TPM - Capítulo 2: A reunião

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Nos últimos dois meses, praticamente toda a vida profissional de Mariana esteve às voltas numa negociação importante; num tipo de transação com o poder de mudar completamente o rumo de sua carreira, do jeito que ela sempre sonhou. Isso a fez mudar sua rotina, delegando para as duas funcionárias as demandas menores, assumindo para si toda a responsabilidade do projeto que estava arquitetando. Há pelo menos 60 dias, portanto, trabalhava absolutamente focada para que o contrato com a TechFuture fosse assinado porque o esquema todo era muito perfeito. Ou quase perfeito.

Antes mesmo de se formar em Tecnologia da Informação em uma faculdade de elite da zona sul, como bolsista do Prouni, Mariana tinha em mente o objetivo para seus dias, se possível, em curto prazo: pretendia trabalhar para uma multinacional desenvolvendo projetos inovadores e audaciosos, capazes de otimizar processos antiquados que não combinavam com o avanço da ciência da computação dos dias atuais. Algo que lhe renderia bastante fama e, principalmente, muito dinheiro. Pura utopia para quem vive dominada e rendida pelas regras do capitalismo, mas durante um bom tempo foi o que a salvou de não desistir do curso.

As aulas em si até que eram interessantes, mas Mariana morria de preguiça do fã-clube. Seus colegas de turma eram quase todos bastante desagradáveis, do tipo pedantes, filhinhos de papai.

 Depois, quando já estava inserida no mercado de trabalho, de posse de todo o seu conhecimento, Mariana percebeu que para concretizar seus planos seria mais fácil se antes tornasse seu nome conhecido na área. A duras penas, descobriu que para ganhar dinheiro era preciso primeiro ganhar dinheiro. Dito de outra forma, para alçar grandes voos, antes era necessário sobrevoar os boletos que têm o potencial de podar asas e sonhos, se a gente não ficar esperta. Isso a levou a abrir sua própria empresa, que agora já contabilizava quase cinco anos de atuação, contribuindo com o mundo com projetos simples de TI. Trabalhar sem patrão foi sua solução para sobreviver à vida adulta.

E tudo era tranquilo e estável em sua pacata rotina trabalhista até que um dia desses, nesses acasos inesperados da vida, Mariana reencontrou uma antiga colega de faculdade. Foi Carmen quem “cantou a bola” a respeito de uma empresa no interior que procurava no ramo alguém exatamente como ela. Ou alguém exatamente como ela pretendia ser, pelo menos, alguns anos atrás.  

Não que o tempo tivesse corroído seus sonhos, mas é fato que com o passar dos anos, Mariana se acomodou em seu cotidiano. O que vivia atualmente não era nada parecido com o que havia um dia almejado, mas ao menos lhe garantia todas as contas pagas, um bom carro do ano e certa estabilidade financeira que a permitia até desfrutar de algumas extravagâncias e regalias, por exemplo, ser casada com duas mulheres, algo que despendia uma boa grana.

Entretanto, encontrar Carmen numa cafeteria a fez voltar praticamente ao seu ponto de origem, quando ainda fantasiava em realmente poder fazer alguma diferença, por menor que fosse, no mundo em que habitava, através de sua profissão. Por isso se candidatou à vaga e se dedicou àquilo que considerou como a “proposta de sua vida”, porque de alguma forma era, de fato, uma possibilidade que alteraria sua carreira, inclusive no sentido de levá-la posteriormente a outro patamar, que no futuro abriria portas que hoje permaneciam inacessíveis para ela. Por tudo isso, desde o primeiro instante, Mariana se empenhou para fechar o contrato, ainda que compreendesse o que realmente estava em jogo com tudo aquilo.

Isso consumiu seus dias de trabalho e consequentemente afetou suas noites de sono, que passaram a ser mal dormidas por causa da ansiedade. A impressão que tinha é que quanto mais perto ficava de conseguir o que desejava, mais tensa se sentia, como não poderia deixar de ser. À vista disso, mesmo rendida pelo cansaço, quando se deitava no meio da madrugada, lutava para dormir e isso a afastava da cama nas noites seguintes, pois tinha receio de atrapalhar o descanso de Patrícia e Tatiana, que nada sabiam do que se passava com ela. 

Assim foi ao longo das últimas semanas. Mariana atravessou os dias (e noites!) sustentada por café e tomada por uma sincera inquietação, se esforçando a todo custo, até o final, para reverter o último detalhe da negociação com Simone Albuquerque Peixoto Gama, a dona da TechFuture, uma mulher autoritária e um tanto quanto impassível em suas deliberações. E ainda que estivesse absolutamente focada na reunião que aconteceria naquela sexta-feira, determinante para acertarem os detalhes conclusivos e finalmente assinarem o contrato, quando enfim chegou o dia, Mariana teve a incrível capacidade de se atrasar pela manhã.

Quer dizer, o problema nem foi perder a hora, exatamente. A questão é que ela se esqueceu, mesmo. Se confundiu, achou que era quarta quando foi dormir na quinta e, ao acordar na sexta, alheia às responsabilidades e excitada por causa de um sonho erótico, não foi capaz de se lembrar que aquele era um dia decisivo. Como se de algum jeito, inconscientemente, nem quisesse que nada daquilo desse certo.

Ao perceber seu erro durante o café, Mariana quis compartilhar com as esposas tudo o que estava acontecendo e tudo o que estava prestes a acontecer. De verdade, ela sentiu vontade de dividir com as duas cada uma de suas angústias e preocupações, tão contrastantes com a proposta incrível de trabalho que estava disposta a encarar. Se é que aceitaria, de fato, uma vez que naquela manhã, pela primeira vez, considerou recusar o que ela mesma foi atrás para negociar. O sonho molhado daquela noite tinha uma enorme parcela de peso nisso.

O problema é que as mulheres andavam em pé de guerra, desde que Tatiana decidiu fazer um curso que deixava Patrícia enciumada. As mulheres vinham se estranhando nos momentos de interação, geralmente durante as refeições, quando as três se reuniam na privacidade do lar. Isso tornou o momento inoportuno para Mariana partilhar com elas os pormenores de ter que alterar sua vida no trabalho. Que não eram meros detalhes, considerando que afetaria também sua rotina dentro de casa. A rotina das três, se bem observado.

Só por isso Mariana não disse nada. Também porque não tinha como sequer prever se a toda poderosa dona da TechFuture aceitaria encontrá-la em horário fora da reunião anteriormente agendada. Caso não a recebesse tudo estaria perdido e, num primeiro momento, Mariana considerou que não valia o desgaste de jogar na roda um assunto que no fim não daria em nada, então se calou. Outro motivo foi que, ao contrário dela, Patrícia e Tatiana tinham acordado no horário, dispostas a saírem de casa bem cedinho, sem que houvesse tempo para conversas mais demoradas.

Por tudo isso, e porque realmente não havia muito o que fazer, depois do desjejum, Mariana despediu-se das mulheres como se fosse apenas mais uma manhã normal, comum, e foi se arrumar para tentar contato com a dona da empresa de tecnologia, que ficava distante vários quilômetros dali. Tentaria falar com a empresária nem que fosse através de um esbarrão propositalmente acidental no elevador, por exemplo. Aí, se não resultasse mesmo em nada, depois ela diria às esposas sobre tudo que quase rolou.

Provavelmente esse seria o desfecho deste capítulo, já que Simone tinha demonstrado bem, em todas as conversas que tiveram, o tipo de mulher que era, então Mariana se deslocaria até a outra cidade apenas para desencargo de consciência, mesmo; só para depois não se acusar de não ter ao menos tentado, já que sabia que dificilmente teria algum tipo de êxito na empreitada. Arriscaria, portanto. Se conseguiria algo com isso, aí já era outra história.  

Depois de tomar banho, embora estivesse com pressa, cuidou de lavar a louça suja do café da manhã, antes de sequer cogitar sair de casa. Sentia-se inteiramente responsável por essa tarefa, uma vez que Patrícia cozinhava e Tatiana era quem ia ao mercado. De alguma forma, manter a pia limpa era um gesto de carinho e também uma maneira de sentir-se útil dentro da dinâmica do trisal. Era igualmente um bom método para agradar as esposas, que antigamente decidiam no par ou ímpar quem assumiria a função depois de cada refeição.

Na sequência, quando ainda estava na garagem de casa, fez a primeira tentativa de contato com a TechFuture. Telefonou para o escritório de Simone e somente após vários minutos ouvindo uma musiquinha de espera chata é que conseguiu contato com a secretária, impassível diante de sua tentativa de conseguir algum encaixe na disputada agenda da chefe dela, claramente uma ocupada mulher de negócios. Mariana até se deu ao trabalho de tentar xavecá-la, numa fala toda mansa e educada, mas foi em vão.

Ainda teve alguns segundos para considerar se valia mesmo a pena dirigir até tão longe só para “quebrar a cara”, mas uma vez que tinha decidido ir, colocou o cinto e foi. Ou quase isso: o portão de casa já estava todo arreganhado, mas Mariana precisou voltar ao se tocar que aquele não era seu carro e que ela estava sem a bombinha de asma no bolso (e sem a reserva no porta-luvas também). Já tinha acontecido algumas vezes de sair despreparada e precisar se medicar no caminho, mas não foi nada que obviamente a tenha matado. Ainda assim, preferiu buscar o remédio porque já estava nervosa o suficiente e considerou que não precisava de novos motivos para se pilhar mais.

Depois de finalmente sair, enquanto trafegava pela Marginal curtindo a playlist de músicas nacionais que a esposa gostava de escutar, Mariana tentou contato com a empresa novamente, agora esforçando-se para conseguir pelo menos falar com Simone – por telefone, mesmo. Mas a secretária não deu nenhuma brecha nem para que ela falasse com a assistente da empresária, logo, fracassou mais uma vez.

Quando pegou a saída para a rodovia 348, sentido interior, alguns minutos depois, Mariana tinha quase certeza de que sua missão seria absolutamente frustrada naquele dia. Mas seguiu adiante, pois se encaminhar até a outra cidade era o que podia fazer no momento e porque o retorno era muito longe de onde estava, não compensaria mais voltar. E também considerou que, afinal, não há petisco sem risco – não é assim que diz o ditado? O máximo que poderia acontecer seria chegar lá e ter que voltar.

– O “não” eu já tenho, agora só falta ir atrás da humilhação – Mariana resmunga, pensando em voz alta, ao parar o veículo na cabine do primeiro dos dois pedágios que pagaria para chegar em Campinas. Ainda encontrava-se relativamente perto de casa, mais do que estava da empresa, mas considerou que já havia se distanciado o suficiente para não desistir – É minha última tentativa – murmurou, se encorajando a avançar.

Antes de seguir viagem, enquanto aguardava o atendimento, observou no letreiro do pedágio o nome da funcionária: Carmen. Ao devolver o troco, a mulher lhe desejou “boa sorte”, ao invés de “boa viagem”, e Mariana interpretou o equívoco como se fosse um sinal.

Na troca de marchas, ao deixar a praça de pedágio para trás, deu o comando para o celular ligar para sua amiga Carmen. O aparelho, preso em um suporte no painel do carro, piscou a tela com a foto do trisal antes de completar a ligação, mas Mariana não reparou porque mantinha-se atenta ao tráfego da estrada.

– Oi, Mari – Carmen atende, sonolenta, em tom de “alô” – E aí, já chegou? Como é que foi, está tudo bem?

– Oi, Cacá! Bom dia. Ai, menina, deu tudo errado antes mesmo de dar certo... – Mariana desabafa, estabilizando a velocidade no limite máximo permitido na Rodovia dos Bandeirantes: 120km/h.

– Mentira, amiga! O que aconteceu?

Mariana explica os motivos para ainda estar na estrada, já se valendo da desculpa sugerida por Tatiana para justificar seu atraso na reunião: para todos os efeitos, o que a fez perder a hora para o compromisso agendado foi o rodízio de carros em São Paulo, não sua mente perturbada, que a confundiu quanto aos dias da semana. Da forma como falou, incluindo a entonação escolhida, pareceu muito que estava falando a verdade. Tanto que ela mesma quase acreditou na versão narrada. Carmen também, já que Mariana pôde ouvir pelo viva-voz um suspiro de decepção do outro lado da linha, emitido por sua interlocutora.

– Tá, mas e aí? E agora, o que tem em mente? – Carmen pergunta, depois de ouvir em silêncio o relato de Mariana – Você vai tentar a sorte e ir até a TechFuture, ainda que fora do horário? E se a Simone não te atender mesmo assim? Porque provavelmente é isso que vai acontecer, você sabe, né?

– Sim... Aí eu volto para casa, ué. Paciência, vida que segue... – Mariana retruca, amuada. Não havia mesmo muito o que fazer, caso este fosse o desfecho.

– Claro que não! – a mulher rebate, imediatamente – Você já vai estar na cidade, vamos pelo menos almoçar para fazer valer a sua viagem até aqui. Conheço um restaurante vegano que tenho certeza de que você vai gostar!

– Tá, beleza. Eu vou até lá, monto acampamento na recepção da TechFuture até a fome me cansar mais do que a espera. Aí, antes de retornar a São Paulo, te envio uma mensagem para a gente se encontrar e almoçar.

– Perfeito, Mari. Vou torcer para que consiga falar com a abençoada tão logo você chegar lá. Desejo boa sorte e espero o seu contato mais tarde.

– Combinado, Cacá. Um beijo e até logo.

Mariana aspirou o remédio de asma de maneira automática e seguiu viagem sentindo-se um pouco menos angustiada, não apenas por considerar que almoçar num restaurante vegano consolaria seu coração, além do estômago, mas principalmente por acreditar que nada há de ser por acaso nessa vida. Durante as últimas semanas inteiras atuou intensivamente para fazer a negociação com Simone e sua empresa dar certo, afinal, queria muito o trabalho, mas se manter nos moldes de sempre não era algo que ela abominasse. Ao contrário; só assim teria a oportunidade de continuar desfrutando integralmente da agradável companhia de duas mulheres que aceitaram se casar com ela quase dois anos atrás, contando que isso incluía as três morarem juntas, todos os dias da semana – e as noites também.

Pensar em Patrícia e Tatiana a fez sorrir, como sempre acontecia, o que a levou a se lembrar mais uma vez do sonho que a incendiou naquela noite, a fazendo acordar completamente acesa, em chamas. Uma vez que sua ida a outra cidade não resultaria em nada, quando voltasse para casa mais tarde, já livre do peso que a afligia há vários dias nas últimas semanas, sem dúvida colocaria em prática os movimentos sugeridos enquanto dormia e perdia a hora para o seu compromisso super importante daquela manhã. Em alta velocidade, Mariana se ajeitou no banco com o pé cravado no acelerador para desviar da costura dura de sua calça jeans, que pressionava em cima da região que voltou a ficar sensível diante da lembrança.

O cheiro de Tatiana impregnado no estofado de seu automóvel tornou praticamente impossível expulsar por completo os pensamentos libidinosos porque, embora o mundo inteiro lá fora parecesse apenas um borrão, dentro do carro o perfume da mulher fez contrair todo o seu universo particular, evocando sentimentos sinceros, genuínos e profundos. Cada partícula de ar perfumada parecia estar carregada de memórias eróticas que serviam como um lembrete excitante da intimidade delas, de um jeito tão real que era como se Tatiana estivesse ali, apesar de sua ausência.

Isso transformou o trajeto de pouco mais de cem quilômetros em uma quase declaração silenciosa de amor, só que sonorizada pela sinfonia contínua provocada pelo atrito dos pneus com o asfalto que corria ligeiro embaixo dela. Em dado momento, Mariana sentiu-se aconchegada em um refúgio quentinho de amor que contrastava inteiramente com a pressa fria observada no mundo exterior.

Ela levou exatamente duas horas e 25 minutos da garagem de sua casa até a frente do enorme portão da TechFuture, cercado por grades e câmeras de segurança. Chegou com quase 3h de atraso para sua reunião (mais ou menos) do jeitinho que havia programado: maquiada, bem vestida e penteada. Igualzinho uma profissional comprometida, sem nenhum problema com o calendário.

– Oi, bom dia. Eu vim falar com a Simone Albuquerque Peixoto Gama – Mariana diz, em tom de pergunta, empurrando a armação dos óculos para cima do nariz enquanto o tom de sua fala foi diminuindo de volume no final. Ela dirigiu-se a uma das moças sentadas atrás do balcão lustroso da recepção e imediatamente percebeu que teria tido mais sucesso se tivesse falado com a outra, que sorriu ao vê-la – Meu nome é Mariana. De Souza – ela se apressa em dizer.

Mariana equilibrava em um dos ombros a alça de uma mochila borrada de tinta azul, que Tatiana pretendia jogar no lixo depois de manchá-la sem querer, mas ela impediu. Além do detalhe colorido, a mochila destoava completamente de seu traje social, mas ela não dava mostras de se importar nem um pouco com isso.

– Você tem horário marcado? – a secretária questiona, não sem antes encarar, de maneira demorada e um tanto teatral, a recepcionista sentada ao seu lado– Não vejo nenhum compromisso interno agendado para agora – ela completa, depois de digitar alguma coisa e puxar em seguida a manga da camisa para olhar o relógio preso em seu pulso. Seus movimentos foram dissimulados e liberaram o aroma de um perfume extremamente doce e enjoativo, mas Mariana fez de conta que não reparou.

– Sim, é que na verdade a nossa reunião estava marcada para 8h da manhã, mas eu... Bom, me atrasei, enfim, aí vim até aqui para ver se ela pode me atender agora, em novo horário – Mariana fala, batendo de leve com a mão no bolso, para se certificar de que a bombinha de asma estava ali.

– Acho bem improvável – a mulher rebate, falando cada sílaba bem devagar enquanto puxava o telefone do gancho. Pela breve conversa que se seguiu na sequência, num tom absurdamente baixo e particular, ela pareceu contatar a secretária de Simone, alguns andares acima de onde se encontravam.

– Está tendo uma obra bem na entrada da cidade, né? – a segunda recepcionista comenta, em tom amigável.

– Pois é, menina, está um horror – Mariana responde, sem fazer ideia do que a mulher estava falando – Fiquei um tempão parada, atrasou todos os meus compromissos – ela mente, em complemento à fala anterior.

– É, eu também me atrasei por causa disso. Quer dizer, ontem. Hoje precisei sair mais cedo de casa para não acontecer de novo... Ainda estava escuro quando peguei o ônibus de manhã – ela diz, sem no entanto acrescentar mais nada, pois logo sua colega desligou o telefone.

– Foi você que ligou aqui mais cedo, né? – a primeira recepcionista então pergunta, sem dar tempo para Mariana responder – A secretária da doutora Simone acabou de dizer, ao me informar que não existe a menor chance de você ser atendida hoje... – ela revela, parecendo satisfeita por fazer tal anúncio – ...mas ainda assim também disse que, se você quiser, pode aguardar aqui no salão. Caso surja algum imprevisto que possa, quem sabe, abrir uma janela na agenda da doutora Simone, ela pode te atender. Mas não é nada garantido – a mulher finaliza, apontando para o sofá próximo à porta.

– Tá bom... Eu vou aguardar, sim, grata – Mariana diz e sorri apenas para a recepcionista que revelou ter madrugado só para chegar ao trabalho no horário. Para a outra, reservou apenas um breve aceno com a cabeça.

Acomodando-se na recepção, no cantinho do sofá que ficava embaixo do ar-condicionado, Mariana apoia a mochila manchada de tinta sobre as pernas, para se aquecer naquele ambiente gelado. Observando o entra e sai de funcionários, muitos aparentando serem bem mais novos do que ela, refletiu que caso soubesse antes que havia impedimentos na estrada, poderia ter usado isso como desculpa para seu atraso naquela manhã. Seria mais coerente se justificar com uma questão local e real a atribuir a algo tão distante da realidade de quem vivia por ali, como a recepcionista, por exemplo, e a própria Simone, que se ocupava de muitas coisas, exceto com placas de carro e dias de rodízio.

Isso a levou a analisar que a distância entre as duas cidades era suficiente para algo assim acontecer, como se tratasse de dois mundos distintos que rodavam no universo de maneira paralela. Mas sobre este detalhe especificamente, Mariana preferiu não pensar a respeito. Provavelmente porque a análise serviria apenas para comprovar o quão difícil seria trabalhar em um lugar, morando em outro. “Talvez não conseguir o que eu queira seja, no fim, algo bom”, ela pensa, se consolando ao sentir a pele arrepiada debaixo do paletó.

“Você não tinha como saber de nada disso quando acordou”, Tatiana responde, depois que Mariana relata o que havia acontecido até ali, incluindo a obra que interditava uma entrada da cidade que ela sequer transitou. Por mensagem, a esposa a confortou pela espera que Mariana teria que enfrentar pelas próximas horas e em poucas palavras desejou boa sorte, mais uma vez, num áudio cheio de ruído, antes de voltar para a aula.

Tatiana era uma mulher especial, certamente teria sido sua aliada na discussão com Patrícia, caso Mariana tivesse conseguido a vaga que esteve tão próxima, mas que ainda assim lhe escapou. Sim, porque antes mesmo de tomar um belo chá de cadeira que não aquecia nem distraía naquela recepção tão fria, ela já considerava tudo como perdido. Só não disse nada para a esposa, em sua breve troca de mensagens, porque temia se distrair com o celular e acabar perdendo Simone de vista, caso ela passasse pelo saguão.

Isso a manteve em alerta nas primeiras duas horas. Mentalmente, foi e voltou de São Paulo, revisitou brevemente o sonho erótico e se enfiou em seu escritório para trabalhar. De olho na saída do elevador, traçou na cabeça estratégias para atrair clientes, fechar negócios diferentes e prosperar. Buscaria no mercado novas propostas, aproveitaria que estava com o portfólio em dia e que com essa história de participar da concorrência na TechFuture tinha até criado uma conta para sua firma numa rede social. Perdera a chance ali, mas havia outras portas para bater, afinal.

Claro que, depois desta experiência, daria preferência a locais mais próximos de sua casa. Se daria ao luxo de escolher viver junto com as esposas bem de perto, agora que sabia como se sentia mal só de ter que pensar em morar em outro lugar, longe delas. Porque esta era a imposição absoluta de Simone para que Mariana ficasse com a vaga: aquele era um contrato de trabalho presencial.

Decepcionada, quando seu estômago começou a roncar, passadas três longas e inúteis horas de espera, Mariana finalmente chegou à conclusão de que não existe emprego dos sonhos se o trabalho em questão tem o poder de tirar o sono. E a TechFuture vinha lhe roubando preciosos e merecidos momentos de descanso, na cama mais perfumada de todo o Brasil. Pensar nisso foi o que a encorajou a se levantar, e ela não havia saído dali nem mesmo para ir ao banheiro!

Antes de deixar o salão, fez um movimento com a mão, como um aceno, se despedindo da recepcionista simpática. Da mesma forma que Mariana não tirou os olhos do elevador durante todo o tempo em que permaneceu ali, na tentativa de contatar Simone, a secretária não parou de encará-la, por motivos que só ela própria sabia.

Lá fora, momentaneamente esquecida de que precisava ir ao banheiro, Mariana mandou uma mensagem de WhatsApp para Carmen, que respondeu com as coordenadas de um dos únicos locais que ainda estava servindo almoço, considerando o horário avançado. No interior paulista, passou das três da tarde já vira uma luta para encontrar algum restaurante aberto.

– Patrícia se beneficiaria muito de um esquema assim – Mariana diz. Foi a primeira coisa que falou, ao encontrar a amiga no restaurante todo de vidro, localizado numa esquina bonita, bem arborizada. Não era a opção vegana prometida por Carmen, mas já do lado de fora pareceu ser uma boa substituição – Minha esposa trabalha no restaurante o dia inteiro, entra de manhã e sai só à noite. Lá tem duas equipes que se revezam na cozinha, porque teoricamente O Bistrô só fecha depois do jantar, e ela cobre os dois turnos.

– Que bonitinha, casadinha – foi a resposta de Carmen, a abraçando. Não pareceu ironia, mas foi.

Ao entrarem no restaurante, escolheram um lugar próximo ao bar, nos fundos do estabelecimento, embora as mesas disponíveis perto da sacada fossem melhores, por serem mais iluminadas. Todas estavam disponíveis por conta da hora, o salão estava praticamente vazio, mas Mariana não quis ser indelicada e sugerir de trocarem, pois sabia bem como era amanhecer na sexta-feira já de ressaca.

– Eu preciso muito, muito ir ao banheiro – ela resmunga, sem condições de se sentar – Passei horas na recepção daquela empresa, não fiz nem xix...

– É só virar ali, ó – Carmen interrompe, apontando com o dedo. Na sequência, fez um gesto para o garçom, pedindo o cardápio.

Banheiros inevitavelmente sempre faziam Mariana pensar em Tatiana, especialista em lugares assim. Por isso, já aliviada, tirou uma foto no espelho após lavar as mãos e enviou para a esposa. Só para uma porque Patrícia não tinha o hábito de olhar o celular durante o expediente, então nem perdeu tempo. Na imagem, escreveu uma legenda que dizia: “Ambiente 10/10, tem até chocolatinho de brinde”.

Ao retornar para a mesa, Carmen já estava na companhia de um drinque bem colorido e lhe direcionou um sorriso como se só agora a estivesse vendo. Ou como se o álcool fosse o responsável por fornecer sua dose diária de simpatia social.

– Tá, agora me conta – Carmen diz, sorrindo também com os olhos, por trás do canudo de sua bebida – Aí você colou na TechFuture e ficou várias horas de castigo, esperando a misericórdia da Simone em te atender e mesmo assim ela te deu balão.

– É... – Mariana resmunga, acomodando-se na cadeira ao puxar o cardápio – Fiquei lá à toa, morrendo de fome, com a bexiga cheíssima... – ela tira os óculos para limpar as lentes. A princípio, pareceu que os preços no menu estavam errados, mas era aquilo mesmo. Uma garrafa de água custava R$ 32,90!  

– Ai, esse aqui é o modelo 18? – Carmen pergunta, puxando o celular de Mariana de cima da mesa.

– É, a Pati inventou de querer me dar de presente no Natal, mesmo eu pedindo para ela não fazer isso... Vivo perdendo as coisas, mas ela é teimosa... deu mesmo assim.

– Que luxo, eu vi que a câmera desse modelo é a melhor da série. Tira uma foto minha, bem blogueirinha, vai – Carmen emenda as frases, falando rápido, armando um biquinho no final.

– Tá, dá um sorriso, Cacá – Mariana emoldura a amiga na tela do celular, não se preocupando com o fato de estar sem óculos porque a câmera era boa mesmo. Embaçada era apenas a sua vista míope.

– Não, Mari, mandar beijinho é o novo sorriso! Não seja cringe, amiga.

– Mas a imagem só sai bem enquadrada quando a pessoa fotografada mostra os dentes – ela tira a foto, acionando o botão, assim que a outra sorri para ela – Não falei?

– Que boba, deixa eu ver – Carmen se olha na imagem congelada – É, a câmera é muito boa mesmo! Olha, nem dá para ver minhas rugas... – ela amplia a foto, para se ver melhor – Adorei, fiquei gata!

– Que rugas, amiga? Você está ótima, deixa disso.

– Sim, você também, com essa gravata. Aposto que chamou a atenção lá na empresa da Simone – Carmen rebate, devolvendo o aparelho – Acha que já era mesmo? Sua chance na TechFuture? – ela complementa, depois de um curto gole em seu drinque.

– Acredito que sim e você? – Mariana agradece ao garçom pela água deixada à sua frente.

– Olha, como eu te disse, a Simone e eu namoramos um tempo super curto, mas foi tudo muito intenso, sabe como é – Carmen beberica um pouco, aguardando o garçom se afastar, após servir a entrada, composta por petiscos enfileirados em uma tábua decorada – Tanto que eu nem quis me candidatar à vaga, só por isso. Seria uma ótima maneira de voltar ao mercado, mas...

– Sei... Como anda sua vida de “celebridade do café”, por falar nisso? – Mariana questiona, fingindo satisfação por estar bebendo água. Sua vontade no momento era se embebedar, assim como Carmen. Sentia-se frustrada, talvez o álcool a consolasse um pouco, mas como precisaria dirigir em breve, manteve-se sóbria.

– Olha, vou te dizer que ser influencer nunca foi minha meta, ainda mais nesses moldes, né? – ela ri. Carmen era a responsável pela conta no Twitter do mascote de uma marca de café gourmet, conhecido por ser politicamente incorreto, chamado Gurmê. O famoso Cacá Gurmê, um personagem não binário, conhecido graças à criatividade de Carmen, que se comunicava na rede com palavras neutras – Mas é ótimo, me divirto bastante, trabalho pouco e ganho muito bem. Esses dias quase fui parar no programa da Ana Maria, me convidaram para interagir com o Louro.

– Uau, que encontro – Mariana ri também, servindo-se dos petiscos como se fossem almoço.

– É, mas no fim não rolou. A produção do programa não tankou minha postagem comemorando a descriminalização da maconha pelo STF...

– Ah, eu vi esse tuíte! Uma foto do grãozinho de óculos escuros, fumando um baseado maior que ele – as duas riem – E não pega nada com a empresa? O pessoal do Café Andorinha não se importa com os seus posicionamentos políticos e polêmicos?

– Como se importariam, Mari, se gero um puta engajamento para a marca? – Carmen rebate, virando os olhos – Até eu assumir a conta, a participação da empresa no mercado e nas redes era irrisória. Hoje é a principal escolha dos consumidores, principalmente entre os mais jovens. A galera adora uma polêmica.

– Isso é verdade... – Mariana resmunga, pensativa. Talvez a amiga pudesse ajudá-la com a página de sua empresa, que contabilizava menos de 300 seguidores até o momento. Isso a levou a desbloquear o celular e mudar de conta, ao entrar no Instagram.

– Mas, assim, eu tenho total ciência de que essas coisas são passageiras, sabe? Então, aproveito ao máximo porque amanhã ou depois minha rotina pode mudar completamente. Afinal, o sucesso na internet é meteórico e acaba tão rápido quanto começa.

– Sim, mais ou menos como a minha trajetória na TechFuture. Ou não, né? Já que meu sucesso lá terminou antes mesmo de começar... – Mariana se lamenta, deixando o celular de lado ao ver o garçom trazer seu almoço. Estava faminta!

– Foda, amiga... – Carmen desvia o olhar ao encarar o próprio copo, mas rapidamente volta-se para Mariana – O fato da Simone ter te deixado plantada na recepção depois de você ter faltado à reunião é a cara dela. Acho que te fez perder parte do seu dia como vingança, porque ainda que seja talentosíssima, é uma das mulheres mais ardilosas que já conheci. Uma pena, né? A gente teria muito o que fazer, as noites por aqui são incríveis, têm de tudo – ela bebe mais de seu drinque, de maneira generosa – Me manda aí a foto que você tirou, eu vou postar. Ou melhor, posta você e me marca, Mari! Para parecer que também sou uma mulher diurna.

– É, aposto que a gente teria mesmo muito o que fazer... Sabe que eu nem comentei nada lá em casa? – Mariana resmunga, de boca cheia, ao pegar o celular.  

A comida ali não era boa e ela ficou alguns segundos segurando o aparelho, esquecida do que ia fazer. Em pensamento, se alertou para depois procurar na internet a avaliação do restaurante e compartilhar com Patrícia, que gostava desse tipo de coisa. Também tiraria uma foto do menu, para a esposa analisar os valores exorbitantes do lugar.

Mariana ficou momentaneamente reflexiva porque sabia que, caso fosse solteira, Carmen seria sua melhor opção de companhia na cidade. E, assim como a amiga, se a vida fosse outra ela provavelmente também estaria enchendo a cara, em plena sexta-feira à tarde.

– O que, não comentou sobre a vaga na TechFuture, você diz? – Carmen pergunta, a encarando sobre o copo.

– Isso. Sobre ter que morar aqui durante a semana, sim. Não falei um “a” – ela bebe um pouco de água, para ajudar aquilo a descer, mas o nó em sua garganta era causado por um motivo que não envolvia a comida insossa.

– Ué...

– Ah, sei lá – Mariana apoia o celular de volta à mesa – Nem sabia se daria certo... E no fundo, acho que acabaria sendo um problema eu ter que ficar tantos dias longe de casa... durante meses, ainda por cima! O projeto tem duração de quase um ano.

– Eita, mas as suas esposas são tão possessivas assim? Eu, hein... – Carmen balança a cabeça negativamente – Posta a foto, Mari!

– Não, não é questão de possessividade... – Mariana resmunga novamente, apoiando o garfo no prato, puxando de volta o celular. Ficou um tempo em silêncio, enquadrando a foto no espaço do story.

– É o quê?

– Não sei o que pôr de legenda... – Mariana murmura.

– Não, digo... se não é possessividade, é o que, então? – Carmen quer saber, sorvendo mais um longo gole de sua bebida – Coloca “Almoço especial de negócios” como legenda. Soa como se fosse importante.

– Ah, é que a minha vida é toda lá em São Paulo, né? – Mariana responde, bloqueando a tela do aparelho com um toque, ao se distrair – Eu sou recém-casada, é complicado me afastar de casa e só voltar aos fins de semana. Se é que voltaria, né, amiga? A demanda na TechFuture é intensa e a Simone disse que me daria carta branca para eu tocar um projeto que fosse do meu gosto... Além dos programas que ela quer colocar em prática e tal.

– Como assim, “recém-casada”? – Carmen pergunta, com os olhos brilhando devido ao teor alcóolico da bebida que consumia – Você não se casou já não tem quase dois anos?

– Então, é recente – Mariana dá um sorrisinho junto com a resposta.

– Cria vergonha nessa cara, Mariana... Na época em que te conheci seus relacionamentos não duravam nem dois dias – Carmen ri também – Mas tá, ainda que dois anos seja bastante tempo, especialmente para os seus padrões, você chegou a conversar sobre isso com a Simone, nas vezes em que se encontraram? – Carmen faz um gesto para o garçom, pedindo outro drinque.

– Então, na verdade a gente só se encontrou uma vez – Mariana responde, pegando novamente o celular. Pareceu se lembrar que ainda não havia postado a bendita foto – As nossas reuniões foram todas por videochamada e embora eu tenha tentado argumentar em vários momentos que o trabalho remoto também é eficaz, ela se manteve irredutível quanto a isso, desde o início. Em momento algum pareceu ser algo aberto a negociações, na verdade.

– Sério? – Carmen parecia realmente surpresa – Vocês só se viram uma vez?

– Sim... – Mariana levanta os ombros, afastando-se do celular de maneira mais definitiva. Empurrou o aparelho com a ponta dos dedos até deixá-lo completamente fora de alcance – No começo do processo seletivo eu fui até lá, fizemos uma reunião no RH da TechFuture.

– E mesmo assim você conseguiu chegar à etapa final da concorrência? – Carmen faz um bico, diferente do que havia feito na hora de tirar a foto. Parecia realmente incrédula com aquela informação – Olha, ela deve ter gostado muito de você.

– Como assim?

– Tinha mais alguma mulher disputando no processo? – Carmen retruca, sem respondê-la – Ou era só homem? Porque nessa área é cheio de macho, né...

– Olha, não sei dizer, viu Cacá. Minhas conversas com ela foram sempre reservadas, somente ela e eu. Inclusive nesse dia em que nos conhecemos, estávamos apenas nós. Conversamos por cerca de duas horas e fomos almoçar, o tempo todo falando exclusivamente sobre negócios. Ela não mencionou nada a respeito dos outros concorrentes.

– Aposto que você era a única mulher. Ela te priorizou por sororidade e, mesmo por chamada de vídeo, conseguiu cair na tua lábia. Desculpa, não estou desmerecendo a sua competência, Mari, longe de mim, mas tenho certeza de que foi exatamente isso que aconteceu.

– Que lábia? – Mariana pergunta. Não parecia ofendida, embora estivesse um pouco – Tratamos unicamente sobre assuntos de negócios, não dei nenhuma brecha para fugirmos disso, em momento algum. Não falei nada a respeito da minha vida pessoal, nada, nem mesmo mencionei o fato de ser casada com mulher.

– Deixa ela saber que são duas... – Carmen comenta, com uma risadinha maldosa, olhando para a aliança dourada na mão esquerda da amiga. Aparentemente, riu de algo que pensou e que só ela ouviu.

– Que lábia, Cacá?

– Ah, esse seu jeito que faz todas as mulheres darem em cima de você, Mari – Carmen rebate, fugindo do assunto ao pegar seu celular dentro de uma bolsinha minúscula – Ué, você não me marcou? Cadê a foto? Achei que tinha postado...

– Postei, mulher... – Mariana se estica para pegar o aparelho – Puta merda, não acredito que fiz isso!

– É, não apareceu a notificação aqui...

– Não, além de não te marcar, eu tive a capacidade de postar na conta errada – ela vira o celular para a amiga – Em vez de publicar no meu perfil, compartilhei a foto nos stories da página da minha empresa... – Mariana puxa o remédio de asma do bolso e aspira três vezes – Não sei o que está acontecendo comigo ultimamente, ando mais distraída que o normal, como é que pode...

– Ah, então manda a foto por inbox que eu vou postar por aqui, mesmo. Que foi? – Carmen questiona, ao ver a careta que a amiga fazia – Não vai me dizer que suas mulheres viram a foto e já estão criando confusão? Além de possessivas elas também são ciumentas, é? Como alguém tão livre e liberta como você aguenta uma vigília dessas, me diz?

– Não, não... Quer dizer, sim, a Pati estranhamente visualizou a foto, ainda que seja atípico porque ela deveria estar trabalhando agora, mas não é isso – Mariana volta a virar a tela na direção de Carmen – A Simone também acabou de ver.

– Que ótimo, ainda bem que saí bonita – Carmen ri, bebendo seu novo drinque – “Almoço especial de negócios” – ela ri de novo, agora mais alto, ao repetir a legenda que ela mesma havia sugerido – Nossa, essa mulher deve estar muito passada! Quis te punir e se fodeu! Parece que estamos nós duas enchendo a cara no meio da tarde, tramando uma revolução sem ela. Ou contra ela! – Carmen gargalha.

– É, agora é que não fico mesmo com a vaga... – Mariana se queixa, cabisbaixa.

Num primeiro momento ela quase riu, mas manteve-se séria porque este assunto a aborrecia um bocado. Dificilmente um dia acharia graça por ter perdido a reunião e consequentemente não ter assinado o contrato com a TechFuture. Desperdiçar uma chance de ouro de prestar serviço para uma das empresas mais inovadoras do país era algo bem difícil de ingerir, e mais ainda de rir.

Resignada, tirou o paletó, revelando na roupa de baixo parte da umidade que seu corpo projetava de dentro para fora. Deixando o prato de lado, puxou as mangas da camisa branca até quase os cotovelos e prendeu o cabelo num rabo de cavalo.

– Olha... – Carmen interrompe a própria fala com um soluço – Vou te dizer que não me admiraria nada se ela te ligasse agora só por causa disso. Conheço a peça, ela não gosta de ficar por baixo...

– Até parece que ver um story a faria me telefon... – Mariana se cala assim que o celular começa a vibrar em cima da mesa. Ao virar a tela, ergue as duas sobrancelhas, um pouco em choque – Nossa, a Simone está me ligando!

– Viu só? – Carmen levanta o copo como se brindasse sozinha – Eu disse! Mulheres são únicas no mundo, mas ainda assim costumam ser bastante previsíveis – ela ri alto.

Numa cena bem clichê, Mariana afrouxa o nó da gravata, que neste momento apertou sua garganta mais do que em todo o decorrer do dia até ali. Ao atender a ligação, o nervosismo pareceu se concentrar repentinamente na palma de suas mãos, por isso as secou na perna da calça jeans, ao pronunciar as primeiras palavras da rápida conversa.

De um jeito bastante educado e muito polido, numa ligação breve que durou menos de três minutos, Simone informou com sua voz aveludada que havia surgido uma janela em sua agenda, devido a um imprevisto, e que por isso poderia atendê-la agora, caso Mariana ainda estivesse na cidade. A mulher não mencionou nada a respeito da foto vista no Instagram, nem Mariana, que até aquele ponto não tinha revelado conhecer Carmen, ex da empresária.

Durante todo o tempo em que esteve ao telefone, Mariana reparou que o sorriso da amiga, sentada do outro lado da mesa, custou a desvanecer de seu rosto. O que quer que ela estivesse fazendo no celular entretinha e a divertia de um jeito evidente. O brilho emitido pelo aparelho refletia seu olhar alcoolizado enquanto seus dedos deslizavam pela tela, ágeis, escrevendo algo que a fazia rir baixinho.

– Amiga, você me deu sorte – Mariana diz, levantando-se assim que finaliza a ligação – Se eu conseguir essa vaga, vamos comemorar. Você escolhe o lugar.

– Combinado, vai dar certo – Carmen se levanta para se despedir dela com um abraço – Me mantém informada e não esquece que tem mulher que gosta de ser esnobada, Mari – complementa, sem se referir diretamente às esposas de Mariana.

– É, parece que sim – ela rebate, interpretando como se a fala tivesse sido dirigida à Simone – Vou deixar a conta paga, nos vemos em breve, Cacá.

Lá fora, os faróis dos carros reluziam os últimos raios de sol daquele dia tão atípico, que começou de um jeito tenso, mas que poderia acabar bem, afinal.

Seguindo as coordenadas do GPS, Mariana atravessou a cidade de volta à TechFuture e no caminho ouviu o celular vibrar duas vezes. Preferiu aguardar para ler as mensagens da esposa porque naquele horário o trânsito já estava carregado, provavelmente por causa da saída das pessoas do trabalho. Ainda que fosse menor que São Paulo, Campinas também era capaz de ter engarrafamentos.

Ao chegar à empresa, Mariana leu as mensagens de Tatiana. A primeira reunia três linhas de elogios, em resposta à foto enviada mais cedo, na frente do espelho; a segunda era meia dúzia de palavras que resumiam seu estado físico, depois de um dia de trabalho sentindo mal-estar. Em nenhum dos textos Tatiana comentou sobre os motivos que a levaram a se entupir de pão naquela manhã e, por isso, Mariana também não falou nada a respeito. Na verdade, nem chegou a responder porque num primeiro momento considerou que depois da conversa com Simone teria mais assunto para compartilhar com a mulher.

Ao adentrar na recepção, perto das cinco e meia da tarde, Mariana encontrou apenas uma das recepcionistas atrás do balcão e a mais simpática das duas pareceu satisfeita por vê-la novamente ali. Ao contrário de Mariana, que estava diferente, sem o paletó e com o cabelo preso no alto da cabeça, a secretária mantinha-se exatamente igual à forma como se apresentava naquela manhã. Não havia absolutamente nada fora do lugar no uniforme ou em seu penteado meticuloso, carregado de gel, mesmo depois de tantas horas. Embora humana, a mulher se assemelhava a um robô. Será que era?

– Oi, tudo bem? – Mariana a cumprimenta, com um sorriso gentil, equilibrando a mochila em um dos ombros. Pigarreou antes de continuar – Eu vim falar com a...

– Doutora Simone – a recepcionista a interrompe e sorri para ela, com o canto da boca – Sim, a doutora está te esperando. Pode subir, Mariana. Bem-vinda de volta, décimo terceiro andar – a mulher fala, de um jeito mecânico. Na sequência entregou um crachá de visitante e liberou sua passagem na catraca eletrônica.

– Valeu – Mariana agradece, a encarando por alguns segundos. Parecia ser humana, mesmo, porque a mulher se ruborizou ao ser observada. 

Enquanto subia os 13 andares, Mariana analisou-se nos vários espelhos à sua volta, ao puxar de dentro da mochila manchada seu paletó dobrado. O frio dentro da empresa contrastava com o calor lá de fora, “como se o coração gelado da proprietária tivesse o poder de contaminar o microclima da corporação inteira”, ela pensa, vendo a porta do elevador se abrir, assim que terminou de se vestir.

Mariana sorriu, pois sabia que a culpa para o ambiente ser tão gelado era só do ar-condicionado, já que o prédio era cheio de computadores. Ao se anunciar para a secretária exclusiva de Simone, considerou que não era justo tomar a versão de Carmen como verdade absoluta e assim julgar alguém que mal conhecia. Inclusive porque a equação Simone + Carmen = erro. As duas eram completamente opostas, tipo positivo e negativo.

Na antessala elegante composta pela recepção particular de Simone, nos minutos em que aguardou ser chamada, Mariana riu lendo o tuíte de Carmen, compartilhado no perfil do mascote do café gourmet. Pela hora da postagem, foi escrito enquanto ela estava ao telefone com Simone e dizia: “Pensar em ex é tão amargo quanto o café da concorrência: só serve para te lembrar porque você mudou! #gurmê #momentecafé #gurmêsabetude”.

Durante a espera, Mariana refletiu que os próximos minutos seriam decisivos, capazes de mudar toda sua história dali em diante, e confortou-se por saber que embora fosse passar bastante tempo longe de casa, ao menos não estaria sozinha por ali. Carmen era uma amiga divertida e com certeza seria uma boa companhia em seus momentos livres. Se é que isso ia existir.

“Eu te amo muito e preciso que você se cuide”, Mariana escreveu para Tatiana, em resposta à mensagem anterior da esposa. Soou enigmática, mas ela não percebeu.

– Mariana? Tudo bem, vamos lá? – uma mulher a chama, apontando para uma porta bem larga – Muito prazer, me chamo Isadora. Eu sou a assistente executiva da doutora Simone – ela se apresenta, enquanto caminham por um corredor acarpetado. Se preocupou em dar um sorriso amigável por cima do ombro, no final da frase.

– Muito prazer, Isadora. Agradeço por me receber – Mariana responde, logo atrás dela, sentindo o celular vibrar no bolso de trás da calça.

A mulher a conduziu até uma sala ampla e iluminada, toda de vidro, emoldurada pela vista panorâmica da cidade, que começava a se cobrir com a penumbra da noite. Escurecia cedo em Campinas e Mariana considerou que as luzes combinavam com o cenário lá fora.

O ambiente era bem decorado, num estilo moderno e ao mesmo tempo minimalista. No centro da sala havia uma enorme mesa de madeira escura, provavelmente de design italiano, muito elegante. Sobre a mesa, apenas um laptop de última geração e uma caneta chique de prata.

Isadora não deixou a sala, nem mesmo depois de Mariana e Simone se cumprimentarem com um breve aperto de mãos. A assistente sentou-se em uma das poltronas de couro branco dispostas em frente à mesa e pediu um café, quando um funcionário perguntou o que elas gostariam de beber. Parecia confortável no local, ainda que o tempo todo mantendo uma postura bastante profissional. Seu comportamento combinava com o terninho cinza-escuro que vestia.

Atrás da mesa, às costas de Simone, Mariana observou uma estante de madeira escura ocupando boa parte da parede, abrigando uma bela coleção de livros sobre tecnologia, liderança e negócios, intercalados com prêmios e troféus que a empresária havia recebido ao longo da carreira. Pequenos objetos de arte contemporânea e esculturas abstratas pareciam estrategicamente posicionados, conferindo um toque de sofisticação ao ambiente, que tinha um único arranjo de orquídea, enorme, todo florido, no alto dessa estante.

Na parede oposta havia um videowall de alta definição, formado por quatro telas de 98 polegadas. Pelo ângulo, Mariana constatou que o conjunto moderno de TVs era utilizado para videoconferências. Ou seja, nas reuniões entre as duas, foi por ali que conversaram e ela se perguntou como ficaria, ao ser reproduzida em tanta resolução.

– É um prazer revê-la, Mariana – Simone diz, tão logo as três voltam a ficar a sós. Ao contrário delas, a empresária optou por beber água com gás, em vez de café – Pedi para que a Isadora acompanhasse essa conversa porque creio que será definitiva. Nem eu nem você queremos perder tempo, afinal, e acredito que este encontro seja o limite para que isso não aconteça, considerando tudo o que já conversamos.

Isadora direciona para a chefe um sorriso discreto, iluminado pelo tablet, destravado com sua digital. O gesto, cúmplice, retribuído por um aceno modesto feito pela empresária, deixou clara a importância da mulher na TechFuture: ela era o braço direito de Simone dentro da empresa – e talvez fora também.

– Eu não tenho tempo a perder nem paciência para desperdiçar – Simone continua, enlaçando os dedos em volta da caneta prateada, chamando a atenção para suas mãos – Na TechFuture a Isadora tem o título de assistente, mas sua função é maior do que isso; ela é quem me representa nos corredores da companhia, de modo que tudo o que você precisar falar comigo, irá resolver com ela.

A mulher faz um movimento e Isadora coloca à sua frente três páginas de contrato. Simone exalava uma autoconfiança que beirava a arrogância e parecia usar aquilo como um tipo de armadura para atuar no mundo dos negócios. Suas roupas de grife não aparentavam ter sido escolhidas ao acaso e sim com precisão para transmitir justamente poder e sofisticação. Tudo, incluindo sua elegante postura, combinava com sua autoridade, suas paredes de vidro e sua sede empresarial.

O documento de confidencialidade foi assinado em duas vias, em movimentos precisos que desenharam uma assinatura absolutamente igual em todas as páginas.

– A Isadora vai te mostrar sua sala – Simone anuncia, comunicando desta maneira que Mariana era a mais nova contratada da TechFuture. Com um movimento determinado, levantou-se, demonstrando que a reunião havia terminado – Espero que possamos construir um significativo progresso com esta parceria. Seja bem-vinda à TechFuture – a empresária diz, se despedindo.

Antes de deixar a sala, porém, Simone estabeleceu um brevíssimo contato visual com Mariana, que sorriu para Isadora quando ficaram sozinhas. A assistente, parecendo se desmontar no instante em que se viu afastada da chefe, retribuiu o sorriso e foi mais enfática no cumprimento.

– Parabéns, Mariana! Seja muito bem-vinda ao time! – ela exibe um sorriso aberto, menos informal que o anterior – Aqui é um lugar muito legal para trabalhar, acredito que você vai gostar bastante – Isadora levanta-se, indicando a porta para deixarem a sala – Eu pedi para o pessoal te aguardar, tem uma equipe inteira dedicada aos projetos que você vai coordenar. Vamos lá para eu poder te apresentar.

– Grata, estou muito feliz. Eu trabalhei bastante para isso – Mariana empurra os óculos para mais perto dos olhos, ao seguir Isadora pelo corredor acarpetado, de volta à antessala da recepção – Confesso que ao longo do dia imaginei que não daria certo.

– É, também achei, depois que você não apareceu para a reunião de manhã – Isadora levanta os ombros ao entrarem no elevador, num movimento bem sutil – Nem sempre sei o que se passa na cabeça da doutora Simone – complementa, como se dialogasse com os próprios pensamentos.

– Então, eu comentei que moro lá em São Paulo...

– Sim, ela me falou – Isadora a interrompe. As duas descem no quinto andar, depois que a porta do elevador se abre – Posso te ajudar a ver um lugar para você morar por aqui, já que trabalho remoto está totalmente fora de cogitação. Mas você sabe disso, é claro.

– Sim, eu sei – Mariana responde – Sei sim, é claro.

O ambiente ali era todo aberto, sem nenhuma parede ou divisória, agrupando as estações de trabalho num tipo de desordem organizada que lembrava o design de uma colmeia. As grandes janelas perto do teto estavam tampadas por persianas que escondiam o exterior enquanto preservavam a parte interna. Quadros brancos emolduravam o espaço, com esquemas, fluxogramas e desenhos de programação rabiscados. No centro, as mesas eram ocupadas por computadores de última geração, capazes de suportar tarefas intensas, acompanhados de monitores duplos e até mesmo triplos, junto de acessórios ergonômicos como teclados coloridos e mouses ajustáveis.

O andar inteiro parecia destinado à sua nova equipe, composta por cerca de 30-35 pessoas de diferentes idades e aparências diversas. Havia desde recém-formados, na casa dos 20 e poucos anos, até veteranos experientes aparentando mais de 50. O grupo era composto por diferentes etnias e gêneros, e os profissionais pareciam descontraídos, distraídos em conversas que os dividiam em pequenos grupos. Todos, porém, imediatamente se calaram quando as viram chegar.

– Pessoal, agradeço que tenham aguardado. Hoje o dia foi um pouquinho diferente do que programamos, mas no final deu tudo certo – Isadora diz, demonstrando ser realmente a ponte entre Simone e o restante da empresa. A responsável por suavizar a comunicação e garantir que a companhia se mantivesse alinhada com as altas expectativas da CEO ganhou imediatamente a atenção dos presentes, sem precisar forçar a voz – Gostaria de apresentar a nova líder de projetos, Mariana de Souza. A partir da próxima segunda-feira daremos início a uma importante fase da TechFuture e contamos com o apoio e colaboração de todos para que possamos colher bons frutos dessa nova empreitada – a assistente diz, em tom de porta-voz.

As pessoas imediatamente se aproximaram, cumprimentando Mariana com efusivos apertos de mãos, seguidos de breves apresentações que duraram alguns minutos. Por sorte, usavam crachá, então não seria difícil memorizar o nome de cada um.

– Pessoal – Isadora chama, erguendo uma das mãos – Pessoal, só mais uma última informação – ela aguarda o silêncio completo para então continuar – Como boas-vindas à nova líder, a TechFuture reservou todas as mesas do Cosmopolitan para o happy hour de hoje à noite. A empresa vai pagar nossas comandas.

Todos pareceram bastante satisfeitos com o anúncio e Mariana fingiu estar animada também, embora não pretendesse esticar a noite antes de conversar com Tatiana e Patrícia sobre o novo emprego. Se havia alguém no mundo com quem gostaria de comemorar aquele feito com certeza eram elas, mas para causar uma boa impressão, não se opôs ao convite. Compareceria apenas para marcar presença, fazer uma média, um social, e depois voltaria para casa e finalmente conversaria com as esposas. Na estrada pensaria no melhor jeito de falar que a partir da próxima semana ela já estaria em novo endereço, ao menos em dias comerciais (provavelmente em algumas noites de feriados também).

Por ora, considerou que esta era a sua maior preocupação do momento. Depois veria como faria para alugar um lugar que fosse perto dali e mais tarde ainda se viraria para morar sozinha, mesmo sendo casada com duas. Decidiu que resolveria uma questão de cada vez, até mesmo para evitar de surtar ou correr o risco de desistir antes de começar.

O lounge para onde foram era aconchegante e moderno, com uma decoração intimista, perfeito para happy hours. Pareceu ser um local conhecido dos novos colegas de trabalho, que demonstraram entrosamento também durante os intervalos de descontração. Esta seria a primeira vez que Mariana coordenaria um grupo tão grande e diversos e pensar nisso a animou, em vez de assustá-la.

– Este bar é um dos preferidos da doutora Simone, embora dificilmente ela participe desses encontros – Isadora revela, sentando-se ao lado de Mariana – Aqui tem umas porções vegetarianas incríveis, ela adora.

– Ah, bom saber – Mariana baixa o cardápio, via QR Code – É sempre tão difícil encontrar boas opções vegetarianas...

– Sério que em São Paulo você não encontra? Aqui na cidade tem vários lugares, servem de tudo.

– Não, digo... Lá eu encontro fácil porque a minha esposa é chef de restaurante – Mariana revela, com naturalidade. Estava distraída com o cardápio e não viu a cara que Isadora fez – Mas aí não conta, né? Eu falo no geral...

– Ah, sim, entendi! Mas assim fica muito fácil, pô! – Isadora ri. Mas claramente riu de outra coisa, de algo que pensou e não quis compartilhar – E você é casada há muito tempo?

– Não, faz menos de dois anos – Mariana sorri, ao se lembrar do comentário feito por Carmen, algumas horas atrás – Tem quem ache que é bastante, mas parece pouco para mim. Eu diria que é super recente.

Propositalmente, Mariana não menciona o fato de ser casada com duas mulheres, por considerar que ainda era muito cedo para expor certas intimidades. Embora não costumasse esconder esse tipo de informação, em partes porque até aquele ponto de sua vida era dona do próprio nariz, julgou que não faltariam oportunidades nos próximos meses para falar sobre este e outros detalhes que até ali permaneciam em segredo.

Isto é, desde que fosse conveniente e necessário revelar, é claro. O tempo diria.

Mariana também não disse mais nada porque a mulher parou de perguntar. A assistente se distraiu em uma conversa com um rapaz de bigode fino e não percebeu que estava sendo analisada. Assim como a recepcionista da TechFuture, Isadora mantinha-se impecavelmente em ordem no fim do dia, sua roupa e cabelo, ainda que já estivesse fora do expediente. Observar isso fez Mariana soltar o rabo de cavalo. E tirar a gravata e o paletó. Quis deixar explícito que embora fosse trabalhar numa empresa robotizada, ela era bastante humana.

Mas Isadora também era, pois se deixou ser flagrada demonstrando surpresa, quando se virou novamente em direção à Mariana e a viu transformada, quase parecendo outra mulher. Embora com bastante discrição, deu para ver seu olhar abaixando em direção ao decote que se abriu em meio aos botões da camisa branca social, já dobrada até os cotovelos.

– E você, é casada? – Mariana pergunta, retomando a conversa. Fingiu não perceber a cena toda e tirou os óculos para limpar as lentes num guardanapo de papel.

– Não, eu namoro – Isadora responde, parecendo constrangida – Já faz 12 anos, meu namorado e eu estamos construindo uma casa juntos, essas coisas demoram, sabe como é...

– Sei – Mariana diz, mas na verdade não sabia, não.

Um murmurinho na porta do bar chama a atenção das duas, direcionando seus olhares até a entrada do estabelecimento. Como se fosse uma celebridade, Simone chegava num tipo de entrada triunfal, sendo cumprimentada calorosamente pelos membros da nova equipe de Mariana, a esta altura mais animadinhos, graças ao open bar.

– Olha só, hoje teremos a presença ilustre da doutora Simone – Isadora comenta, sem transparecer em seu rosto se aquilo era bom ou ruim – Você deve ser mesmo muito especial... – ela complementa, antes de se levantar para cumprimentar a chefe.

Mariana observa a cena, refletindo sobre o que aquilo realmente queria dizer. Teria mesmo conseguido a vaga na TechFuture apenas por ter uma “boa lábia”? Será que Simone havia reparado em sua aliança de casamento? Acostumada a provavelmente ter sempre tudo o que deseja, como a empresária reagiria ao descobrir que Mariana não pretendia trair as esposas? Era sexista pensar assim?

Apesar de sua inegável beleza, o que mais se destacava na mulher era sua atitude, que chegou à mesa antes mesmo que Simone se aproximasse. Junto dela veio seu perfume, de aroma amadeirado. Um cheiro forte de poder.

– Estava de passagem aqui perto, resolvi dar uma paradinha – ela diz, em tom de cumprimento – Vejo que já está se integrando – Simone sorri para Isadora, que chama o garçom, sem que a chefe tivesse pedido nada, como se fosse acostumada a antecipar seus desejos, mesmo fora do escritório.

– É, eu também não pretendo me demorar muito – Mariana vira o pulso para consultar as horas. Com um toque no relógio, viu que havia duas mensagens não lidas de Tatiana, mas não pegou o celular para ver – A Isadora estava me contando que as porções vegetarianas daqui são boas, né? Vou ter que provar antes de pegar estrada.

– São as melhores – Simone pisca demoradamente ao responder, de um jeito meio afetado.

Mariana deu razão à afirmação depois que experimentou o melhor bolinho de brócolis que já tinha comido na vida. O petisco foi servido quentinho, pouco depois de Simone chegar, como se além de ser sempre bem servida, a empresária fosse também sempre paparicada nos lugares por onde andava. Bom trabalho, Isadora!

A passagem de Simone pelo Cosmopolitan foi realmente muito breve, no diminutivo, como ela mesma disse que seria. Se chegou a 15 minutos foi muito, mas Mariana achou bom porque assim não teria motivos para prolongar muito mais sua presença no bar.

Em outros tempos, estaria confraternizando e se enturmando, preferencialmente bebendo junto com os colegas, para conhecê-los melhor e se deixar ser conhecida, mas logo de manhã ela já havia marcado um compromisso inadiável com Patrícia e Tatiana, na cama delas. Tratava-se de um evento importantíssimo, prioritário, impossível de ser cancelado.

Para quem nem imaginava ir a um happy hour, depois de um dia inteiro acreditando que tudo estava perdido, Mariana não apenas foi como fez uma boa média com a nova equipe. Não pagou a conta, mas pelos próximos dias seria associada à noite regada a álcool, graças ao patrocínio da TechFuture. Julgou se tratar de um bom começo.

Na volta para casa ficou refletindo a respeito de tudo o que tinha vivido naquela sexta-feira tão atípica e ao mesmo tempo especial. Avançando sozinha pela rodovia escura, mesmo sóbria, sem ter ingerido nenhuma gota de álcool ao longo do dia, Mariana sentia-se impregnada com o cheiro do lounge, que agora parecia ser o aroma desta nova etapa de sua vida. Enquanto dirigia, com as músicas de Tatiana servindo de companhia, evitou pensar se realmente havia alguma segunda intenção por parte de Simone ao contratá-la porque primeiro que não tinha como saber, e segundo porque antes era preciso lidar com outras questões, muito mais urgentes. “Uma coisa de cada vez”, pensou.

Não que Tatiana ou Patrícia fossem tentar impedi-la de ir atrás de seus sonhos, não era essa sua ressalva; mas Mariana compreendia que, assim como ela, as esposas também não tinham se preparado nem se programado para enfrentar uma situação do tipo, envolvendo uma separação forçada que as manteria afastadas em quase todos os dias da semana, ao longo dos próximos meses. Ela precisaria de tato, portanto, para conduzir essa conversa tão importante, se tinha mesmo em mente fechar a noite comemorando com as esposas. Inclusive porque embora se assemelhasse a uma bomba, o que levava para casa eram boas novidades. Tortas, mas ainda assim positivas.

Quando parou no segundo pedágio, respondeu as mensagens de Tatiana, que mais cedo havia questionado se ela estava bem e se ainda ia demorar a voltar. Mariana foi breve ao escrever que já estava na estrada e ficou satisfeita por encontrar a mulher junto de Patrícia, logo que chegou em casa, 1h15 depois de enviar sua resposta, ou 2h25 após se despedir da equipe da TechFuture.

Ao ver as duas na sala, teve a impressão de que as mulheres estavam brigando, mas sentia-se tão cansada que preferiu não perguntar.

– Oi, meus amores – ela dá um beijo em Patrícia e outro em Tatiana – Que bom encontrá-las juntas. A gente precisa conversar.


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