado. Esfregou forte, até machucar a pele.
– Destrói
essa porra! – Júpiter gritou, após interromper o beijo de repente.
Ao ouvir a
ordem, na mesma hora Thaian saiu correndo, em disparada. Arrancou os óculos do
rosto de Alec sem dizer nada e os jogou no chão, pisando várias vezes em cima,
até quebrar em diversos pedaços. Depois juntou todos os cacos e jogou um por um
na correnteza da água, tomando o cuidado de mantê-los devidamente separados.
– Agora nós
precisamos decidir o que fazer com ela – Thaian fala, se aproximando da
policial.
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