TPM - Capítulo 11: A chef

 

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Mariana tinha o semblante abatido, como se o final de semana tivesse pesado mais do que apenas dois dias. Ou como se o fardo de ter que aturar a própria chefe fosse o suficiente para que seu rosto estivesse transformado. De alguma forma, parecia mais velha que da última vez que se viram, quase três dias atrás. Ela aparentava um ar de maturidade diferente, que não a encobria no encontro anterior. Estava linda, mas de um jeito diferente.
Seus óculos se equilibravam na ponta do nariz e as lentes, arranhadas pelo uso (e principalmente pelo não uso), capturavam e distorciam as sombras do apartamento mal iluminado. Pareciam prestes a cair, assim como tudo à volta, suspenso num tipo esquisito de corda bamba.
O apartamento, embora recém-habitado, já tinha o cheiro dela impregnado, com o aroma gostoso que exalava de sua pele misturado ao perfume que ela usava. O local estava parcialmente na penumbra, com apenas um abajur na sala e a luz da cozinha acesa, por onde também escapava o som do relógio que já estava pregado.
Havia muita coisa acontecendo naquele momento e Patrícia se esforçou para se concentrar na mulher e naquilo que ela falava. Sabia que definitivamente não era o momento de reparar nos móveis da sala nem na decoração que Mariana e Tatiana escolheram juntas numa tarde alcoolizada – no dia em que ela soube da fake news e deixou as duas para trás, totalmente transtornada; exatamente no ponto em que sua vida virou de cabeça para baixo.
Ajustando a vista para o presente, reparou que os pés da esposa estavam descalços e levemente inchados, provavelmente devido ao voo naquela manhã, seguido de um dia inteiro de trabalho. A informalidade da ausência de sapatos contrastava com sua camisa engomada e a calça social bem cortada, que ainda tinham cheiro de ar-condicionado. Apesar de abatida, conseguia estar bonita, com o cabelo amarrado num coque apertado, contido por uma caneta, embora tivesse um elástico preto preso em seu pulso esquerdo.
Mariana puxou a bombinha de asma do bolso da calça assim que se calou, logo após jogar uma bomba na entrada de seu novo apartamento. Aspirou o remédio num gesto meio automático, sem desviar o olhar. Só piscou quando fitou Tatiana.
A mulher, por seu turno, também parecia diferente sob aquela luz. Será que a atmosfera da nova casa de Mariana tinha o poder de distorcer as coisas ou as duas de fato haviam se transformado nas últimas horas?
Tatiana mordia o canto da boca, parecendo conter a raiva que claramente sentia. Quando esboçou querer falar algo, revelou um pequeno corte no lábio inferior – talvez de uma mordida nervosa, talvez de um descuido qualquer. Sem perceber, umedeceu o machucado com a pontinha da língua, de um jeito sexy, embora não intencional.
A pálpebra de seu olho esquerdo tremia, o que a fez levar a mão ao rosto antes que pudesse se manifestar. O gesto destacou o desenho de seu ombro, descortinando ainda mais o fato de que havia emagrecido nos últimos dias. A camiseta azul de algodão que ela usava parecia até um pouco mais larga no dorso. Fez Patrícia sentir vontade de tirar para ver o que mais poderia ter mudado.
Depois de tantos anos de casada, e embora diante de tantos dramas, e dilemas, e problemas, Patrícia reparou que mesmo naquele turbilhão conseguia se apaixonar pela mulher. Que sem dúvida estava mais bonita desde o enfrentamento contra Rosana, horas atrás.
Sem ela, tudo fatalmente seria mais difícil, em partes porque Tatiana assumia o comando quando Patrícia não tinha condições de fazê-lo. Era raro, mas sempre possível de acontecer.
– A sua chefe... te assediou? – a mulher então pergunta, após alguns segundos de um silêncio desconfortável – Como? Quer dizer, quando? – Tatiana deixa a bolsa de pano cair em direção ao chão. Embora tenha mantido a postura ereta, pareceu perder a força não apenas da mão, porque se apoiou na parede enquanto aguardava respostas. Assim como Mariana, ela também parecia bastante cansada.
Patrícia, por sua vez, manteve-se imóvel, estática, tomada por uma fúria visceral que não só a paralisou como também queimou seu estômago e fez seu rosto arder, naquele ponto bem rente às orelhas. A revelação de Mariana era tão absurda e ao mesmo tempo revoltante que, por um ou dois segundos, conseguiu se esquecer completamente da psicóloga na calçada, vestida com uma roupa de ginástica com cores chamativas. Ainda que vê-la segundos atrás a tenha feito vibrar com a queimação do ciúmes, enquanto subia os nove andares num elevador lento e barulhento, agora nada disso parecia realmente importante. Porque a verdadeira ameaça nitidamente se chamava Simone e não Laura.
Porém, embora visível e notadamente zangada com a audácia de alguém se atrever a se meter e assediar sua mulher, e inevitavelmente pensando em mil maneiras de machucar a chefe de Mariana (de supetão, imaginou intimidá-la com facas de cozinha cravadas na mesa dela ou processos na justiça que fizessem sua carreira desmoronar, mas sabia ter potencial para pensar em muito mais), ainda assim, Patrícia permaneceu quieta. Não se sentiu capaz de reagir como sempre fazia – gritando, arranhando paredes e ameaçando acabar com meio mundo.
Estava tão sobrecarregada com seus dilemas pessoais que sentia-se até um pouco fraca. Por isso, a raiva, embora quente e pulsante, se conteve diante do choque com o esgotamento que lhe pesava até os ossos, já há alguns dias.
Tatiana pareceu estranhar sua falta de reação imediata. Afinal, aquela não era a Patrícia que conhecia, capaz de gritar a plenos pulmões e atear fogo às discussões sem nem pensar duas vezes.
– Mari? – Tatiana insiste, dois segundos depois – Pati? – ela a chama, num tom de “cadê você?, essa guerra também é sua!”. Seu olhar foi como se aguardasse que a esposa fizesse algo em relação àquilo tudo e foi acompanhado por uma leve e ansiosa arqueada de sobrancelha.
Patrícia esboçou dizer algo, chegou até a abrir a boca, mas naquele momento seu corpo finalmente se rendeu, absorvendo todos os golpes dos últimos dias, até não sobrar força nem mesmo para conseguir dar vazão ao ódio. Sentia que era muita coisa em cima dela ao mesmo tempo: a acusação de plágio crida pelo jornalista fofoqueiro, envolvendo a chef do YouTube, as noites em claro, preocupada com o futuro e a reputação de seu restaurante – além, é claro, do repentino afastamento físico de Mariana e do distanciamento emocional de Tatiana.
Incapaz de reagir, sentiu ser invadida por um verdadeiro paradoxo: quanto mais a raiva crescia e a preenchia, mais ela se afundava no próprio vazio, que a engolia por dentro, como areia movediça.
Talvez fosse isso. Estava novamente rendida pela mesma paralisia que a impediu de reagir quando soube mais cedo do encontro entre Tatiana e Elen – que era infinitamente mais sério do que o café que a mulher insistiu de tomar alguns dias atrás com Miguel, seu ex-namorado que agora posava como modelo nu.
Então, de repente algo estalou em seu interior, como se um fio lá dentro tivesse se rompido e dado curto-circuito. Sem aviso, seu peito pareceu rachar ao meio e do abismo saiu um riso seco, cortante, que ricocheteou nas paredes brancas e ecoou por todo o apartamento recém-inaugurado, decorado com móveis novos, nunca usados. Tatiana arregalou os olhos e Mariana a encarou, espantada com o som inesperado.
– É hilário, não é? – Patrícia pergunta, com a voz rouca – Eu, que sempre fui a louca, a que gritava por qualquer motivo até ficar roxa... Agora, quando realmente importa, no momento em que preciso de fato tomar uma atitude e resolver os problemas, não consigo nem mexer um dedo – ela complementa, num tom mais baixo, olhando para as próprias mãos ao perceber que estava tremendo. Não de raiva e sim de algo pior: medo. O que mais temia na vida era perder o controle das coisas, a começar por si mesma.
– Amor... – Tatiana a chama, mas imediatamente se cala e não diz mais nada. Num primeiro momento, não pareceu encontrar palavras que pudessem amenizar de alguma forma toda aquela situação. Um pouco atônita, buscou o olhar de Mariana.
– Está tudo bem, eu só...
Patrícia faz um movimento com a mão e engole o resto da frase junto com o riso amargo. Balançou a cabeça, parecendo tentar desanuviar o que sentia, e buscou no pescoço um colar que não estava usando. Na ausência do adorno, os dedos ainda trêmulos encontraram apenas sua própria pulsação acelerada e o vazio no pescoço a faz sentir-se nua, como se tivesse perdido sua última armadura. Quando voltou a falar, sua voz saiu embargada.
– Desculpa, acho que não sei mais quem eu sou – ela resmunga, sem conseguir evitar que o choro se apresentasse, em forma de torrente – O certo seria eu pegar o carro agora mesmo e ir atrás dessa maldita para tomar satisfação. Ou ir atrás de Elen – Patrícia desliza o olhar de Mariana para Tatiana, mas logo volta a encarar o chão, um pouco envergonhada.
O choro recomeçou e as lágrimas desceram sem cerimônia pelo queixo, acomodando-se na gola de sua camisa clara. Tatiana fez um breve movimento em sua direção, na intenção de ampará-la, com os braços já se erguendo num impulso antigo de proteção. Mas parou. Como tocar alguém que estava se desfazendo? Patrícia nunca desmoronava assim; ela era quem sempre segurava os cacos, não quem se espatifava no chão.
– Ah, meu bem... Está tudo bem, gatinha, você não precisa ser a mesma pessoa que sempre foi, amor – Mariana diz, rompendo o silêncio. Sua voz saiu mais firme do que o esperado e pareceu surpreender até ela mesma – Você pode só... ser você mesma, Pati. Isso inclui tanto a mulher que agora se treme toda e chora à noite quanto aquela que grita e quebra tudo de manhã – ela completa, entregando para a esposa o elástico preso em seu pulso.
– Isso, a Mari está certa. Talvez seja a hora de descobrir quem você vai ser agora – Tatiana complementa, finalmente se aproximando por completo. Suas mãos, ainda com cheiro de tinta guache da escola, envolveram os dedos de Patrícia, após acariciá-la no rosto, num gesto de intimidade e ternura – Você tem um bom time ao seu lado para te apoiar, amor. Qualquer que seja sua versão escolhida – ela diz, repetindo o conforto que a esposa havia lhe dado naquela manhã e que incontestavelmente tinha sido eficiente.
Ao ser acolhida e amparada pelas pessoas que mais amava no mundo, Patrícia se acalmou e rapidamente as lágrimas deram lugar a um soluço fraco. Não era muito dada a sentimentalismos e, talvez por isso, extravasar por alguns minutos bastou para aliviar parte da pressão que carregava no peito – o que, no entanto, não impediu que uma forte dor de cabeça logo se apresentasse, cobrando na têmpora, em pontadas afiadas, o preço das noites sem dormir, da raiva engolida e do medo que se recusara a nomear.
No intuito de mudar o foco, ao invés de prender o cabelo, Patrícia amarrou o elástico da esposa no pulso, apertado o suficiente para servir como um lembrete de quem estava ali junto com ela, mas confortável, exatamente como o abraço que Tatiana a envolveu e que Mariana se juntou sem hesitar, formando um tripé humano contra todos os problemas do mundo.
Por alguns segundos, elas se permitiram ficar ali, unidas, em silêncio, blindadas das adversidades que existiam fora daquele apartamento, como se o abraço fosse uma espécie de fortaleza que as protegesse de tudo e contra todos. Pela primeira vez em vários dias, Patrícia sentiu-se minimamente mais leve, embora se mantivesse plenamente consciente de que permanecia soterrada num tipo de areia movediça, feita de questões que precisava enfrentar e que envolviam não apenas ela, mas também as mulheres. Tratava-se de problemas sérios relacionados a assédio, bullying e relacionamentos conturbados, que só seriam realmente sanados com a união das três.
– Agora, me conta tudo sobre esse assédio – Tatiana pede, sempre muito prática, soltando-se do abraço. Deu uma mão para Patrícia e outra para Mariana, e as levou até a cozinha, parecendo familiarizada com o novo ambiente. Abriu os armários até encontrar o que precisava para passar um café.
– A Simone se insinuou para mim logo depois que vocês foram embora. Na sexta passada, lá no hotel. Em momento algum eu comentei no trabalho onde estava hospedada, mas mesmo assim ela simplesmente brotou lá, do nada – Mariana responde, sem pestanejar – Em Brasília não aconteceu nenhum incidente, mas a própria viagem me pareceu só uma maneira que ela encontrou para que eu não voltasse para casa. Não fiz nada exatamente no fim de semana que justificasse a minha presença lá, sabe? – ela se senta, em volta da pequena mesa redonda, acompanhada por Patrícia – A impressão que tenho é que ela ficou zangada por eu ser fiel a vocês, sei lá. Até mais do que por eu ser casada, embora isso tenha parecido aborrecê-la bastante também.
– Você disse que ela até revelou que sabe que nós somos duas, né? – Patrícia lembra.
– Pois é. Sendo que nunca mencionei nada a este respeito também. Meu Instagram é fechado, não sei como conseguiu descobrir...
– A mulher é dona de uma empresa de tecnologia, amor – Patrícia ressalta – Deve ser relativamente simples para alguém como ela conseguir todas as informações que precisa.
– Isso é... – Mariana resmunga, encarando o teto por um instante. Deu a impressão de se perder nos próprios pensamentos durante alguns segundos.
– E você... teria como provar de alguma maneira que ela te assediou, Mari? – Tatiana indaga, apressando-se em voltar a falar – Não estou duvidando de nada, gata, veja... É só que sabemos que o seu testemunho contra o dela pode não ser muito eficaz. Pessoas como a sua chefe têm metade do Judiciário dentro do bolso, a polícia toda comprada... Precisamos pensar bem em como vamos agir.
– Eu sei, já pensei nisso... Infelizmente, não tenho como provar nada, é realmente a minha palavra contra a dela e só – Mariana resmunga, cabisbaixa – Só teria como provar algo se, sei lá, alguém tivesse plantado uma câmera dentro do hotel e filmado tudo. Mas sabemos que isso não aconteceu.
– Até porque, o Guto é quem gosta disso, de câmera escondida... – Patrícia comenta, com a voz carregada de desprezo – Aquele fofoqueiro nojento, mal caráter, mentiroso... E brega! Que sujeitinho mais cafona, por que ninguém fala sobre isso?
– A galera que instala câmera escondida em quarto de hotel gosta também. Vocês lembram daquele médico com cara de bolacha, que viralizou uns dias atrás, né? Aquele, que fraudava resultados de testes de segurança dos procedimentos estéticos que fazia... No dia que o caso veio à tona, até deu uma amenizada na história toda dO Bistrô – Mariana ressalta.
– É, mas para isso a gente precisaria não apenas conhecer quem faz essas coisas, como também voltar no tempo e pedir para que instalassem uma câmera secreta no seu quarto, antes que a Simone te procurasse – Tatiana descarta a ideia, lavando o copo que estava dentro da pia, como se precisasse se ocupar para conseguir pensar melhor – A tal da Laura bem que poderia ajudar, né? Afinal, ela adora aparecer em todos os lugares...
– Nossa, sim! – Mariana exclama, batendo a mão na mesa com o punho fechado, extasiada com o que dizia – E eu tenho certeza de tê-la visto lá em Brasília, vocês acreditam? Primeiro, a vi no jardim; depois, voltei a vê-la no restaurante do hotel.
– Como assim? O que ela estava fazendo lá? – Patrícia pergunta, com uma careta.
– Não sei... Mas juro que a vi, como se estivesse disfarçada. Ela estava vestida de garçonete, na noite em que a Simone se encontrou com uns políticos que não deveriam mais estar na cidade. Bom, pelo menos foi isso que disse o taxista que me levou para passear.
– “Passear”? – Tatiana repete, oferecendo café para as duas. Antes de se sentar com as esposas, serviu-se de um golinho e deu uma piscadinha para Patrícia, quando a mulher a encarou por cima do vapor do copo, com um olhar inquisidor.
– Basicamente, fiz serviço de office boy, sim. Tudo isso enquanto a Simone tramava com políticos suspeitos num restaurante praticamente fechado e a Laura fingia trabalhar como garçonete num hotel de luxo esvaziado, em plena capital federal.
– Que estranho, será que essa mulher é, sei lá, alguma espiã? – Tatiana ri, porque o comentário soou um tanto absurdo.
– Olha, isso bem que faria sentido, viu – Mariana rebate, buscando na memória algo que pudesse comprovar sua teoria – Semana passada ela parecia estar disfarçada, usando uniforme de empresa de internet... Quando a encontrei por acaso no hotel da Bruna, estávamos a poucos metros da Simone, então é perfeitamente possível que ela a tenha seguido até lá. E ainda que tenha dito que era tudo parte de um fetiche, enfim... não me pareceu nada convincente.
– É, para mim também não – Patrícia rebate.
– Eu também não engoli isso, não – Tatiana assente.
– Aí, como se não bastasse, no fim de semana ela aparece de novo, a milhares de quilômetros daqui, vestida com as roupas do restaurante do hotel... É tudo muito suspeito! Ou não, se ela de fato for algum tipo de espiã.
– Olha, se ela estivesse realmente espionando a sua chefe, até que faria sentido ter uma câmera escondida em algum lugar do hotel em que estava hospedada – Patrícia arrisca – Digo, se a Laura conhece bem essa piranha, sabia que a encontraria lá. A questão é se a Simone tinha a informação de que você também estava lá ou se isso foi só uma coincidência.  
– Gente, mas aqui é vida real. Essa história de espião só acontece na ficção – Tatiana diz, tentando ser racional. Serviu-se de mais um pouco de café, como se fosse invisível.
– Mas alguém tem filmado gente corrupta com câmeras escondidas... – Mariana quase sorri – Isso está acontecendo na vida real, Tati. Tem nada de ficção nessa história, não.
– Mulheres como essa Simone são capazes de absolutamente tudo – Patrícia continua, como se pensasse em voz alta – ...até mesmo de ir atrás de você no seu quarto, certa de que vai conseguir o que quer. Mimada, acostumada a ser paparicada e a ter tudo o que quer, não deve ter sabido lidar com o fora que você deu... Levando isso em consideração, faz total sentido ela te obrigar a viajar depois da sua recusa. Ainda mais se tiver visto a gente por lá.  
– Ela com certeza nos viu – Tatiana afirma.
– Sim, ela com certeza nos viu – Patrícia repete.
– Não sei se a Laura confessaria algo, caso ela seja realmente uma espiã, mas ainda assim sinto que pode ser uma boa aliada – Mariana retruca, pensativa – Se não for para desmascarar a Simone, ao menos para revelar ao mundo as falcatruas que ela está envolvida. Minha intuição diz que é coisa grande, porque do contrário ela não se daria ao trabalho de se despencar numa sexta-feira à noite até Brasília só para um simples jantar de negócios. Essa mulher está metida em algum esquema ilegal, tenho certeza.
– Com políticos?
– Dos piores, sim. Reconheci entre eles aquele tal de Joãozinho Capriano, que é líder da bancada evangélica no Congresso, sabe? Um baixinho, de bigode, com a vozinha estridente. Esses tempos atrás saiu a notícia de que ele está metido num esquema de corrupção com dinheiro desviado do tal “orçamento secreto”.
– Ah, eu vi. Teve uma compra superfaturada de kits de robótica, né? – Tatiana questiona.
– Mas será que a Simone está metida nisso? – Patrícia indaga, desconfiada.
– Se não for exatamente nisso, é em algo do tipo, sim. Daqui uns dias algum jornalista divulga, vocês vão ver.
– Às vezes, não precisa nem de jornalista... basta um celular posicionado num bom lugar e absolutamente tudo vira manchete – Tatiana comenta, servindo-se de café pela terceira vez.
– É verdade, a Rosana que o diga – Mariana rebate, rindo – Como está essa história, por falar nisso?
– Não sei, amor. Confesso que estou evitando a fadiga de mexer no celular para me atualizar a respeito.
– Não será nenhuma surpresa se ela for desligada da escola... – Patrícia comenta.
– Já foi, ela já rodou. Eu vi na internet – Mariana ainda ria.
– Nunca imaginei esse desfecho – Tatiana resmunga, distraída com o café no fundo do copo – Digo, nos últimos dias fiquei aflita de ter que dividir a sala de aula com essa víbora... Não imaginei que me livraria dela para sempre, justamente hoje. Muito menos que seria por algo feito por alguém como o Davi. O menino é um doce!
– E desenha bem, tem alma de artista – Mariana sorri para a esposa, demonstrando estar realmente inteirada do assunto – Como você mesma acabou de dizer, às vezes não precisa nem de jornalista para que a verdade venha à tona. Eu amo a internet!
– Só é uma pena que nesse ambiente virtual gente podre como o Guto Morais consiga ter destaque e relevância – Patrícia diz, desolada, apoiando o queixo na palma da mão.
– Ele é cafona mesmo, amor. Tem um péssimo gosto – Mariana responde, retomando o comentário anterior da mulher.
– Esse cara vai cair sozinho, Pati – Tatiana fala, ao mesmo tempo. Ameaçou rir do comentário de Mariana, mas manteve-se séria, ao continuar – Você não precisa empurrar quem já está vacilando na beira do abismo.
– Como você faria isso? – Mariana indaga, visivelmente interessada.
– Ela comentou mais cedo que pensou na possibilidade de marcar uma live com a Vivi Mantovani – Tatiana responde.
– Eu marquei... – Patrícia começa a dizer, junto com ela. Sorriu timidamente quando as duas se entreolharam e a encararam, mas logo reassumiu sua feição mais destemida – Marquei de encontrá-la, primeiro. Lá nO Bistrô. Amanhã.
– Para fazerem uma live juntas? – Mariana logo pergunta. Piscou duas vezes ao ver Patrícia levantar os ombros como resposta e olhou para Tatiana, como se a esposa pudesse responder por ela.
– Vai encontrá-la amanhã? – Tatiana então questiona, parecendo não ter ouvido direito e, por isso, precisasse confirmar.
– Ela não merece ter todo esse poder que exerce na minha vida. E se quem deu fui eu, então também consigo tirar – Patrícia diz, num suspiro, parecendo dar continuidade à conversa que teve com Tatiana naquela manhã – Se, de quebra, depois disso, a gente conseguir um jeito de desmoralizar o Guto, ótimo. Todas ganham.
– Você é incrível, amor – Tatiana exclama.
– Que mulher, uau! Que tesão, Patrícia – Mariana fala também, sorrindo no final da frase, quando apenas sua voz sobressaiu – O quê? É sério, te acho foda, gata! – ela complementa, vendo a mulher sorrir para ela.
– Você é foda mesmo – Tatiana concorda, segurando a mão da esposa – E um tesão também – complementa, observando Mariana virar a cabeça, cobrando resposta para isso também.
– Eu amo vocês – Patrícia se inclina e dá um beijo em Tatiana, e depois outro em Mariana – Mas honestamente não sei como podem ficar excitadas quando o mundo parece estar desabando sobre nossas cabeças – ela sorri mais uma vez, porque rapidamente constatou que isso era parte do charme das mulheres com quem havia se casado; era também um dos ingredientes mais deliciosos do trisal que Patrícia se orgulhava de poder fazer parte.
– Vou tomar um banho gelado, para ver se passa – Mariana ri, com cara de safada – Vocês me acompanham? – ela ri de novo, demonstrando o que o convite realmente significava.
Patrícia sorri, mas não diz nada, porque seu silêncio já era uma resposta. Definitivamente não estava com cabeça para nada, especialmente para sexo. Tudo o que queria era tomar banho e deitar; com sorte, dormiria por algumas horas.
Ainda que tivesse ameaçado tomar banho, Mariana encostou-se na pia e emendou uma conversa com Tatiana, que embora aparentemente não quisesse falar sobre o ocorrido na escola, algumas horas atrás, indiscutivelmente apreciava uma boa prosa com a mulher, independentemente do tema. Com discrição, deixou as duas na cozinha e foi até o banheiro anexado ao quarto de Mariana.
Fechou a porta devagar, como se deixar o mundo do lado de fora só fosse possível com um trinco virado. Na sequência, acendeu a luz fraca em cima do espelho e encarou o próprio reflexo. Seus olhos estavam fundos, mas com um brilho que a fez cerrar o olhar – como uma leoa pronta para o próximo ataque.
Tirou a roupa devagar, se desfazendo das camadas de mais um dia pesado, e entrou no pequeno box com o corpo tenso, principalmente os ombros e a parte alta das costas. A água quente bateu forte contra a pele, mas com a gentileza necessária para ajudá-la a relaxar. Patrícia encostou a testa na parede fria e deixou que o vapor a envolvesse inteira, como um abraço sem mãos.
Queria não pensar, mas o pensamento veio. Sempre vinha.
Não sabia exatamente o que diria dentro de algumas horas para Vivi Mantovani nem o que faria. Mas compreendia que seria um duelo incômodo, desconfortável em vários níveis e que precisava estar inteira para o encontro. Inteira, apesar de rachada. Forte, mesmo tão exausta.
A chef do YouTube estava em todos os lugares ultimamente: nos vídeos, nas colunas de revista, nas entrevistas em podcast, nas curtidas das notícias que Patrícia lia. Sempre cheia de frases bonitas sobre afeto e gastronomia como memória emocional, como se nunca tivesse queimado uma panela na vida.
À distância, quem a via e a ouvia possivelmente acreditava nela, embora Vivi jamais tocasse no assunto e saísse à francesa quando a questionavam sobre o possível plágio. Mas ainda assim era como se ela realmente tivesse inventado o suflê que Patrícia encasquetou de querer recriar, na noite em que precisava só... se distrair. Quis fazer a receita da avó para se distrair, para não pensar. Para ocupar o vazio deixado pela briga com Tatiana, quando o ciúme a consumiu em brasa num tipo cruel de banho-maria.
E pensar que naquela ocasião ela sequer cogitava a possibilidade de que o tal curso de modelo nu levaria Tatiana diretamente ao encontro de Miguel! E de Elen, o que era mil vezes pior!
Qualquer que fosse o ensinamento disso, veio como um caminhão. Que só não a atropelou porque no meio dessa BR, Mariana resolveu morar a quilômetros de distância e Patrícia teve o desprazer de conhecer o escroto do jornalista inventor de fofoca mentirosa.
Agora, por causa de Guto, a tal receita de suflê – a mesma que preparava desde criança, entre panelas tortas e gritos da avó – tinha simplesmente virado manchete em tudo quanto era site de fofoca, com Patrícia (que cozinhava desde antes de saber amarrar o avental) temperando a acusação de plagiar uma mulher que literalmente só conhecia de nome. Tudo isso porque um sujeito brega, à toa, com sede de cliques, resolveu mexer num vespeiro que desconhecia.
Enfiou a cabeça debaixo do chuveiro, tentando desanuviar os pensamentos, ou amenizar o peso que tudo aquilo provocava – não apenas dentro de sua cabeça. Mas o gesto não bastou para lavar o orgulho ferido. Nem o medo de não dar conta de enfrentar Vivi, que não era só uma concorrente qualquer. Além de tudo, a mulher também era uma chef famosa, amada na internet.
Ela respira fundo, pensando no restaurante, no império que havia construído, nas várias noites em claro, em tudo o que precisou engolir para chegar até ali sem engolir ninguém.
Ela não era Vivi. E nem queria ser!
Amanhã falaria com ela, com a voz e as mãos firmes, numa comunicação clara e direta. Olharia nos olhos, sem nenhum temor. E mostraria quem era de verdade – o que obviamente incluía retomar o poder que ela mesma havia dado à mulher, em algum ponto de sua história.
Quando saiu do chuveiro, não vestiu nada além da própria pele limpa e o elástico preto que manteve no pulso esquerdo – presente mudo de Mariana, lembrança de Tatiana. O silêncio do apartamento parecia menos pesado, possivelmente porque se sentia mais leve após o banho. Mariana e Tatiana ainda conversavam baixinho na cozinha, mas não se animou a juntar-se às duas. Já era tarde, estava cansada, com a cabeça tumultuada com mil pensamentos, então optou por se recolher.
Patrícia empurrou a porta do quarto com a ponta dos dedos, a toalha ainda pendurada nos ombros e o corpo envolto no calor úmido do banho quente. Ali dentro, o ar era outro, mais frio, mais doce, com um leve aroma do amaciante de flores que Mariana gostava de usar. O local estava escuro, iluminado apenas pela luz do corredor que escapava pelas frestas.
Ela acendeu o abajur ao lado da cama e ali estava: o quarto que Mariana e Tatiana compraram alcoolizadas, no dia em que o mundo de Patrícia desabou em boatos, mentiras e manchetes, em forma de fake news. A mobília era improvável e divergia entre si, como se os móveis tivessem sido escolhidos por pessoas em direções diferentes e, ainda assim, no mesmo passo.
Havia uma cama grande demais para o espaço pequeno, com a cabeceira muito mais alta do que o necessário. Um tapete redondo se destacava do restante da decoração, espalhando pompons numa paleta de cores absolutamente incompatível com os tons da cortina de listras. No canto, reparou no guarda-roupa branco com espelho, já trincado no canto inferior, e na mesa de cabeceira de pés tortos que parecia ter sido comprada por pura nostalgia.
O lençol de bolinhas destoava da colcha lisa e das almofadas das Meninas Superpoderosas. Aos pés da cama, uma caminha acolchoada com formato de sushi repousava no chão como se esperasse por um gato que não viria naquele dia. Ou como se dissesse que o dono da casa estava temporariamente ausente.
Patrícia sorriu com a cena. Ali, absolutamente nada combinava com nada. E ainda assim, tudo fazia sentido porque havia algo de bonito em toda aquela incoerência. Era um quarto montado a partir de afeto e cerveja barata. Combinava com a personalidade de Mariana e com a de Tatiana também.
                Deixou a toalha sobre o encosto da cadeira gamer ao lado da cama e foi até a cômoda baixa, onde repousavam pequenos objetos, como um potinho com elásticos de cabelo, remédios contra asma, um creme de mãos quase vazio e uma xícara lascada que servia de porta-treco. E ali, encostada discretamente entre um repelente de citronela e um brinquedo de gato mordido na borda, dentro de um cestinho improvisado, ela viu.
                A forminha.
A prova de sua inocência, misturada às coisas de Percival.
Aquela mesma forminha que Patrícia procurava há vários dias, desde que resolvera recriar a receita de suflê numa noite de ciúmes, depois da discussão com Tatiana por causa do curso de desenho. Na época, tratou-se meramente de uma tentativa de compensação afetiva, uma forma de retornar a um lugar emocionalmente seguro. Quis preparar a receita da infância talvez como um gesto de amor silencioso, talvez como consolo.
Só que isso gerou o escândalo. A acusação de plágio. A exposição midiática. A humilhação de virar meme e estar nos Trends Topics.
E então a forminha passou a ter outro peso, equivalente à de uma prova. Um vestígio físico de que aquela receita era mesmo sua. Desde sempre. Que não havia cópia; apenas memória.
E agora, lá estava ela.
Acomodada junto de alguns pertences de Percival, como sachês e brinquedinhos com guizos, a forminha parecia pertencer ao gato. Mariana, distraída ou talvez encantada com a estampa, simplesmente a incorporou ao enxoval felino sem nunca saber de sua verdadeira importância. Era pequena, amassada nas bordas, com a figurinha de gatinho quase apagada pelo tempo, mas intacta na memória de quem um dia a usou como refúgio. Para Patrícia, cozinhar nunca se tratou apenas de um ato de preparo; sempre foi também um gesto de sobrevivência.
Ela piscou devagar, porque seus olhos precisaram confirmar o que o coração já reconhecia, e levou alguns segundos até finalmente pegar o objeto com as duas mãos, comprovando que não se tratava de nenhum tipo de ilusão. Era exatamente a forminha que usava na infância para assar suflês improvisados entre as brigas da avó e o silêncio punitivo do pai.
Patrícia sentou-se na beirada da cama, ainda nua, segurando a forminha como quem segura um retrato antigo, sem saber se ria ou chorava. Era só um utensílio bobo de cozinha, mas naquele momento era também um lembrete: do passado, do quanto ela havia mudado e do tanto que ainda faltava avançar.
Aos poucos, a tensão que endurecia sua nuca foi cedendo espaço para um cansaço mais sereno, como se reencontrar a forminha encerrasse, ao menos momentaneamente, a necessidade de ter que se defender. Ainda havia batalha, é verdade, mas havia um pouco de trégua também.
Naquela noite, Patrícia deitou entre o cansaço e a esperança. Dormiu assim que encostou a cabeça no travesseiro cheiroso de Mariana, com fronhas exalando aroma de recém-compradas. Se permitiu relaxar, ciente de que não estava só – e que, mesmo sem armadura, tinha onde se aninhar antes de enfrentar o campo de batalha. Pela primeira vez em dias, dormiu por horas seguidas.
 
Tatiana e Mariana não demoraram a aparecer no quarto, com o cabelo molhado e a pele cheirando a sabonete. Aos cochichos, tomando o cuidado de manter Patrícia coberta, se aconchegaram sobre o enorme colchão, com Mariana no meio delas, como era de costume. Cansada, ela nem acordou com a movimentação e a breve conversa que se seguiu, antes que as duas se dessem por vencidas e dormissem também.
Na manhã seguinte, Patrícia acordou quase uma hora antes do alarme tocar, parecendo ter tomado um choque no mundo dos sonhos. Despertou assim que abriu os olhos e encarou o teto branco do quarto novo da mulher, mas não se demorou dando vazão aos primeiros pensamentos do dia porque era uma mulher prática, com milhares de desafios para lidar. Porém, como também era um mínimo supersticiosa, colocou primeiro o pé direito no chão, quando se levantou. Aquele era um dia importante, afinal, e uma pitada de sorte não faz mal a ninguém.
Mariana e Tatiana dormiam um sono gostoso, abraçadas de um jeito que mal dava para saber onde começava uma e terminava a outra, com os cabelos quase trançados se emendando acima dos travesseiros. E bastou Patrícia desequilibrar o trio sobre o colchão para que acordassem também.
– Ah, não, poxa vida – Mariana resmungou, aspirando o remédio guardado debaixo do travesseiro – Já está na hora? O despertador tocou? Mas a gente mal deitou!
– Não, meu bem. Ainda é bem cedo, mas sim... já está na hora – Patrícia responde, apoiando as mãos sobre o lençol para dar um beijo nela – Vou fazer um café e pegamos estrada? – perguntou, dirigindo-se à Tatiana depois de beijá-la também.
– Tá bom, claro – Tatiana responde, aninhando Mariana no colo, que continuou resmungando, como se estivesse miando – No fim de semana a gente volta, gatinha. Aí continuamos aquele nosso papo de ontem, hum? Que tal?
Patrícia pediu para que Tatiana dirigisse até São Paulo e aproveitou as quase duas horas de trajeto para se inteirar. Eram muitos assuntos para acompanhar, mas começou com a repercussão do vídeo de Rosana, que ainda era um dos mais discutidos nas redes sociais. A professora de Matemática, se fazendo de rogada, realmente tinha sido desligada da escola no dia anterior, depois de toda a repercussão, e já tinha gravado um vídeo pedindo desculpas, com camiseta clara, dizendo “quem me conhece, sabe...”. A tentativa de limpar a própria barra, porém, havia servido apenas para que ex-alunos a acusassem de novos tipos de agressões sofridos em sala de aula.
Quando já estavam no finalzinho da Rodovia Bandeirantes, prestes a acessar a Marginal Pinheiros, Patrícia foi à caça de notícias relacionadas a Simone. Como não encontrou nada demais/suspeito a respeito da mulher, procurou então algo que pudesse relacioná-la a Joãozinho Capriano, o político corrupto acusado de desviar dinheiro público destinado à Educação, que Mariana viu junto com a empresária, em Brasília. Todavia, a busca foi infrutífera e nada parecia ligar personagens tão antagônicos e contraditórios. Precisariam mesmo da ação de alguma espiã para descobrir o que foi negociado no tal jantar, dias atrás.
A terça-feira estava amanhecendo quando Patrícia se despediu da mulher, em frente ao portão da casa delas. Tatiana recusou o convite para tomarem café da manhã juntas porque tinha combinado de se encontrar com Gilvânia antes do início das aulas. A professora de Educação Física, assim como metade do Brasil, estava ansiosa, querendo saber todos os detalhes relacionados a Rosana e seu vídeo esganiçado e viral. Tanto que, no caminho entre Campinas e São Paulo, mandou três mensagens em sequência para a amiga, querendo confirmar o encontro.
– Não deixe que ela te intimide – Tatiana diz, entregando a chave do carro para Patrícia, referindo-se à Vivi Mantovani – Nem permita que ela faça você se esquecer quem você é de verdade.
– Pode deixar, meu amor – Patrícia a beija, emendando um abraço rápido.
– Não quer mesmo que eu te acompanhe nesse embate, Pati? Posso perfeitamente inventar uma desculpa e faltar na escola, ou então pedir para que a Zezé chegue mais cedo no restaurante.
– Está tudo bem, Tati. Precisam de você no seu trabalho. Eu já sou grandinha, posso resolver meus problemas sozinha.
– Eu sei que pode, linda. E estou feliz que vá fazer isso. Te amo. Muito!
– Te amo também – Patrícia joga um beijinho no ar, antes de embarcar novamente no carro, agora assumindo o controle. Não apenas do automóvel.
Como ainda era relativamente cedo, dirigiu sem ter que lidar com o trânsito pesado, que em poucos minutos abarrotaria as ruas por onde passou. Distraída, Patrícia nem se dedicou a contemplar a paisagem fora da janela e chegou ao destino como se tivesse se transportado no modo automático. Deixou o carro estacionado em frente aO Bistrô, na vaga de sempre, e foi a pé até uma padaria próxima dali, sentido Avenida Paulista.
O estabelecimento era um daqueles típicos de bairro paulistano, com cheiro de margarina aquecida na chapa e conversa atravessada no ar. Patrícia entrou sem pressa, empurrando a porta com a lateral do corpo, como quem já sabia exatamente onde pisava. O chão de azulejo branco e cinza tinha um tom encardido e o som de seus passos se misturou ao zunido da televisão pendurada no alto, sintonizada num noticiário matinal que falava sobre o clima.
O balcão onde Patrícia se encostou, ligeiramente gorduroso, tinha um suporte de metal em cima com laranjas grandes e manchadas, algumas com a casca já meio opaca. Ao lado, uma jarra de vidro com suco recém-espremido repousava sobre um fundo de gelo derretendo. O cheiro cítrico só foi amenizado pelo desinfetante que o funcionário borrifou à sua frente, espalhado com um pano úmido.
O café foi servido num copo americano com bocal estreito, quente demais para segurar sem queimar as pontas dos dedos, fraco o suficiente para irritar qualquer barista gourmet. O açúcar vinha em um pote de plástico com a tampa torta, e a colher, um tanto melada, parecia fazer parte do charme.
Ela pediu na linguagem universal dos cafés de São Paulo:
– Me vê um pingado bem clarinho e uma média na chapa, por favor. Capricha na manteiga, amigo.
Patrícia sentou-se no canto do balcão, encostando os cotovelos sobre o tampo de inox, ainda úmido do pano mal torcido. O pão francês chegou dourado, achatado, com as marcas da prensa desenhadas como tatuagens crocantes. A margarina borbulhava nas frestas da casca, escorrendo pelas laterais, e o café, mesmo fraco, desceu como um conforto antigo – quase um alívio, uma vez que o gosto de coisa simples ajudou a organizar melhor seus pensamentos. Ou, ao menos, serviu para suspender por alguns minutos a avalanche de tensão que trazia no corpo.
Do lado de fora, a cidade seguia barulhenta e alheia aos seus problemas, mas ali dentro, naquele espaço comprimido entre ruídos e cheiros, Patrícia sentiu algo parecido com paz. Naquele momento, não precisava provar nada para ninguém; era só mais uma mulher diante de um balcão qualquer, mastigando sua raiva em fatias e engolindo seu orgulho em goles curtos.
A cada mordida, a imagem de Vivi voltava à mente, como se a chef famosa da internet estivesse ali, sentada bem na sua frente, com um microfone na lapela e um avental imaculado, sem nenhuma mancha. Para afastar os pensamentos que queriam inundá-la num lago escuro de medo e insegurança, Patrícia olhou para o próprio pulso, onde ainda carregava o elástico preto – o amuleto mudo de um amor que a lembrava quem ela era e o que ainda tinha por vir.
Pagou em PIX, aproximando o celular da maquininha, e saiu sem dizer nada. A cidade já começava a ferver. E ela também.
Àquela hora, O Bistrô ainda estava fechado para o público. Mesmo assim, ao passar pela porta giratória, acendeu todas as lâmpadas do salão, em meia-luz, que deixaram o ambiente com aquele tom dourado que ela tanto gostava, tão aconchegante e intimista. Patrícia caminhou devagar entre as mesas bem alinhadas, rodeadas por cadeiras fofas de encosto alto, conferindo pequenos detalhes como quem toca um altar sagrado.
Cada objeto ali carregava uma história: a prateleira de especiarias garimpadas em feiras, a decoração escolhida a dedo, o tecido das cortinas que um dia quase se rasgou de raiva porque demoraram a chegar. Cada centímetro daquele espaço era uma camada de si mesma – não a mulher que as pessoas viam, mas a que resistiu quando tudo a forçava a desistir.
Encostou a mão no balcão da recepção e respirou fundo, soltando o ar pela boca, de maneira ruidosa, buscando se ancorar.
Lembrou-se da primeira noite de funcionamento, do susto que sentiu diante da casa cheia, da panela que queimou por puro nervosismo, da cliente que pediu o prato errado e, mesmo assim, saiu sorrindo. Recordou-se também das madrugadas testando receitas e dos forros de mesa passados a ferro por Tatiana, quando o restaurante ainda era apenas o começo de um lindo sonho.
Sem pressa, foi até a cozinha, nos fundos, e passou a mão pela bancada de inox, agora perfeitamente limpa, como se acariciasse o restaurante. Sentiu ao fundo o cheiro do caldo de legumes ainda pairando no ar, misturado à madeira encerada do salão. Ali, Patrícia não era só chef. Era comandante e também fundação. Era a mulher que havia construído um império pequeno, mas inteiramente dela.
E era nesse lugar que Vivi viria a pisar.
Ela ajeitou a gola da camisa e empurrou os bolsos até o fundo da calça, com os punhos fechados. Subiu para o escritório pela escada da despensa e se preparou como quem se arma. Não para guerra, mas para a verdade. Era a hora disso.
No andar de cima, o escritório guardava pouca coisa: um computador moderno em uma mesa de madeira antiga e um armário próximo a três arquivos de metal, que tinham na frente caixas de papéis que ela jurava que ia organizar desde o começo do ano. Havia também uma janela alta, com vista para os fundos do estacionamento do restaurante, por onde entrava uma luz tímida daquela manhã nublada, destacando o sofá de três lugares e o tapete grosso, de tom igual.
Patrícia abriu a porta do armário alto de metal e tirou com cuidado o dólmã que reservava para ocasiões que exigiam mais do que técnica – pediam presença. Era um modelo sob medida, de tecido grosso, impecavelmente branco, com costuras que realçavam a cintura e botões de metal escovado, gravados com o logo bonito dO Bistrô. Na altura do peito, seu nome, em linha preta cursiva, havia sido bordado à mão por uma antiga costureira de bairro que desconhecia o conceito de “branding”, mas entendia de elegância como poucas.
Ao tocar o tecido, Patrícia lembrou-se da primeira vez que o vestiu, ao ser contemplada pelo Guia Goodyear de Restaurantes, elevando O Bistrô à categoria cinco estrelas. Naquela ocasião, também precisou ser maior do que o medo que sentia de falhar.
Ela vestiu-o devagar, como quem entra numa armadura.
Abotoou do lado esquerdo para o direito, do jeito que sempre fazia, e ajustou a gola com a ponta dos dedos. As mangas dobradas até o meio do antebraço deixavam à mostra o único adorno que se permitiu usar: o elástico preto no pulso, que ela não retirou.
Patrícia completou o visual com uma calça preta e os sapatos confortáveis que usava para eventos longos, de couro macio. Olhou-se rapidamente no espelho comprido e prendeu o cabelo num coque apertado. Arrumada para impressionar, Patrícia assumiu uma postura confiante, sentindo-se confortável dentro daquela roupa.
Respirou fundo. Estava pronta.
E foi exatamente neste momento que ouviu o leve estalo da porta girando lá embaixo. Vivi Mantovani havia chegado.
Patrícia desceu a escada principal sem pressa e chegou ao saguão um segundo antes de Vivi entrar, bem devagar. Pessoalmente, a chef do YouTube era alta, tinha o perfume doce e parecia uma pessoa normal, exceto pelo fato de que estava impecavelmente penteada e bem maquiada, parecendo uma celebridade, preparada por uma equipe profissional, apesar de se tratar de um encontro teoricamente informal. Seu blazer claro bem cortado combinava com a bolsa de grife e os saltos baixos de seus sapatos realçaram sua presença, antes mesmo que se cumprimentassem.
Vivi Mantovani carregava uma pasta fina sob o braço e seus olhos verdes varreram o salão com cautela. Não pareceu o olhar de uma crítica gastronômica, mas sim de quem observava um lugar que talvez já tivesse imaginado antes de existir. Parecia tomada por alguma emoção; seus olhos estavam brilhantes e levemente marejados quando a encarou, sem dizer nada num primeiro momento.
Patrícia manteve o corpo ereto, com os braços cruzados, observando a chegada da mulher com a expressão que usava para controlar a cozinha em noite cheia: neutra. Mas o coração... pulava forte dentro do peito, de um jeito quase inédito.
Vivi parou no centro do salão, sem se aproximar muito, de propósito. Deu um pequeno sorriso de diplomacia contida (aquele tipo que não chega aos olhos) e mudou o peso do corpo de uma perna para a outra antes de começar a falar.
– Bom dia – ela a cumprimenta, com a voz firme, familiar, embora diferente dos vídeos que produzia e que eram vistos por milhares de pessoas – Agradeço de antemão pelo convite e por me receber aqui. Confesso que fiquei surpresa quando recebi sua mensagem ontem.
– Já eu me surpreendi que você tenha aceitado tão rápido. Achei que fosse preferir falar por e-mail. Ou com algum assessor de imprensa. Me preparei até para o caso de você enviar um advogado.
– Vim porque você pediu. Prefiro conversar com quem cozinha, em vez de ter que lidar com quem escreve ou advoga.
As duas se olharam por um momento, breve, porém intenso, como se estivessem em lados opostos de um mesmo espelho. Uma ficou observando a outra, até que Patrícia piscou e apontou para uma mesa, bem no canto, onde ela gostava de sentar quando precisava espairecer.
– Podemos conversar ali – ela diz, indicando os fundos dO Bistrô.
A mesa em questão era a última do canto, estrategicamente posicionada perto do bar e com acesso direto à cozinha; um ponto que oferecia vista ampla de todo o salão, mas sem chamar atenção. Era discreta, quase invisível aos olhos dos clientes, que sempre preferiam lugares de mais destaque, instagramáveis. Ali era o lugar onde Patrícia se sentava para observar tudo sem ser vista, decidir sem ser interrompida, pensar sem ser chamada. Não havia placa, mas todo funcionário dO Bistrô sabia: aquela era a mesa da chef. E ninguém sentava ali sem convite.
Sem falar mais nada, começou a andar pelo salão iluminado, vazio e bem arrumado, sendo seguida de perto por Vivi, que manteve-se em silêncio também. Apenas seus passos podiam ser ouvidos, além das batidas agitadas do coração nervoso de Patrícia.
Quando sentaram, Vivi apoiou a bolsa no colo e ajeitou o blazer com uma elegância automática. Na sequência, pousou a pasta fina sobre a mesa que as separava. Não abriu. Apenas a deixou ali, entre elas.
– Bom, vou ser direta – Patrícia inicia, cruzando as pernas sob a mesa quadrada, para garantir mais firmeza às suas palavras – Toda essa história do suflê não começou comigo. Mas foi em cima de mim que tudo isso caiu.
Vivi manteve o rosto sereno, parecendo ter ensaiado aquilo inúmeras vezes diante do espelho, só para não falhar e não demonstrar suas emoções. Impassível, não transpareceu em nada o que se passava em seu interior.
– Eu sei – ela se limita a dizer, estudando o rosto de Patrícia, absorvendo cada detalhe – Lamento o que aconteceu. Você sabe que eu não dei nenhuma declaração, certo?
Seu olhar, no entanto, continuou. Passeou pelas sobrancelhas franzidas de Patrícia, pelos olhos notadamente acostumados a encarar o mundo, deslizou pelo nariz e se deteve nas marcas suaves ao redor da boca, antes de pousar na cicatriz que ela tinha no meio do queixo. Por um segundo, Vivi pareceu esquecer o motivo de estar ali.
– Sim, mas também não negou. Por acaso gostou desse tipo de holofote? – Patrícia inclina o corpo para a frente, apoiando os antebraços na mesa, talvez na intenção de parecer ameaçadora. Mas logo reassumiu a postura anterior, afastando-se de sua interlocutora – Seu silêncio foi pior do que se tivesse dito que eu te copiei mesmo.
– Eu... – Vivi começa a dizer, mas é imediatamente interrompida.
– E outra, de que adianta não ter dado nenhuma declaração, se postou um vídeo no dia em que a fake news veio à tona? Fazendo café? Com música de fundo?
– Mas... era só um café – Vivi se defende, cruzando as mãos sobre o tampo da mesa, em cima da pasta. De relance, pareceu um gesto de súplica.
– “Para quem quer se soltar... invento o cais...” – Patricia vira os olhos, com desdém – Vai me dizer que do nada, de repente, resolveu cantar para milhares de seguidores desconhecidos justamente essa música? Sei – ela cerra o olhar, demonstrando irritação.
– Certas melodias grudam na mente, o que se pode fazer? A gente canta tanta coisa sem perceber.
– Pois é, e tem gente que ouve mesmo sem querer. Podia ter feito qualquer outro tipo de vídeo, usado qualquer outra música... Podia até mesmo ter feito melhor e dito que eu não copiei a sua receita. Mas parece que de todas as ideias geniais que poderia ter, escolheu logo a pior.
Vivi respira fundo, com a expressão levemente abalada. Seu semblante não demonstrava exatamente culpa, mas sim um cansaço, e durou exatamente uma fração de segundo porque ela logo se recompôs. Acostumada com a atenção das câmeras, parecia finamente treinada para não demonstrar nada que não quisesse compartilhar com sua audiência. Isso obviamente fez a fake news atingi-la de outra maneira, considerando que esta história jamais viraria um roteiro seu. Como fofoca é droga para os cracudos de internet, a chef controlava absolutamente tudo o que saía a seu respeito. Até aqui.
– A imprensa cria o que quiser, Patrícia. E na internet é pior ainda. Muitas vezes, negar alguma coisa alimenta mais do que simplesmente se calar, acredite. Eu só não quis dar ainda mais ibope para essa história idiota de plágio, apenas isso – ela diz, parecendo sincera.
– Sei... O problema é que, para mim, não é idiota e seu silêncio virou um monstro que ainda não parou de me assombrar – Patrícia atira um sorriso curto, que se desfaz rapidamente – Todo dia alguém me pergunta se é verdade. Se eu copiei mesmo a sua receita. Se me inspirei em você. Querem saber até o que eu penso a seu respeito.
– E o que você responde?
– Que a receita é minha, ué. O que acha que eu deveria responder? – Patrícia retruca, num tom ofendido – Ou melhor, eu falo que o suflê faz parte da minha história. Mas isso nunca parece suficiente.
– É porque a verdade nem sempre interessa – Vivi a observa desviar o olhar por um segundo, voltando a encará-la logo depois. Esperou sua atenção, antes de continuar – Às vezes, é a narrativa que vence... e aí tanto faz o que é verdade e o que é mentira.
– É, e algumas narrativas vêm com seguidor e aplauso pronto. Eu não sou a vilã dessa história – ela se remexe na cadeira, inquieta – Mas aparentemente, basta dizer que é afeto, que é memória e pronto: a mesma receita vira arte – Patrícia complementa. Como Vivi permaneceu muda, prosseguiu – É a mesma farinha, caramba! O mesmo ovo, a mesma manteiga... Mas se o avental não for o seu, vira plágio.
– Não é sobre a receita, Patrícia... Nunca foi. É sobre a história que cada uma conta com a comida que prepara.
– Ou sobre a história que se apaga, né? Porque quem tem mais holofote escolhe o que o público vai saber. Ou faz pior: escolhe o silêncio e depois diz que ele não fala nada – Patrícia vira os olhos de novo.
– Mas o silêncio fala... E, às vezes, é o único lugar seguro para quem perdeu tudo o que tinha.
– Tá, e o vídeo do café? A música que usou como trilha sonora? Achou que eu não fosse entender?
– Eu... não sabia se devia falar com você – Vivi responde, com sinceridade – Nem sabia também se você veria. Se reconheceria. Eu só... precisava deixar algo no ar, mesmo que considerasse que era só um deboche, como aparentemente achou que foi.
Um breve silêncio se instaura entre elas, pesado e cheio de significado. Quando voltou a falar, Patrícia estava com a voz arrastada, um pouco rouca.
– O problema de tudo é que essa receita não é só um prato... não é um suflê qualquer – sua fala soou infantil, tremida, o que a fez bater os punhos contra a mesa, mais forte do que gostaria. O som seco ecoou no salão vazio.
Vivi piscou forte diante do ruído inesperado, mas manteve os olhos nela. Sem perceber, encostou levemente os dedos na pasta que havia trazido, mas não a abriu. Apenas fez um contato com o couro sintético, como se aquilo a ajudasse a se manter focada.
– Desculpa, eu...
– Para mim, também não é uma receita qualquer... – Vivi a interrompe, com a voz baixa – ...ela é antiga. Minha mãe fazia quando eu era criança, foi a primeira coisa que me ensinou a cozinhar, sem nenhuma pitada de paciência.
Patrícia aperta a mandíbula, cerrando os dentes, irritada por ter que ouvir tal declaração. Também estava zangada porque percebia que estava perdendo a compostura diante de uma completa estranha.
– Sim. Eu também aprendi com alguém assim – ela se limitou a falar, tentando se preservar. Afinal, o convite não foi para que as duas brigassem. Ou foi?
– É engraçado – Vivi continua, com os olhos fixos nela – ...como uma receita pode atravessar gerações. Ou famílias.
– Algumas receitas não atravessam nada. Só ficam presas. Ou são esquecidas – Patrícia responde, entredentes – Ou são o começo de uma tentativa desesperada de sobrevivência, como foi o meu caso.
– Ou são recriadas – Vivi continua, com um sorriso fraco, mas gentil. Não parecia disposta a desistir do diálogo – Com os mesmos gestos. As mesmas lembranças. Mesmo que a gente passe anos tentando esquecer o gosto.
– Já eu acho engraçado como algumas pessoas conseguem ter tempo para cozinhar suflês, fazer lives, dar entrevistas, lançar livros... mas não parecem encontrar tempo para cuidar do que realmente importa.
– Você acha que foi fácil? – Vivi pergunta, soltando com força o ar pelo nariz. Seu suspiro não foi exatamente de paciência – Acha que foi simples escolher?
– Escolher o quê? Se silenciar em vez de negar publicamente uma mentira ridícula inventada por um cara à toa, mais ridículo ainda? Porque, veja, não foi você quem me acusou, eu sei. Mas o seu silêncio... gritou. Me fez parecer uma ladra de receitas para o mundo inteiro. Afetou a minha reputação. Abalou o meu negócio! – ela ergue as mãos, como se tudo à volta estivesse em ruínas.
A chef desvia os olhos pela primeira vez, analisando os detalhes do ambiente em que estavam. Patrícia aproveitou o breve momento de distração e reparou que tudo nela parecia medido: desde sua postura ao entrar até o fato de que não encostava as costas na cadeira. De perto, Vivi Mantovani assemelhava-se a uma personagem, uma criação. Daquelas inalcançáveis, que se apresentam publicamente, mas se isolam do mundo numa redoma qualquer.
Ela portava-se como quem sabia que poderia ir embora a qualquer instante, com a bolsa repousada no colo, os dedos cruzados sobre a mesa parecendo segurar alguma coisa que não podia cair. Os pés, alinhados e firmes, não balançavam nem tremiam. E o rosto... era frio, fake, retocado. O batom claro desenhava uma boca que quase não se sorria e o olhar tinha um brilho contido, como se toda emoção fosse previamente filtrada.
Vivi era impecável demais. Medida demais. Irreal. Parecia alguém que passou anos ensaiando para não se desmontar.
– Às vezes, Patrícia... o silêncio é o único lugar onde a gente ainda pode se esconder – ela diz, após um instante de reflexão – Além de tudo, eu não sabia como seria se tentasse. Se eu... dissesse algo. Não sabia o que podia piorar... ou o que podia doer mais. Não quis piorar o que já parecia muito ruim.
– Aí você simplesmente escolheu não fazer nada, tá certo, entendi – Patrícia resmunga, cruzando os braços e abaixando os olhos – A vantagem de estar distante, escondida no silêncio, é que dá para ignorar melhor todo o estrago, né?
– Longe disso. Mas não é tão distante quanto parece. E nem tão fácil quanto você imagina.
Patrícia encosta as costas na cadeira, incapaz de manter a postura rígida. Vivi a encara por alguns segundos e, então, abre a pasta. Lentamente, retirou de dentro um papel dobrado em quatro, em meio a outros recortes e algumas fotos velhas. Abriu sobre a mesa uma folha antiga, amarelada, com o título escrito numa letra arredondada: “Suflê de fim de tarde (receita da mãe)”.
A caligrafia era familiar e Patrícia reconheceu imediatamente: era a mesma dos bilhetes que encontrava na lancheira quando ainda não sabia ler e que guardou durante anos, como se fosse um tesouro. A letra dos recados que seu pai se recusava a ler e que sua avó lia com desprezo, dizendo que era “letra de quem não tem firmeza para nada”. A letra que instigou Patrícia a querer se alfabetizar.
Ela estendeu a mão, cautelosa. Pegou o papel e leu devagar, item por item, cada ingrediente anotado, cada passo da preparação, cada detalhe como se saboreasse o melhor dos banquetes literários. E só ao terminar, apenas ao final da última linha é que Patrícia olhou para Vivi de novo.
– Por quê? – foi tudo o que conseguiu dizer.
Vivi demorou a responder. Pareceu escolher bem as palavras, embora o discurso tenha soado como se fosse um velho conhecido, com quem convivia há muito tempo, repetido como um mantra, milhares e milhares de vezes.
– Porque me mandaram escolher. E porque, na época, achei que podia voltar. Que ainda teria tempo depois. Mas... a vida nitidamente não perdoa quem escolhe errado – ela abaixa os olhos, como quem procura os próprios erros na madeira da mesa – Eu era jovem demais, orgulhosa demais. E quando percebi o que tinha feito, quando finalmente criei coragem para voltar... já tinha perdido tudo, as portas já estavam todas fechadas, trancadas a mil chaves. E depois... foi ficando cada vez mais difícil. Porque quanto mais o tempo passava, mais difícil era aparecer. Mais cruel parecia tentar explicar.
Patrícia não respondeu. Apenas apertou a borda da cadeira, como se tentasse se ancorar no presente. O silêncio se espichou entre elas, cortado apenas por sua respiração mais pesada, que tentou disfarçar, sem sucesso.
– Não foi por falta de amor – Vivi continuou, com a voz agora um pouco mais baixa, como se a culpa tivesse peso físico – Mas o amor... não cria criança sozinho. E naquela época eu ainda estava aprendendo a ser mulher... Filha de uma narcisista, me casei com um homem tóxico, controlador... Quando pude, me agarrei à carreira como forma de existir, cercada de gente que me impedia de ser eu mesma. Insisti e busquei o sucesso como se pudesse preencher o buraco que deixei. Mas não preencheu; nada preenche. Na verdade, tudo o que fiz serviu só para ampliar o vazio que carrego no peito.
Ela finalmente encosta as costas na cadeira, como se tivesse se rendido e desistido de sustentar a imagem de mulher inabalável. Pela primeira vez, pareceu só... humana. E quando seus olhos voltaram a se cruzar, mãe e filha se olharam pela primeira vez como o que eram. Como o que nunca deixaram de ser.
– Te assisti de longe. Mais vezes do que imagina – Vivi continua – Acompanhei os passos que dava, tentando decifrar quem você se tornou sem mim.
– Você não me procurou nem quando a minha avó morreu – Patrícia rebate, sentida.
– Eu soube... E chorei sozinha porque, mesmo com tudo, ela era o último fio que me ligava a você. Mesmo que desencapado.
– Cresci achando que você foi embora porque não me amava, porque a cozinha era mais importante.
– Eu te amava tanto que achei que voltaria a tempo. Mas você sumiu do meu alcance. Seu pai fez questão disso.
– Eu precisava tanto de você... e tudo o que tive foi o vazio.
– Eu sei – Vivi responde, agora com a voz embargada – E me odeio todos os dias por isso.
As duas ficam quietas por um instante que pareceu maior que o passado inteiro. Então Patrícia passou os dedos pelo elástico preto no pulso, seu talismã, seu lembrete de quem ainda era.
– Eu não sei o que fazer com isso – ela confessa, enfim – Com essa... verdade toda.
– Nem eu – Vivi sorri pela primeira vez – Talvez a gente possa começar com um café, que tal? Sem trilha sonora. Só o café, mesmo.
Patrícia não responde de imediato. Ainda não sabia se conseguiria perdoar e reconstruir alguma coisa a partir daquele entulho emocional. Mas, pela primeira vez, não sentiu apenas raiva; sentiu que havia uma fresta – pequena, quase imperceptível. Como uma rachadura por onde a luz entra. E, ali, entre o silêncio que antes doía e o café que talvez existisse, havia uma possibilidade. Tênue. Mas viva.


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