Trevon 2

 1. Trevon

2. A-348

Cada vestimenta do Comando pesava em torno de 5kg – um pouco mais, dependendo dos acessórios que cada policial carregava, de acordo com o trabalho realizado. Os policiais robôs, por sua vez, contando todo o conjunto, o uniforme e os acessórios, chegavam a mais de 100kg cada. Pois naquele protesto de 05 de maio de 8505, de repente e para completa surpresa (e espanto!) de A-348, mais de uma tonelada de tecnologia simplesmente começou a dançar em volta da praça e no alto das torres; todos os cem policiais, de maneira coordenada, embora em passos desordenados e desritmados. Sem reação, a policial viu toda a tropa deslocada para aquele patrulhamento bailar, como dançarinos de uma música que só eles escutavam – deixando claro quem era a única humana no meio daqueles policiais robôs. Sim, porque mesmo vestida de maneira igual e com a identidade protegida atrás do visor do capacete, A-348 jamais pensou em dançar também, e por isso se manteve imóvel. “Estática” talvez seja uma expressão que defina melhor. Ou “paralisada” porque foi muito inesperado ser obrigada a ver aquela cena tão bizarra, protagonizada por agentes responsáveis por manter a ordem e a lei.

No silêncio estranho que antecedeu a onda intensa de risadas altas, contagiando todos os protestantes daquela praça (e até quem eventualmente passava perto, os remanescentes a caminho do serviço e os vadios), o que se ouvia era um arrastar frenético e agitado dos pés mecânicos, calçados em botas de solado grosso, iguais às da policial, naquele momento cravadas bem firmes no chão. Logo o agito levantou uma poeira alta, sujando com pó vermelho os trajes pretos dos robôs, criando um efeito à coreografia sincronizada. A impressão que se tinha é que as máquinas eram apenas meros brinquedos, comandados a distância por alguém de humor duvidoso que só conhecia o método do “dois para cá, dois para lá”.

Como numa jogada de xadrez mal ensaiada, A-348 se sentiu repentinamente exposta e acuada em um xeque-mate a céu aberto, e nitidamente era a mais incrédula diante daquela cena tão esdrúxula (inclusive porque os manifestantes ainda estavam rindo e alguns dançavam também, ao som de palmas de colegas mais agitados). Honestamente, a policial esperava por qualquer coisa naquela manhã, menos outra invasão ao sistema do Comando – e ainda mais descarado que o acesso anterior! Foi inevitável não pensar num primeiro momento em como tinham planejado e executado tão bem aquilo tudo. Admitiu que tinha que ser, no mínimo, um bom hacker para conseguir aquela façanha.   

E aí a policial ficou num tremendo impasse, porque pedir ajuda seria admitir que estava trabalhando em plena folga, o que não era permitido, e ainda havia o agravante de que sua chefe sequer tinha conhecimento daquilo (o que poderia ser até mais desastroso que os policiais dançando ao seu lado. Ao menos para ela, é claro). Mas obviamente era preciso fazer algo; era seu dever chamar por reforço, inclusive porque os robôs continuavam naquela agitação dançante e agora de parzinho, como num baile! E também porque aquilo tudo obviamente em breve seria de conhecimento de toda a corporação e a punição pela inércia de suas ações certamente seria maior que o castigo pela infração por agir às costas de sua comandante.

Nos segundos que antecederam sua tomada de decisão, ela quis gritar! Quis bater em cada um dos robôs idiotas (que até pareciam felizes!), só para extravasar parte da frustração que sentia e que aumentou consideravelmente quando o bipe da ligação sendo completada emitiu um som seco perto de seu ouvido esquerdo. A-348 tratou de ajeitar a feição, desfazendo a careta, porque seu rosto seria transmitido junto com a chamada, além da cena externa que seu capacete captava e projetava em tempo real.

– Que... – a voz grave de Aira Acachi foi ouvida de repente dentro do capacete, com um breve silêncio se fazendo presente na ligação enquanto a comandante via a cena que A-348 transmitia, ao vivo – ...porra é essa? – ela continuou, no tom frio de sempre, não dando tempo para a policial responder, já repassando comandos para pessoas que não estavam naquela ligação – Ataque ao sistema CpT2500. É óbvio que eu quero que desligue! – a comandante fala, dando batidinhas na mesa, com uma respirada carregada sendo ouvida – Achei que você estaria de folga hoje, policial – complementou, com a voz abafada pelo som de algo sendo digitado rapidamente em algum teclado – “Praça central, torre de controle 3” – Aira lia as coordenadas de onde a subordinada se encontrava, mas parecia estar repassando a informação para alguém. Seu rosto, exibido numa telinha, no centro e bem acima do visor da policial, permaneceu impassível enquanto não teve atenção – A-348! – ela chama, após alguns segundos sem resposta.

– Eu... Eu ia reportar isso, obviamente – A-348 controlou o suspiro nervoso, entalado na garganta. Não foi um bom começo de explicação! – Comandante, eu... 

– Permaneça aí até o comando efetivo chegar – a chefe a interrompeu, outra vez com o som de algo sendo digitado de maneira apressada. Ao parar, pela primeira vez olhou para ela pela tela, parecendo zangada – Os robôs logo serão desativados, foram atacados por um vírus, mas é questão de poucos segundos até resolvermos isso. Assim que estiver de volta à Central, quero um relatório completo, obviamente – a comandante imita o tom usado por A-348 instantes atrás, e conclui, antes de desligar: – ... incluindo o porquê de você estar aí, na sua folga, sem distintivo, sem o meu conhecimento e sem a minha autorização. Exijo que, no mínimo, o seu relatório me convença de que valeu toda essa insubordinação e afronta.

Antes que pudesse falar alguma coisa a ligação foi encerrada, e numa olhada rápida para o canto superior da tela projetada pelo capacete, A-348 viu que ainda estava gravando a cena na praça – no caso, dos robôs sendo desligados a distância, um a um, parando tortos no meio dos movimentos da dança que coordenavam juntos. Ao fundo, ouviu o som das espaçonaves policiais já se aproximando e foi nessa olhada que viu Júpiter a encarando a poucos metros dali, de braços cruzados, com os olhos estreitos, nitidamente com o rosto todo armado em um sorriso debochado, escondido debaixo daquele pano marrom que usava em volta da cabeça, tampando boa parte do rosto.

Não é possível dizer que A-348 agiu por impulso, porque depois de uma vida inteira sendo moldada pela academia, as imposições em cima dela abafavam quase todos os seus instintos, incluindo a impulsividade – uma característica que o CCC não só não incentivava nas atitudes de seus membros, como repelia. Mas se valendo de que era a única naquele perímetro responsável pela ordem, e movida pela frustração após a conversa com a comandante, A-348 caminhou de maneira firme até o centro da praça, onde a manifestante estava – e onde ela permaneceu, como que a aguardando vir ao seu encontro, sem se mover nem um milímetro sequer. Na verdade, Júpiter praticamente não piscou.

Ao se aproximarem e ficarem bem próximas, com cerca de dois dedos afastando o capacete da policial do nariz da manifestante, elas se encararam e não disseram nada num primeiro momento. Em lados opostos, a única coisa em comum entre as mulheres naquele momento era a alta carga de adrenalina que sentiam.

– Saiba que vou descobrir como foi que você fez isso – A-348 diz, baixinho, mas sua voz saiu no tom e no volume que toda comunicação policial era reproduzida, meio metálica, uniforme.

– Sério que está me acusando disso, seu polícia? – Júpiter parecia divertida com a fala e estendeu as mãos para cima, como se rendendo, dando uma olhada rápida à sua volta. Só então se afastou um pouco, mas cerca de apenas um passo, se mantendo ainda bem perto da policial. Os robôs já estavam todos desativados, mas agora seus companheiros é que pareciam agitados, em volta delas – Eu não tenho nada aqui comigo, veja – ela levanta a camiseta, demonstrando estar desarmada. Havia um triângulo preto tatuado próximo ao umbigo, do lado direito do dorso, e um quadradinho, da mesma cor e na mesma altura, do outro lado da barriga. Júpiter abaixou a roupa, diante do silêncio, erguendo uma sobrancelha, um pouco irônica – Tenho nem música, como vou fazer esses robôs estúpidos dançarem?

– Meio perigoso você aqui sozinho, hein? – um homem provoca A-348, cutucando a policial com um pedaço de pau, na altura da costela, perto da emenda do exoesqueleto que vestia como proteção.

Realmente ela era a única do Comando ali, mas o mapa indicava no visor do capacete que o reforço estava só a alguns segundos de distância, então A-348 não se preocupou. Porém, sua vida podia estar em risco em questão de milésimos, por isso, antes de dar sequência ao trabalho, puxou a arma de choque da parte de trás do cinto e imobilizou o manifestante em exato um segundo e meio. O homem caiu no chão, se tremendo e gemendo de dor.

– Filho da puta! Eu nem te fiz nada! Filho da p... – o sujeito xingou, com os dentes cerrados, se contorcendo de agonia.

– Todos para trás! – A-348 ordena, levantando a arma depois de mirar em duas pessoas, sem atirar, no entanto – Você, vem aqui – ela puxa Júpiter pelo braço, que se desvencilha, ágil.

– Qual é? Você está vendo que estou limpa! – Júpiter se defende, parecendo ofendida com a desconfiança policial. As pessoas em volta se mantinham ainda perigosamente perto, parecendo preocupadas com a integridade da manifestante – Estou desarmada, seu guarda, você não precisa me revistar!

– Eu disse... – A-348 repete, entre dentes. A voz fora do traje não transmitiu nem um risco de sua impaciência, que transbordava dentro da proteção. Se tinha uma coisa que a irritava de verdade era ser contrariada – ... “você, vem aqui!” – ela puxa a mulher pelo braço novamente e a atira com força contra o muro do coreto, chapiscado de cimento antigo.

A-348 começou a revistá-la enquanto a manifestante ainda se recuperava do choque de ter batido o rosto contra a parede, o supercílio sangrando por causa do impacto, escorrendo num fio vermelho em direção ao queixo, por baixo do pano. Num movimento brusco, a policial fez seus braços se esticarem para cima e os apalpou, dos punhos aos ombros, apertando a pele com força, de propósito. Antes de fazer a revista na parte do tronco, empurrou novamente a cabeça de Júpiter contra o muro e a segurou ali, arrancando um gemido de dor da mulher, que sentiu a pele exposta do rosto rasgar novamente com a pressão contra o chapisco de cimento. A policial afastou suas pernas com o pé e, com o movimento, ela perdeu o equilíbrio e quase caiu.

– Opressor safado... – Júpiter resmunga, baixinho, sentindo a mão com a luva metálica da policial apertar debaixo e entre seus seios, e depois descer, verificando se havia algo entre suas pernas, numa apalpada firme que a fez se erguer levemente do chão – Porco nojento, só é valente porque está dentro dessa armadura... – ela continuou, numa provocação quase inaudível.

Depois de tatear das coxas aos calcanhares da mulher, apalpando dentro e fora das pernas, e se certificar de que realmente não havia nada ali, A-348 puxa Júpiter de frente para ela, sem muita delicadeza. Ao virá-la, a encarou por alguns segundos e não disse nada. Talvez estivesse recuperando parte de seu autocontrole, quem sabe até refletindo sobre o uso de sua força, numa demonstração de empatia e compaixão com sua semelhante. Mas o que quer que fosse foi violentamente interrompido, porque Júpiter cuspiu no rosto da policial, com escárnio e sem cerimônia.

– Máquina estúpida – ela xinga, ciente do quanto aquilo era ofensivo – Quer ver se tenho algo aqui? Quer? – Júpiter começa a gritar, ao mesmo tempo em que as naves oficiais aterrissaram e vários policiais desembarcaram em volta da praça, num contingente talvez um pouco exagerado – Acha que estou escondendo alguma coisa, seu filho de chocadeira? Acha que controlo esses seus robôs idiotas? – ela continua, erguendo a camiseta sobre a cabeça, se despindo.

Júpiter tinha o corpo magro, as costelas bem salientes na lateral, denunciando sua baixa ingestão proteica, e duas marcas roxas, bem redondas, na altura dos ombros, como se tivesse sido prensada por alguém bem forte e muito maior que ela. Ao tirar a blusa, o lenço que usava em volta da cabeça saiu também, manchado na frente pelo sangue que caía da sobrancelha esquerda, revelando um rosto de traços fortes, com o queixo quadrado e cabelos cacheados que pareciam cor de abóbora e que caíram volumosos na altura do ombro desnudo. Na sequência, sem falar nem mais uma palavra, se abaixou e tirou a calça amarela, revelando não usar nada por debaixo da peça, e um chumaço de pelo preto se movimentou ali no meio, com a liberdade da ausência de roupas. Suas pernas eram torneadas e cheias de hematomas, com algumas cicatrizes parecendo até recentes, e giraram em cima dos calcanhares, quando ela ficou nua em pelo.

– Está satisfeito agora, seu animal imundo? – Júpiter berrou, levantando os braços depois de uma volta completa, jogando a roupa no chão, com força e com raiva. Ao cuspir mais uma vez em direção à policial, foi aplaudida pelos colegas, que logo foram contidos pela tropa de choque, que chegou de maneira ostensiva. 

Todo o grupo de protestantes foi cercado e rapidamente imobilizado pelos policiais – incluindo Júpiter, jogada nua com força contra o chão empoeirado, os olhos brilhando de raiva, em direção à A-348 – que nem se deu ao trabalho de limpar a saliva da mulher, que ainda escorria pelo visor de seu capacete. Ao ser levantada, já algemada, com os braços presos atrás das costas, voltou a cuspir em sua direção, deixando bem claro todo o asco que nutria por ela.

Júpiter foi conduzida para averiguação na Central do Comando, junto com outros 75 manifestantes, e foi assim que o protesto anual de 05 de maio de 8505 nem chegou a acontecer.

Provavelmente o CCC usaria o incidente de hoje como desculpa para proibir novas manifestações, considerando que aquela era a única ainda aceita nos últimos tempos e só faziam vista grossa porque, em teoria, tratava-se de um protesto pacífico e inofensivo. Mas certamente agora lançariam o discurso de que a proibição seria apenas mais uma tentativa na eterna luta de se manter a humanidade a salvo. Tudo em nome do “progresso civilizatório”, como sempre.

Já fazia sete anos que populares se reuniam na praça central, sempre no mesmo dia e horário. O local foi palco do assassinato de Idélia Ostrac e Ptônio Niavva, um casal de cientistas que trabalhava para o Comando e foi morto pelo próprio CCC – num evento emblemático, envolvendo dois policiais robôs. Desde então a população questionava a garantia de não-letalidade dessas máquinas e pedia o afastamento de todos os robôs da segurança de Trevon.

Aquele era um assunto debatido de maneira exaustiva, há décadas, e a preocupação era válida, pois todos estariam em risco se ninguém voltasse a ter controle sobre os robôs (que podiam matar um humano em menos de um segundo, caso “quisessem”). O risco envolvia inclusive os policiais do Comando, que ainda podiam ser chamados de humanos.

Ao observar os manifestantes serem enfiados dentro das gaiolas que carregavam os presos, na parte externa das naves, A-348 ponderou que a alteração na rota dos drones no ano passado e agora a invasão ao sistema dos policiais este ano eram um claro indício de como o acesso acontecia com facilidade. Provavelmente o comando para fazer os robôs dançarem não era muito diferente para ordená-los a matar, e isso era extremamente perigoso. E mesmo sem nenhuma prova – e agora no meio de uma situação delicada, porque certamente sofreria alguma sanção do CCC, talvez até uma suspensão – ainda assim a policial tinha a convicção de que Júpiter estava envolvida em toda essa bagunça. Reconhecia de longe aquele sarcasmo provocativo; não porque vivesse estudando os vários tipos de subversivos (até deveria, mas não estudava), mas porque já tinha lidado com vários deles ao longo da carreira.

Carreira essa que agora estava em risco de ser manchada, e ao atravessar o portão alto do prédio da Central, A-348 respirou fundo dentro do traje. Abriu o visor do capacete assim que passou pela porta larga da entrada, os olhos ansiosos verificando a existência de algum risco ou perigo, só por hábito. Tirou o aparato enquanto avançava pelo corredor comprido em passos determinados e seus cabelos curtos, mas volumosos, caíram em camadas em cima da nuca, balançando com o movimento. Com a cabeça baixa, descalçou as luvas e deu duas batidas leves na porta da sala de sua superiora direta. Ela a esperava. É claro que esperava!

A-348 ouviu seu coração bater alto quando veio lá de dentro a autorização para entrar. Sentiu a frieza da maçaneta com a pele da palma da mão, que suava, mas tentou não transmitir em seu rosto nada do que se passava em seu íntimo.

Aira Acachi estava sentada em sua cadeira de encosto alto, atrás de uma mesa de vidro fosco bem larga, de costas para a porta. Se virou devagar assim que viu a policial entrar na sala, num movimento suave que contrastava em muito com a seriedade de seus olhos, que a encararam, carregados de uma frieza típica.

Aquele era um espaço simples, sem adornos e com muitas telas forrando praticamente todas as paredes, do chão até quase o teto, mostrando cenas ao vivo de Trevon, filmadas por policiais espalhados em pontos estratégicos pela cidade. Sobre a mesa havia um teclado universal, que ocupava quase todo o tampo, com diversas teclas, incluindo algumas coloridas e piscantes, de onde a comandante despachava cada uma de suas ordens. Ali dentro havia um cheiro característico que sempre deixava A-348 um pouco desconfortável, inclusive porque em geral ela só ia até a sala da chefe quando acontecia algum problema, como agora.

À primeira vista, a comandante não parecia muito mais velha que ela, mas era incerto prever sua idade, pois Aira tinha a pele do rosto modificada por procedimentos cirúrgicos, que escondiam bem a passagem do tempo. Porém, ainda assim sua experiência era facilmente notável e visível em sua postura, bastante austera. Estava como sempre com seu uniforme preto, impecável, e de sua cintura, por debaixo da mesa, saíam dois pares de braço, parecidos com seus braços físicos, revestidos por um material cinza, meio emborrachado. Antes de falar, cruzou as mãos sobre a mesa, mas os dedos mecânicos permaneceram digitando no teclado.

– Eu deveria te perguntar o que você estava fazendo, sozinha e em traje policial, embora sem identificação, no meio dos civis, em meio a um protesto, sem a minha permissão e sem que ninguém do Comando soubesse – Aira diz, seu tom de voz firme fazendo os pelos da nuca da policial se arrepiarem de tensão – Mas honestamente eu não sei se quero saber, A-348... – ela leva uma das mãos sobre a boca, aborrecida. Os dedos mecânicos deram uma tremidinha logo abaixo, como se vacilassem por uma fração de segundo – Não sei o que fazer com você...

– Comandante, por favor – a policial avança um passo, mas se cala e estanca quando a superior levanta um dedo, num gesto que a conteve. 

– Você não está autorizada a falar – Aira a interrompe e mantém a mão suspensa no ar por mais um instante. Quando continuou, não transpareceu a dor de cabeça que estava tendo, por conta do incidente com os robôs na praça que envolvia uma policial sob o seu comando, que ela nem sabia que estava lá! – Não tenho mais o que fazer com você, nem trabalhando na Expedição, despachando, você deixa de causar problemas aqui dentro! Há quanto tempo nós temos essa conversa, me diz? Você se recusa a fazer as modificações que poderiam te dar novas tarefas... Eu não posso te obrigar, Órion, mas você entende que assim me coloca numa situação difícil? – ela pergunta, a chamando pelo nome, em um raro momento de intimidade – Eu sei que você é esforçada, reconheço todos os seus avanços, cada um dos seus progressos ao longo dos anos, mas ainda assim os seus rendimentos são baixos, são pífios em comparação a absolutamente 100% de todos os policiais que temos ativos (e não são poucos, você sabe!). E aí você ainda me inventa de sair escondida? O que é que você estava fazendo naquela praça, se hoje era a sua folga? Quero que responda agora.

Ainda em pé diante da mesa da chefe, segurando suas luvas e o capacete, a policial relatou tudo o que a levou à investigação, numa narrativa temporal, cronológica e com o máximo de detalhes que conseguiu reunir. A-348 falou desde a desconfiança que passou a ter com os drones no ano passado até a atitude suspeita de Júpiter, alguns instantes atrás. E ela conseguiu falar praticamente do mesmo jeito que havia ensaiado enquanto lavava o corpo, na noite anterior, quando considerou que deveria estar preparada e ter um discurso pronto, caso eventualmente fosse flagrada em sua investigação secreta naquele protesto. Ao terminar a narrativa, viu a comandante soltar um longo suspiro, se recostando na cadeira, passando as mãos pelo cabelo cinza-escuro, pensativa.

– Você nunca mais vai fazer isso! – ela então disse, seca, após um breve instante – Na verdade, você nunca mais vai me esconder nenhuma informação: seja grande ou pequena, você tenha provas ou não. De hoje em diante eu determino que você elabore relatórios diários. Eu quero saber de cada passo seu, cada movimento que você dá, cada canto que vai. Não posso mais ser questionada pelos seus atos e não saber o que você está fazendo. Você está sob o meu comando, A-348! Entendeu, policial?

– Sim, senhora, comandante – A-348 responde, deslizando os olhos em direção ao chão.

– E? – Aira pergunta, parecendo impaciente, vendo que a mulher permanecia parada, um pouco inquieta, como se quisesse falar mais alguma coisa. Foi a primeira vez que seus braços mecânicos pararam realmente de digitar e ficaram suspensos perto da mesa, com os dedos meio curvados em cima das teclas, de um jeito como se também aguardassem pela resposta, antes de continuarem o trabalho que vinham executando.

– Desculpe, comandante, peço que por favor me desculpe pelo atrevimento, mas... – a policial dá uma coçadinha na cabeça, rápida, só porque os olhos da chefe em cima dela a deixavam sempre bastante nervosa, e porque ficava um pouco insegura sem a blindagem do capacete, que escondia muito bem suas feições e camuflava suas inseguranças com perfeição. Mordeu o lábio inferior, preocupada, antes de continuar – Eu sei que estou me arriscando em falar isso, mas tem algo de errado. Com essa moça, comandante, essa manifestante. Júpiter. 

– A mulher que arrancou a roupa na sua frente? – a comandante pergunta, sem esperar por uma resposta, e após um comando digitado por uma das mãos, a cena filmada mais cedo por A-348 começou a ser exibida numa tela que ficava entre as demais, algumas polegadas maior que as outras. O trecho reproduzido mostrava Júpiter tirando a blusa, com seus seios pequenos tão ousados quanto ela, os mamilos apontados para as câmeras. A tela ao lado, após outro comando rápido, foi estampada com a ficha de Júpiter, suas infrações mostradas numa lista corrida. No final, em vermelho, havia a informação de sua primeira detenção, minutos atrás, em um anexo próximo de onde estavam agora – Não vejo nada demais aqui, é uma subversiva comum e nem é das mais perigosas – Aira comenta, lendo as informações como se falasse sozinha – Não há motivos para desconfianças.

– Mas, comandante...

– A-348! – Aira desvia os olhos da tela, zangada, e encara a policial do outro lado da mesa. O olhar penetrante que ela lançou fez seu coração acelerar em uma batida – Como você bem disse, está se arriscando sendo atrevida. Eu deveria te aplicar uma punição disciplinar. Não me provoque porque não estou de bom humor.

A comandante acompanha o olhar da policial, que via em uma das telas a imagem de Júpiter sendo interrogada na Sala 4 do Corredor Especial, um local conhecido por pesquisas envolvendo diferentes graus de tortura apresentados aos interrogados. A manifestante ainda estava nua, sentada em uma cadeira simples, no meio da sala, com os braços amarrados para trás. Seu rosto estava um pouco desfigurado, com hematomas e sangue escorrendo de várias partes, sujando todo o corpo. Ainda olhando para A-348, Aira digitou o comando para mudar de cena e uma ponte de Trevon começou a ser mostrada no lugar. Num passado recente, as duas tinham discutido porque Órion discordava das técnicas de interrogatório adotadas pelo Corpo de Comando e Controle, por achá-las desumanas demais e abusivas.

– Você sabe bem a consideração que tenho por você, menina – Aira continua, num tom mais ameno, dando um suspiro conciliador. Olhou para ela daquele jeito, igual à quando não estava zangada – GS-907 era minha parceira – ela complementa, sem a rigidez tradicional encapando suas palavras e só porque o rosto da jovem policial sempre a fazia se lembrar disso, o que a estimulava até a fazer um pouco de vista grossa com suas atitudes, muitas vezes.

O comentário deixa Órion constrangida e a faz mudar o peso do corpo para uma das pernas, visivelmente desconfortável. Seus olhos fugiram do olhar da comandante e também do assunto, correndo para o chão mais uma vez. A mudança em sua postura a fez se parecer com uma simples humana, embora ainda se assemelhasse com um robô, por conta da indumentária que cobria tudo do pescoço para baixo e só deixava sua cabeça e as mãos de fora.

Ela nunca sabia o que fazer com aquilo – com o comentário e com o sentimento que o comentário provocava. Ao contrário da comandante, a policial não havia conhecido sua genitora.

– Pois então, senhora comandante... – ela arrisca, se aproximando mais um passo, a coxa encostando na mesa, provocando um som, do contato do traje com o vidro – Me desculpe, mas eu insisto. Não peço nada além da sua permissão, por favor – sua voz sai mais baixa no final porque, pelas feições, a chefe permanecia irredutível diante da insistência – Por esta consideração que a senhora tem por mim, comandante, por favor, me deixe investigar! Só te peço uma autorização para descer e poder fazer o meu trabalho. A senhora mesmo disse que não sabe o que fazer comigo! – ela arriscou, por fim, finalmente desarmando a mulher, que demonstrou estar ouvindo, quando quase sorriu ao escutar aquilo.

Aquele era seu trunfo com a chefe, as duas sabiam. Além disso, Aria já havia confessado, ao menos umas três vezes, que a ousadia da policial era o que a diferenciava dos demais colegas, que realmente tinham rendimentos físicos muito superiores aos dela, graças às modificações implantadas em seus corpos. Mas segundo a chefe, Órion vencia na sagacidade de seus argumentos. Ela era mesmo muito boa de discussão.

– Você quer me convencer a investigar algo instigada por pura intuição, por convicção. Será que percebe o absurdo desse pedido? Nós duas sabemos que você só conseguiria alguma coisa se infiltrando, Órion... Seus motivos nem me convencem do risco que isso envolveria, por que eu deveria te dar ouvidos? Mais ainda depois de toda essa pataquada do protesto? Você tem noção de que isso riscou a sua imagem no CCC, já bastante arranhada e que a todo custo eu me esforço para manter a salvo? – Aira questiona, como sempre não dando tempo para uma resposta. Sua fala toda soou como se, em algum ponto e de alguma forma, ela agora considerasse a possibilidade de autorizar aquilo. Ou parecia considerar, mas com ela mesma se convencendo do contrário.

– Mas, comandante...

– Não tenho autorização para te mandar lá para baixo, assim, e nem acho que seja o que tem em mente – Aira diz, se referindo ao traje policial que a deixava maior, mais forte e, sem dúvida, protegida – Seria suicídio você se fingir de civil e ir até lá desarmada e sem nenhuma proteção. Perder você está fora de cogitação, querida, sinto muito – a comandante complementou, antes que a policial falasse algo, fazendo um gesto como se quisesse encerrar a conversa.

– Aira, por favor – Órion tenta, em sua cartada final, apelando para a intimidade que a comandante permitia que tivessem. Se aproximou o último passo que faltava, encostando bem a cintura na mesa da chefe. Apoiou as duas mãos no tampo e se debruçou um pouco para frente, não para intimidá-la, mas porque não havia mais nada a fazer a não ser tentar essa aproximação – Só estou pedindo para que, por favor, a senhora permita que eu faça o meu trabalho. Fui treinada a vida toda, sou uma boa policial, você sabe disso, me conhece desde a minha formação. O fato de eu não ter um implante pode ser benéfico para essa investigação! Só assim não chamo a atenção de ninguém! Não vou me colocar em risco, eu prometo, e envio relatórios diários, como me pediu. Como a senhora mandou – ela se corrige, porque mesmo próximas, ainda estava bem abaixo de Aira na escala da hierarquia. 

Não disse mais nada para não abusar da sorte e porque a chefe parecia ao menos ponderar sobre o que tinha ouvido – ou estava focada em outra coisa, pois seus olhos estavam pulando nas telas das paredes e duas das mãos robóticas digitavam algo em um ritmo frenético. Mas o silêncio também podia ser um bom sinal e por isso aguardou até que ela finalmente se manifestasse, alguns segundos depois.

– A-348, você está suspensa. Por tempo indeterminado – a comandante enfim disse, em seu tom de voz característico, frio. Mas ao final da frase, deu uma piscadinha para ela, contraditória à fala. Depois, digitando algo num tecladinho menor, que puxou de debaixo da mesa, numa velocidade impressionante, fez todas as telas se apagarem de repente. O silêncio que se instaurou deixou nítido que ambas estavam acostumadas ao ruído, porque as duas pareceram relaxar diante da falta do barulho. Órion deu até um gemidinho de satisfação com o silêncio.

– Eu estou...? – ela se cala, porque não quis terminar a pergunta. Mordeu o lábio, nervosa, com medo da resposta. Não entendeu porque o sistema tinha sido desligado, mas desconfiou que era para cortar os registros da sala, de áudio e de vídeo. E isso ficou explícito quando viu a comandante se levantar e pegar algo de dentro de uma gaveta, no armário de metal do canto da sala. Sabia que ali era onde ela guardava seus artefatos pessoais. Quando se voltou em sua direção a chefe tinha a feição leve, mas isso nem sempre significava alguma coisa.

– Você vai mesmo me enviar relatórios diários – a comandante diz, levantando no ar uma caixinha que tinha na mão, antes de entregar a ela – Diários, Órion. Se passar um dia e você não me der notícia, vou fazer questão de ir pessoalmente lá embaixo te buscar, e te aplico a punição mais severa que conseguir pensar. Fui clara?

– Sim, senhora, comandante – Órion sorri e pega a caixa que ela lhe entrega – Relatórios diários e... – ao abrir a caixinha, vê um par de óculos de armação vermelha. Olhou para a mulher com os olhos apertados, sem entender. Puxou na memória as aulas da academia, as tecnologias que eram sempre atualizadas e se perguntou se aquilo era alguma forma de teste. Quase suou, preocupada em falhar.

– Você não vai descer sozinha. Como eu disse, seria suicídio – Aira afirma, pegando os óculos de dentro da caixa e colocando no rosto de Órion. Com o gesto, pressionou a lateral da armação, perto da lente, e os óculos tremeram, bem de leve, em cima do nariz da policial – Ninguém jamais vai saber disso, entendeu?

– Sim, senhora – Órion responde, ainda sem entender. Os óculos não tinham grau.

– Sim, senhora – outra voz diz, ao mesmo tempo, fazendo a policial mexer a cabeça, surpresa, procurando quem teria falado aquilo. Achou estranho porque a voz pareceu sair de dentro de sua cabeça – Olha, mas se você vai se comportar desse jeito cada vez que eu falar, nós vamos ter um sério problema... – a voz continuou, soando impaciente.

– Eu... – Órion começa a falar, mas Aira a interrompe.

– Órion, a Uiliam vai te acompanhar nessa missão. Uiliam, por favor – a comandante pede, dando antes uma olhada rápida para uma das telas na parede, digitando rápido alguma ordem no teclado.

Os óculos deram outra tremida, desta vez ainda mais leve, e entre Órion e Aira surgiu Uiliam, numa espécie de versão holográfica ultrarrealista, no meio da mesa, com a cintura cortada pelo tampo de vidro. A mulher se apresentou como uma preta bonita de traços fortes e no lugar do cabelo trazia vários cachos de orquídeas, que pareciam borboletas coloridas, pintadas de branco e lilás.

Uiliam usava um uniforme igual ao de Órion, todo preto, só que mais parecido com o de Aira, de alta patente, ainda que sem as partes acessórias que a deixariam parecida com um robô. Ao contrário, suas formas na roupa justa ressaltavam seu corpo de mulher, todo contornado, inclusive na cintura.

– Uau, não esperava te ver assim! Que linda, adorei! – Aira diz, sorrindo na frente de Órion sem cerimônia nenhuma, pela primeira vez. A mulher da projeção sorriu também, de um jeito envaidecido e quase inédito para a policial, que acompanhava o clima entre as duas bem ali, quase de camarote.  

– Comandante – Uiliam a reverencia, encurvando um pouco o corpo, solene, com uma voz grave que ecoou na sala, mas especialmente dentro da cabeça de Órion – A-348 – ela inclina a cabeça, num cumprimento rápido, após se virar em sua direção – Muito prazer em conhecê-la, policial.

A comandante ainda dava um sorrisinho incontido quando desviou o olhar do cabelo florido da mulher, como se atravessando seu corpo, projetado no meio da sala, e focou em Órion. Seu sorriso foi murchando e se desmanchando conforme seus olhos se encontravam novamente.

– Uiliam é uma exímia policial, fica alocada na Ala 3, na base do prédio R. Esses óculos permitem que ela enxergue e ouça o mesmo que você, e assim você vai ter acesso a todo o sistema do Comando. Através dela – Aira aponta para as laterais da armação, dando a volta na mesa. Parou ao lado de Órion, perto o suficiente para ela sentir sua respiração, vinda do alto – A comunicação é graças ao sistema dos óculos, implantado nas hastes, em combinação com o seu chip – ela toca de leve na nuca da policial, com a ponta dos dedos mecânicos, que se contrai com o toque, meio assustadiça – Preciso repetir que você vai me enviar relatórios todos os dias? – Aira cruzou todos os braços para encará-la.

– Não, senhora, comandante – Órion responde, dando um suspiro que pareceu um sorriso – Enviarei relatórios diários e voltarei sem que precise descer para me buscar. Prometo.

– Uiliam, já te enviei o arquivo com todas as informações que você precisa para essa missão, incluindo as minhas expectativas e ressalvas. Você sabe como me encontrar – Aira se despede, virando as costas para Órion e voltando a sentar em sua cadeira, após religar todas as telas. O zumbido das máquinas imediatamente recomeçou – Está dispensada, A-348. Por favor, feche a porta quando sair.

– Sim, senhora – Órion responde, se virando – Grata pela atenção, comandante.

– Sim, senhora – Uiliam fala, um pouco antes, mas termina a frase junto com ela. Sua imagem desapareceu antes que Órion chegasse até a porta.

– Sempre achei que...

– Você não precisa falar! – Uiliam interrompe, quando saem no corredor, um pouco ríspida – Pare de maluquice, garota! Converse comigo pelas ondas do seu pensamento, apenas! De que adiantaria uma tecnologia ultra moderna que te faz me ouvir literalmente dentro da sua cabeça, mas você, em contrapartida, precisaria falar?

Órion não diz nada. Ficou surpresa com aquela reação, não esperava algo assim vindo de uma inteligência artificial. A não ser que Uiliam não fosse uma inteligência artificial!

– Você fugiu da academia? – Uiliam continua, parecendo realmente brava, conforme avançavam pelo corredor iluminado por ambos os lados. Órion não a via mais, mas a imaginou com as mãos na cintura falando aquilo. Se controlou para não rir, pois não queria criar inimizades com a colega logo nos primeiros minutos de interação. Por isso, a deixou falar – O que andam ensinando aos cadetes hoje em dia? Olha, vou ter que reportar isso... essa missão já começa fadada ao fracasso, sinceramente não recomendo que vá.

– Não – Órion responde, mentalmente, tomando cuidado com o que ia pensar, a partir de agora. Se forçou para não refletir que aquela seria mais uma forma de ser vigiada, num ambiente em que já se sentia totalmente desprovida de privacidade – Desculpe, eu só... – ela abaixa a cabeça e suspira. Não sabia o que dizer. Ou melhor, não sabia o que pensar.

– Levanta a cabeça, policial. Ninguém precisa saber que neste momento você está tendo lições que podem salvar a sua vida. Se não comanda seu próprio corpo, como pretende controlar uma situação qualquer lá embaixo?

– Claro, claro, você tem razão – Órion resmunga e fica ereta, a vista reparando mais uma vez que os óculos não tinham grau nenhum, ao mirar os olhos nas lâmpadas lá em cima, no teto. Colocou o capacete sem dizer mais nada, mas pensando brevemente em como poderia aproveitar aquela última oportunidade de ter seus pensamentos reservados apenas para ela.

– Eu não consigo acessar todos os seus pensamentos, se é realmente com isso que você está preocupada – Uiliam retruca, num tom aparentemente mais ameno, mas ainda bastante rígido. Acompanhava em tempo real a cena que Órion via, pelo capacete, incluindo as informações que iam saltando na frente do visor, conforme a guarda andava pelos corredores do prédio principal do Corpo de Comando rumo à saída – Logo você se acostuma a diferenciar as ondas mentais para que a nossa comunicação seja mais efetiva e você permaneça com a sua privacidade intacta.

 – Sempre acreditei que os policiais que ficavam alocados na base do prédio R eram predominantemente robôs – Órion revida, causando surpresa na outra mulher. Ela claramente não esperava aquele tipo de comentário e, por isso, se calou.

Órion também preferiu ficar quieta e se forçou para não pensar em nada que pudesse de alguma forma comprometer sua missão. Tampouco queria pensar algo que soasse inapropriado enquanto estivesse com os óculos que a deixavam transparente para alguém que ela nem sabia quem era, mas que era inegavelmente íntima da comandante! Se lembrou então das aulas na academia, de quando teve o primeiro contato com aquela tecnologia, e se recordou especialmente dos outros cursos, os complementares, que se destinavam ao domínio da mente, ao bloqueio do fluxo de pensamento, justamente para isso não atrapalhar o uso de aparatos como aquele.

A distância, Uiliam visualizou o quadro mental que de repente se formou conforme as lembranças de Órion vinham, tentando absorver o máximo de informação que pudesse captar da policial, que agora lhe transmitia um mundo que há muito tempo ela não via e que, em partes, nem conhecia. Por algum motivo, as lembranças de A-348 desembocaram em outra, mais particular, de uma mulher com olhos amorosos, cor de mel. Mas tão rápido quanto veio, a memória foi embora.

Já lá fora, depois de andar alguns metros, sentido leste, a policial subiu dois lances de escada antes de atravessar uma porta de vidro bem alta e larga. A entrada do seu prédio era igual a de tantos outros por ali e, como os demais, o edifício tinha uma parte para dentro e outra menor, que ficava para fora da terra. Em geral os policiais dormiam em acomodações subterrâneas, todas seguindo um mesmo padrão, de 7x7. Órion entrou em um elevador todo iluminado e apertou o número 13 no painel. Assim que acendeu, o botão liberou o comando e as portas se fecharam, em um estampido seco, se reabrindo novamente poucos instantes depois, exibindo um cenário já inteiramente diferente.

O corredor residencial era restrito aos membros da Polícia, era comprido e todo forrado por uma espécie de carpete azul, que cobria o chão, o teto e as paredes, com portas dos dois lados, numeradas em uma padronagem também azul, só que mais escuro. Órion cruzou com dois policiais antes de parar em frente ao número 23 e entrou depois de abrir a tranca usando um sensor óptico.

Lá dentro havia o lavatório à direita, junto da latrina, e à esquerda tinha uma mesa branca sem nada em cima e uma cadeira, da mesma cor. Havia uma esteira preta enrolada perto dali, encostada na parede, e um espaço demarcado no chão deixava nítido onde a policial se exercitava. No canto, uma cama estreita completava o mobiliário do recinto, ao lado de um armário e um tipo de guarda-roupa.

Ao fechar a porta, Órion logo tirou o capacete e as luvas, e sem pensar muito, retirou os óculos, atirando-os em cima da mesa, ao lado do distintivo, que emitiu um bipe. Dali, Uiliam a viu tirar cada peça do traje, guardando em compartimentos próprios para isso, em um armário de duas portas e três gavetas, de metal.

Primeiro, tirou a proteção que ficava acoplada sobre os ombros, protegendo o pescoço. A peça precisava sair para liberar a retirada do colete, que também se apoiava naquela parte do corpo. Assim que a soltou, Órion levantou os ombros até quase encostarem nas orelhas e deu um gemido, fazendo uma cara de desconforto e ao mesmo tempo alívio, e o movimento estalou algum membro envolvido no alongamento. Só então ela tirou o cinto, o coldre e antes de descer para as pernas retirou as proteções que ficavam em todo o braço, incluindo o cotovelo. Órion desmontou enfim a peça que protegia suas coxas, os joelhos e panturrilhas, e sentou-se na cadeira para se descalçar. A bota, que tinha uma plataforma dura na parte de baixo, foi guardada debaixo da mesa, perto da porta.

A última coisa que fez foi esvaziar a tecnologia do uniforme, que a fazia crescer alguns vários centímetros, e que além de protegê-la também potencializava sua força. Ao todo, levou exatos 19 minutos se desmontando e, ao terminar, parecia menor e mais frágil, embora a roupa preta que restou do uniforme, bem colada ao corpo, deixasse seus músculos bastante evidentes, de todos os membros, mas especialmente dos braços.

Ciente de que mesmo sem os óculos no rosto, dali Uiliam podia “ouvi-la” e também vê-la, Órion manteve o artefato na mesa e virado para a parede, num claro sinal de que, enquanto assim estivesse, ela estaria liberada a pensar o que bem entendesse (e sem julgamentos!). Ao menos hoje se permitiria ao luxo de ter uma última noite de privacidade, sozinha com os seus botões.

Ao se livrar das roupas que ainda restavam, caminhou nua no pequeno espaço de seu apertado dormitório, de maneira totalmente despretensiosa. Ela tinha o corpo todo definido, quase talhado, e até suas pernas eram musculosas, com as coxas bem firmes. Sem pensar em nada, pegou duas garrafinhas de água na despensa, que se resumia a um buraco fundo em uma das paredes, e foi para o lavatório. Depois do banho seco, que era a maneira como todos se higienizavam em Trevon, usou a água de beber para lavar o rosto e a nuca, porque só com água ela se sentia realmente asseada.

Depois, já limpa e renovada, Órion preparou uma refeição usando a mistura servida como janta no dia anterior e comeu com pão, feito de milho transgênico. Se alimentou quieta, com o olhar perdido pelo chão da casa, pensando em coisas que pelos próximos dias precisaria deixar de lado, pelo bem de sua investigação. Por exemplo, sua autocrítica, tão característica, pois tinha a impressão de que Uiliam desempenharia esse papel muitíssimo bem.

Quando estava perto de dormir se lembrou novamente da mulher, ela sorrindo para Aira. Sorriu sem querer e mordeu a boca, um pouco apreensiva, imaginando que a colega surgiria com sua voz grave, com alguma repreensão. Mas Uiliam não se manifestou e Órion imaginou que, ao contrário dela, que estava de folga, a outra policial provavelmente estaria ocupada, trabalhando em algo.

Tentou dormir, mas ficou pensando em seu plano, em como descobriria de que maneira Júpiter estava envolvida com os incidentes policiais (os drones no ano passado e os robôs dançantes dessa edição), porque estava! Lembrou-se da comandante a alertando sobre querer investigá-la com base em achismo, e aí seu pensamento voltou-se novamente para Júpiter, para a cena na praça, a mulher se despindo sem motivo, o que a fez até ser presa! Seu pensamento migrou para a manifestante cuspindo nela, só que antes de sentir raiva de novo, voltou a se lembrar dela nua.

Parecia que ela estava se exibindo, pensou. E talvez estivesse. Será que ela sabia que Órion era humana e mulher? Parecia que sim. Safada, será que por isso se exibiu? O gesto ainda não fazia sentido, mas sentindo-se grogue de sono, Órion nem fez questão de ir atrás de alguma lógica. Quase sem pensar, levou uma das mãos para dentro da calça, se virando de bruços para os dedos a tocarem melhor.

Seus pensamentos deram uma breve sobrevoada na lembrança de Aira encostando os dedos frios em sua nuca, mas Órion voltou-se mentalmente para Júpiter e estava pensando nela quando gozou, alguns minutos depois. Dormiu naquela posição, com os dedos molhados do seu próprio tesão.

Não muito longe dali, na base do prédio R, Ala 3, mas também bem ali, naquele dormitório, Uiliam se perguntava no que exatamente estaria se metendo.


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