TPM - Capítulo 2: A reunião
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Nos
últimos dois meses, praticamente toda a vida profissional de Mariana esteve às
voltas numa negociação importante; num tipo de transação com o poder de mudar completamente
o rumo de sua carreira, do jeito que ela sempre sonhou. Isso a fez mudar sua rotina,
delegando para as duas funcionárias as demandas menores, assumindo para si toda
a responsabilidade do projeto que estava arquitetando. Há pelo menos 60 dias,
portanto, trabalhava absolutamente focada para que o contrato com a TechFuture fosse
assinado porque o esquema todo era muito perfeito. Ou quase perfeito.
Antes
mesmo de se formar em Tecnologia da Informação em uma faculdade de elite da
zona sul, como bolsista do Prouni, Mariana tinha em mente o objetivo para seus
dias, se possível, em curto prazo: pretendia trabalhar para uma multinacional
desenvolvendo projetos inovadores e audaciosos, capazes de otimizar processos
antiquados que não combinavam com o avanço da ciência da computação dos dias
atuais. Algo que lhe renderia bastante fama e, principalmente, muito dinheiro. Pura
utopia para quem vive dominada e rendida pelas regras do capitalismo, mas
durante um bom tempo foi o que a salvou de não desistir do curso.
As
aulas em si até que eram interessantes, mas Mariana morria de preguiça do fã-clube.
Seus colegas de turma eram quase todos bastante desagradáveis, do tipo pedantes,
filhinhos de papai.
Depois, quando já estava inserida no mercado
de trabalho, de posse de todo o seu conhecimento, Mariana percebeu que para
concretizar seus planos seria mais fácil se antes tornasse seu nome conhecido na
área. A duras penas, descobriu que para ganhar dinheiro era preciso primeiro ganhar
dinheiro. Dito de outra forma, para alçar grandes voos, antes era necessário sobrevoar
os boletos que têm o potencial de podar asas e sonhos, se a gente não ficar
esperta. Isso a levou a abrir sua própria empresa, que agora já contabilizava
quase cinco anos de atuação, contribuindo com o mundo com projetos simples de
TI. Trabalhar sem patrão foi sua solução para sobreviver à vida adulta.
E
tudo era tranquilo e estável em sua pacata rotina trabalhista até que um dia
desses, nesses acasos inesperados da vida, Mariana reencontrou uma antiga
colega de faculdade. Foi Carmen quem “cantou a bola” a respeito de uma empresa
no interior que procurava no ramo alguém exatamente como ela. Ou alguém exatamente
como ela pretendia ser, pelo menos, alguns anos atrás.
Não
que o tempo tivesse corroído seus sonhos, mas é fato que com o passar dos anos,
Mariana se acomodou em seu cotidiano. O que vivia atualmente não era nada
parecido com o que havia um dia almejado, mas ao menos lhe garantia todas as
contas pagas, um bom carro do ano e certa estabilidade financeira que a
permitia até desfrutar de algumas extravagâncias e regalias, por exemplo, ser
casada com duas mulheres, algo que despendia uma boa grana.
Entretanto,
encontrar Carmen numa cafeteria a fez voltar praticamente ao seu ponto de
origem, quando ainda fantasiava em realmente poder fazer alguma diferença, por
menor que fosse, no mundo em que habitava, através de sua profissão. Por isso
se candidatou à vaga e se dedicou àquilo que considerou como a “proposta de sua
vida”, porque de alguma forma era, de fato, uma possibilidade que alteraria sua
carreira, inclusive no sentido de levá-la posteriormente a outro patamar, que
no futuro abriria portas que hoje permaneciam inacessíveis para ela. Por tudo
isso, desde o primeiro instante, Mariana se empenhou para fechar o contrato,
ainda que compreendesse o que realmente estava em jogo com tudo aquilo.
Isso
consumiu seus dias de trabalho e consequentemente afetou suas noites de sono,
que passaram a ser mal dormidas por causa da ansiedade. A impressão que tinha é
que quanto mais perto ficava de conseguir o que desejava, mais tensa se sentia,
como não poderia deixar de ser. À vista disso, mesmo rendida pelo cansaço, quando
se deitava no meio da madrugada, lutava para dormir e isso a afastava da cama
nas noites seguintes, pois tinha receio de atrapalhar o descanso de Patrícia e
Tatiana, que nada sabiam do que se passava com ela.
Assim
foi ao longo das últimas semanas. Mariana atravessou os dias (e noites!) sustentada
por café e tomada por uma sincera inquietação, se esforçando a todo custo, até
o final, para reverter o último detalhe da negociação com Simone Albuquerque
Peixoto Gama, a dona da TechFuture, uma mulher autoritária e um tanto quanto impassível
em suas deliberações. E ainda que estivesse absolutamente focada na reunião que
aconteceria naquela sexta-feira, determinante para acertarem os detalhes
conclusivos e finalmente assinarem o contrato, quando enfim chegou o dia, Mariana
teve a incrível capacidade de se atrasar pela manhã.
Quer
dizer, o problema nem foi perder a hora, exatamente. A questão é que ela se
esqueceu, mesmo. Se confundiu, achou que era quarta quando foi dormir na quinta
e, ao acordar na sexta, alheia às responsabilidades e excitada por causa de um
sonho erótico, não foi capaz de se lembrar que aquele era um dia decisivo. Como
se de algum jeito, inconscientemente, nem quisesse que nada daquilo desse
certo.
Ao
perceber seu erro durante o café, Mariana quis compartilhar com as esposas tudo
o que estava acontecendo e tudo o que estava prestes a acontecer. De verdade, ela
sentiu vontade de dividir com as duas cada uma de suas angústias e
preocupações, tão contrastantes com a proposta incrível de trabalho que estava disposta
a encarar. Se é que aceitaria, de fato, uma vez que naquela manhã, pela
primeira vez, considerou recusar o que ela mesma foi atrás para negociar. O
sonho molhado daquela noite tinha uma enorme parcela de peso nisso.
O
problema é que as mulheres andavam em pé de guerra, desde que Tatiana decidiu fazer
um curso que deixava Patrícia enciumada. As mulheres vinham se estranhando nos
momentos de interação, geralmente durante as refeições, quando as três se reuniam
na privacidade do lar. Isso tornou o momento inoportuno para Mariana partilhar
com elas os pormenores de ter que alterar sua vida no trabalho. Que não eram
meros detalhes, considerando que afetaria também sua rotina dentro de casa. A
rotina das três, se bem observado.
Só
por isso Mariana não disse nada. Também porque não tinha como sequer prever se
a toda poderosa dona da TechFuture aceitaria encontrá-la em horário fora da
reunião anteriormente agendada. Caso não a recebesse tudo estaria perdido e, num
primeiro momento, Mariana considerou que não valia o desgaste de jogar na roda
um assunto que no fim não daria em nada, então se calou. Outro motivo foi que,
ao contrário dela, Patrícia e Tatiana tinham acordado no horário, dispostas a
saírem de casa bem cedinho, sem que houvesse tempo para conversas mais
demoradas.
Por
tudo isso, e porque realmente não havia muito o que fazer, depois do desjejum, Mariana
despediu-se das mulheres como se fosse apenas mais uma manhã normal, comum, e
foi se arrumar para tentar contato com a dona da empresa de tecnologia, que
ficava distante vários quilômetros dali. Tentaria falar com a empresária nem
que fosse através de um esbarrão propositalmente acidental no elevador, por
exemplo. Aí, se não resultasse mesmo em nada, depois ela diria às esposas sobre
tudo que quase rolou.
Provavelmente
esse seria o desfecho deste capítulo, já que Simone tinha demonstrado bem, em
todas as conversas que tiveram, o tipo de mulher que era, então Mariana se
deslocaria até a outra cidade apenas para desencargo de consciência, mesmo; só para
depois não se acusar de não ter ao menos tentado, já que sabia que dificilmente
teria algum tipo de êxito na empreitada. Arriscaria, portanto. Se conseguiria
algo com isso, aí já era outra história.
Depois
de tomar banho, embora estivesse com pressa, cuidou de lavar a louça suja do
café da manhã, antes de sequer cogitar sair de casa. Sentia-se inteiramente responsável
por essa tarefa, uma vez que Patrícia cozinhava e Tatiana era quem ia ao
mercado. De alguma forma, manter a pia limpa era um gesto de carinho e também
uma maneira de sentir-se útil dentro da dinâmica do trisal. Era igualmente um
bom método para agradar as esposas, que antigamente decidiam no par ou ímpar
quem assumiria a função depois de cada refeição.
Na
sequência, quando ainda estava na garagem de casa, fez a primeira tentativa de
contato com a TechFuture. Telefonou para o escritório de Simone e somente após
vários minutos ouvindo uma musiquinha de espera chata é que conseguiu contato
com a secretária, impassível diante de sua tentativa de conseguir algum encaixe
na disputada agenda da chefe dela, claramente uma ocupada mulher de negócios. Mariana
até se deu ao trabalho de tentar xavecá-la, numa fala toda mansa e educada, mas
foi em vão.
Ainda
teve alguns segundos para considerar se valia mesmo a pena dirigir até tão
longe só para “quebrar a cara”, mas uma vez que tinha decidido ir, colocou o
cinto e foi. Ou quase isso: o portão de casa já estava todo arreganhado, mas Mariana
precisou voltar ao se tocar que aquele não era seu carro e que ela estava sem a
bombinha de asma no bolso (e sem a reserva no porta-luvas também). Já tinha
acontecido algumas vezes de sair despreparada e precisar se medicar no caminho,
mas não foi nada que obviamente a tenha matado. Ainda assim, preferiu buscar o
remédio porque já estava nervosa o suficiente e considerou que não precisava de
novos motivos para se pilhar mais.
Depois
de finalmente sair, enquanto trafegava pela Marginal curtindo a playlist
de músicas nacionais que a esposa gostava de escutar, Mariana tentou contato
com a empresa novamente, agora esforçando-se para conseguir pelo menos falar
com Simone – por telefone, mesmo. Mas a secretária não deu nenhuma brecha nem
para que ela falasse com a assistente da empresária, logo, fracassou mais uma
vez.
Quando
pegou a saída para a rodovia 348, sentido interior, alguns minutos depois, Mariana
tinha quase certeza de que sua missão seria absolutamente frustrada naquele dia.
Mas seguiu adiante, pois se encaminhar até a outra cidade era o que podia fazer
no momento e porque o retorno era muito longe de onde estava, não compensaria
mais voltar. E também considerou que, afinal, não há petisco sem risco – não é
assim que diz o ditado? O máximo que poderia acontecer seria chegar lá e ter
que voltar.
– O
“não” eu já tenho, agora só falta ir atrás da humilhação – Mariana resmunga, pensando
em voz alta, ao parar o veículo na cabine do primeiro dos dois pedágios que
pagaria para chegar em Campinas. Ainda encontrava-se relativamente perto de
casa, mais do que estava da empresa, mas considerou que já havia se distanciado
o suficiente para não desistir – É minha última tentativa – murmurou, se
encorajando a avançar.
Antes
de seguir viagem, enquanto aguardava o atendimento, observou no letreiro do
pedágio o nome da funcionária: Carmen. Ao devolver o troco, a mulher lhe desejou
“boa sorte”, ao invés de “boa viagem”, e Mariana interpretou o equívoco como se
fosse um sinal.
Na
troca de marchas, ao deixar a praça de pedágio para trás, deu o comando para o
celular ligar para sua amiga Carmen. O aparelho, preso em um suporte no painel
do carro, piscou a tela com a foto do trisal antes de completar a ligação, mas
Mariana não reparou porque mantinha-se atenta ao tráfego da estrada.
– Oi,
Mari – Carmen atende, sonolenta, em tom de “alô” – E aí, já chegou? Como é que
foi, está tudo bem?
– Oi,
Cacá! Bom dia. Ai, menina, deu tudo errado antes mesmo de dar certo... –
Mariana desabafa, estabilizando a velocidade no limite máximo permitido na
Rodovia dos Bandeirantes: 120km/h.
–
Mentira, amiga! O que aconteceu?
Mariana
explica os motivos para ainda estar na estrada, já se valendo da desculpa
sugerida por Tatiana para justificar seu atraso na reunião: para todos os
efeitos, o que a fez perder a hora para o compromisso agendado foi o rodízio de
carros em São Paulo, não sua mente perturbada, que a confundiu quanto aos dias
da semana. Da forma como falou, incluindo a entonação escolhida, pareceu muito que
estava falando a verdade. Tanto que ela mesma quase acreditou na versão narrada.
Carmen também, já que Mariana pôde ouvir pelo viva-voz um suspiro de decepção do
outro lado da linha, emitido por sua interlocutora.
– Tá,
mas e aí? E agora, o que tem em mente? – Carmen pergunta, depois de ouvir em
silêncio o relato de Mariana – Você vai tentar a sorte e ir até a TechFuture,
ainda que fora do horário? E se a Simone não te atender mesmo assim? Porque
provavelmente é isso que vai acontecer, você sabe, né?
– Sim...
Aí eu volto para casa, ué. Paciência, vida que segue... – Mariana retruca, amuada.
Não havia mesmo muito o que fazer, caso este fosse o desfecho.
–
Claro que não! – a mulher rebate, imediatamente – Você já vai estar na cidade,
vamos pelo menos almoçar para fazer valer a sua viagem até aqui. Conheço um
restaurante vegano que tenho certeza de que você vai gostar!
– Tá,
beleza. Eu vou até lá, monto acampamento na recepção da TechFuture até a fome me
cansar mais do que a espera. Aí, antes de retornar a São Paulo, te envio uma mensagem
para a gente se encontrar e almoçar.
–
Perfeito, Mari. Vou torcer para que consiga falar com a abençoada tão logo você
chegar lá. Desejo boa sorte e espero o seu contato mais tarde.
–
Combinado, Cacá. Um beijo e até logo.
Mariana
aspirou o remédio de asma de maneira automática e seguiu viagem sentindo-se um
pouco menos angustiada, não apenas por considerar que almoçar num restaurante
vegano consolaria seu coração, além do estômago, mas principalmente por
acreditar que nada há de ser por acaso nessa vida. Durante as últimas semanas inteiras
atuou intensivamente para fazer a negociação com Simone e sua empresa dar
certo, afinal, queria muito o trabalho, mas se manter nos moldes de sempre não
era algo que ela abominasse. Ao contrário; só assim teria a oportunidade de continuar
desfrutando integralmente da agradável companhia de duas mulheres que aceitaram
se casar com ela quase dois anos atrás, contando que isso incluía as três morarem
juntas, todos os dias da semana – e as noites também.
Pensar
em Patrícia e Tatiana a fez sorrir, como sempre acontecia, o que a levou a se
lembrar mais uma vez do sonho que a incendiou naquela noite, a fazendo acordar completamente
acesa, em chamas. Uma vez que sua ida a outra cidade não resultaria em nada, quando
voltasse para casa mais tarde, já livre do peso que a afligia há vários dias
nas últimas semanas, sem dúvida colocaria em prática os movimentos sugeridos
enquanto dormia e perdia a hora para o seu compromisso super importante daquela
manhã. Em alta velocidade, Mariana se ajeitou no banco com o pé cravado no
acelerador para desviar da costura dura de sua calça jeans, que pressionava em
cima da região que voltou a ficar sensível diante da lembrança.
O
cheiro de Tatiana impregnado no estofado de seu automóvel tornou praticamente
impossível expulsar por completo os pensamentos libidinosos porque, embora o
mundo inteiro lá fora parecesse apenas um borrão, dentro do carro o perfume da
mulher fez contrair todo o seu universo particular, evocando sentimentos sinceros,
genuínos e profundos. Cada partícula de ar perfumada parecia estar carregada de
memórias eróticas que serviam como um lembrete excitante da intimidade delas, de
um jeito tão real que era como se Tatiana estivesse ali, apesar de sua
ausência.
Isso
transformou o trajeto de pouco mais de cem quilômetros em uma quase declaração
silenciosa de amor, só que sonorizada pela sinfonia contínua provocada pelo
atrito dos pneus com o asfalto que corria ligeiro embaixo dela. Em dado
momento, Mariana sentiu-se aconchegada em um refúgio quentinho de amor que
contrastava inteiramente com a pressa fria observada no mundo exterior.
Ela
levou exatamente duas horas e 25 minutos da garagem de sua casa até a frente do
enorme portão da TechFuture, cercado por grades e câmeras de segurança. Chegou com
quase 3h de atraso para sua reunião (mais ou menos) do jeitinho que havia
programado: maquiada, bem vestida e penteada. Igualzinho uma profissional
comprometida, sem nenhum problema com o calendário.
– Oi,
bom dia. Eu vim falar com a Simone Albuquerque Peixoto Gama – Mariana diz, em
tom de pergunta, empurrando a armação dos óculos para cima do nariz enquanto o
tom de sua fala foi diminuindo de volume no final. Ela dirigiu-se a uma das
moças sentadas atrás do balcão lustroso da recepção e imediatamente percebeu
que teria tido mais sucesso se tivesse falado com a outra, que sorriu ao vê-la
– Meu nome é Mariana. De Souza – ela se apressa em dizer.
Mariana
equilibrava em um dos ombros a alça de uma mochila borrada de tinta azul, que Tatiana
pretendia jogar no lixo depois de manchá-la sem querer, mas ela impediu. Além
do detalhe colorido, a mochila destoava completamente de seu traje social, mas
ela não dava mostras de se importar nem um pouco com isso.
– Você
tem horário marcado? – a secretária questiona, não sem antes encarar, de
maneira demorada e um tanto teatral, a recepcionista sentada ao seu lado– Não vejo
nenhum compromisso interno agendado para agora – ela completa, depois de
digitar alguma coisa e puxar em seguida a manga da camisa para olhar o relógio
preso em seu pulso. Seus movimentos foram dissimulados e liberaram o aroma de
um perfume extremamente doce e enjoativo, mas Mariana fez de conta que não
reparou.
–
Sim, é que na verdade a nossa reunião estava marcada para 8h da manhã, mas eu...
Bom, me atrasei, enfim, aí vim até aqui para ver se ela pode me atender agora,
em novo horário – Mariana fala, batendo de leve com a mão no bolso, para se
certificar de que a bombinha de asma estava ali.
–
Acho bem improvável – a mulher rebate, falando cada sílaba bem devagar enquanto
puxava o telefone do gancho. Pela breve conversa que se seguiu na sequência, num
tom absurdamente baixo e particular, ela pareceu contatar a secretária de
Simone, alguns andares acima de onde se encontravam.
–
Está tendo uma obra bem na entrada da cidade, né? – a segunda recepcionista
comenta, em tom amigável.
– Pois
é, menina, está um horror – Mariana responde, sem fazer ideia do que a mulher estava
falando – Fiquei um tempão parada, atrasou todos os meus compromissos – ela mente,
em complemento à fala anterior.
– É,
eu também me atrasei por causa disso. Quer dizer, ontem. Hoje precisei sair
mais cedo de casa para não acontecer de novo... Ainda estava escuro quando
peguei o ônibus de manhã – ela diz, sem no entanto acrescentar mais nada, pois
logo sua colega desligou o telefone.
– Foi
você que ligou aqui mais cedo, né? – a primeira recepcionista então pergunta,
sem dar tempo para Mariana responder – A secretária da doutora Simone acabou de
dizer, ao me informar que não existe a menor chance de você ser atendida
hoje... – ela revela, parecendo satisfeita por fazer tal anúncio – ...mas ainda
assim também disse que, se você quiser, pode aguardar aqui no salão. Caso surja
algum imprevisto que possa, quem sabe, abrir uma janela na agenda da doutora
Simone, ela pode te atender. Mas não é nada garantido – a mulher finaliza, apontando
para o sofá próximo à porta.
– Tá
bom... Eu vou aguardar, sim, grata – Mariana diz e sorri apenas para a
recepcionista que revelou ter madrugado só para chegar ao trabalho no horário.
Para a outra, reservou apenas um breve aceno com a cabeça.
Acomodando-se
na recepção, no cantinho do sofá que ficava embaixo do ar-condicionado, Mariana
apoia a mochila manchada de tinta sobre as pernas, para se aquecer naquele
ambiente gelado. Observando o entra e sai de funcionários, muitos aparentando
serem bem mais novos do que ela, refletiu que caso soubesse antes que havia
impedimentos na estrada, poderia ter usado isso como desculpa para seu atraso
naquela manhã. Seria mais coerente se justificar com uma questão local e real a
atribuir a algo tão distante da realidade de quem vivia por ali, como a
recepcionista, por exemplo, e a própria Simone, que se ocupava de muitas
coisas, exceto com placas de carro e dias de rodízio.
Isso
a levou a analisar que a distância entre as duas cidades era suficiente para
algo assim acontecer, como se tratasse de dois mundos distintos que rodavam no
universo de maneira paralela. Mas sobre este detalhe especificamente, Mariana preferiu
não pensar a respeito. Provavelmente porque a análise serviria apenas para
comprovar o quão difícil seria trabalhar em um lugar, morando em outro. “Talvez
não conseguir o que eu queira seja, no fim, algo bom”, ela pensa, se consolando
ao sentir a pele arrepiada debaixo do paletó.
“Você
não tinha como saber de nada disso quando acordou”, Tatiana responde, depois
que Mariana relata o que havia acontecido até ali, incluindo a obra que
interditava uma entrada da cidade que ela sequer transitou. Por mensagem, a
esposa a confortou pela espera que Mariana teria que enfrentar pelas próximas
horas e em poucas palavras desejou boa sorte, mais uma vez, num áudio cheio de
ruído, antes de voltar para a aula.
Tatiana
era uma mulher especial, certamente teria sido sua aliada na discussão com
Patrícia, caso Mariana tivesse conseguido a vaga que esteve tão próxima, mas
que ainda assim lhe escapou. Sim, porque antes mesmo de tomar um belo chá de
cadeira que não aquecia nem distraía naquela recepção tão fria, ela já
considerava tudo como perdido. Só não disse nada para a esposa, em sua breve
troca de mensagens, porque temia se distrair com o celular e acabar perdendo
Simone de vista, caso ela passasse pelo saguão.
Isso a
manteve em alerta nas primeiras duas horas. Mentalmente, foi e voltou de São
Paulo, revisitou brevemente o sonho erótico e se enfiou em seu escritório para
trabalhar. De olho na saída do elevador, traçou na cabeça estratégias para
atrair clientes, fechar negócios diferentes e prosperar. Buscaria no mercado novas
propostas, aproveitaria que estava com o portfólio em dia e que com essa
história de participar da concorrência na TechFuture tinha até criado uma conta
para sua firma numa rede social. Perdera a chance ali, mas havia outras portas
para bater, afinal.
Claro
que, depois desta experiência, daria preferência a locais mais próximos de sua
casa. Se daria ao luxo de escolher viver junto com as esposas bem de perto,
agora que sabia como se sentia mal só de ter que pensar em morar em outro
lugar, longe delas. Porque esta era a imposição absoluta de Simone para que
Mariana ficasse com a vaga: aquele era um contrato de trabalho presencial.
Decepcionada,
quando seu estômago começou a roncar, passadas três longas e inúteis horas de espera,
Mariana finalmente chegou à conclusão de que não existe emprego dos sonhos se o
trabalho em questão tem o poder de tirar o sono. E a TechFuture vinha lhe
roubando preciosos e merecidos momentos de descanso, na cama mais perfumada de
todo o Brasil. Pensar nisso foi o que a encorajou a se levantar, e ela não havia
saído dali nem mesmo para ir ao banheiro!
Antes
de deixar o salão, fez um movimento com a mão, como um aceno, se despedindo da
recepcionista simpática. Da mesma forma que Mariana não tirou os olhos do
elevador durante todo o tempo em que permaneceu ali, na tentativa de contatar
Simone, a secretária não parou de encará-la, por motivos que só ela própria sabia.
Lá
fora, momentaneamente esquecida de que precisava ir ao banheiro, Mariana mandou
uma mensagem de WhatsApp para Carmen, que respondeu com as coordenadas de um
dos únicos locais que ainda estava servindo almoço, considerando o horário
avançado. No interior paulista, passou das três da tarde já vira uma luta para
encontrar algum restaurante aberto.
–
Patrícia se beneficiaria muito de um esquema assim – Mariana diz. Foi a
primeira coisa que falou, ao encontrar a amiga no restaurante todo de vidro,
localizado numa esquina bonita, bem arborizada. Não era a opção vegana
prometida por Carmen, mas já do lado de fora pareceu ser uma boa substituição –
Minha esposa trabalha no restaurante o dia inteiro, entra de manhã e sai só à
noite. Lá tem duas equipes que se revezam na cozinha, porque teoricamente O
Bistrô só fecha depois do jantar, e ela cobre os dois turnos.
– Que
bonitinha, casadinha – foi a resposta de Carmen, a abraçando. Não pareceu
ironia, mas foi.
Ao
entrarem no restaurante, escolheram um lugar próximo ao bar, nos fundos do
estabelecimento, embora as mesas disponíveis perto da sacada fossem melhores, por
serem mais iluminadas. Todas estavam disponíveis por conta da hora, o salão
estava praticamente vazio, mas Mariana não quis ser indelicada e sugerir de
trocarem, pois sabia bem como era amanhecer na sexta-feira já de ressaca.
– Eu
preciso muito, muito ir ao banheiro – ela resmunga, sem condições de se sentar –
Passei horas na recepção daquela empresa, não fiz nem xix...
– É
só virar ali, ó – Carmen interrompe, apontando com o dedo. Na sequência, fez um
gesto para o garçom, pedindo o cardápio.
Banheiros
inevitavelmente sempre faziam Mariana pensar em Tatiana, especialista em
lugares assim. Por isso, já aliviada, tirou uma foto no espelho após lavar as
mãos e enviou para a esposa. Só para uma porque Patrícia não tinha o hábito de
olhar o celular durante o expediente, então nem perdeu tempo. Na imagem,
escreveu uma legenda que dizia: “Ambiente 10/10, tem até chocolatinho de brinde”.
Ao retornar
para a mesa, Carmen já estava na companhia de um drinque bem colorido e lhe
direcionou um sorriso como se só agora a estivesse vendo. Ou como se o álcool
fosse o responsável por fornecer sua dose diária de simpatia social.
– Tá,
agora me conta – Carmen diz, sorrindo também com os olhos, por trás do canudo
de sua bebida – Aí você colou na TechFuture e ficou várias horas de castigo,
esperando a misericórdia da Simone em te atender e mesmo assim ela te deu balão.
–
É... – Mariana resmunga, acomodando-se na cadeira ao puxar o cardápio – Fiquei
lá à toa, morrendo de fome, com a bexiga cheíssima... – ela tira os óculos para
limpar as lentes. A princípio, pareceu que os preços no menu estavam errados,
mas era aquilo mesmo. Uma garrafa de água custava R$ 32,90!
– Ai,
esse aqui é o modelo 18? – Carmen pergunta, puxando o celular de Mariana de
cima da mesa.
– É,
a Pati inventou de querer me dar de presente no Natal, mesmo eu pedindo para
ela não fazer isso... Vivo perdendo as coisas, mas ela é teimosa... deu mesmo
assim.
– Que
luxo, eu vi que a câmera desse modelo é a melhor da série. Tira uma foto minha,
bem blogueirinha, vai – Carmen emenda as frases, falando rápido, armando
um biquinho no final.
– Tá,
dá um sorriso, Cacá – Mariana emoldura a amiga na tela do celular, não se
preocupando com o fato de estar sem óculos porque a câmera era boa mesmo.
Embaçada era apenas a sua vista míope.
– Não,
Mari, mandar beijinho é o novo sorriso! Não seja cringe, amiga.
– Mas
a imagem só sai bem enquadrada quando a pessoa fotografada mostra os dentes –
ela tira a foto, acionando o botão, assim que a outra sorri para ela – Não
falei?
– Que
boba, deixa eu ver – Carmen se olha na imagem congelada – É, a câmera é muito boa
mesmo! Olha, nem dá para ver minhas rugas... – ela amplia a foto, para se ver
melhor – Adorei, fiquei gata!
– Que
rugas, amiga? Você está ótima, deixa disso.
–
Sim, você também, com essa gravata. Aposto que chamou a atenção lá na empresa
da Simone – Carmen rebate, devolvendo o aparelho – Acha que já era mesmo? Sua
chance na TechFuture? – ela complementa, depois de um curto gole em seu
drinque.
–
Acredito que sim e você? – Mariana agradece ao garçom pela água deixada à sua
frente.
–
Olha, como eu te disse, a Simone e eu namoramos um tempo super curto, mas foi tudo
muito intenso, sabe como é – Carmen beberica um pouco, aguardando o garçom se
afastar, após servir a entrada, composta por petiscos enfileirados em uma tábua
decorada – Tanto que eu nem quis me candidatar à vaga, só por isso. Seria uma
ótima maneira de voltar ao mercado, mas...
–
Sei... Como anda sua vida de “celebridade do café”, por falar nisso? – Mariana
questiona, fingindo satisfação por estar bebendo água. Sua vontade no momento
era se embebedar, assim como Carmen. Sentia-se frustrada, talvez o álcool a consolasse
um pouco, mas como precisaria dirigir em breve, manteve-se sóbria.
–
Olha, vou te dizer que ser influencer nunca foi minha meta, ainda mais
nesses moldes, né? – ela ri. Carmen era a responsável pela conta no Twitter do
mascote de uma marca de café gourmet, conhecido por ser politicamente incorreto,
chamado Gurmê. O famoso Cacá Gurmê, um personagem não binário, conhecido graças
à criatividade de Carmen, que se comunicava na rede com palavras neutras – Mas
é ótimo, me divirto bastante, trabalho pouco e ganho muito bem. Esses dias
quase fui parar no programa da Ana Maria, me convidaram para interagir com o
Louro.
– Uau,
que encontro – Mariana ri também, servindo-se dos petiscos como se fossem
almoço.
– É,
mas no fim não rolou. A produção do programa não tankou minha postagem
comemorando a descriminalização da maconha pelo STF...
– Ah,
eu vi esse tuíte! Uma foto do grãozinho de óculos escuros, fumando um baseado
maior que ele – as duas riem – E não pega nada com a empresa? O pessoal do Café
Andorinha não se importa com os seus posicionamentos políticos e polêmicos?
–
Como se importariam, Mari, se gero um puta engajamento para a marca? – Carmen
rebate, virando os olhos – Até eu assumir a conta, a participação da empresa no
mercado e nas redes era irrisória. Hoje é a principal escolha dos consumidores,
principalmente entre os mais jovens. A galera adora uma polêmica.
–
Isso é verdade... – Mariana resmunga, pensativa. Talvez a amiga pudesse
ajudá-la com a página de sua empresa, que contabilizava menos de 300 seguidores
até o momento. Isso a levou a desbloquear o celular e mudar de conta, ao entrar
no Instagram.
–
Mas, assim, eu tenho total ciência de que essas coisas são passageiras, sabe?
Então, aproveito ao máximo porque amanhã ou depois minha rotina pode mudar
completamente. Afinal, o sucesso na internet é meteórico e acaba tão rápido
quanto começa.
–
Sim, mais ou menos como a minha trajetória na TechFuture. Ou não, né? Já que
meu sucesso lá terminou antes mesmo de começar... – Mariana se lamenta, deixando
o celular de lado ao ver o garçom trazer seu almoço. Estava faminta!
– Foda,
amiga... – Carmen desvia o olhar ao encarar o próprio copo, mas rapidamente
volta-se para Mariana – O fato da Simone ter te deixado plantada na recepção
depois de você ter faltado à reunião é a cara dela. Acho que te fez perder
parte do seu dia como vingança, porque ainda que seja talentosíssima, é uma das
mulheres mais ardilosas que já conheci. Uma pena, né? A gente teria muito o que
fazer, as noites por aqui são incríveis, têm de tudo – ela bebe mais de seu
drinque, de maneira generosa – Me manda aí a foto que você tirou, eu vou
postar. Ou melhor, posta você e me marca, Mari! Para parecer que também sou uma
mulher diurna.
– É,
aposto que a gente teria mesmo muito o que fazer... Sabe que eu nem comentei nada
lá em casa? – Mariana resmunga, de boca cheia, ao pegar o celular.
A
comida ali não era boa e ela ficou alguns segundos segurando o aparelho,
esquecida do que ia fazer. Em pensamento, se alertou para depois procurar na
internet a avaliação do restaurante e compartilhar com Patrícia, que gostava desse
tipo de coisa. Também tiraria uma foto do menu, para a esposa analisar os
valores exorbitantes do lugar.
Mariana
ficou momentaneamente reflexiva porque sabia que, caso fosse solteira, Carmen
seria sua melhor opção de companhia na cidade. E, assim como a amiga, se a vida
fosse outra ela provavelmente também estaria enchendo a cara, em plena
sexta-feira à tarde.
– O
que, não comentou sobre a vaga na TechFuture, você diz? – Carmen pergunta, a
encarando sobre o copo.
– Isso.
Sobre ter que morar aqui durante a semana, sim. Não falei um “a” – ela bebe um
pouco de água, para ajudar aquilo a descer, mas o nó em sua garganta era
causado por um motivo que não envolvia a comida insossa.
–
Ué...
– Ah,
sei lá – Mariana apoia o celular de volta à mesa – Nem sabia se daria certo...
E no fundo, acho que acabaria sendo um problema eu ter que ficar tantos dias
longe de casa... durante meses, ainda por cima! O projeto tem duração de quase
um ano.
– Eita,
mas as suas esposas são tão possessivas assim? Eu, hein... – Carmen balança a
cabeça negativamente – Posta a foto, Mari!
–
Não, não é questão de possessividade... – Mariana resmunga novamente, apoiando
o garfo no prato, puxando de volta o celular. Ficou um tempo em silêncio, enquadrando
a foto no espaço do story.
– É o
quê?
– Não
sei o que pôr de legenda... – Mariana murmura.
–
Não, digo... se não é possessividade, é o que, então? – Carmen quer saber, sorvendo
mais um longo gole de sua bebida – Coloca “Almoço especial de negócios” como
legenda. Soa como se fosse importante.
– Ah,
é que a minha vida é toda lá em São Paulo, né? – Mariana responde, bloqueando a
tela do aparelho com um toque, ao se distrair – Eu sou recém-casada, é
complicado me afastar de casa e só voltar aos fins de semana. Se é que
voltaria, né, amiga? A demanda na TechFuture é intensa e a Simone disse que me
daria carta branca para eu tocar um projeto que fosse do meu gosto... Além dos programas
que ela quer colocar em prática e tal.
–
Como assim, “recém-casada”? – Carmen pergunta, com os olhos brilhando devido ao
teor alcóolico da bebida que consumia – Você não se casou já não tem quase dois
anos?
–
Então, é recente – Mariana dá um sorrisinho junto com a resposta.
–
Cria vergonha nessa cara, Mariana... Na época em que te conheci seus
relacionamentos não duravam nem dois dias – Carmen ri também – Mas tá, ainda
que dois anos seja bastante tempo, especialmente para os seus padrões, você
chegou a conversar sobre isso com a Simone, nas vezes em que se encontraram? –
Carmen faz um gesto para o garçom, pedindo outro drinque.
–
Então, na verdade a gente só se encontrou uma vez – Mariana responde, pegando novamente
o celular. Pareceu se lembrar que ainda não havia postado a bendita foto – As nossas
reuniões foram todas por videochamada e embora eu tenha tentado argumentar em
vários momentos que o trabalho remoto também é eficaz, ela se manteve
irredutível quanto a isso, desde o início. Em momento algum pareceu ser algo
aberto a negociações, na verdade.
–
Sério? – Carmen parecia realmente surpresa – Vocês só se viram uma vez?
– Sim...
– Mariana levanta os ombros, afastando-se do celular de maneira mais
definitiva. Empurrou o aparelho com a ponta dos dedos até deixá-lo completamente
fora de alcance – No começo do processo seletivo eu fui até lá, fizemos uma
reunião no RH da TechFuture.
– E
mesmo assim você conseguiu chegar à etapa final da concorrência? – Carmen faz
um bico, diferente do que havia feito na hora de tirar a foto. Parecia
realmente incrédula com aquela informação – Olha, ela deve ter gostado muito
de você.
–
Como assim?
–
Tinha mais alguma mulher disputando no processo? – Carmen retruca, sem respondê-la
– Ou era só homem? Porque nessa área é cheio de macho, né...
– Olha,
não sei dizer, viu Cacá. Minhas conversas com ela foram sempre reservadas, somente
ela e eu. Inclusive nesse dia em que nos conhecemos, estávamos apenas nós.
Conversamos por cerca de duas horas e fomos almoçar, o tempo todo falando exclusivamente
sobre negócios. Ela não mencionou nada a respeito dos outros concorrentes.
–
Aposto que você era a única mulher. Ela te priorizou por sororidade e, mesmo
por chamada de vídeo, conseguiu cair na tua lábia. Desculpa, não estou
desmerecendo a sua competência, Mari, longe de mim, mas tenho certeza de que
foi exatamente isso que aconteceu.
– Que
lábia? – Mariana pergunta. Não parecia ofendida, embora estivesse um pouco –
Tratamos unicamente sobre assuntos de negócios, não dei nenhuma brecha para
fugirmos disso, em momento algum. Não falei nada a respeito da minha vida
pessoal, nada, nem mesmo mencionei o fato de ser casada com mulher.
–
Deixa ela saber que são duas... – Carmen comenta, com uma risadinha maldosa,
olhando para a aliança dourada na mão esquerda da amiga. Aparentemente, riu de
algo que pensou e que só ela ouviu.
– Que
lábia, Cacá?
– Ah,
esse seu jeito que faz todas as mulheres darem em cima de você, Mari – Carmen
rebate, fugindo do assunto ao pegar seu celular dentro de uma bolsinha
minúscula – Ué, você não me marcou? Cadê a foto? Achei que tinha postado...
–
Postei, mulher... – Mariana se estica para pegar o aparelho – Puta merda, não
acredito que fiz isso!
– É,
não apareceu a notificação aqui...
–
Não, além de não te marcar, eu tive a capacidade de postar na conta errada –
ela vira o celular para a amiga – Em vez de publicar no meu perfil, compartilhei
a foto nos stories da página da minha empresa... – Mariana puxa o
remédio de asma do bolso e aspira três vezes – Não sei o que está acontecendo
comigo ultimamente, ando mais distraída que o normal, como é que pode...
– Ah,
então manda a foto por inbox que eu vou postar por aqui, mesmo. Que foi?
– Carmen questiona, ao ver a careta que a amiga fazia – Não vai me dizer que
suas mulheres viram a foto e já estão criando confusão? Além de possessivas elas
também são ciumentas, é? Como alguém tão livre e liberta como você aguenta uma
vigília dessas, me diz?
– Não,
não... Quer dizer, sim, a Pati estranhamente visualizou a foto, ainda que seja atípico
porque ela deveria estar trabalhando agora, mas não é isso – Mariana volta a
virar a tela na direção de Carmen – A Simone também acabou de ver.
– Que
ótimo, ainda bem que saí bonita – Carmen ri, bebendo seu novo drinque – “Almoço
especial de negócios” – ela ri de novo, agora mais alto, ao repetir a legenda
que ela mesma havia sugerido – Nossa, essa mulher deve estar muito passada!
Quis te punir e se fodeu! Parece que estamos nós duas enchendo a cara no meio
da tarde, tramando uma revolução sem ela. Ou contra ela! – Carmen gargalha.
– É,
agora é que não fico mesmo com a vaga... – Mariana se queixa, cabisbaixa.
Num
primeiro momento ela quase riu, mas manteve-se séria porque este assunto a
aborrecia um bocado. Dificilmente um dia acharia graça por ter perdido a
reunião e consequentemente não ter assinado o contrato com a TechFuture. Desperdiçar
uma chance de ouro de prestar serviço para uma das empresas mais inovadoras do
país era algo bem difícil de ingerir, e mais ainda de rir.
Resignada,
tirou o paletó, revelando na roupa de baixo parte da umidade que seu corpo
projetava de dentro para fora. Deixando o prato de lado, puxou as mangas da
camisa branca até quase os cotovelos e prendeu o cabelo num rabo de cavalo.
–
Olha... – Carmen interrompe a própria fala com um soluço – Vou te dizer que não
me admiraria nada se ela te ligasse agora só por causa disso. Conheço a peça,
ela não gosta de ficar por baixo...
– Até
parece que ver um story a faria me telefon... – Mariana se cala assim
que o celular começa a vibrar em cima da mesa. Ao virar a tela, ergue as duas
sobrancelhas, um pouco em choque – Nossa, a Simone está me ligando!
– Viu
só? – Carmen levanta o copo como se brindasse sozinha – Eu disse! Mulheres são
únicas no mundo, mas ainda assim costumam ser bastante previsíveis – ela ri
alto.
Numa
cena bem clichê, Mariana afrouxa o nó da gravata, que neste momento apertou sua
garganta mais do que em todo o decorrer do dia até ali. Ao atender a ligação, o
nervosismo pareceu se concentrar repentinamente na palma de suas mãos, por isso
as secou na perna da calça jeans, ao pronunciar as primeiras palavras da rápida
conversa.
De um
jeito bastante educado e muito polido, numa ligação breve que durou menos de
três minutos, Simone informou com sua voz aveludada que havia surgido uma
janela em sua agenda, devido a um imprevisto, e que por isso poderia atendê-la
agora, caso Mariana ainda estivesse na cidade. A mulher não mencionou nada a
respeito da foto vista no Instagram, nem Mariana, que até aquele ponto não tinha
revelado conhecer Carmen, ex da empresária.
Durante
todo o tempo em que esteve ao telefone, Mariana reparou que o sorriso da amiga,
sentada do outro lado da mesa, custou a desvanecer de seu rosto. O que quer que
ela estivesse fazendo no celular entretinha e a divertia de um jeito evidente. O
brilho emitido pelo aparelho refletia seu olhar alcoolizado enquanto seus dedos
deslizavam pela tela, ágeis, escrevendo algo que a fazia rir baixinho.
– Amiga,
você me deu sorte – Mariana diz, levantando-se assim que finaliza a ligação –
Se eu conseguir essa vaga, vamos comemorar. Você escolhe o lugar.
–
Combinado, vai dar certo – Carmen se levanta para se despedir dela com um
abraço – Me mantém informada e não esquece que tem mulher que gosta de ser
esnobada, Mari – complementa, sem se referir diretamente às esposas de Mariana.
– É,
parece que sim – ela rebate, interpretando como se a fala tivesse sido dirigida
à Simone – Vou deixar a conta paga, nos vemos em breve, Cacá.
Lá
fora, os faróis dos carros reluziam os últimos raios de sol daquele dia tão
atípico, que começou de um jeito tenso, mas que poderia acabar bem, afinal.
Seguindo
as coordenadas do GPS, Mariana atravessou a cidade de volta à TechFuture e no
caminho ouviu o celular vibrar duas vezes. Preferiu aguardar para ler as
mensagens da esposa porque naquele horário o trânsito já estava carregado,
provavelmente por causa da saída das pessoas do trabalho. Ainda que fosse menor
que São Paulo, Campinas também era capaz de ter engarrafamentos.
Ao
chegar à empresa, Mariana leu as mensagens de Tatiana. A primeira reunia três
linhas de elogios, em resposta à foto enviada mais cedo, na frente do espelho;
a segunda era meia dúzia de palavras que resumiam seu estado físico, depois de
um dia de trabalho sentindo mal-estar. Em nenhum dos textos Tatiana comentou
sobre os motivos que a levaram a se entupir de pão naquela manhã e, por isso,
Mariana também não falou nada a respeito. Na verdade, nem chegou a responder
porque num primeiro momento considerou que depois da conversa com Simone teria
mais assunto para compartilhar com a mulher.
Ao
adentrar na recepção, perto das cinco e meia da tarde, Mariana encontrou apenas
uma das recepcionistas atrás do balcão e a mais simpática das duas pareceu satisfeita
por vê-la novamente ali. Ao contrário de Mariana, que estava diferente, sem o
paletó e com o cabelo preso no alto da cabeça, a secretária mantinha-se
exatamente igual à forma como se apresentava naquela manhã. Não havia absolutamente
nada fora do lugar no uniforme ou em seu penteado meticuloso, carregado de gel,
mesmo depois de tantas horas. Embora humana, a mulher se assemelhava a um robô.
Será que era?
– Oi,
tudo bem? – Mariana a cumprimenta, com um sorriso gentil, equilibrando a
mochila em um dos ombros. Pigarreou antes de continuar – Eu vim falar com a...
–
Doutora Simone – a recepcionista a interrompe e sorri para ela, com o canto da
boca – Sim, a doutora está te esperando. Pode subir, Mariana. Bem-vinda de
volta, décimo terceiro andar – a mulher fala, de um jeito mecânico. Na
sequência entregou um crachá de visitante e liberou sua passagem na catraca
eletrônica.
– Valeu
– Mariana agradece, a encarando por alguns segundos. Parecia ser humana, mesmo,
porque a mulher se ruborizou ao ser observada.
Enquanto
subia os 13 andares, Mariana analisou-se nos vários espelhos à sua volta, ao
puxar de dentro da mochila manchada seu paletó dobrado. O frio dentro da
empresa contrastava com o calor lá de fora, “como se o coração gelado da
proprietária tivesse o poder de contaminar o microclima da corporação inteira”,
ela pensa, vendo a porta do elevador se abrir, assim que terminou de se vestir.
Mariana
sorriu, pois sabia que a culpa para o ambiente ser tão gelado era só do
ar-condicionado, já que o prédio era cheio de computadores. Ao se anunciar para
a secretária exclusiva de Simone, considerou que não era justo tomar a versão de
Carmen como verdade absoluta e assim julgar alguém que mal conhecia. Inclusive
porque a equação Simone + Carmen = erro. As duas eram completamente opostas,
tipo positivo e negativo.
Na
antessala elegante composta pela recepção particular de Simone, nos minutos em
que aguardou ser chamada, Mariana riu lendo o tuíte de Carmen, compartilhado no
perfil do mascote do café gourmet. Pela hora da postagem, foi escrito enquanto ela
estava ao telefone com Simone e dizia: “Pensar em ex é tão amargo quanto o café
da concorrência: só serve para te lembrar porque você mudou! #gurmê #momentecafé
#gurmêsabetude”.
Durante
a espera, Mariana refletiu que os próximos minutos seriam decisivos, capazes de
mudar toda sua história dali em diante, e confortou-se por saber que embora
fosse passar bastante tempo longe de casa, ao menos não estaria sozinha por
ali. Carmen era uma amiga divertida e com certeza seria uma boa companhia em
seus momentos livres. Se é que isso ia existir.
“Eu te
amo muito e preciso que você se cuide”, Mariana escreveu para Tatiana, em
resposta à mensagem anterior da esposa. Soou enigmática, mas ela não percebeu.
–
Mariana? Tudo bem, vamos lá? – uma mulher a chama, apontando para uma porta bem
larga – Muito prazer, me chamo Isadora. Eu sou a assistente executiva da doutora
Simone – ela se apresenta, enquanto caminham por um corredor acarpetado. Se
preocupou em dar um sorriso amigável por cima do ombro, no final da frase.
– Muito
prazer, Isadora. Agradeço por me receber – Mariana responde, logo atrás dela,
sentindo o celular vibrar no bolso de trás da calça.
A
mulher a conduziu até uma sala ampla e iluminada, toda de vidro, emoldurada
pela vista panorâmica da cidade, que começava a se cobrir com a penumbra da
noite. Escurecia cedo em Campinas e Mariana considerou que as luzes combinavam com
o cenário lá fora.
O
ambiente era bem decorado, num estilo moderno e ao mesmo tempo minimalista. No
centro da sala havia uma enorme mesa de madeira escura, provavelmente de design
italiano, muito elegante. Sobre a mesa, apenas um laptop de última geração e
uma caneta chique de prata.
Isadora
não deixou a sala, nem mesmo depois de Mariana e Simone se cumprimentarem com
um breve aperto de mãos. A assistente sentou-se em uma das poltronas de couro
branco dispostas em frente à mesa e pediu um café, quando um funcionário
perguntou o que elas gostariam de beber. Parecia confortável no local, ainda
que o tempo todo mantendo uma postura bastante profissional. Seu comportamento
combinava com o terninho cinza-escuro que vestia.
Atrás
da mesa, às costas de Simone, Mariana observou uma estante de madeira escura
ocupando boa parte da parede, abrigando uma bela coleção de livros sobre
tecnologia, liderança e negócios, intercalados com prêmios e troféus que a
empresária havia recebido ao longo da carreira. Pequenos objetos de arte
contemporânea e esculturas abstratas pareciam estrategicamente posicionados,
conferindo um toque de sofisticação ao ambiente, que tinha um único arranjo de
orquídea, enorme, todo florido, no alto dessa estante.
Na
parede oposta havia um videowall de alta definição, formado por quatro telas
de 98 polegadas. Pelo ângulo, Mariana constatou que o conjunto moderno de TVs era
utilizado para videoconferências. Ou seja, nas reuniões entre as duas, foi por
ali que conversaram e ela se perguntou como ficaria, ao ser reproduzida em tanta
resolução.
– É
um prazer revê-la, Mariana – Simone diz, tão logo as três voltam a ficar a sós.
Ao contrário delas, a empresária optou por beber água com gás, em vez de café –
Pedi para que a Isadora acompanhasse essa conversa porque creio que será definitiva.
Nem eu nem você queremos perder tempo, afinal, e acredito que este encontro
seja o limite para que isso não aconteça, considerando tudo o que já
conversamos.
Isadora
direciona para a chefe um sorriso discreto, iluminado pelo tablet, destravado
com sua digital. O gesto, cúmplice, retribuído por um aceno modesto feito pela
empresária, deixou clara a importância da mulher na TechFuture: ela era o braço
direito de Simone dentro da empresa – e talvez fora também.
– Eu
não tenho tempo a perder nem paciência para desperdiçar – Simone continua, enlaçando
os dedos em volta da caneta prateada, chamando a atenção para suas mãos – Na
TechFuture a Isadora tem o título de assistente, mas sua função é maior do que
isso; ela é quem me representa nos corredores da companhia, de modo que tudo o
que você precisar falar comigo, irá resolver com ela.
A
mulher faz um movimento e Isadora coloca à sua frente três páginas de contrato.
Simone exalava uma autoconfiança que beirava a arrogância e parecia usar aquilo
como um tipo de armadura para atuar no mundo dos negócios. Suas roupas de grife
não aparentavam ter sido escolhidas ao acaso e sim com precisão para transmitir
justamente poder e sofisticação. Tudo, incluindo sua elegante postura,
combinava com sua autoridade, suas paredes de vidro e sua sede empresarial.
O
documento de confidencialidade foi assinado em duas vias, em movimentos
precisos que desenharam uma assinatura absolutamente igual em todas as páginas.
– A
Isadora vai te mostrar sua sala – Simone anuncia, comunicando desta maneira que
Mariana era a mais nova contratada da TechFuture. Com um movimento determinado,
levantou-se, demonstrando que a reunião havia terminado – Espero que possamos
construir um significativo progresso com esta parceria. Seja bem-vinda à
TechFuture – a empresária diz, se despedindo.
Antes
de deixar a sala, porém, Simone estabeleceu um brevíssimo contato visual com
Mariana, que sorriu para Isadora quando ficaram sozinhas. A assistente, parecendo
se desmontar no instante em que se viu afastada da chefe, retribuiu o sorriso e
foi mais enfática no cumprimento.
–
Parabéns, Mariana! Seja muito bem-vinda ao time! – ela exibe um sorriso aberto,
menos informal que o anterior – Aqui é um lugar muito legal para trabalhar,
acredito que você vai gostar bastante – Isadora levanta-se, indicando a porta
para deixarem a sala – Eu pedi para o pessoal te aguardar, tem uma equipe
inteira dedicada aos projetos que você vai coordenar. Vamos lá para eu poder te
apresentar.
–
Grata, estou muito feliz. Eu trabalhei bastante para isso – Mariana empurra os
óculos para mais perto dos olhos, ao seguir Isadora pelo corredor acarpetado,
de volta à antessala da recepção – Confesso que ao longo do dia imaginei que
não daria certo.
– É, também
achei, depois que você não apareceu para a reunião de manhã – Isadora levanta
os ombros ao entrarem no elevador, num movimento bem sutil – Nem sempre sei o
que se passa na cabeça da doutora Simone – complementa, como se dialogasse com
os próprios pensamentos.
–
Então, eu comentei que moro lá em São Paulo...
–
Sim, ela me falou – Isadora a interrompe. As duas descem no quinto andar,
depois que a porta do elevador se abre – Posso te ajudar a ver um lugar para você
morar por aqui, já que trabalho remoto está totalmente fora de cogitação. Mas
você sabe disso, é claro.
–
Sim, eu sei – Mariana responde – Sei sim, é claro.
O
ambiente ali era todo aberto, sem nenhuma parede ou divisória, agrupando as
estações de trabalho num tipo de desordem organizada que lembrava o design de
uma colmeia. As grandes janelas perto do teto estavam tampadas por persianas que
escondiam o exterior enquanto preservavam a parte interna. Quadros brancos
emolduravam o espaço, com esquemas, fluxogramas e desenhos de programação rabiscados.
No centro, as mesas eram ocupadas por computadores de última geração, capazes
de suportar tarefas intensas, acompanhados de monitores duplos e até mesmo
triplos, junto de acessórios ergonômicos como teclados coloridos e mouses
ajustáveis.
O
andar inteiro parecia destinado à sua nova equipe, composta por cerca de 30-35 pessoas
de diferentes idades e aparências diversas. Havia desde recém-formados, na casa
dos 20 e poucos anos, até veteranos experientes aparentando mais de 50. O grupo
era composto por diferentes etnias e gêneros, e os profissionais pareciam
descontraídos, distraídos em conversas que os dividiam em pequenos grupos. Todos,
porém, imediatamente se calaram quando as viram chegar.
–
Pessoal, agradeço que tenham aguardado. Hoje o dia foi um pouquinho diferente
do que programamos, mas no final deu tudo certo – Isadora diz, demonstrando ser
realmente a ponte entre Simone e o restante da empresa. A responsável por suavizar
a comunicação e garantir que a companhia se mantivesse alinhada com as altas
expectativas da CEO ganhou imediatamente a atenção dos presentes, sem precisar
forçar a voz – Gostaria de apresentar a nova líder de projetos, Mariana de
Souza. A partir da próxima segunda-feira daremos início a uma importante fase
da TechFuture e contamos com o apoio e colaboração de todos para que possamos
colher bons frutos dessa nova empreitada – a assistente diz, em tom de
porta-voz.
As
pessoas imediatamente se aproximaram, cumprimentando Mariana com efusivos apertos
de mãos, seguidos de breves apresentações que duraram alguns minutos. Por sorte,
usavam crachá, então não seria difícil memorizar o nome de cada um.
–
Pessoal – Isadora chama, erguendo uma das mãos – Pessoal, só mais uma última
informação – ela aguarda o silêncio completo para então continuar – Como
boas-vindas à nova líder, a TechFuture reservou todas as mesas do Cosmopolitan
para o happy hour de hoje à noite. A empresa vai pagar nossas comandas.
Todos
pareceram bastante satisfeitos com o anúncio e Mariana fingiu estar animada
também, embora não pretendesse esticar a noite antes de conversar com Tatiana e
Patrícia sobre o novo emprego. Se havia alguém no mundo com quem gostaria de
comemorar aquele feito com certeza eram elas, mas para causar uma boa impressão,
não se opôs ao convite. Compareceria apenas para marcar presença, fazer uma
média, um social, e depois voltaria para casa e finalmente conversaria com as esposas.
Na estrada pensaria no melhor jeito de falar que a partir da próxima semana ela
já estaria em novo endereço, ao menos em dias comerciais (provavelmente em algumas
noites de feriados também).
Por
ora, considerou que esta era a sua maior preocupação do momento. Depois veria
como faria para alugar um lugar que fosse perto dali e mais tarde ainda se
viraria para morar sozinha, mesmo sendo casada com duas. Decidiu que resolveria
uma questão de cada vez, até mesmo para evitar de surtar ou correr o risco de
desistir antes de começar.
O lounge
para onde foram era aconchegante e moderno, com uma decoração intimista,
perfeito para happy hours. Pareceu ser um local conhecido dos novos
colegas de trabalho, que demonstraram entrosamento também durante os intervalos
de descontração. Esta seria a primeira vez que Mariana coordenaria um grupo tão
grande e diversos e pensar nisso a animou, em vez de assustá-la.
–
Este bar é um dos preferidos da doutora Simone, embora dificilmente ela
participe desses encontros – Isadora revela, sentando-se ao lado de Mariana –
Aqui tem umas porções vegetarianas incríveis, ela adora.
– Ah,
bom saber – Mariana baixa o cardápio, via QR Code – É sempre tão difícil
encontrar boas opções vegetarianas...
–
Sério que em São Paulo você não encontra? Aqui na cidade tem vários lugares, servem
de tudo.
–
Não, digo... Lá eu encontro fácil porque a minha esposa é chef de restaurante –
Mariana revela, com naturalidade. Estava distraída com o cardápio e não viu a
cara que Isadora fez – Mas aí não conta, né? Eu falo no geral...
– Ah,
sim, entendi! Mas assim fica muito fácil, pô! – Isadora ri. Mas claramente riu
de outra coisa, de algo que pensou e não quis compartilhar – E você é casada há
muito tempo?
– Não,
faz menos de dois anos – Mariana sorri, ao se lembrar do comentário feito por
Carmen, algumas horas atrás – Tem quem ache que é bastante, mas parece pouco
para mim. Eu diria que é super recente.
Propositalmente,
Mariana não menciona o fato de ser casada com duas mulheres, por considerar que
ainda era muito cedo para expor certas intimidades. Embora não costumasse
esconder esse tipo de informação, em partes porque até aquele ponto de sua vida
era dona do próprio nariz, julgou que não faltariam oportunidades nos próximos
meses para falar sobre este e outros detalhes que até ali permaneciam em
segredo.
Isto
é, desde que fosse conveniente e necessário revelar, é claro. O tempo diria.
Mariana
também não disse mais nada porque a mulher parou de perguntar. A assistente se
distraiu em uma conversa com um rapaz de bigode fino e não percebeu que estava
sendo analisada. Assim como a recepcionista da TechFuture, Isadora mantinha-se
impecavelmente em ordem no fim do dia, sua roupa e cabelo, ainda que já estivesse
fora do expediente. Observar isso fez Mariana soltar o rabo de cavalo. E tirar
a gravata e o paletó. Quis deixar explícito que embora fosse trabalhar numa
empresa robotizada, ela era bastante humana.
Mas Isadora
também era, pois se deixou ser flagrada demonstrando surpresa, quando se virou
novamente em direção à Mariana e a viu transformada, quase parecendo outra mulher.
Embora com bastante discrição, deu para ver seu olhar abaixando em direção ao
decote que se abriu em meio aos botões da camisa branca social, já dobrada até
os cotovelos.
– E
você, é casada? – Mariana pergunta, retomando a conversa. Fingiu não perceber a
cena toda e tirou os óculos para limpar as lentes num guardanapo de papel.
–
Não, eu namoro – Isadora responde, parecendo constrangida – Já faz 12 anos, meu
namorado e eu estamos construindo uma casa juntos, essas coisas demoram, sabe
como é...
– Sei
– Mariana diz, mas na verdade não sabia, não.
Um
murmurinho na porta do bar chama a atenção das duas, direcionando seus olhares
até a entrada do estabelecimento. Como se fosse uma celebridade, Simone chegava
num tipo de entrada triunfal, sendo cumprimentada calorosamente pelos membros
da nova equipe de Mariana, a esta altura mais animadinhos, graças ao open
bar.
–
Olha só, hoje teremos a presença ilustre da doutora Simone – Isadora comenta,
sem transparecer em seu rosto se aquilo era bom ou ruim – Você deve ser mesmo
muito especial... – ela complementa, antes de se levantar para cumprimentar a
chefe.
Mariana
observa a cena, refletindo sobre o que aquilo realmente queria dizer. Teria
mesmo conseguido a vaga na TechFuture apenas por ter uma “boa lábia”? Será que
Simone havia reparado em sua aliança de casamento? Acostumada a provavelmente
ter sempre tudo o que deseja, como a empresária reagiria ao descobrir que Mariana
não pretendia trair as esposas? Era sexista pensar assim?
Apesar
de sua inegável beleza, o que mais se destacava na mulher era sua atitude, que
chegou à mesa antes mesmo que Simone se aproximasse. Junto dela veio seu
perfume, de aroma amadeirado. Um cheiro forte de poder.
–
Estava de passagem aqui perto, resolvi dar uma paradinha – ela diz, em tom de
cumprimento – Vejo que já está se integrando – Simone sorri para Isadora, que
chama o garçom, sem que a chefe tivesse pedido nada, como se fosse acostumada a
antecipar seus desejos, mesmo fora do escritório.
– É,
eu também não pretendo me demorar muito – Mariana vira o pulso para consultar
as horas. Com um toque no relógio, viu que havia duas mensagens não lidas de
Tatiana, mas não pegou o celular para ver – A Isadora estava me contando que as
porções vegetarianas daqui são boas, né? Vou ter que provar antes de pegar
estrada.
– São
as melhores – Simone pisca demoradamente ao responder, de um jeito meio afetado.
Mariana
deu razão à afirmação depois que experimentou o melhor bolinho de brócolis que
já tinha comido na vida. O petisco foi servido quentinho, pouco depois de Simone
chegar, como se além de ser sempre bem servida, a empresária fosse também
sempre paparicada nos lugares por onde andava. Bom trabalho, Isadora!
A
passagem de Simone pelo Cosmopolitan foi realmente muito breve, no diminutivo,
como ela mesma disse que seria. Se chegou a 15 minutos foi muito, mas Mariana
achou bom porque assim não teria motivos para prolongar muito mais sua presença
no bar.
Em
outros tempos, estaria confraternizando e se enturmando, preferencialmente
bebendo junto com os colegas, para conhecê-los melhor e se deixar ser conhecida,
mas logo de manhã ela já havia marcado um compromisso inadiável com Patrícia e
Tatiana, na cama delas. Tratava-se de um evento importantíssimo, prioritário, impossível
de ser cancelado.
Para
quem nem imaginava ir a um happy hour, depois de um dia inteiro
acreditando que tudo estava perdido, Mariana não apenas foi como fez uma boa média
com a nova equipe. Não pagou a conta, mas pelos próximos dias seria associada à
noite regada a álcool, graças ao patrocínio da TechFuture. Julgou se tratar de
um bom começo.
Na
volta para casa ficou refletindo a respeito de tudo o que tinha vivido naquela sexta-feira
tão atípica e ao mesmo tempo especial. Avançando sozinha pela rodovia escura, mesmo
sóbria, sem ter ingerido nenhuma gota de álcool ao longo do dia, Mariana sentia-se
impregnada com o cheiro do lounge, que agora parecia ser o aroma desta
nova etapa de sua vida. Enquanto dirigia, com as músicas de Tatiana servindo de
companhia, evitou pensar se realmente havia alguma segunda intenção por parte
de Simone ao contratá-la porque primeiro que não tinha como saber, e segundo
porque antes era preciso lidar com outras questões, muito mais urgentes. “Uma
coisa de cada vez”, pensou.
Não
que Tatiana ou Patrícia fossem tentar impedi-la de ir atrás de seus sonhos, não
era essa sua ressalva; mas Mariana compreendia que, assim como ela, as esposas também
não tinham se preparado nem se programado para enfrentar uma situação do tipo, envolvendo
uma separação forçada que as manteria afastadas em quase todos os dias da
semana, ao longo dos próximos meses. Ela precisaria de tato, portanto, para
conduzir essa conversa tão importante, se tinha mesmo em mente fechar a noite
comemorando com as esposas. Inclusive porque embora se assemelhasse a uma
bomba, o que levava para casa eram boas novidades. Tortas, mas ainda assim
positivas.
Quando
parou no segundo pedágio, respondeu as mensagens de Tatiana, que mais cedo
havia questionado se ela estava bem e se ainda ia demorar a voltar. Mariana foi
breve ao escrever que já estava na estrada e ficou satisfeita por encontrar a
mulher junto de Patrícia, logo que chegou em casa, 1h15 depois de enviar sua
resposta, ou 2h25 após se despedir da equipe da TechFuture.
Ao ver
as duas na sala, teve a impressão de que as mulheres estavam brigando, mas sentia-se
tão cansada que preferiu não perguntar.
– Oi,
meus amores – ela dá um beijo em Patrícia e outro em Tatiana – Que bom encontrá-las
juntas. A gente precisa conversar.
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