TPM - Capítulo 1: O começo

 

                      Na penumbra do quarto escuro, Mariana abre os olhos e encara o teto, que refletia meia dúzia de sombras que combinavam com os sons noturnos. Já fazia vários dias que vinha encontrando dificuldades para dormir, em partes porque sua cabeça não lhe dava nem um minuto de trégua sequer, ao trazer incessantemente à tona pensamentos que definitiva­mente ela era incapaz de processar. Seu maior entrave no momento era a completa ausência de uma conclusão, uma vez que sempre chegava de maneira incansável e repetitiva ao mesmo final, não importava a ordem de suas ponderações ou considerações. No caso, acabava soterrada na mais pura indecisão.  

Sem dúvida a vida parecia mais fácil quando ainda era solteira e suas ações alteravam no máximo a rotina de seu gato, Percival. Agora, casada há quase dois anos, tudo ganhava outro formato e assumia novos contornos, como não poderia deixar de ser. Assim, cada mera decisão atingia também suas esposas (fosse de maneira direta ou indiretamente), o que tornava bastante complexo o ato de tomar qualquer tipo de decisão, das mais simples às escolhas mais intrincadas, pois tudo gerava consequên­cias que afetavam em cheio o que quer que fosse dentro da rotina do trisal.  

O amor era a tônica capaz de estremecer tudo, muito embora Mariana estivesse diante de um impasse estritamente profissional. Este inclusive era um dos principais motivos para ainda não ter compartilhado nenhuma de suas angústias com Tatiana e Patrícia, porque sabia exatamente o que diriam e qual seria o conselho que lhe dariam. A primeira, a mais prática e empoderadora do trio, com certeza falaria para “meter a cara” e assinar o contrato, independentemente das consequências e dos transtornos gerados depois de isso ocorrer. “Vai, mete a cara, estou torcendo por você”, Tatiana declararia. A segunda, mais romântica e possessiva, certamente “votaria ‘não’” e tentaria convencê-la a desistir da ideia, afinal, a vida precisa ser muito mais que trabalho e ir além de apenas “bater cartão”. Quase podia ouvir Patrícia dizer: “Nem pensar, isso é ridículo, meu voto é absolutamente ‘não’”.

            Mesmo dedicando-se a dissecar sozinha todos os prós e contras de uma decisão tão difícil, ainda que pendesse mais para um dos lados, Mariana nunca chegava a uma resolução que a agradasse plenamente e essa insatisfação era o que mais lhe tirava o sono. E o fôlego, porque a ansiedade também tinha o dom de deixá-la sem ar.   

– Que, o que foi? – Patrícia pergunta, sonolenta, vendo Mariana passar a mão debaixo do travesseiro.

– Preciso da minha bombinha de asma – Mariana cochicha, tateando o colchão no escuro em busca do remédio.

– Shhh, vem cá – Patrícia chama, com a voz rouca de sono, esticando o braço como se fosse um convite. Aproximou-se puxando o corpo da esposa em sua direção, emendando o gesto com um inesperado beijo molhado.

– Amor... – Mariana geme, sentindo a língua macia de Patrícia lamber seu lábio inferior, bem devagar. Aquele era o tipo de beijo que esquentava todo o seu corpo em milésimos de segundos, em especial entre as pernas, que sempre se abriam para ela com muita facilidade.

– Hum? – Patrícia geme também, voltando a mergulhar em sua boca num beijo gostoso enquanto acariciava com a mão esquerda os pelos pubianos da esposa, que se eriçaram diante do toque – O que foi, meu amor, não está gostoso? – ela questiona, baixinho, emendando uma risadinha safada.

– Não, é que eu... – Mariana suspira, sem condições de conseguir completar a própria frase – ... eu só preciso... – ela murmura, imediatamente se calando ao sentir o corpo de Tatiana pressioná-la de repente por trás, se escorando nua às suas costas.

Sem dizer nada, a mulher começou a beijar sua nuca, passeando com a palma da mão sobre cada centímetro de sua pele, a esta altura já bem quente, debaixo do edredom. Tatiana tinha uma pegada diferente e a incendiava de uma forma que o calor se complementava ao prazer que Patrícia oferecia com sua abordagem, também única e característica.

– Será que você está com tesão ou é só falta de ar? – Tatiana questiona, cerrando de levinho os dentes em seu ombro descoberto. Segurando-a firme pela cintura, se roçou em sua nádega, de um jeito que acelerou ainda mais sua respiração já descompassada. Na ausência de uma resposta, puxou o cabelo da mulher para o alto e lambeu seu pescoço – Hum?

– Eu... – Mariana não termina a frase porque antes de sequer pensar numa resposta, sentiu a ponta molhada do dedo de Patrícia resvalar em cima de seu clitóris, e depois de novo, o que a fez perder completamente o prumo – Ai, amor...

– É tesão, com certeza – Patrícia ri, voltando a beijá-la na sequência. Manteve a mão no ponto mais quente de Mariana e se encaixou de modo que prendeu a coxa dela firmemente entre suas pernas – Acho que até aguenta uma rapidinha noturna – Patrícia então diz, se esfregando na mulher de um jeito cadente e sensual.

– Claro que aguenta! – Tatiana ri também – Respira, Mariana – ela complementa, como se fosse uma ordem, lambendo seu pescoço mais uma vez. Pressionou novamente seu corpo contra o dela, só que agora com mais força, e se esfregou como se encenasse algum tipo de dança coordenada com Patrícia, em que Mariana era o par de ambas.

– Eu vou morrer – Mariana deixa escapar, numa clara crise de falta de ar, sem no entanto parecer realmente preocupada com a possibilidade. Tanto que puxou Patrícia com um braço e Tatiana com o outro, contraindo-se entre elas – Ai, socor... Assim, amor, assim – murmura, sem especificar com quem falava, gemendo mais alto, demonstrando satisfação ao fazer movimentos coordenados com o quadril.

A verdade é que este era o principal motivo para a sua indecisão. Patrícia e Tatiana eram a razão de motivá-la a querer jogar sua carreira para o alto e viver só de amor, sexo gostoso e projetos medianos, de pouca repercussão. Estar com elas era mágico o suficiente para fazê-la esquecer de seus problemas, dilemas e hesitações. Junto das esposas, Mariana se esquecia até que precisava respirar.

            Ao sentir a completude do encaixe perfeito entre as três sobre aqueles lençóis, com a mão de Patrícia se prendendo impecavelmente no ponto úmido que agora pulsava e latejava, e os braços de Tatiana a laçando num abraço trançado e seguro, Mariana deixou escapar um som sincero que saiu do fundo de sua garganta, alto o suficiente para despertá-la. Frustrada, rapidamente percebeu que a cena toda que tinha acabado de vivenciar não passava de um sonho. Erótico, mas somente um sonho ainda assim, um produto elaborado por sua mente. Ao acordar, se viu sozinha numa cama enorme e vazia.

– Ah... – ela resmunga, abrindo os olhos devagar, apoiando-se sobre o cotovelo para pegar o remédio de asma debaixo do travesseiro. Bombeou três vezes e suspirou profundamente no final, desabando de volta na cama, ainda submersa em um estado de inconsciência provocado por algumas horas de sono – Ah... – Mariana repete, agora por outro motivo, ao conferir que o sonho tinha feito ela acordar toda molhada.

            Analisando que a claridade que vinha da janela era fraca, logo, ainda era cedo, Mariana se permitiu permanecer mais alguns segundos deitada, aproveitando o sossego de uma mente sonolenta e, até aquele momento, calada. Inevitavelmente se lembrou do sonho e se enrolou nas cobertas, abraçando o travesseiro de Tatiana junto com um ruído baixinho de decepção. Num primeiro momento, não parecia muito vantajoso dormir no meio de duas mulheres maravilhosas, se no dia seguinte acordava só.

Todavia, não havia nenhum traço de descontentamento em amanhecer ali, naquele quarto, mesmo que sozinha, só depois de Tatiana e Patrícia já terem levantado. Porque esse acesso era ao mesmo tempo uma honra e um privilégio, e justificava cada gota de seu tesão matinal. Afinal, desde o primeiro momento desejou ser a marmita daquele casal e se tinha sonhos eróticos com tanta riqueza de detalhes é porque havia toda uma intimidade enquanto as três estavam despertas, bem ancoradas na vida real.  

Aliviada, com a respiração finalmente reordenada, Mariana suspirou profundamente ao fechar os olhos, se deleitando ao contemplar o cheiro único e fascinante daquela cama, o aroma delicioso de seu pequeno e precioso harém, forrado em um lençol florido de algodão. Sentiu um arrepio no baixo ventre e contraiu sem querer ao cheirar o travesseiro de Tatiana, se lembrando em detalhes do que havia acabado de sonhar. Assim como todo o jogo de cama, aquela fronha tinha um aroma específico, uma deliciosa fragrância que remetia a lar, só que customizada e personalizada com o perfume gostoso que vinha naturalmente de sua mulher.

            Criando coragem para finalmente se levantar e encarar o dia lá fora, Mariana deslizou para o lado direito do colchão e repetiu o ritual, cheirando agora o travesseiro da outra esposa. Ainda que a casa tivesse um aroma único, uma combinação especial composta por todos os cheiros, a impressão que tinha é que a emanação que Patrícia exalava servia como uma espécie de nota de fundo para todo o conjunto, com seu perfume natural predominando e influenciando os demais odores.

            Por ser chef de um renomado restaurante, era comum que suas roupas apresentassem aromas variados de temperos, de comida e até mesmo de fogão (que é diferente do cheiro de gordura, embora se assemelhe). Mas debaixo de seu uniforme, por baixo de seu avental, o perfume que brotava de sua pele era outro, completamente diferente; ao cheirá-la de perto, o que se percebia era a fragrância que vinha dela e Patrícia era uma mulher muitíssimo cheirosa.

– Hum, que cheiro gostoso – Mariana comenta, ao ver a mulher cozinhando algo em frente ao fogão.

Apesar de ter lavado o rosto antes de sair do quarto para encontrá-la no andar de baixo do sobrado, Mariana surgiu na cozinha de pijama e com o cabelo despenteado, o que fez Patrícia olhá-la daquele jeito, apaixonado. Parou de mexer com a colher na panela só para observá-la por dois ou três segundos e sorriu por um breve instante.

– Estou testando uma receita nova, Tatiana está demorando... – Patrícia diz, emendando os assuntos com um muxoxo, sem se explicar de imediato. Voltou a cozinhar e não se opôs quando a mulher a abraçou por trás e afundou o rosto em seu pescoço, a cheirando – Ela insistiu em ir até a padaria, vai acabar nos atrasando para o trabalho. Aposto que está comendo alguma besteira escondido...

– Ou só se deparou com muita fila – Mariana justifica, prendendo os polegares no elástico de seu short.

– Sei... – ela resmunga – Como se eu não conhecesse a mulher com quem me casei mais de dez anos atrás...

– Amor, sabe... essa noite eu tive um sonho... – Mariana rebate, parecendo não escutá-la, encaixando o púbis em sua bunda – ... tão gostoso, Pati... – ela rebola, se esfregando de levinho – Agora vou passar o dia todo com tesão, querendo repetir.

– Sonho erótico, é? – Patrícia sorri, virando o rosto para beijá-la por cima do ombro – Que delícia, faz tanto tempo que não me lembro das coisas que eu sonho...

– Que cena! – Tatiana exclama, ao chegar em casa e se deparar com as duas de sarração na beira do fogão. Apoiou um saco de pão na bancada e as abraçou – Vocês são um espetáculo, que delícia!

– Você demorou, Tati – Patrícia reclama, depois de um selinho – O que andou aprontando na rua, hein?

– Ué, nada, por quê? – Tatiana se defende, com uma expressão no rosto que dizia o contrário do que falava – Você é muito desconfiada, Patrícia. Não pode ser assim não...

– Sei... – Patrícia volta a dizer, num tom mais seco.

– Você não ia sair bem cedo hoje? – Tatiana então pergunta, virando-se para Mariana – Não era hoje aquela tal reunião que tem te tirado o sono há vários dias?

– Não, a reunião é amanhã, sexta-feira – Mariana responde, sentando-se em uma banqueta, acompanhada de Tatiana. Aproveitou que Patrícia estava de costas e serviu café para as duas.

– Mas amanhã é sábado – Tatiana retruca.

Hoje é sexta-feira – Patrícia fala, ao mesmo tempo. Ao se virar, fuzilou com os olhos a caneca de café entre as mãos de Tatiana – Café, Tati? Jura? Achei que isso fosse proibido na sua dieta...

– Não, gente... – Mariana insiste, empurrando os óculos para perto dos olhos ao puxar o celular – Hoje é... puta merda! Eu não acredito! Hoje é sexta! – ela diz, virando a tela para as duas, como se não fosse a única confusa do recinto.

– Tudo bem, ainda são sete da manhã – Patrícia a consola, tirando do fogo uma panela fumegante e sentando-se ao lado das duas.

– A reunião estava marcada para 8h – Mariana apoia-se no cotovelo e coça os olhos por baixo dos óculos – É em outra cidade, no interior, eu levo mais de uma hora e meia para chegar lá. Que bosta, eu não acredito...

– É reunião de quê? – Patrícia indaga, vendo Tatiana se levantar para ir ao banheiro – Ainda acha que ela não comeu nada na rua?

– Eu recebi uma proposta, já tem uns meses que a gente vem negociando... Hoje íamos amarrar alguns pontos... há detalhes que não me agradam nem me deixam confortável – Mariana bebe um pouco de café, ainda incrédula com sua incrível capacidade de se sabotar com coisas simples – E sim, para a Tati ter ido correndo assim para o banheiro, com certeza ela comeu o que não devia enquanto esteve fora.

– Eu sempre tenho razão – Patrícia dá uma piscadinha, adoçando o café que originalmente era de Tatiana – Conviver com quem tem restrição alimentar torna a gente especialista. E eu sou muito boa em observar – ela beberica o café e faz uma careta.

– Nossa, ainda não acredito que eu me confundi assim... – Mariana resmunga, num tom de voz carregado de desgosto.

– Tenta remarcar, gatinha – Patrícia a consola com um afago na mão, servindo para ela ovos mexidos em cima do pão – Se eles estão atrás de você há tanto tempo, não vão ser algumas horas que os farão mudar de ideia.

– É, vou... vou esperar alguns minutos e mandar uma mensagem – ela volta a coçar os olhos, claramente frustrada – Vou inventar alguma desculpa, sei lá... e torcer para que consiga um horário na agenda dela, essa mulher é tão ocupada...

– Coloca a culpa no rodízio, amor – Tatiana sugere, surgindo um pouco pálida de volta à cozinha – Diz que no meio do caminho você percebeu que estava com o seu carro circulando pela cidade, que é proibido de rodar na sexta-feira por causa da placa, aí precisou voltar. Falar isso é mais plausível do que inventar uma desculpa de pneu furado, ou qualquer outra coisa do tipo.

– Mas você acha que ela vai saber o que é um rodízio de carro? – Mariana pergunta. Apesar da dúvida, a expressão estampada em seu rosto demonstrava que tinha gostado da ideia. Aquela parecia ser uma boa desculpa para justificar um atraso de algumas horas.

– Talvez... Se não souber, você explica, ué – Tatiana responde. Não olhou para Patrícia ao se servir de mais café, desta vez só um golinho, o suficiente para sujar o fundo do copo.

– Nossa, mas por que ela não saberia? Essa pessoa está no interior ou por acaso mora em outro país? – Patrícia indaga, um pouco ácida demais para o assunto.

– A empresa fica no interior, mas rodízio de carro só tem aqui, amor – Mariana fala, sem se abalar. Sabia que a esposa estava brava com Tatiana, não com ela. Só não tinha descoberto ainda o motivo.

– Só aqui em São Paulo as pessoas precisam se revezar para dirigir – Tatiana complementa, cortando com as mãos um pedaço de panqueca fria – Em outros lugares fora daqui, basta ter carro e pronto. 

– Sim, por isso é uma boa desculpa para eu usar como justificava para o atraso – Mariana diz, servindo-se de mais café – Só que eu teria que ir com o seu carro, senão ela vai saber que estou mentindo.

– Por que, essa mulher por acaso conhece o seu carro? – Patrícia indaga, arqueando uma sobrancelha.

– Claro, a gente troca – Tatiana responde, no mesmo instante.

– Acho que... não, eu... – Mariana gagueja – É... eu não sei, na verdade, Pati. Mas vai que conhece, né? Aí, imagina, vê a placa e percebe que estou mentindo – ela encara Patrícia por cima da caneca, bebendo um longo gole de café – Você é muito desconfiada, Patrícia – Mariana emenda, imitando a fala de Tatiana. Mas não disse mais nada depois porque, no final, a mulher estava mesmo sempre certa e era de fato uma ótima observadora.

– Isso aqui ficou uma delícia, Pati – Tatiana comenta, parecendo querer amenizar o clima entre as duas – O que vai nessa receita?

– Ovo, tempero, água, um pouquinho de farinha de arroz... – Patrícia lista, sem muita precisão. Não desviou o olhar de Mariana nem por um segundo. Nem piscou.

– Amor, por favor, para de pensar bobagem – Mariana pede.

– O quê? Não estou pensando nada – Patrícia mente, em resposta – Eu... – ela então se levanta de repente, recolhendo o prato e a caneca ainda cheia de café. Depois praticamente tirou o resto da mesa, apesar de quase não ter tocado em seu desjejum e mesmo que Tatiana e Mariana ainda estivessem comendo – Preciso ir, senão vou me atrasar também. Combinei com a Zezé de hoje chegarmos mais cedo... – ela deixa a cozinha e sobe a escada em direção ao quarto ainda falando – ... tem uma coisa no restaurante que preciso encontrar...

– Pode deixar, eu falo com ela – Tatiana assegura, dando um tapinha no braço de Mariana, servindo-se de mais café tão logo a mulher deixou a cozinha – Precisa abastecer o tanque e é bom você checar os pneus antes de pegar estrada.

– Tá, o que você comeu lá na padaria? – Mariana pergunta.

– Comi... – Tatiana mira no teto, cerrando os olhos, se esforçando para lembrar de tudo – Comi um enroladinho de presunto e queijo, bem pequenininho, e uma tirinha fina de bolo de chocolate. Finíssima, dava nem um dedo. E um pãozinho doce, minúsculo, desse tamanhinho – ela faz um gesto com a mão – Ah, e também tomei um capuccino, só um golinho, porque estava muito cheiroso, não resisti.

– Vivendo perigosamente – Mariana ri. Não era à toa que a mulher tinha passado mal, minutos atrás. Apenas um item dentre os listados já seria suficiente para levá-la à força ao banheiro.

– É um preço que às vezes me arrisco a pagar – Tatiana rebate, levantando a xícara como se propusesse um brinde pela confissão – Só não deixa a tua mulher saber porque ela fica brava com essas coisas. Fica preocupada também, mas mais brava.  

– Tá bom, pode deixar – Mariana dá um sorrisinho, cúmplice – Se mantém hidratada, por favor.

– Vou, relaxa. Não vai ser uma diarreia que vai me derrubar. Agora me diz: essa tal mulher da reunião conhece ou não conhece o teu carro? – Tatiana então quer saber, depois de verificar que Patrícia realmente não estava por perto.

– Então... Eu dei carona para ela uma vez...

– Mariana... – Tatiana interrompe, em tom de retaliação, ainda que a fala não fosse exatamente nenhum tipo de represália.

– ... quando estávamos em reunião! – Mariana se apressa em dizer – Tati, nós fomos almoçar depois da reunião, num shopping, não havia motivos para irmos em dois carros, aí seguimos no meu. Só que a Patrícia ficaria brava se eu falasse, ela já acordou zangada. Então contar só a deixaria enciumada. Preocupada também, mas mais brava.

– Você gosta de repetir o que eu digo, né? – Tatiana ri. Sabia que Patrícia realmente ficaria brava porque era muito ciumenta, com tudo. Tanto que provavelmente teria mandado a mulher ir à pé, até o inferno, só para não passear com Mariana ao volante.

– Uhum, adoro – Mariana ri e deposita um beijo em sua bochecha, antes de se levantar – A chave do meu carro está no contato, os documentos ficam no porta-luvas.

– Ótimo, muito bom para o ladrão, facilita bem a vida dele tudo isso – Tatiana brinca, deixando a panqueca sem glúten de lado e mordiscando um pedaço grande de pão – Boa sorte, espero que consiga remarcar a sua reunião!

            Mariana sai da cozinha e, ainda que estivesse atrasada, parou e cumprimentou Percival, que se lambia despreocupado no caminho para a sala. O gato, completamente indiferente à sua dona original, permitiu que ela lhe afagasse as costas, sem demonstrar qualquer perturbação. Mas o carinho durou poucos segundos porque sem nenhuma cerimônia o bichano a deixou para trás e correu para o colo de Tatiana.

Ela ainda acariciava o bichano quando Patrícia voltou a entrar em seu campo de visão, já vestida para o trabalho. Tatiana notou quando a esposa olhou para a panqueca quase intocada no prato à sua frente, mas ninguém disse nada a respeito.

– Você está pronta? Podemos ir? – a mulher pergunta, empilhando de novo a louça suja dentro da pia, sem nenhuma intenção de lavar. Parecia mesmo ter acordado zangada, conforme Mariana havia observado. Talvez porque já tinha ido dormir assim.

– Claro, vamos sim – Tatiana olha de relance para o grande relógio pregado na parede: 7h15.

– Eu posso chamar um Uber – ela diz, cruzando os braços, mas logo descruzou, desarmando a postura combativa.

– Para de história, Patrícia – Tatiana reclama, se levantando.

Pacientemente, levou o resto do que havia sobrado à mesa para a pia e apoiou a louça suja na cuba. Tatiana ficou tão perto da mulher que quase se esbarraram, mas como sempre acontecia, tomou o cuidado de só voltar a falar depois que fecharam a porta da cozinha.

– Há anos que te levo para o trabalho no dia do seu rodízio, por que isso mudaria agora? – Tatiana então questiona.

– Não sei, é que como agora você tem andado mais ocupada... – Patrícia resmunga, embarcando no carro de Mariana, estacionado torto no canto da garagem.

– Ah, então o problema é esse – Tatiana retruca, embarcando também e assumindo o volante – Sua birra é porque decidi voltar a estudar – ela complementa, com a fala abafada pelo som do portão eletrônico se abrindo.

– Não coloque as coisas nesses termos, Tatiana – Patrícia reclama, cruzando os braços, sem descruzar na sequência.

– Ué, mas é assim que é – a mulher finaliza, mantendo-se em silêncio enquanto dirigia, avançando pelas ruas do bairro.

            Tatiana optou por ficar quieta para evitar fadiga e pelo simples fato de que sentia o intestino todo se retorcendo dentro dela, provocando uma dor de barriga terrível. Já Patrícia preferiu não falar mais nada porque conhecia bem a esposa e sabia que naquele momento ela estava passando mal; dava para perceber pelo ritmo de sua respiração, mais pesada. Só não se ofereceu para dirigir porque, assim como a outra, também era orgulhosa.

            Elas estacionaram em frente ao restaurante O Bistrô alguns minutos depois, totalmente vazio por conta do horário. A rua também estava com o trânsito tranquilo, apesar de aquela ser uma região bastante movimentada, quase ao lado da Avenida Paulista. Tão logo entrou pela porta giratória, Tatiana correu para o banheiro, o mais rápido que conseguiu. Aquela era uma sensação terrível porque o mal-estar ia além de uma simples dor de barriga.

            Devido à síndrome intestinal que a acometia há alguns anos, Tatiana era forçadamente uma sommelier de banheiros. Conhecia vários porque era obrigada a frequentá-los e aquele era de longe o mais bonito, e um dos mais limpos também, em toda a capital. Em partes porque era uma das exigências que fazia, valendo-se do privilégio de ser casada com a dona do local. Uma das poucas exigências, vale dizer, porque todo o resto ela considerava como meras sugestões.

            Curiosamente, Tatiana não era a única a apreciar o espaço e prova disso é que embora o restaurante tivesse ambientes lindíssimos, muito bem decorados e absolutamente convidativos, instagramáveis, além de publicamente elogiáveis, o que frequentemente se via nas redes sociais de frequentadoras dO Bistrô eram fotos naquele banheiro. O espelho enorme ocupando uma parede inteira valorizava bastante, então a escolha das clientes era totalmente compreensível.

            Tatiana se encara no espelho iluminado ao lavar as mãos, avaliando sua aparência. Comer o que não podia lhe rendia um custo alto, o que era perceptível em seu rosto abatido, mas sentia que em muitas situações só a comida consolava. Nesta manhã, por exemplo, havia se permitido ser confortada por itens de padaria, seu ponto mais fraco.  

Ao deixar o banheiro, foi rendida por Patrícia, que a esperava.

– Você não vai me contar o que tem te deixado tão mexida a ponto de ficar assim? – Patrícia questiona, distante alguns metros, no instante em que vê Tatiana sair do banheiro. Pelo tom de sua pergunta, ficou claro que ainda estavam sozinhas porque ela dificilmente usaria aquele volume caso a gerente já tivesse chegado ao trabalho.

– Patrícia, pelo amor de Deus... – Tatiana resmunga, alinhando uma cadeira com a mesa, no meio do salão – Tudo para você é sempre um problema, sempre há alguma questão... A vida não é tudo isso não, meu amor. Relaxa!

– Como “relaxa”? Eu te conheço, Tati! Sei que você desconta na comida quando está ansiosa! Por que não me diz logo de uma vez?

– O que quer que eu diga? – Tatiana questiona, sem transparecer o que sentia, embora a pergunta tenha soado irritada.

– Não sei, qualquer coisa que não me faça ficar criando mil histórias na cabeça.

– Pati, eu só não digo que você merecia um problema grave de verdade para se preocupar porque não seria justo – Tatiana diz, aproximando-se da esposa – Mas às vezes acho que o seu problema é não se ocupar por inteiro, aí qualquer coisinha vira um dramalhão. Isso vai acabar te fazendo mal, escuta o que estou te falando.

– Mal eu fico por te ver passando mal, apesar de me desdobrar para te manter dentro da sua dieta. Você não é mais criança, Tatiana!

– E nem você é minha mãe, Patrícia!

– Mas é que... – Patrícia se cala ao ouvir o barulho da porta da área de entrega – Essa conversa não terminou – ela complementa, virando-se para cumprimentar Zezé.

            Tatiana acena para a gerente e sai sem se despedir da esposa. Em dias normais ela provavelmente esperaria alguns minutos até se afastar do vaso sanitário, mas considerou que, no momento, a fuga valia o risco. Lá fora, antes mesmo de entrar no carro, traçou em pensamento um trajeto que incluía alguns banheiros que conhecia no caminho até o trabalho e se convenceu de que era preferível chegar mais cedo à escola, ainda que utilizando um percurso mais longo, a permanecer por ali, discutindo com Patrícia. Especialmente porque não teriam privacidade alguma para brigar, afinal, o restaurante não era o local ideal para empenharem uma DR.

            Claro que dentro de casa elas igualmente evitavam ao máximo qualquer tipo de bate-boca, no intuito de preservar o relacionamento com Mariana. Em consenso, combinaram de evitar contaminá-la com questões prévias à união das três – e havia várias delas. A mulher obviamente sabia que as duas eventualmente se indispunham, como sabia que quase todas as discussões entre as esposas aconteciam longe dela, mas nem assim era capaz de imaginar a quantidade de conflitos. E o fato é que, distante de sua vista, Patrícia e Tatiana conseguiam se desentender com certa frequência, provavelmente porque tinham um tempo maior de convivência.

            Ainda que estivesse zangada, ao afivelar o cinto de segurança, Tatiana sorriu sem perceber, sentindo o perfume de Mariana no interior do veículo, que serviu como um lembrete para o bem que ela fazia. Embora jamais tivesse imaginado algum dia se casar com duas mulheres, era obrigada a admitir que os benefícios de um relacionamento poliamoroso eram imensos, tantos que sentia-se até incapaz de listar. Em partes porque Mariana era uma pessoa especial, ao ponto de fazê-la se questionar se daria tão certo caso envolvesse outra pessoa que não fosse ela.

            Sua esposa era dotada de uma calmaria que Tatiana jamais encontrou em Patrícia, e que nem daria certo com a personalidade da mulher. Talvez a graça estivesse justamente nisso, nas diferenças.

Além das benesses, a segunda esposa também era a responsável por firmar seu casamento anterior, ainda que indiretamente. O fato de impedir que brigas maiores acontecessem era só um dentre vários motivos para acreditar nisso. Não que antes de conhecê-la Tatiana e Patrícia corressem algum risco de se separar, mas incontestavelmente Mariana havia implantado um novo tempo de paz em seu lar. E isso era de uma riqueza sem fim.

            Tatiana sorriu novamente, agora de maneira consciente, ao parar no semáforo vermelho e tirar do porta-luvas o documento do carro. Lá dentro encontrou também um par de óculos e uma bombinha de asma, objetos quase fundamentais para a sobrevivência de Mariana, que era perita em perder as próprias coisas, mesmo correndo o risco de não conseguir enxergar ou respirar. Tatiana só parou de sorrir quando o carro de trás buzinou e ela viu que o trânsito já tinha sido liberado.

            De volta à realidade, enquanto dirigia direcionou seus pensamentos até Patrícia, que tinha o dom de se preocupar com o que não devia. Ainda assim, inevitavelmente Tatiana se viu imaginando o que diria em sua própria defesa, caso a mulher a emparedasse – o que provavelmente aconteceria em breve, considerando o mau humor da esposa. Patrícia sabia ser enfática em seus argumentos, ainda que se baseando unicamente em ciúme, então era válido se precaver e se preparar para algum tipo de confronto, mais cedo ou mais tarde. Ao chegar ao seu destino, até considerou que poderia ser uma boa estratégia conversar antes com Mariana, separadamente, para ter uma aliada nessa possível discussão.

            Por sorte, Tatiana não precisou fazer nenhuma parada no trajeto e chegou ao trabalho sem passar mal, com meia hora de antecedência. Como ainda era cedo, conseguiu estacionar na última vaga que ainda tinha sombra no pátio, o que era muito raro. Todo o espaço sombreado era disputadíssimo entre os professores e já tinha sido até motivo de briga.

            Do outro lado do estacionamento, Tatiana cumprimentou Gilvânia, que de longe acenou de volta para ela. Distraída, considerando se deveria arriscar e tomar um cafezinho com a amiga antes de sua primeira aula naquela manhã, foi interpelada por outra colega, que quase a atropelou.

– Nossa, mas o que foi que aconteceu com você? – Rosana questiona, parando devagar, com a voz sendo abafada pelo som de pneus murchos esmagando as pedrinhas no chão. Apesar da pergunta, a feição em seu rosto era horrorosa dentro do carro, provavelmente porque tinha acabado de perder a última vaga debaixo da árvore – Você está com uma aparência péssima! – a mulher completa, enfatizando bem a última palavra.

– Eu... – Tatiana balbucia, mas nem se dá ao trabalho de completar a frase porque a outra já havia se afastado. Por ser cordial, porém, aguardou a colega estacionar, debaixo do sol.

– Não me diga que andou comendo de novo o que não devia – Rosana então diz, depois de trancar o carro apitando um alarme barulhento e cumprimentá-la com um beijinho rápido na lateral do rosto – Mas será que nem sendo casada com uma chef de cozinha você consegue se manter na linha e se alimentar bem? – a professora de Matemática complementa, caminhando rápido ao seu lado, sem dar tempo para uma resposta – Ai, vocês...  

– Ei, Tati! Pode dar um pulinho aqui? – Gilvânia chama, a alguns metros de distância, a salvando de uma provocação matinal.

– Eu não acho que vale a pena respondê-la – Tatiana diz, em tom de bom dia. Em seguida deu um abraço na amiga, a cumprimentando, e entrou junto com ela na apertada salinha de Educação Física, localizada perto da quadra.

– Claro, sabemos disso – Gilvânia responde, servindo em um copinho minúsculo de plástico um gole bem quente de café – Chegou cedo, está tudo bem? Família vai bem, o gato? – ela olha atentamente para seu rosto, claramente observando que algo não parecia correto.

– Sim, tudo bem. Patrícia entrou mais cedo hoje no serviço, inventou de fazer um inventário na cozinha do restaurante – Tatiana senta em uma banqueta de madeira e apoia sua pasta preta em cima da mesa – Mais cedo fui sozinha à padaria...

– Ah, entendi – a mulher diz, a interrompendo. Pela maneira como desfez a ruga no meio da testa ao ouvir aquilo, a resposta pareceu ser realmente convincente.

– ...acabei comendo o que não devia, aí a gente discutiu no caminho... – Tatiana acrescenta mesmo assim, dando de ombros – Enfim, nada novo no horizonte. E você? Tudo bem em casa?

– Tranquilo, sem novidades. Ontem fui com a Maitê ao cinema, ela queria ver o novo filme do Planeta dos Macacos. Achei... ok – Gilvânia assopra o café, segurando na borda do copinho – E o novo curso lá que você está fazendo? Tem gostado? É melhor que o anterior?

– Sim, é muito legal. E muito diferente também, o primeiro curso foi mais teoria, né, História da Arte e tal... Esse de agora é sem dúvida mais interessante, me desafia bastante. Eu nem lembrava como era desenhar, assim, só porque quero. Tem muita técnica que já tinha esquecido, várias outras que nem conhecia...

– E dona Patrícia? Ficou tranquila com essa história toda? – a mulher pergunta, sorrindo ao receber uma careta da amiga como resposta – Ah! Por isso você foi à padaria, claro, agora sim eu entendi – Gilvânia ri – Você sempre fala que sua esposa é mega ciumenta, imaginei... E a Mariana, é de boa com relação a isso?

– Ela é – Tatiana deixa escapar um sorrisinho, pensando com carinho na esposa – Mariana é única na Terra. Ela acredita que a gente tem que fazer o que nos faz bem, mesmo que seja algo que possa deixar a Patrícia enciumada.

– Professora Gil, o Juninho está chutando a bola de vôlei – uma menina dedura, parando de correr ao colocar metade do corpo dentro da sala abarrotada com itens de esporte – Oi, professora Tati – ela acena ao ver Tatiana sentada ali.  

– Vou lá resolver isso – Gilvânia responde, se levantando, fazendo um movimento para a aluna circular – Tati, no almoço vamos lá conhecer aquele boteco que abriu na rua de cima. Me disseram que a comida é bem gostosa.

– Tá bom, a gente se fala perto de meio-dia – Tatiana se levanta também, jogando o copinho vazio no lixo do chão – Qualquer coisa me manda um zap, tenho uma janela depois do intervalo.

– Combinado, beijo. Se cuida até lá.

             Tatiana faz um movimento com a cabeça, se despedindo. Com um passo firme, atravessou a quadra e entrou num corredor comprido do outro lado, que terminava na sala dos professores. Conforme avançava, foi cumprimentando e sendo cumprimentada por estudantes que a cercavam como se ela fosse uma espécie de celebridade. E Tatiana era, ao menos naquele universo escolar.

No caminho até seu armário, foi listando os materiais que usaria na aula, no intuito de sair dali o mais rápido possível. Isso porque, com exceção de Gilvânia, sua amiga confidente, aos demais colegas Tatiana dispensava apenas o básico de sua atenção, pois acreditava que esta era a pior parte de trabalhar com crianças: ter que interagir socialmente com adultos.

            Se pudesse, só entraria na sala de aula no começo da manhã e sairia no fim do dia sem fazer mais nada a não ser arte com seus alunos. A depender de sua vontade, dispensaria até a parte da reunião de pais, que sempre a aborreciam com reclamações sem fundamento, querendo que ela justificasse coisas que nem sempre são passíveis de se explicar. Alguns responsáveis não entendiam a importância de sua disciplina no processo de amadurecimento de seus filhos e isso era só uma das coisas que deixavam Tatiana desgastada em sua rotina como educadora de Artes. Havia também, é claro, a desvalorização de sua profissão, os baixos salários e a precarização do trabalho, mas considerar essas questões a sério só serviria para fazê-la desistir da carreira de professora – que ela amava, apesar dos inúmeros percalços.

            Inclusive, foi movida por um sincero sentimento de que algo precisava ser feito para reanimar seu amor pela profissão que ela decidiu voltar a estudar, depois de passado tanto tempo já formada e de certa forma acomodada na carreira. Além do tédio que a acometia em boa parte de suas horas livres também, já que embora fosse casada com duas, suas esposas tinham o hábito de trabalhar bastante, em horários que iam além do comercial.

            Numa noite de quarta-feira, quando estava em casa de bobeira, Tatiana considerou que poderia ser interessante se inscrever num curso de extensão. Ela foi induzida a pensar isso, depois de ver um anúncio no feed do Instagram a respeito de um MBA em História da Arte, que começaria dali alguns dias. O lugar que oferecia a pós-graduação não era distante de casa e tinha boa reputação no mercado, o que a fez julgar que poderia ser uma boa investida/um bom investimento.

            E de fato foi. Tanto que, ao concluir, Tatiana decidiu emendar e fazer mais um, iniciado uma semana atrás, desta vez um curso livre. Foi quando o humor de Patrícia mudou em casa, o que era muito curioso, considerando que ela ainda nem detinha todas as informações sobre esse assunto. E era justamente para este momento que Tatiana agora se preparava, o que a deixava aflita e ansiosa. Conhecia bem a mulher e sabia que ela ia surtar.

            Ao chegar à sala dos professores, Tatiana se deparou com o local praticamente vazio. Avistou lá dentro apenas Rosana e uma mocinha sentada ao seu lado, em volta da mesa comprida coberta com uma engordurada toalha de plástico. A jovem tinha no rosto uma expressão que lembrava desespero, como se em silêncio suplicasse para alguém salvá-la dali.

– E essa prô aqui, você já a conhece? – Rosana pergunta, tão logo Tatiana abre a porta do local – Ela dá aula de Artes, olha só o que você perdeu. Se tivesse escolhido outra área que não fosse a Matemática, poderia estagiar na sala dela...

– Tudo bem? – Tatiana cumprimenta, com um sorriso forçado, tentando parecer simpática. A moça retribuiu com uma careta igual, mas ela não viu porque estava com o corpo quase todo dentro de seu bagunçado armário de metal.

– Aqui nesse colégio a gente tem de tudo, conforme eu já havia comentado com você anteriormente – Rosana diz, de um jeito como se Tatiana não estivesse mais por ali – Temos até diversidade no quadro de funcionários, veja, representada por alguns professores gays.

– Ah, bacana – a moça responde, sem parecer interessada.

– A Tatiana mesmo é casada com a chef de um restaurante cinco estrelas, não é Tati? – Rosana continua, com sua voz desagradável, forçando simpatia – Você conhece O Bistrô? Não? É um restaurante chique, menina, fica ali no Paraíso, do ladinho da Paulista...

– Não... – a menina murmura, depois de menear com a cabeça negativamente.

– Ah, Tati, vê com ela um dia que seja mais tranquilo para você levá-la até lá para ela poder conhecer – Rosana sugere, de um jeito como se as três fossem velhas amigas – Olha, o lugar é ótimo e a comida é sensacional, tenho certeza de que você vai adorar.

– Uhum, claro. Vai ser um prazer! – Tatiana resmunga, sorrindo novamente ao sair da sala, sem a menor intenção de se aprofundar no convite.

            Ainda que fosse indubitavelmente a fã número um do restaurante, e principalmente da comida e do tempero de Patrícia, Tatiana não fazia o tipo que levava as pessoas do trabalho para jantar. Especialmente uma completa estranha, que ela sequer sabia o nome.

            Isso a fez pensar novamente na esposa, a caminho da sala de aula, especificamente no humor de Patrícia. Será que haveria um momento oportuno para Tatiana lhe contar com quem havia esbarrado na semana anterior? Se por acaso a mulher não ficasse sabendo a respeito, isso seria muito ruim para a relação? Quão zangada Patrícia ficaria caso o assunto viesse à tona só depois?

            A alguns quilômetros distante dali, Patrícia não tinha como sequer imaginar o que se passava na cabeça da mulher, muito embora não parasse de pensar a respeito, mesmo atarefada com todas as coisas do trabalho, que exigiam sua atenção. No dia anterior, na tentativa de se desviar de seus problemas pessoais, tinha decidido recriar uma receita antiga, o que consequentemente a levou a iniciar um inventário no restaurante na manhã seguinte, totalmente fora de hora, depois que não encontrou um utensílio fundamental para aquela empreitada.

O problema é que o serviço extra consumiu os poucos instantes que tinha livre entre uma tarefa e outra na cozinha até o horário do almoço começar, o que a fez se questionar a respeito de suas decisões recentes. Já fazia um tempo que vinha se programando para reduzir sua carga horária, pois sentia-se constantemente cansada, mas a impressão que tinha é que quanto mais afirmava que trabalharia menos, mais trabalhava. E essa rotina não combinava em nada com sua vida de integrante de um trisal. Ao menos não era assim que imaginou que seria (à noite ela mal tinha forças para ficar acordada!).

Ser chef dO Bistrô era uma função complexa que a ocupava integralmente, com várias responsabilidades que exigiam muitas de suas decisões, mas mesmo sobrecarregada conseguiu encontrar um tempinho para confabular o que estaria se passando com a esposa. Porque sem dúvida alguma havia algo de errado. Restava apenas descobrir o que era e a razão para a mulher não querer lhe contar.

            Embora Tatiana não dissesse nada, a questão é que elas tinham bastante intimidade – lá se iam dez anos de união, afinal, comemorados no final do ano passado. Então nem sempre as palavras eram necessárias entre as duas porque um gesto, ou algo não dito, era suficiente e bastava para gritar muito do que permanecia no suspense do silêncio. E o fato de a esposa não falar o que a incomodava, o que quer que fosse, abria brecha para Patrícia acreditar em toda e qualquer história que sua mente era capaz de produzir. E ela conseguia criar as mais loucas teorias que se possa imaginar.

Inevitavelmente, muitas dessas conjecturas envolviam outra mulher. Claro, o que mais seria? Qualquer outro assunto Tatiana com certeza falaria!

Todavia, embora incomodadíssima em vários níveis, em momento algum era capaz de se esquecer de que num passado recente havia dado motivos para que as esposas desconfiassem dela, jamais o contrário. Entretanto, uma vez que esta questão foi devidamente resolvida entre as três na época, o assunto do baile costumava viver à margem de seus pensamentos, de um jeito que tendia até a parecer que sequer havia ocorrido (como se fosse só uma história de algum livro que foi lido). Ou o beijo envolvendo a bartender dO Bistrô durante uma festa a fantasia é que justamente estimulava agora um ciúme maior por parte dela, isso ainda não estava muito claro.

O fato é que Patrícia tinha dificuldades para admitir que era humana. Fantasiava-se no dia a dia de super mulher, ora com seu uniforme de chef de cozinha, ora como a dona de um restaurante famoso e badalado, mas a verdade é que no fundo ainda era a mesma menina que um dia decidiu se aventurar a cozinhar, em cima de um banquinho, até hoje carregando nos bolsos sua cota de insegurança e ansiedade. Só que agora com novas responsabilidades. E duas esposas com livre-arbítrio.  

– Dispensei as garçonetes da contagem do estoque porque os clientes já estão começando a chegar – Zezé avisa, na ponta do pé para ficar na altura da orelha de Patrícia. Mesmo assim, a gerente dO Bistrô praticamente gritou para poder ser ouvida – Nós já terminamos a primeira etapa do que tínhamos programado do inventário, mas você precisa me dizer direito o que é que estamos procurando – complementou.

Patrícia acena brevemente, afastando-se alguns poucos milímetros de uma panela grande, que flamejava alto, dando a entender que havia escutado, apesar da sinfonia caótica de panelas e talheres tilintando.

Naquela manhã de sexta-feira vestia um dólmã azul-escuro, muito elegante, com as mangas puxadas bem rente aos cotovelos. Como sempre, a vestimenta marcava no bolso da frente sua aliança de casamento, como se fosse um talismã. Seu cabelo estava preso debaixo de uma touca que parecia uma bandana, vermelha, que combinava com o tom de seu rosto, rosado por conta do esforço.

Ao fazer um movimento com a mão, remexendo os ingredientes marinados, revelou uma careta.

– Mais fino – Patrícia diz, balançando a cabeça negativamente – Esse cogumelo tem que ser mais fino, senão sobrecarrega o risoto – ela entrega a panela para uma moça que passava com uma travessa vazia – Assim – Patrícia puxa uma faca de cima da bancada e corta uma fatia bem fina, que foi levantada para que a ajudante de cozinha pudesse ver. Seus olhos verdes, por trás da faca, faiscaram ao refletir algum movimento ali perto, no fogão – Estamos procurando uma forma, Zezé. Uma forminha, desse tamanho – ela então diz, agora para a gerente. Seu gesto foi brevíssimo porque logo reassumiu a panela que estava manuseando. No mesmo instante uma labareda mais alta se levantou e iluminou aquela parte da cozinha.

– Forminha... – Zezé murmura. Apesar dos ruídos altos no ambiente, Patrícia a escutou – Tipo... de pudim? – perguntou, incerta, com cada sílaba saindo bem devagar.

– É, só que sem... – Patrícia não termina a frase porque naquele momento chegavam à cozinha as primeiras solicitações de almoço e ela preferiu ouvi-las.

– Pessoal, precisamos de uma entrada de tartar de atum com manga e abacate, outra de ceviche de peixe branco com coentro e milho torrado, e uma terceira entrada de ostras com vinagrete de maracujá – Pedro solicita, com apenas metade do corpo dentro da cozinha. Como sempre, o garçom estava com um sorriso largo enfeitando o rosto – Chef, os almoços são risoto de camarão com aspargo, moqueca de frutos do mar e linguine com mexilhões e tomate-cereja.

Desviando o olhar de Patrícia, Pedro insere os pedidos no sistema e automaticamente os três surgem em uma tela colorida pouco maior que um tablet, disposta ao lado da porta. Automaticamente o número das mesas foi associado a cada um deles.

– Você, quero que ajude ali. Não esquece do que falamos mais cedo – Patrícia diz, apontando para a moça dos cogumelos, direcionando-a para outra bancada – Wal, assume aqui. Lembra qual é o ponto do linguine, né? Ótimo.

– Chef, o cliente da mesa 7 também pediu para cumprimentá-la. Ele se chama... – Pedro puxa do bolso da frente de seu avental branco um bloquinho de papel – Ricardo. Ricardo Marzon.

– Tá, eu vou... Zezé? – Patrícia resmunga e, apesar de incompleta, sua fala foi integralmente compreendida pela gerente, que acenou antes de sair.

Zezé conhecia bem a chefe. Eram vários anos trabalhando juntas, sabia que aquele era o pior momento para tentar estabelecer algum tipo de diálogo. Então desistiu de buscar mais informações sobre o utensílio de cozinha que desde ontem Patrícia procurava e foi cumprimentar o cliente por ela. A chef estaria disponível para falarem sobre aquilo, quem sabe, à tarde. Desde que Mariana não aparecesse por lá, é claro. Ela era a única que tinha o poder de desviar a atenção da mulher, mesmo nas horas mais corridas do dia (ou da noite).

Patrícia, por sua vez, não se importou em adiar o assunto porque agora o ideal era que Zezé ficasse mesmo lá fora, recepcionando as pessoas, cuidando de tudo, sendo seus olhos enquanto ela se mantinha ocupada com a equipe na cozinha, garantindo que cada processo ocorresse bem. Este era um dos momentos mais tensos e intensos do dia, perdia apenas para o horário do jantar, e sua prioridade era coordenar a preparação de todos os pedidos num curto espaço de tempo; depois, com mais calma, se dedicaria a procurar a tal forminha que ela sabia estar em algum lugar por ali. Tinha revirado sua casa na noite anterior e não havia encontrado, só poderia estar no restaurante.

Por ora, sua prioridade seria cuidar do que era mais importante e a cozinha demandava bastante. Isso porque antes mesmo de o primeiro pedido chegar, a energia por ali já era sempre frenética, às voltas com todos os preparativos das refeições do dia. Havia muito trabalho prévio à chegada dos clientes, afinal, O Bistrô tinha prestígio suficiente para atender um grande volume de pessoas quase diariamente e o ritmo das atividades automaticamente triplicava quando o restaurante tinha gente no salão. Aí dava para contar entre três a quatro horas de serviço intenso, até o movimento abaixar, e depois voltar a crescer, algumas horas depois.

Por isso, já de início a chef circulou pelas estações de trabalho espalhadas pela cozinha, revisando o que estava sendo feito, analisando cada detalhe, instruindo. Ainda que não precisasse colocar a mão na massa, ou nos molhos, as receitas eram suas e a responsabilidade pela qualidade da comida servida também. E esse poder era um dos abismos que a separava de sua versão juvenil. Um dos poucos.

Ela era reconhecida, entre os clientes e funcionários, e até por quem não a conhecia de fato, como referência de mulher empoderada, uma líder carismática, capaz de manter a calma sob pressão e ainda conseguir fazer sucesso num mercado dominado predominantemente por homens. Também era lésbica assumida e, em partes, O Bistrô existia graças à Tatiana. Não porque ela tenha feito Patrícia pegar gosto em cozinhar, pois isso veio de muito antes, mas porque a esposa jamais a desencorajou em nada. E sempre a apoiou, mesmo quando tudo o que tinham eram sonhos e um livro secreto de receitas.

Hoje, que já era conhecida no nicho em que atuava, com seu próspero restaurante famoso em todo o brejo (e além!), dava-se ao luxo de sequer ter que manipular uma panela; Tatiana era quem mantinha a chef cozinhando, só que em casa, ou testando receitas nas horas vagas. Uma vez que a esposa tinha restrições alimentares, Patrícia assumiu a responsabilidade de elaborar cardápios especialmente para ela, usando a meia dúzia de ingredientes que lhe eram permitidos.

Por este motivo, atualmente, Patrícia cozinhava unicamente por amor. E ela amava ver suas esposas bem alimentadas e satisfeitas, era um regozijo para a sua alma cozinheira.

Por isso se aborrecia tanto quando Tatiana fugia da dieta. De um jeito meio atravessado, soava como se fosse um tipo grave de traição. Dupla, ainda por cima, considerando que a esposa recorria a alimentos proibidos quando ficava muito ansiosa e, até o momento, ela ainda não havia contado o que a estava afligindo.

Se parasse para pensar seriamente a respeito, Patrícia é quem tinha motivação para estar ansiosa. Não porque Tatiana tinha voltado a estudar (não do jeito que ela havia falado mais cedo), mas devido ao tipo de curso escolhido. Impossível não se enciumar!

Quer dizer, impossível para Patrícia. Mariana lidou com a questão de um jeito super normal.

Do trisal, Mariana era sem dúvida nenhuma a mais tranquila das três. Impressionantemente nunca parecia haver tempo ruim para ela, com nada, a mulher estava sempre de boa com tudo, num desapego com as coisas que, nossa... Um tipo de evolução que estava a anos-luz de distância de onde a chef se encontrava.

Pensar nisso fez Patrícia sorrir, em meio ao caos típico de uma cozinha prestes a entrar em seu horário de pico. Mas o sorriso durou pouco porque logo considerou que já fazia alguns dias que a esposa andava inquieta, com o sono leve, dormindo pouco, quase nada. E refletir que ultimamente vinha dedicando mais atenção às questões de Tatiana que às de Mariana deixou Patrícia um pouco inquieta.

Será que ela teria conseguido remarcar a tal reunião em outra cidade? A ideia era discutir qual assunto, mesmo? E aquele papo de a cliente conhecer o carro dela, hein?

– Eu com certeza preciso tirar essa história a limpo – Patrícia resmunga, falando sozinha. Como havia bastante barulho na cozinha, ninguém a escutou – Vai, pessoal, vamos, agilizando – ela então fala, agora mais alto, chamando a atenção geral.

Ainda que estivesse realmente preocupada, por mais de uma razão e com ambas as esposas, o trabalho tinha o incrível dom de desviá-la de qualquer assunto que não fosse relacionado ao restaurante, mesmo que transbordassem às voltas de sua mente muitos assuntos de sua vida pessoal. Mas era relativamente fácil para Patrícia mergulhar em tudo aquilo porque O Bistrô não era o tipo de lugar que só se molha a pontinha do pé. Quando estava em horário de expediente, sentia que era preciso se entregar de corpo e alma, verdadeiramente, indo a fundo no sentido de se doar por inteiro. Ela dizia que o segredo de seu sucesso era um tal “ingrediente secreto” utilizado nas receitas, mas na verdade tinha mais a ver com sua dedicação.

– Pati, aquele publicitário insiste em falar com você – Zezé anuncia, ao retornar à cozinha, cerca de uma hora depois de sair.

– Tá, eu... – Patrícia solta um muxoxo, um pouco frustrada, mas não disse mais nada. Tirou o avental que estava amarrado na cintura e ajeitou a roupa, antes de deixar o posto.

– Sei que não é o tipo de coisa que você gosta muito de fazer... – a gerente comenta, ao passarem pela porta vai e vem.

– Tudo bem, ossos do ofício – Patrícia resmunga, sorrindo para um casal sentado próximo ao bar.

– Não esquece de dar condolências pela morte do pai dele – Zezé cochicha, antes de seguir em outra direção.

– Ricardo, querido – Patrícia sorri, antes de chegar à mesa 7 – Que prazer recebê-lo mais uma vez! – ela o cumprimenta com um beijo rápido estalado no rosto e repete o gesto em sua acompanhante – Que satisfação vê-los aqui, como estão? Tudo bem?

– Oi, Pati! Peço que me desculpe por ter insistido tanto para que viesse... – Ricardo se levanta, todo cortês – ... mas é que vir aO Bistrô e não cumprimentá-la é como almoçar fora e ir embora sem sobremesa – ele ri alto, de um jeito espalhafatoso. Patrícia o acompanhou, mas de maneira mais contida, e estendeu o sorriso para um cliente da mesa ao lado, que a encarava, admirado.

– Seu pai sempre foi muito espirituoso... – a chef comenta, lembrando que aquela era uma frase que Inácio Marzon costumava falar, sempre que ia ao restaurante – Inclusive, sinto muito pela sua perda, Ric. Meus pêsames.

– Tudo bem, eu agradeço – Ricardo responde, com um pigarro – O importante é que ele fez uma passagem tranquila, partiu sem dor e deixou para todos nós um grande e importante legado. A publicidade no Brasil se transformou com a genialidade do meu pai, não tenho dúvidas.

– Ah, com certeza, eu também acho – Patrícia rebate, torcendo as mãos de um jeito um pouco sem graça – Bom, espero que aproveitem a sobremesa! Vou encaminhar um pedido especial para vocês, por conta da casa – ela sorri, de maneira polida – Prazer novamente em revê-lo.

– O prazer é todo meu, querida – Ricardo se despede com um beijinho em seu rosto, antes de voltar a se sentar – E parabéns mais uma vez pelo restaurante! É sempre uma experiência gastronômica incrível vir aqui.

– Eu fico muito feliz que goste, grata – Patrícia sorri também para a moça que acompanhava Ricardo e se afasta devagar, educadamente – Tudo bem? Bom apetite – ela fala, para outro cliente, assim que se vira – Oi, tudo bom? – Patrícia sorri para uma terceira pessoa, acenando com a mão.

A distância, parecia uma espécie de celebridade, desfilando de maneira distinta entre as enfeitadas mesas de seu lindo restaurante. Ela mesma não conhecia quase ninguém que se encontrava no salão àquela hora, mas a maioria sabia quem era Patrícia Figueiredo, a chef dO Bistrô.

– Andreia – ela chama a garçonete, que passava por ali – Manda por favor para a mesa 7 duas sobremesas especiais. Pede para a cozinha preparar aquela tartelete de limão siciliano com merengue, fala que fui eu que pedi. Por conta da casa, tá?

– Claro, pode deixar, chef – Andreia responde, afastando-se na sequência com celeridade.

Aproveitando-se de seu breve afastamento do posto de trabalho, antes de retornar à cozinha, Patrícia decidiu dar um pulinho no escritório, localizado no andar de cima dO Bistrô, utilizando a escada que havia dentro da despensa. Não quis correr o risco de encontrar com mais gente, caso usasse a escada da frente, e isso acabar atrasando-a ainda mais.

Embora não pretendesse se demorar além do necessário, antes de retomar o serviço aproveitou para conferir se havia alguma mensagem em seu celular, fosse de Tatiana, fosse de Mariana. Uma estava com mal-estar e a outra atrasada para uma reunião importante, na última vez que as viu. Porém, nenhuma das duas havia mandado nada e isso a levou a entrar no Instagram, assim, por instinto.

Tatiana não tinha o hábito de postar nada em seu perfil e Mariana não fazia exatamente o tipo influenciadora, em partes porque Patrícia não sentia-se segura de se exibirem nas redes sociais. Ainda que seu perfil e o das esposas fossem bloqueados, acessíveis apenas para amigos próximos, considerava por bem não vacilar. Afinal de contas, na internet o que mais tem é gente maldosa, mal-intencionada e invejosa, e em sua sincera opinião não havia motivos para se exporem em vitrines tão demasiadamente frágeis. Patrícia só não as escondia debaixo da cama porque não dava para fazer isso.

Ainda assim, obviamente que por outros motivos, o perfil da empresa de Mariana costumava ser bem ativo. Ela tinha até uma pessoa só para cuidar dessas mídias, que ajudavam na divulgação de seu trabalho. E foi lá que Patrícia viu uma foto que a deixou intrigada, com aquela tal “pulguinha atrás da orelha”.

Nos stories havia uma imagem de uma mulher bonita, segurando um copo de bebida, sorrindo para quem estava fotografando (e não para a câmera/celular). Sobre a mesa, Patrícia reconheceu os óculos da esposa, perto da legenda “Almoço especial de negócios”.

– Quem será que é essa horrorosa? – Patrícia se questiona, ampliando a imagem depois de tirar um print. O rosto não parecia ser de ninguém conhecida, muito embora Mariana conhecesse gente para caramba – Essa é a tal reunião importante? – murmurou, se ardendo em ciúmes, reconhecendo Mariana no reflexo da lente dos óculos.

Como se fosse um tipo de espiã, ou detetive, Patrícia entrou na página do Instagram do restaurante em que a esposa estava e depois de checar as hashtags, viu as imagens em destaque e depois rolou pelas mais recentes. Além de pratos coloridos e bem elaborados, as fotos apresentavam um ambiente bem iluminado, com lustres enormes pendurados no teto alto, parecendo castiçais dourados pingando luz em direção ao chão – bem diferente do cenário mais reservado, à meia-luz, onde Mariana fotografou sua acompanhante sorridente, flagrada bebendo, em pleno meio-dia.

Na sequência, Patrícia ampliou a pesquisa e jogou o nome do estabelecimento no Google: quatro estrelas na avaliação geral, meia dúzia de queixas no Reclame Aqui, dois processos trabalhistas no Jusbrasil, nada muito especial. Aí ela foi ver no mapa a fachada do lugar, os imóveis do entorno, as fotos do bairro, tudo. Só por curiosidade.

Quando seus pensamentos começaram a querer levá-la para um abismo que ela sabia que não tinha volta, Patrícia se lembrou do comentário feito por Tatiana naquela manhã. Talvez estivesse mesmo com a cabeça muito à toa nos últimos dias, por isso andava se preocupando com o que não devia – fosse a mudança repentina no comportamento de uma esposa, ou o almoço em outra cidade envolvendo a segunda mulher.

Sentindo-se incomodada, Patrícia jogou o aparelho celular de volta ao fundo da gaveta, fechou a porta do escritório e desceu. Foi se ocupar com o trabalho porque aquele era um sentimento bem difícil de lidar. Parecia diferente sentir ciúme de Mariana, como se perturbasse mais do que quando só envolvia Tatiana. Talvez por causa do tempo de convívio. Ou por conta do apego.

Somente ao chegar em casa à noite, exausta após um dia intenso de muito trabalho, é que Patrícia voltou a pensar no assunto. Especificamente quando entrou na garagem e viu que o carro de Tatiana não estava estacionado lá. Ou seja, Mariana ainda não havia voltado para casa.

– Viu só como eu disse que daria tempo de ir te buscar? – Tatiana comenta, em tom de boa noite. Se defendeu antes de ser atacada porque a expressão no rosto de Patrícia dizia muita coisa. Mais do que tudo do que ela não falou, num primeiro momento – Meu curso acaba cedo, Pati – ela complementa, de um jeito mais ameno, dando um selinho na mulher – Na semana que vem eu saio da aula e vou te encontrar nO Bistrô, aí a gente volta junto para casa.

– Tá bom, Tati... – Patrícia responde, suspirando, atirando-se no sofá. Sentia-se perto do esgotamento físico e quase inteiramente à beira do colapso mental – Tem notícias da Mari?

– Não, quer dizer... ela me mandou mensagem há pouco mais de uma hora, mais ou menos, falou que já estava na estrada, vindo para cá. Por quê? Aconteceu alguma coisa?

– Onde era a reunião dela? – Patrícia indaga, ao invés de responder – Você sabe? – ela insiste, diante do silêncio da esposa.

– Lá em Campinas, né? Acho que a empresa se chama... – Tatiana encara o teto e alisa o queixo, tentando se lembrar – Tech alguma coisa? TechFuture, acho. É, TechFuture.

Tatiana observa Patrícia puxar o celular do bolso da calça jeans, sem dizer nada, e senta ao lado dela para ver o que esposa estava pesquisando. Acompanhou a mulher entrar no site da empresa, copiar o endereço, jogar no Google e depois finalizar suas buscas, quaisquer que fossem, no YouTube e no Instagram, especificamente na página da companhia que, dadas as informações institucionais, parecia ser de grande porte, com ares de multinacional.

Patrícia só sossegou quando enfim encontrou fotos da diretoria em um evento de negócios, mas Tatiana continuou sem entender.

– Você conhece essa Fulana? – Patrícia mostra o story da empresa de Mariana para Tatiana, que enruga a testa como resposta. A foto não era nada demais; apenas uma mulher com um drinque.

– Não, essa aí não é a... Hum, não, amor – Tatiana responde, depois de alguns segundos – Não sei quem é, não, por quê?

– Porque ela não parece ser funcionária dessa empresa – Patrícia volta para a foto da diretoria da tal TechFuture – Olha, nem está com roupinha de quem trabalha em empresa de tecnologia. E ela está bebendo, Tatiana.

– O que é que tem, Patrícia?

– Ué, tem que a Mariana foi para uma reunião supostamente de negócios, mas se encontrou com umazinha em pleno horário de almoço.

– Ah, tá – Tatiana rebate, se levantando, um pouco impaciente – Agora sim eu entendi.

– Entendeu mesmo ou vai correr para a padaria para se encher de pão? – Patrícia retruca. Quis levantar também, mas estava cansada, então permaneceu exatamente onde estava, sem mover nem um milímetro. Só cruzou os braços, em sua postura combativa preferida.

– Amor, eu não quero brigar... – Tatiana resmunga, inclinando a cabeça ao ouvir o som do portão da garagem sendo aberto – E acredito que, pela hora, a Mari também não estará disposta a isso.

– Mas nem eu quero briga! – Patrícia diz, levantando-se após empenhar um grande esforço para conseguir mover as próprias pernas – Só que adoraria que vocês duas fossem sinceras comigo e abrissem o jogo! Enquanto eu não sei das coisas eu crio mil teorias, Tati!

– E isso por acaso é culpa minha? – Tatiana questiona, mas se cala na sequência. No mesmo instante viu Mariana entrar na sala, equilibrando a alça da mochila em um dos ombros.

– Oi, meus amores – Mariana cumprimenta, com a voz cansada, dando um beijo em Patrícia e outro em Tatiana – Que bom encontrá-las juntas. A gente precisa conversar.


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