TPM - Capítulo 3: O curso

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“O mar transforma o marinheiro, mas eu nem sei nadar” foi o primeiro pensamento que ocorreu à Tatiana naquela noite. Veio assim, de supetão, provavelmente porque mais cedo cantou com os alunos a música “Marinheiro só”, do Caetano Veloso. Estava com a mente atulhada, ou em estado de choque, não soube dizer. Sem condições de analisar o que sentia ou julgar aquilo que pensava, num primeiro momento buscou se ancorar no presente, com a cena à sua volta.

Mariana estava linda, apesar de ter acabado de jogar uma bomba no meio da sala de estar, em plena sexta-feira à noite, sem nem anunciar. Seu rosto demonstrava cansaço, mas sua aparência meio selvagem, com o cabelo despenteado, amenizava o peso do que quer que tivesse enfrentado ao longo daquele dia. Cheirava a álcool e cigarro, como se recém-saída de um bar. Equilibrava a mochila em um dos ombros e segurava a alça manchada com as duas mãos, como se também procurasse por uma âncora. Ou como se pretendesse correr e fugir.

Patrícia, por outro lado, mantinha a boca entreaberta, parecendo prestes a explodir. Mas embora o gesto gritasse muito, ela mesma não disse em nada enquanto seu rosto foi ficando vermelho. A mulher era linda, mesmo zangada. Assim como a outra esposa, também demonstrava cansaço em seu semblante. Não por acaso, considerando que na noite anterior tinha ido se deitar bem tarde.

“Ô, marinheiro, marinheiro (marinheiro só)”.

– Eu não sei o que dizer – Patrícia então balbuciou, como se fosse preciso revelar o óbvio – Não sei... nem o que pensar...

“Ô, quem te ensinou a nadar? (marinheiro só)”.

– É só por uns meses – Mariana rebateu, tentando amenizar.

“Ou foi o tombo do navio (marinheiro, só)”.

– Mesmo que fosse apenas por uma semana – Patrícia rosnou.

“Ou foi o balanço do mar (marinheiro, só)”.

– Gente, vamos... – Tatiana finalmente diz, levantando uma das mãos, porém incapaz de concluir a própria frase.

“Lá vem, lá vem (marinheiro só)”.

Tatiana considerava-se uma mulher tranquila. Bom, ao menos desde o momento em que se convenceu, ainda menina, de que com equilíbrio e planejamento poderia chegar longe na vida. Isso a levou a mais tarde adotar uma postura sempre calma diante dos eventos, comuns a todas as pessoas, desastrosos para a maioria delas justamente devido à falta de preparo.

Com o tempo, aprendeu a talhar o poder de evitar reações exageradas ou dramáticas demais ante algum dilema – que acontece! A vida é sobe e desce, não tem jeito. Isso fez com que se tornasse muito discreta no dia a dia, às vezes quase invisível de tão branda. Ponderada é a palavra. Tatiana avaliava-se como extremamente ponderada.

Isso estava longe de ser um problema. Na verdade, encarava até como qualidade. Era casada com Patrícia, afinal, uma mulher que sabia ser bastante visceral, capaz de explosões épicas e estrondosas – sempre na intimidade reservada de seu lar, é verdade, mas com potencial de detonar um quarteirão inteiro mesmo assim. Era válido conseguir ser a responsável por balancear as emoções na relação que Tatiana sempre quis que fosse de longo prazo, desde o início.

O problema é que ela tinha a sincera impressão de que só por causa disso a vida o tempo todo a testava, como se quisesse verificar a solidez de sua postura, dizendo: “ah, é? Não vai se estressar, não, é? Então toma isso aqui! E mais isso!”. Como agora: dedo no cu e gritaria, mas de um jeito frustrante.

Claro que entendia a responsabilidade que se deve ter com o trabalho, que garante os boletos pagos. Ela mesma começou a trabalhar cedo – não porque precisasse, já que vinha de família abastada, mas por possuir desde nova juízo de gente grande. Quando adolescente foi vender cartões telefônicos, na época em que os orelhões faziam a transição das fichas, só porque não achava justo depender do dinheiro dos pais para bancar seus programas de final de semana. E Tatiana morava em uma área nobre, então as baladas por ali eram caras, o que a fez reconhecer logo cedo o valor do dinheiro.

Racional até as tampas, quando se viu na hora de escolher uma área para prestar vestibular optou por Administração de Empresas. Pareceu ser a escolha óbvia, já que vivia num mundo selvagem, capitalista. Era bem longe do que seria sua opção ideal, caso o sistema fosse outro, mas seu entendimento a levou a crer que para prosperar era necessário dançar conforme a música, seguir as regras do jogo, e ela não conhecia muitos casos de artistas bem-sucedidos (porque Artes era sua verdadeira paixão, sempre foi).

Um ou outro artista eventualmente se destacava, aparentemente por uma questão de sorte, ao invés de competência, num tipo de loteria que sua versão jovem preferiu recusar. Mais tarde, quem sabe, se desse, buscaria se satisfazer nas horas vagas com algum passatempo, por exemplo, um curso de pintura ou de artesanato.

Seu irmão mais novo, Ralf, ao contrário dela, partiu para o mundo das Artes Plásticas sem pestanejar, antes mesmo de completar a maioridade. Aquele era um sonho em conjunto que Tatiana ajudou a alimentar durante anos e foi natural que ele trilhasse esse caminho. E o caçula obteve êxito praticamente desde o início, com sua genialidade sendo reconhecida pela crítica de imediato. Até hoje atuava como professor convidado, ministrando aulas especiais em universidades renomadas mundo afora.

Tatiana, a seu turno, foi estudar teorias e contabilidade, e aprendeu a planejar, organizar, controlar, enfim, a gerir uma empresa – das pequenas a uma multinacional, se fosse preciso.

Brincando, gostava de dizer que o maior proveito que tirou do curso foi a oportunidade de conhecer uma colega de turma chamada Bruna Toledo, que por sinal era sua amiga até hoje. Herdeira direta de uma famosa rede de hotéis de luxo, a Etur Lux, Bruna conhecia os melhores locais de São Paulo e recomendou a Tatiana um bar famosinho na zona sul, chamado Balalaica. Na época, o denominado “circuito GLS” incluía apenas alguns pontos espalhados pela cidade e aquele era um dos destinos preferidos das lésbicas da Grande SP.

Ao seguir a sugestão da amiga, já na primeira noite Tatiana esbarrou em Patrícia, que frequentava o local por considerá-lo aconchegante e porque ali podia ser quem ela era de verdade. “Foi graças à faculdade que conheci o amor da minha vida”, Tatiana falava, embevecida.  

Patrícia, por sua vez, dizia que encontrar Tatiana foi um evento tão importante que creditava integralmente a ela o mérito pelo apoio que a levou a investir em sua carreira na Gastronomia. A esposa (à época namorada) deu o empurrãozinho que faltava, já que na época Patrícia lutava contra o bloqueio de seguir os passos da mãe.

Em partes, vale dizer, Tatiana a estimulou a ir atrás dos sonhos porque sua graduação serviu especialmente para mostrar que a vida ia muito além de só ganhar dinheiro. O amor por Patrícia a fez enxergar isso e o sucesso do irmão também servia como uma ótima comprovação: agindo com uma boa estratégia, vocação é passível de rimar com profissão e também com cifrão. Da mesma forma, nada é por acaso.

As duas indubitavelmente formavam um ótimo time, sempre tiveram uma sintonia perfeita e, ao se conhecerem, almejavam objetivos iguais. No caso, buscavam estabilidade financeira e progresso. Patrícia cozinhava muitíssimo bem e, com os conhecimentos administrativos de Tatiana, certamente teriam sucesso, ainda que começando com um negócio pequeno, estilo bistrô francês: um lugar acolhedor, uma boa decoração e uma comida honesta servida a um valor acessível, com a opção de se tomar café ou cerveja, no almoço ou jantar. Depois expandiriam, conforme o avanço do novo restaurante.

De algum jeito, libertar Patrícia serviu para libertá-la também. Tanto que no segundo ano do empreendimento, quando finalmente elas se livraram do aluguel ao fazerem um empréstimo para a compra e reforma de um velho imóvel, localizado nos arredores da Avenida Paulista, Tatiana finalmente decidiu cursar Artes Visuais. Ela passou no concurso para ser professora do Estado perto do aniversário de cinco anos dO Bistrô, pouco depois de se formar.

Desde então, sua vida passou a se dividir entre as aulas, numa escola distante 13km de sua casa, e o restaurante, onde manteve sua primeira profissão mais ou menos ativa, mesmo depois da contratação de Zezé para o cargo de gerente. Juntas, Tatiana e Patrícia conquistaram estabilidade, e o sucesso dO Bistrô era a prova do progresso delas.

Para que tudo funcionasse conforme o planejado, desde o início Tatiana entendeu a necessidade de Patrícia se dedicar de corpo e alma, e não interviu de nenhuma maneira, como se criasse um monstro, sem perceber. Mas uma vez que sua rotina também era corrida, acabava sendo prático que a mulher ficasse todo o tempo ocupada, quase todos os dias. E Patrícia gostava; tanto que jamais reclamou.

Tudo isso foi importante para os negócios e também para o casamento. Porém, o tempo, fundamental para a evolução do casal, também serviu para desnudar o que se mantinha oculto sob o véu da intimidade. Isso as levava a se desentender com certa frequência, embora sempre longe dos olhos dos outros, que acreditavam que as duas mantinham um relacionamento perfeito.

De certa forma, pode-se dizer que era algo próximo disso. Mas não há como negar que pessoas são diferentes, com tendência a pensarem de maneira distinta, então é normal que haja indisposições, vez ou outra. E um dos principais pontos de divergência entre elas era com relação à excessiva carga horária de Patrícia, que aumentou consideravelmente com o passar dos anos, ainda que a chef se recusasse a admitir isso desde o começo, quando já trabalhava bastante.

Tatiana, convencida de que viver é mais do que bater cartão e pagar boleto, e percebendo que Patrícia não lhe daria ouvidos, foi alterando sua rotina com o passar dos meses, se dedicando cada vez mais às aulas e à sua carreira como professora de Artes. Ao menos seus alunos lhe dispensavam atenção quando ela os estimulava para que pintassem o futuro ideal. Era curioso como criança nenhuma jamais tenha desenhado uma jornada de trabalho de mais de 12h por dia, seis dias por semana.

O fato é que Tatiana era apaixonada por Patrícia praticamente desde o primeiro instante em que a viu e a conhecia muitíssimo bem, há vários anos, o que a permitia reconhecer sem dificuldades que a esposa era consumida por um tipo de vício pelo trabalho. Todavia, não a julgava porque sabia de seu passado, compreendia perfeitamente o que a movia, bem lá no fundo, e sentia que não cabia a ela impor algum tipo de freio ou limites, nesse sentido. Isso quem fez foi Mariana, tão logo chegou à vida de Tatiana e Patrícia.

Antes mesmo de sequer admitirem que estavam em um relacionamento, quando as três ainda despretensiosamente definiam o formato da relação, Patrícia reduziu algumas horinhas de sua agenda, correndo para casa quando Mariana estava por lá. E ela passou a frequentar o apartamento do casal com uma certa frequência já no primeiro mês, que foi quando batizaram a quarta-feira como “o dia do trisal”. No meio da semana, a chef deixou de ser vista em seu posto de trabalho durante o jantar, graças à sua  nova namorada(e de Tatiana).

Mariana também ajudou, ainda que indiretamente e sem a intenção de realizar tal feito, a estabelecer um novo tempo de paz no lar de Tatiana e Patrícia. Não porque as brigas e discussões de alguma forma tenham cessado, mas porque evitavam ao máximo discutir na frente da nova esposa. Em comum acordo, consideraram injusto e errado envolvê-la em questões prévias à união das três e com o tempo aconteceu de a incompatibilidade de agendas ser a principal responsável pela queda considerável da quantidade de desentendimentos entre as duas.

Tatiana passou a gostar mais de ficar em casa, depois que se casaram com Mariana, há quase dois anos. A esposa trabalhava em sistema home office e tinha sua própria empresa, o que a permitia estar sempre por perto, 24 horas por dia, sete dias por semana, com ela mesma montando sua própria agenda. Mariana era uma ótima companhia, ainda que ficassem eventualmente em completo silêncio, cada uma em seu canto, no cômodo que servia como ateliê e escritório.

Reconhecia que Patrícia vinha se esforçando desde então, em especial depois que a relação entre as três foi oficializada, com direito a contrato de união estável registrado em cartório e aliança de ouro nova no dedo da mão esquerda. Patrícia tinha até adotado um discurso parecido com o seu, sobre a vida ser mais do que trabalho. Embora ainda não tivesse colocado absolutamente nada em prática, porém, Tatiana considerava aquilo como uma espécie de avanço, mesmo assim. Acreditava que era só uma questão de tempo até a mulher conseguir de fato abrir um pouco mão do emprego, em prol de sua vida pessoal. Afinal, junto de Mariana era um coro de duas contra uma; Patrícia acabaria cedendo, nem que fosse literalmente pelo cansaço.

Contudo, ali estava Mariana, com sua antiga mochila manchada nas costas, parada no meio da sala após anunciar que estava de mudança por causa do trabalho. Do nada, sem mais, nem menos.

– Amor, explica isso direito... como assim, “emprego novo”? E a sua empresa, Mari? E os seus clientes? – Tatiana se ouviu perguntar. Havia um zunido martelando seus ouvidos que a impedia de raciocinar.

– Eu de verdade não estou acreditando, Mariana! Como assim, você vai morar em outra cidade? – Patrícia questionou, ao mesmo tempo, só que dois tons mais alto. Ao se levantar com um pulo do sofá, seu rosto estava tão vermelho quanto a almofada que atirou no chão. Se antes de tudo aquilo ser dito ela já estava zangada, agora parecia realmente furiosa.

– É só durante alguns meses... – Mariana responde, sentando-se bem devagar. Suas palavras foram quase tão lentas quanto seus movimentos e soaram como se ela estivesse se rendendo, enquanto vagarosamente deslizava a mochila com o laptop em direção aos pés – Eu fiz de tudo, juro, tentei negociar para que fosse um trabalho remoto, mas infelizmente não consegui.

– E aí você vai simplesmente nos abandonar aqui? – Patrícia quase gritou – A sua reunião de hoje foi para falar da sua mudança? Você escondeu isso de nós? Do que mais não sabemos?

– Amor, calma – Tatiana pede, encostando gentilmente a mão no ombro da mulher.

– Que “calma”, Tatiana? – ela revida, como se rosnasse mais uma vez, entredentes, afastando-se um passo para trás – Você mesma vive insistindo que trabalho não é tudo. Vai me dizer que as coisas que tanto fala só valem para mim? – agora Patrícia gritou.

– Não é isso – Tatiana rebate, ainda em tom baixo, mas não complementa com mais nada. Não soube o que falar! Seu cérebro ainda cantarolava “Marinheiro só”, socorro!

– Então é o quê? – Patrícia berra mais uma vez.

– Pati, não é comigo que você tem que gritar – Tatiana retruca, sentando-se ao lado de Mariana. Pareceu se render também, assim como a mulher há pouco, só que de um jeito passivo-agressivo.

– Gata, por favor... – Mariana resmunga, sem especificar com quem falava, em tom de choro.

– Eu também estou aborrecida com essa história, me poupe – Tatiana diz, no mesmo instante. Por algum motivo, decidiu falar um decibel mais alto e igualmente não identificou com quem exatamente estava falando.

– Eu compreendo a frustração de vocês, de verdade, mas queria que entendessem o quanto isso é importante para mim, para a minha carreira – observada pelas duas mulheres, Mariana se estica no sofá e puxa do bolso da frente da calça jeans o remédio de asma – É aquele tipo de oportunidade que pode abrir muitas, muitas portas, sabe? – ela aspira o medicamento e atira a bombinha contra uma almofada, notavelmente frustrada – Eu preciso tanto do apoio de vocês... – Mariana então resmunga, abaixando a cabeça, com a testa apoiada na palma da mão. Sua última fala soou quase inaudível.

– E quando é que começaria tudo isso? – Tatiana então quer saber. Sentiu o impulso de afagar as costas da esposa para consolá-la, mas se conteve. O gesto poderia enfurecer ainda mais Patrícia, que permanecia em pé, agora com os braços cruzados.

– Assinei o contrato hoje, o trabalho começa na próxima semana – a resposta de Mariana foi quase incompreensível de tão baixa.

– Eu juro que não estou acreditando nisso – Patrícia resmunga, balançando a cabeça em negativa – Vou fazer um café porque pelo visto essa noite vai ser longa... – ela complementa, deixando o recinto na sequência.

Com a respiração ruidosa e sem dizer nada, Mariana estica as costas e recosta-se no sofá, meio de lado, virada em direção à esposa. Depois apoiou as pernas no assento, fechando-se como um caracol. O movimento foi copiado por Tatiana de maneira quase simultânea e em um segundo seus olhos se encontraram.

– Eu amo você – Mariana então balbucia, piscando devagar. Com o gesto, uma lágrima solitária deslizou de seu olho esquerdo, sem se anunciar. Combinou com o suspiro profundo que ela emendou, ao som das panelas que Patrícia batia enfurecida lá dentro, na cozinha.

– Eu também te amo – Tatiana responde, no mesmo volume. Entrelaçou os dedos nos dela, sem pestanejar, encarando-a de maneira bastante séria – Mas é foda, né?

– É sim, amor – Mariana seca o rosto com as costas da mão quando a lágrima atinge seu queixo, parecendo envergonhada por aquilo. Em seguida, tirou os óculos e coçou os olhos com força, antes de continuar – É foda demais, sim. Mas também é provisório, poxa.

– Pode até ser, mas ainda assim é o tipo de mudança que ninguém queria, poxa – Tatiana rebate, imitando-a, secando a segunda lágrima que lhe escapou, agora pelo outro olho – Tanto eu quanto a Pati nem imaginávamos que isso era passível de acontecer, Mariana. Você precisa se colocar um pouquinho no nosso lugar.

– Eu estou fazendo isso! – Mariana afirma.

– Sei...

– Em todo caso, ainda estarei aqui todos os finais de semana, Tati. E de vez em quando posso até voltar no fim do dia, quando eventualmente a rotina no trabalho permitir. Vai dar bom, confia!

– Você está tentando me convencer disso ou seu intuito é convencer a si mesma? Porque, sabe... eu já ouvi esse papo antes, Mari, muitas vezes. Sei que é pura balela. O que vai acontecer é que você vai se envolver com o trabalho, vai acabar sendo engolida pela rotina e, quando menos perceber, estará sambando em um caminho sem volta. E longe daqui, o que piora tudo – Tatiana solta a mão da esposa no final da frase – Jamais fale algo que depois não possa cumprir. Preciso que jogue limpo comigo, especialmente agora.

– Gatinha... Você me conhece, amor, sabe que eu não sou que nem a Pati – Mariana fala, puxando-a de volta, segurando-a agora com as duas mãos. Falou bem baixinho porque o ruído na cozinha repentinamente se aquietou e em silêncio acomodou a mão da esposa em cima do próprio peito. Seu coração batia rápido, ilustrou bem o que estava sentindo naquele momento – Meu trabalho nunca estará acima de nós.

– Ótimo, então prove – Tatiana retruca – Aparentemente, nos próximos meses teremos várias oportunidades para você fazer isso, não é mesmo?

Mariana não diz nada num primeiro instante, mas pela forma como encarou a esposa foi perceptível que lutava contra os próprios pensamentos. Ainda que tentasse persuadir Tatiana de que tudo aquilo era algo bom e positivo, ela mesma não parecia certa disso. Em partes porque também detestava a ideia de ter que se afastar um dia que fosse das mulheres, que compreensivelmente estavam zangadas diante da novidade repentina. Mas ainda não era o momento de Mariana admitir algo assim em voz alta, e Tatiana sabia disso.

– Com quem você foi beber hoje? – ela então pergunta, vendo uma microexpressão mover a sobrancelha de Mariana – Não. À tarde, não à noite – Tatiana emenda, balançando a cabeça, como se conseguisse ler os pensamentos da esposa, antes que ela sequer pudesse responder – A Patrícia viu o story da sua firma. Quem é aquela mulher?

– É a Cacá. Minha colega de faculdade, lembra? Carmen.

– A que trabalha como mascote do Café Andorinha no Twitter, sim – Tatiana abaixa uma das mãos, mas mantém a outra sobre o peito de Mariana, que arfava.

– Foi ela quem me falou sobre a vaga na TechFuture um tempo atrás e...

– Sim, eu me lembro – Tatiana a interrompe – Você a encontrou enquanto tomava café no Ipiranga, depois de visitar um cliente. Isso foi em abril, um dia antes daquele feriado que a Pati falou que ia folgar, mas no fim foi trabalhar.

– É, isso mesmo. Boa memória, amor – Mariana dá um sorrisinho, discreto – Enfim, pela manhã eu não consegui que a Fulana me atendesse, esperei por várias horas e nada... Quando cansei, fui almoçar com a Cacá, naquela hora que te mandei a selfie no espelho do banheiro, sabe? A ideia era postar a foto dela no meu perfil e marcá-la, só que eu me distraí, postei errado sem perceber. Mas no fim acho até que foi bom porque de certa forma meio que...

– O quê? – Tatiana questiona, ao ver Mariana se calar.

– Não sei... – Mariana pigarreia e, ao continuar, falou ainda mais baixo – Mas me pareceu que bastou a Simone ver a foto da Cacá para magicamente surgir um tempo disponível para ela me atender.

– Claro, porque as duas já namoraram – Tatiana respira fundo no final do comentário, demonstrando que tinha realmente uma boa memória. Detalhes assim jamais passavam despercebidos porque as histórias de Mariana eram sempre recheadas deles. Agora foi sua vez de coçar os olhos – Você ainda nem se mudou e já está no meio de um rolo sapatão...

– Eu não tenho culpa! – Mariana se defende – E nem fiz nada, juro que não imaginei que uma coisa levaria à outra. Inclusive porque se soubesse teria postado a foto antes, economizaria meu tempo... Podia ter voltado mais cedo para casa.

– Sim, para chegar aqui e lançar uma bomba em cima da gente – Tatiana ironiza, voltando a olhar para a esposa.

– Não, é que na verdade... – ela pigarreia de novo – Eu passei o dia inteiro excitada – Mariana sorri ao observar a surpresa iluminar os olhos de Tatiana ao ouvir aquilo – Essa noite eu tive um sonho muito gostoso – ela se aproxima junto com a fala e encosta a língua quente no lóbulo direito da mulher.

– Mari... – Tatiana a adverte, mas no mesmo instante a puxa para beijá-la. Um beijo urgente, molhado e inesperado, mas breve, muito breve. Ainda assim ativou imediatamente todos os seus alarmes, alertas e sinetas, como se um choque de repente despertasse e acendesse seu corpo inteiro, em especial no meio de suas pernas. Mas Tatiana não quis ir adiante porque a última coisa que precisavam neste momento era dar mais motivos para enfurecer Patrícia, que ficaria passada se no meio de tudo o que estava acontecendo as duas simplesmente se pegassem no sofá.

– Uhum, eu sei... – Mariana resmunga, recuando alguns centímetros, com a respiração mais descompassada do que antes. Sem perceber, fez uma careta que demonstrou toda a dor de ter que conter o tesão que sentia – Antes eu vou resolver tudo com a fera, sim – ela complementa, referindo-se à Patrícia, que permanecia sozinha na cozinha – E depois a gente vai transar, Tatiana.

– Eu conto com isso, Mariana – Tatiana suspira, se ajeitando no sofá. Optou por cruzar as pernas para abafar o que sentia e assim voltar ao foco da noite. Eram situações antagônicas, afinal.

– Você está bem? Se sente melhor do intestino? – Mariana então questiona, deliberadamente mudando de assunto, espremendo os olhos por causa da miopia – Como foi seu curso hoje?

Passar mal era uma constante na rotina de Tatiana já há alguns anos. Tanto que a esta altura nem se lembrava mais do mal-estar que a acompanhou ao longo de todo o desgastante dia no trabalho. Pensar a respeito a fez perceber que ainda não sentia-se 100%, mas ela honestamente não queria falar disso. Nem sobre assuntos relacionados à escola, que a aborreceriam também (hoje tinha sido um dia daqueles).

Quanto ao curso... Bom, indiscutivelmente este era o ponto alto de seus dias nas duas últimas semanas. Mariana andava ocupada com o projeto que agora era conhecido e Patrícia, por sua vez, vinha se dedicando cada vez mais ao trabalho (por ora, estava empenhada em recriar uma receita do passado, mas cada hora inventava uma desculpa diferente). Restou à Tatiana se ocupar e fez isso da melhor forma: movida pelo prazer. Foi assim que decidiu investir suas noites de sexta-feira num curso de pintura/desenho com modelos vivos.

A temática não se aproximava em nada do curso anterior, de História da Arte, que foi quase integralmente teórico e tinha estreita relação com sua área de atuação. Todavia, aquela era uma rica possibilidade de estudar e aprimorar algo que gostava de verdade e que a levava de volta para uma versão sua que há muito ficara no passado, quase esquecida, praticamente soterrada pelo tempo e que, depois do MBA, passou a clamar por ressureição.

Em partes, por isso não se sentia no direito de brigar com Mariana; boas oportunidades devem ser abraçadas e aproveitadas ao máximo, em especial aquelas que nos fazem bem, que nos inspiram. Se o novo trabalho a deixaria perto de sentir o que Tatiana experimentava ao participar daquele curso, Mariana estava mais do que certa em sair de sua zona de conforto e se aventurar com coisas novas. Que poderiam depois criar outras mudanças, como ela mesma havia frisado.

Por uma série de motivos Tatiana se afastou do que gostava, se formou em algo que não a cativava, mas que consequentemente foi fundamental para conhecer Patrícia e construir com ela um negócio de sucesso. E o que já era bom ficou ainda melhor depois da chegada de Mariana, que certamente só estava disposta a encarar agora uma empreitada tão grande porque em partes se sentia resguardada pelo amparo das esposas. Que estavam chateadas, como era de se esperar, mas que ainda a amavam e a apoiariam em tudo, quaisquer que fossem suas escolhas – todas sabiam disso. E a primeira a fazer isso seria justamente Tatiana, a mais racional das três.

Em seu primeiro dia de curso ela se sentiu deslocada, afinal, Tatiana era a mais velha da turma (embora ainda nem tivesse chegado aos 40) e até o professor parecia ter nascido depois dela. Mas a estranheza durou pouco porque foi imediatamente acolhida pelos novos colegas, todos na faixa dos 20 e poucos anos, que já se conheciam do semestre anterior e se interessaram por ela de um jeito incomum.

No geral, as pessoas queriam sempre falar com Patrícia, que combinava lindamente com as luzes dos holofotes e o flash das câmeras fotográficas. Acostumada a ficar de fora do centro das atenções, Tatiana achou curioso que tenham dado importância à sua presença na sala de aula. Muitos fizeram questão de dizer que só decidiram enveredar pelo universo artístico porque na infância tiveram boas professoras de Artes que os inspiraram, e alguns até a agradeceram como se ela de repente representasse todo o corpo docente da rede de ensino brasileira.

O local onde aconteciam as aulas era uma espécie de estúdio com janelas bem altas, sem mesas ou cadeiras disponíveis pelo espaço, apenas cavaletes que já abrigavam algumas telas e papéis em branco quando ela chegou. Em roda, numa espécie de semicírculo, os alunos se posicionaram lado a lado mantendo o centro vazio, preenchido apenas por um tablado de madeira que se elevava cerca de 15 cm do chão. Ao redor da pequena plataforma havia três refletores de luz, que foram ligados tão logo a modelo atravessou a porta.

O murmurinho entre os presentes cessou assim que a mulher cumprimentou a todos discretamente com um aceno de cabeça e foi calorosamente recepcionada pelo professor. O ambiente àquela altura já estava impregnado com um delicioso aroma de tinta fresca e papel envelhecido, um cheiro familiar que invadiu os sentidos de Tatiana, despertando ótimas lembranças. De imediato, não direcionou nenhuma atenção à modelo, pois sabia que nas próximas duas horas se focaria inteiramente na mulher que, antes de ocupar seu lugar no centro da sala, se despiu completamente, parecendo bem à vontade.

Para sua primeira aula, depois de tantos anos afastada de um bloco de desenhos, Tatiana escolheu cuidadosamente os materiais para usar naquela noite, em seu verdadeiro reencontro com o mundo das artes. Separou algumas folhas de papel Canson de 200g/m2, uma gramatura que ela sabia ser suficiente para suportar as várias camadas de traços feitos com carvão, e um conjunto de carvão vegetal de variadas durezas, que lhe permitiria explorar diferentes profundidades e projetar sombras com mais precisão. Ela também deixou à mão um esfuminho, instrumento importante para suavizar os contornos, e uma borracha limpa-tipos para criar pequenos destaques e corrigir eventuais falhas. Apoiou tudo sobre a borda do cavalete, despreocupada com o que ocorria à sua volta e só no fim da aula percebeu que foi a única a optar pelo carvão. Talvez porque sujava os dedos.

No pequeno palco elevado foi colocado um banco de madeira, coberto por um tecido de linho branco que contrastava com o tom de pele da modelo que posava nua. A jovem sentou-se de maneira graciosa, apoiando um dos pés mais para o alto, com o braço descansando sobre o joelho e o outro caído ao lado do corpo. Durante o tempo em que permaneceu sob acurada observação ela não transmitiu no rosto nenhuma expressão, como se estivesse bem longe dali, distraída com os próprios pensamentos.

Os três refletores se mantiveram acesos por cerca de 30 segundos, quando o professor então anunciou que apagaria aquelas luzes para que se iniciassem os primeiros exercícios. Seriam algumas rodadas com iluminações e tempos diferentes, que variavam entre poses curtas, com duração de até cinco minutos, cuja função era aquecer, capturando a essência da forma e dos contornos da modelo; poses médias, entre dez a 20 minutos, para que pudessem trabalhar melhor questões como a luz e a profundidade; e encerrariam a aula com uma pose mais longa, estimada para durar 45 minutos, com alguns intervalos para a modelo poder descansar. A ideia era que o maior tempo de exposição servisse para executar melhor os detalhes da obra criada.

A aula em si já carregava sozinha motivos suficientes para a tornarem memorável, mas certamente tudo teria sido diferente se não fosse a escolha pela modelo que, na concepção de Tatiana, era a pessoa ideal para sua noite de reestreia, ou reencontro consigo mesma. Com uma presença marcante em cima do pequeno tablado, a mulher era a combinação perfeita entre beleza, força física e elegância, além de apresentar um corpo incrível, talhado provavelmente em treinos de ginástica ou dança.

Mas sem dúvida alguma, acima de sua destreza para se manter imóvel em posições por vezes incômodas, havia uma autoconfiança que exalava em cada gesto e transparecia em seu olhar, que de vez em quando cruzava com os olhos de algum aluno sem revelar nenhum traço de hesitação ou timidez – de um jeito como se sua nudez fosse apenas um detalhe da arte que ajudava a criar. Ela não estava apenas posando, mas também proporcionando um exemplo vivo de confiança, aceitação e conforto com o próprio corpo, que inspirou Tatiana a explorar e acessar a sua própria criatividade e empoderamento.

A primeira postura foi em pé. Seguindo as instruções do jovem professor, que parecia extasiado, a modelo colocou o pé esquerdo levemente à frente do direito. A perna da frente ficou um pouco dobrada, com o quadril inclinado e o peso do corpo apoiado sobre a perna de trás, que manteve-se esticada, roçando no tecido fino que deslizava do assento do banco. Por fim, apoiou as mãos na cintura e encurvou o tronco um pouco para a frente, virando o rosto.

Foi neste momento que Tatiana dedicou atenção à mulher. Era jovem, provavelmente não tinha mais que 30 anos, idade que combinava com sua autoconfiança e domínio total de seu corpo, sem falar na aceitação completa de sua vulnerabilidade. Isso a deixava ainda mais bonita, como se fosse dona de um poder que mais ninguém tinha naquela sala. Seu olhar firme e ao mesmo tempo sereno indicava que estava completamente à vontade exercendo seu papel de musa. Simplesmente maravilhosa!

Para captá-la sob aquela luz, Tatiana segurou com três dedos um pedaço de carvão que tinha o tamanho um pouco menor que um lápis, sentindo a familiar textura áspera nas pontas dos dedos, que no primeiro instante já ficaram empretecidos. Ela se inclinou levemente para a frente, pressionando gentilmente o carvão contra o papel, mantendo o pulso leve enquanto o sentia deslizar pelas ranhuras do Canson; o anelar e o mindinho permaneceram suspensos, acompanhando o movimento como se ela fosse algum tipo de maestra. Seus olhos se moveram rapidamente entre a modelo e o desenho que fazia dela, registrando principalmente o ângulo de seu quadril e o peso distribuído do corpo, realçando os contornos dos ombros, destacados pela luz. As sombras profundas nas dobras da pele foram feitas nos segundos que restaram da posição.

O primeiro desenho de Tatiana evidenciou bem os ombros largos e bem definidos da modelo que posava nua, suas clavículas delineadas e seu pescoço longo e elegante, acentuado pela postura que manteve ao lado do banco. Na memória, porém, Tatiana guardou foi seu sorriso bonito e o brilho de seu olhar, que tinha um toque sutil de provocação.

O corpo de uma mulher é uma verdadeira obra de arte, perfeito em cada curva e em cada detalhe, e Tatiana sentiu-se bastante satisfeita ao contemplar brevemente sua garatuja, que serviu como aquecimento em sua primeira aula. Não se cobrou por perfeição apenas porque considerava-se incapaz de captar e retratar no papel a essência de uma figura absolutamente impecável, uma verdadeira Deusa do Ébano, esculpida pela natureza e pelo sagrado feminino.

Ao colocar o desenho para trás das folhas ainda em branco, Tatiana percebeu que a moça no cavalete ao lado exibia no rosto uma expressão de aprovação, como se a parabenizasse pelo rascunho que tinha feito. De soslaio, reparou que o desenho feito em lápis 2B pela colega era absurdamente realista, ainda que fosse somente um recorte do ombro e de parte do tronco da modelo.

A segunda pose foi sentada. A moça ficou meio de lado em cima do banco, com as pernas cruzadas, uma sobre a outra. A postura deixou destacado um chumaço de espessos pelos pretos que escapavam da interseção entre os membros musculosos e bem delineados. A mão esquerda repousou sobre o joelho superior enquanto a outra descansou perto do corpo, em cima do assento. Seu rosto estava relaxado e o único movimento que fez durante três minutos e meio foi respirar, tranquilamente, seu peito subindo a cada inspiração e descendo após a expiração, o bico do seio entumecido devido ao vento gelado do ar-condicionado.

Tatiana começou esboçando a linha de seu corpo, reforçando a curva suave da coluna vertebral da mulher, que manteve-se imóvel e majestosamente ereta. Com a ponta do carvão, destacou a tensão sutil nos músculos das pernas cruzadas em contraste com a delicadeza de sua mão repousada, com dedos finos que se alongavam ao redor da rótula do joelho. As sombras de suas clavículas e o contorno de seus seios foram feitos de maneira suave, para realçar a tranquilidade da postura. O mesmo foi feito com os pelos pubianos da mulher, que não puderam ficar de fora da composição devido ao bonito destaque que empregavam à cena.

Ao concluir sua arte, Tatiana teve certeza de que Patrícia se enciumaria caso visse aquele desenho. A mulher já tinha feito toda uma cena desde seu anúncio com relação àquele curso e provavelmente verificar os resultados alcançados reforçaria sua postura enciumada. Conhecendo bem a esposa, Tatiana sabia que ela procuraria em meio aos traços de carvão algum risco de emoção além do mero exercício artístico.

Assim como os sombreados de sua obra, o ciúme de Patrícia se desenhou tão logo a inscrição foi feita, transformando o apoio do curso anterior num tipo de embate doméstico contra a liberdade artística de Tatiana, que incluía – por que não? – a apreciação e fiel representação de pessoas desconhecidas, dispostas a posarem nuas.

Isso certamente a levaria a revelar os detalhes sobre a aula apenas para Mariana, e longe dos ouvidos da outra mulher. O cuidado serviria para evitar a fadiga de ter que entrar em eventuais discussões com a esposa, uma vez que compreendia o porquê de seu ciúmes em relação à temática do curso – o que não deixa de ser curioso, pois neste momento, ainda na primeira aula, elas não tinham como prever as surpresas que aquela prática lhes trariam, já na próxima semana.

Incapaz de antever o próprio futuro e com o objetivo de manter-se focada no presente, Tatiana desviou-se dos pensamentos e observou o professor orientar a modelo para que ela apoiasse um dos pés, dobrando a perna, e que esticasse a outra, empurrando o tronco para trás, sustentando o corpo com as mãos escoradas atrás de si. Arqueada, a mulher ergueu a cabeça, deixando o cabelo cacheado cair por cima dos ombros até quase o meio das costas.

A postura era quase uma ode à entrega, à arte. Vulnerável e ao mesmo tempo forte, a mulher exibia sob aquele holofote os músculos do abdômen tensionados, que seguiam em linha com o tronco inclinado, emoldurado pela escuridão do fundo da sala. O jogo de luz e sombra também era perceptível em seus olhos que, embora fechados em contemplação, capturavam a iluminação com um brilho sutil que transmitia serenidade e introspecção.

Para Tatiana, tão importante quanto a modelo saber apresentar e manter posições que realçassem seu corpo e cada uma de suas curvas, a luz era uma aliada crucial, já que ao mesmo tempo em que revelava detalhes também os omitia. E foi principalmente neste aspecto que se dedicou ao desenhá-la naquela posição, na tentativa de capturar, além de uma simples forma física, a maneira como a luz brincava com sua figura graciosa, ressaltando seu poder para que de alguma forma essa força pudesse transcender o papel.

Em sua terceira obra, Tatiana investiu quase metade do tempo apenas contemplando a modelo e, ao riscá-la, não levantou o carvão nenhuma vez de cima do papel Canson.

– Ficou muito bom, Tati, arrasou – a moça do cavalete ao lado exclama, assim que Tatiana se afasta dois passos para contemplar o próprio desenho – Me chamo Rebeca, a propósito – ela estica a mão para cumprimentá-la e sorri diante da hesitação de Tatiana, que estava com os dedos sujos de carvão.

– Grata, Rebeca – Tatiana a cumprimenta depois de limpar a mão na barra do avental azul escuro e observa o desenho que ela tinha feito: apenas a mão da modelo, com os nós dos dedos contraídos e bem detalhados, segurando com firmeza o assento duro do banco coberto com tecido fino – Gostei do detalhe, você é uma boa observadora – complementa, apontando para o cavalete dela.

O gesto foi acompanhado pelo olhar de Rebeca, que pareceu se focar especificamente na aliança dourada em sua mão esquerda, que brilhou durante o breve movimento. Incerta de que o adorno lhe chamara mesmo a atenção, e sem saber o que aquilo realmente significava, Tatiana sorriu para ela e voltou-se novamente para a modelo, que já se harmonizava em uma nova posição: desta vez, com as pernas dobradas sobre o banco, criando uma curva incrível com seu corpo contra a luz.

Ao colocar o terceiro desenho para trás do bloco de papel em branco, Tatiana fez questão de movimentar-se de modo que sua aliança brilhasse novamente com a direção da nova luz. Sabia que embora houvesse casos em que alianças serviam como uma espécie de chamariz para algumas mulheres, em outros significava um tipo de repelente, então torceria para que valesse a segunda opção enquanto reforçava para a colega o fato de que era casada. E bem casada!

Tá, pensando bem, Patrícia poderia ter motivos muito mais consistentes para se enciumar, que iam além da livre expressão da arte num curso de nu artístico. Mas enquanto observava os braços rígidos da modelo, contraídos ao redor das pernas suspensas sobre o banco, Tatiana considerou que estavam sujeitas a todo tipo de assédio em qualquer tipo de lugar.

A esposa mesmo, embora trancafiada na cozinha do restaurante praticamente o dia inteiro, vivia recebendo cantada de cliente que insistia em ir além de simplesmente apreciar aquilo que a mulher oferecia nO Bistrô. Pior do que isso era Mariana, que nem de casa saía e mesmo assim era sempre xavecada por todo tipo de mulher que se possa imaginar, inclusive pela internet. E ela ainda tinha o agravante de possuir um passado bastante vasto e pouco conhecido, então de todas, Tatiana era quem menos gerava esse tipo de conteúdo dentro do trisal.

Junto com o traço feito com o carvão, considerou que tudo bem se o curso movimentasse um pouco as coisas nesse sentido. Afinal, ser um pouco cobiçada não a faria voltar para casa sem um pedaço do corpo no final.

Claro que isso também não significava que ela estava disposta a compartilhar tudo. Na verdade, antes de chegar na metade do penúltimo desenho daquela noite extraordinária, Tatiana estava era convencida de que, se dependesse dela, Patrícia sequer saberia da existência de alguém como Rebeca. Já bastava o drama envolvendo as pessoas peladas na aula, não cabia a ela piorar ainda mais as coisas.

Talvez comentasse algo com Mariana, assim, por alto, superficialmente. A mulher não era de se aborrecer sentindo ciúme, ao menos não como Patrícia, mas tampouco fazia o tipo desapegada. Mesmo que a colega de cavalete no fundo nem tivesse nenhuma intenção com ela, caso revelasse suas impressões para a esposa, Tatiana contaria de um jeito a parecer que sim, apenas para ver a expressão enciumada de Mariana. Embora raro, acontecia com frequência.

No geral, Mariana se unia à Tatiana quando o assunto era este porque ela ficava realmente contrariada quando Patrícia era cortejada. Inclusive era sua a teoria de que tem mulher que se atrai por quem é casada, o que a princípio pareceu ser apenas uma desculpa para ela não ter que usar aliança, mas que com o tempo se comprovou como verdade (ainda assim, Mariana jamais tirava a sua do dedo).  

Pensar nisso a fez sorrir sem perceber e Tatiana imaginou as esposas posando exclusivamente para ela poder desenhá-las. Distraída, ficou pensando nos detalhes que gostaria de capturar de cada uma, sem a pressão do tempo definindo o prazo desta contemplação, como ocorria na aula, e com a intimidade colorindo as folhas do papel. Essa expressão enciumada de Mariana mesmo era algo que merecia ir para uma tela e ser emoldurada depois, assim como a de Patrícia, que era diferente de quando simplesmente estava zangada, momento em que surgia uma ruga profunda, marcando o meio de sua testa. Quando sentia-se enciumada, por sua vez, fazia um biquinho que só se via nessas horas e que só se desfazia com beijos molhados e estalados. O sexo de reconciliação nesses casos, inclusive, era sempre maravilhoso.

Com certeza depois daquela noite Tatiana ia cutucar Mariana, desenhar as duas esposas e propor um sexo a três. Não necessariamente nesta ordem.

– Eu só quis dizer que... esquece! Vamos continuar, por favor. Foco na técnica, pessoal.

A voz vacilante do professor foi o que a trouxe de volta à aula, segundos antes de a modelo se ajeitar em sua pose mais longa, a última da noite. Mesmo distraída e envolvida em pensamentos altamente libidinosos, Tatiana reparou que havia na sala uma energia diferente pairando no ar, emitida pelo professor, mas também pela mulher e igualmente pelos colegas, ainda que em proporções antagônicas e contrastantes. Por quantos segundos se deixou levar pelos assuntos internos de sua mente?

Em termos de concentração, Tatiana considerava-se dentro da média. Na sua casa, mesmo, não era como Patrícia, atenta a cada mínimo detalhe, mas também não se assemelhava à Mariana, que tinha o dom de conseguir perder as coisas e esquecer informações importantes. Entretanto, mesmo focada na atividade, retratando a modelo com o máximo de atenção possível, vagueou para longe dali mentalizando as esposas nuas e isso a desconcentrou. Compreensível.

O professor estava visivelmente constrangido, parado meio sem jeito próximo ao pequeno palco, claramente se esforçando para manter uma postura normal. Os olhares desconcertados em sua direção e o silêncio desconfortável que preenchia cada espaço do estúdio, porém, eram mais reveladores que a luz dos três refletores juntos, o que o fez engolir seco, antes de finalizar o último comando para a modelo. Tatiana reparou que quem não o encarava diretamente fugia desse confronto, fingindo ajeitar seus materiais de pintura. A modelo, a seu turno, pareceu ineditamente vulnerável.

– Rebeca – Tatiana cochicha, chamando a colega, e faz um movimento com a cabeça, levantando um pouco as mãos, como quem diz: “o que aconteceu?”.

– O que mais poderia ser? Homem fazendo homice – foi a resposta que ela deu, junto com um suspiro pesado e uma virada de olhos que disse muito – Macho acha que mulher é tudo objeto – Rebeca complementou, num volume mais alto.

O comentário foi bem acolhido pela modelo, que desfez sua expressão de surpresa e indignação ao sorrir brevemente para ela, mantendo o olhar firme, instantes antes de encostar o queixo contra o próprio peito. Seguia às instruções do professor, a esta altura com o rosto bastante vermelho, ao tempo em que dava a impressão de que iria se fechar em si mesma, como num casulo.

Porém, em um segundo, aprumando a compostura com um orgulho ainda mais evidente do que antes, estufando o peito como se encabeçasse um protesto silencioso, ela sentou-se com as pernas abertas e apoiou as duas mãos sobre o assento do banco, aproximando os seios com o movimento feito pelos braços. Com o apoio da luz e de muitas sombras, a cena era absolutamente impecável, mas Tatiana se incomodou pela primeira vez com a nudez da mulher. É difícil apreciar a arte num mundo povoado por quem só é capaz de ver a carne. Como diria Leon Tolstói, há quem passe por uma floresta e só consiga ver lenha para queimar.

Honestamente, ela não tinha visto nada do que havia acontecido entre o professor e a modelo. Soube depois que ele fez um comentário a respeito de uma suposta facilidade que ela teria para pagar seus drinques, graças a seu belo corpo. Ou seja, além de sem noção, foi machista e sexista num momento completamente inoportuno.

Mas mesmo antes de descobrir o que tinha rolado com a modelo, por ser mulher e por uma questão de sororidade, Tatiana se colocou imediatamente ao seu lado, pois sabia que o que quer que fosse era algo que tinha incomodado a moça, que permaneceu de cabeça baixa até o final daquela aula. Seu corpo retesado demonstrava todo o desconforto que nitidamente ela agora sentia.

O fato é que podia ter sido somente uma palavra, ou até mesmo um olhar, apenas; para alguém exposta como aquela jovem, a única a permanecer sem roupa no meio de uma sala cheia de estranhos, com vários homens, o pouco facilmente se transformava em muito. E embora tomada por uma vontade sincera de reunir seus materiais e sair correndo dali, Tatiana decidiu permanecer até o fim apenas para poder escoltá-la em segurança para longe do assediador disfarçado de professor.

Sua obra final, a mais detalhada e melhor elaborada nas últimas duas horas, apresentou traços firmes que condiziam com o que Tatiana sentia. Com uma raiva fervorosa borbulhando dentro dela, tratou de canalizar o sentimento para o carvão, preso na ponta dos dedos. Sua mão se moveu com destreza e uma certeza inabalável, preenchendo toda a folha com linhas firmes e sombreados que davam movimento ao que estava sendo rabiscado. Cada risco do corpo exposto, cada centímetro de músculo tenso, cada curva e cada ângulo foram traçados com precisão, capturando não apenas a forma de seu corpo, mas especialmente a essência da modelo: poderosa e inquebrável. Uma mulher gigante armada com seus vários super poderes, principalmente o de existir e de saber resistir num mundo tão maluco quanto o nosso.

O desenho buscava refletir a dignidade e o empoderamento da modelo, com traços impregnados com a determinação de Tatiana em mostrar que a mulher era mais do que um simples objeto de observação. Seus olhos se mantiveram fixos nela e, em sua mente, não estava apenas desenhando um corpo nu; na verdade retratava uma deusa, uma verdadeira guerreira. As sombras criadas pela luz dos holofotes foram cuidadosamente delineadas com precisão, enfatizando a definição dos músculos e a suavidade de sua pele brilhante. A textura do papel fez sua parte, capturando a intensidade do momento registrado, com o carvão criando um efeito de luz e sombra que dava vida à figura. Foi sem dúvida a obra-prima de Tatiana em seu reencontro com sua arte.

– Ficou perfeito, eu amei. É forte e impactante! O carvão fez toda a diferença, mandou bem na escolha – Rebeca comenta, observando o desenho de Tatiana. O seu, por sua vez, pela primeira vez retratava o corpo inteiro da modelo e não apenas detalhes. Era uma obra de arte feita a lápis, espetacular.

– Oi, gostaria de te agradecer pelo apoio – a modelo diz, aproximando-se delas. Já estava vestida e usava óculos, e com o cabelo preso num coque alto parecia até outra pessoa.

– Imagina, mana – Rebeca dá um abraço breve na mulher – A gente segue junto, não podemos deitar para esses machos, não, jamais – ela fecha a mão e dá um soquinho na mão de Tatiana, que retribui o gesto – Quer... sei lá, sair, beber uma cerveja?

– Eu combinei de encontrar com umas amigas mais tarde, mas sim. Aceito, sim – a modelo responde, exibindo o sorriso mais bonito da noite – Meu nome é Yasmin e o seu?

– Rebeca. Ela se chama Tatiana, é professora de Artes – o complemento foi dito com notável orgulho.

– Ah, que legal – Yasmin diz – Reparei que foi a única a escolher carvão. Posso? – ela aponta para o cavalete e em silêncio observa o desenho de Tatiana – Uau! – a modelo então diz, depois de um tempo.

– É, eu... – Tatiana balbucia, sem falar nada, exatamente. O desenho estava muito bom mesmo, mas ela não era do tipo que se afeta e se autoelogia.

– Quer ir com a gente, Tati? – Rebeca pergunta, guardando seus lápis num estojo colorido – Bora tomar uma? Conheço um bar ótimo aqui perto.

– Não, eu... – Tatiana pigarreia – ... preciso ir para casa, minha esposa está me esperando – ela ergue a mão esquerda, como se só a frase não fosse suficiente. Imediatamente se flagrou pensando sobre qual mulher se referia, se à Patrícia ou à Mariana. Nessas horas as duas viravam uma só unidade, já que dificilmente Tatiana revelava ser casada com mais de uma pessoa.

– Ah... claro, que pena – Rebeca rebate, sem demonstrar o que o comentário de fato queria dizer – Bom, nos vemos na próxima semana, então – ela se despede com um beijinho em seu rosto, gesto copiado pela modelo logo em seguida.

Naquela noite, tão logo chegou em casa, Tatiana contou às esposas sobre o episódio desagradável ocorrido durante a aula. Por conta disso, acabou deixando de lado detalhes importantes de sua experiência artística, por exemplo, a emoção que sentiu ao desenhar movida por prazer novamente, ou a comoção ao ser bem recepcionada por colegas tão jovens, pelo simples motivo de que se sentia extremamente incomodada com o que tinha parcialmente presenciado. Tanto que até cogitava nem voltar para a aula seguinte, como uma forma de protesto.

Mas Tatiana retornou, resiliente, sete dias depois. Voltou totalmente a contragosto de Patrícia, que ainda se opunha à ideia e naquela manhã foi trabalhar emburrada por causa desse assunto, mas com o integral apoio de Mariana, que ficou a semana toda insistindo para que não apenas a mulher não desistisse do curso como ainda trouxesse para casa depois as obras produzidas, para que ela pudesse “contemplar e admirar sua arte”.  

Inclusive, o pedido de Mariana foi o que acabou levando Tatiana de volta ao estúdio um dia antes de quando seria sua próxima aula, momento em que ainda não sabia se de fato continuaria frequentando o curso, com a desculpa de resgatar os desenhos feitos na semana anterior. Em dúvida sobre o que deveria fazer e observando o total desapego de Rebeca ao final da aula, que simplesmente largou seus esboços no canto da sala antes de sair para beber com a modelo, Tatiana também acabou deixando para trás todos os seus rabiscos feitos com carvão, o que deixou Mariana claramente decepcionada na ocasião.

Mas, em verdade, o intuito de Tatiana naquela quinta-feira era descobrir se alguma mudança havia alterado o quadro docente após o ocorrido em sala de aula, já que seu sincero objetivo era trancar o curso, caso as coisas estivessem como antes. Ao mesmo tempo em que não pretendia ser conivente com assediadores, também não podia desistir sem antes pelo menos mostrar para Mariana o que havia desenhado. Só por isso foi até lá, fora de hora e num dia atípico, sem imaginar que o ato simplesmente mudaria tudo em relação àquele curso.

– Que prazer encontrá-la aqui! Não me diga que você voltou a desenhar? – alguém pergunta, assim que Tatiana entra na Escola de Arte.

Com a vista contraída por causa da luz do sol, típica do fim da tarde, Tatiana levou alguns segundos para reconhecer aquele rosto, embora a voz, muito familiar, tenha imediatamente feito seu coração disparar. Era ninguém mais, ninguém menos que Elen.

– Nossa, há quanto tempo – Tatiana exclama, emendando um abraço após cumprimentá-la com um beijinho no rosto. Durou cinco ou seis segundos – Como você está?

– Bem e você? Pois é, a última vez que nos vimos já faz... alguns bons anos – a mulher diz, parecendo realmente satisfeita por vê-la ali – Na ocasião você comentou que estava dando aula, que não desenhava mais... Lembro que fiquei decepcionada – Elen contrai os lábios como se sorrisse, mas ao mesmo tempo pareceu só frustração.

– Sim, foi lá no restaurante – Tatiana responde, sorrindo para ela – Uns dois anos depois que me formei em Artes Visuais.

– Isso mesmo, O Bistrô – Elen fecha os olhos diante da recordação – Até hoje procuro comida melhor!

– Duvido que encontre – Tatiana ri, vaidosa – Precisa voltar mais vezes! Será sempre muito bem-vinda.

– Sei... – Elen dá uma risadinha – Voltou a desenhar?

– Aos poucos, sim. Mas não sei se vou continuar aqui, semana passada aconteceu uma situação chata e...

– É, eu fiquei sabendo – Elen a interrompe, balançando a cabeça – Homens... – ela complementa.

– É... – Tatiana faz uma careta.

– Mas não desiste, não, Tati – Elen então diz – Me convidaram para assumir essas aulas, vim aqui hoje justamente para negociar, saber quais são os termos, enfim... Te encontrar já me convenceu a aceitar o convite, então na próxima semana provavelmente a condução da turma já será por minha conta. Vai ser um prazer ter a sua presença.

– Ah – Tatiana exclama. Foi mais um som do que uma palavra.

– Relaxa, eu disse que vou atuar como professora convidada, não como modelo – Elen ri – Não quer dizer que estarei nua na sala de aula – ela ri mais alto.

– Claro, claro, nem pensei nisso – Tatiana mente e ri também – Bom, nem tenho como recusar algo assim, né – ela ri novamente.

– Nem tem mesmo – Elen dá uma piscadinha – Amanhã, pelo que me informaram, o modelo que vai posar já é experiente, sabe se posicionar bem, então não vai ter um professor acompanhando. Pode vir tranquila. Na semana que vem, nos vemos – ela a abraça brevemente, despedindo-se. Desta vez o gesto durou quase oito segundos.

Munida da informação que mais importava, ou seja, que Elen seria sua professora novamente, Tatiana até se esqueceu que tinha ido até ali também para resgatar seus desenhos. O encontro a deixou tão desnorteada que foi embora sem nem ao menos tentar pegar.

O dia seguinte começou com emoção. Tatiana acordou ansiosa, ciente de que Patrícia faria um carnaval quando soubesse a respeito de Elen, especialmente porque já estava há vários dias zangada com essa história de curso. Isso a levou logo cedo à padaria, a melhor que havia perto de casa, e ela se consolou com comida, como era habitual. A atitude logicamente a levou a passar mal absolutamente o dia inteiro depois, mas ainda assim saiu feliz do trabalho, contente porque se permitiria desenhar mais uma vez.

Ao chegar no estúdio, cumprimentou Rebeca e se posicionou dois cavaletes à sua esquerda, para testar um ângulo diferente. Antes, tomou o cuidado de buscar entre as obras da última aula os desenhos que havia feito com carvão. Mariana andara ocupada e por isso não havia cobrado o que Tatiana supostamente foi buscar no dia anterior, mas certamente hoje se lembraria, caso ela chegasse de mãos vazias naquela noite.

Para sua segunda aula, Tatiana optou por um bloco de papel Kraft e alguns lápis de grafite, desde o 2H até o 6B. Estava distraída separando o esfuminho para as sombras e a borracha moldável quando o modelo entrou na sala. Ela soube disso porque novamente todos se silenciaram no mesmo instante, como forma de respeito.

Com os materiais em ordem, alisando o papel com a ponta dos dedos para sentir a textura áspera que combinava com a cor amarronzada, Tatiana levantou o olhar casualmente para o centro da sala e, para seu espanto, reconheceu o modelo.

– Que... mundo... pequeno – ela resmunga, vendo o rapaz se despir, sem cerimônia ou traço de vergonha. A surpresa inicial foi substituída por um misto de emoções enquanto Tatiana se lembrava de Miguel, um antigo namoradinho, o último antes dela sair do armário.

Concentrado, com seu porte atlético e sorriso ainda cativante, o modelo permaneceu alheio à presença de Tatiana enquanto se posicionava no centro do tablado, pronto para assumir a primeira pose. Mas ele a reconheceu logo nos segundos iniciais de sua apresentação.

Na primeira das três posições escolhidas para aquela noite, Miguel decidiu sentar-se no chão, sobre o tecido de linho branco, numa postura que refletia introspecção e calma. Dobrando uma perna, com o pé repousando próximo ao quadril, e a outra esticada à frente, formou uma linha reta com o corpo, mantendo o tronco inclinado, com os cotovelos apoiados nos joelhos. As mãos, entrelaçadas na nuca, puxavam a cabeça, que ficou virada para baixo.

Tatiana começou mapeando a pose, primeiro riscando o cabelo e a curva do pescoço, que se emendavam com a linha da coluna vertebral. Na sequência, desenhou o contorno dos ombros, que se destacavam próximos aos músculos das pernas, que eram definidos, mas não exagerados. A respiração pesada demonstrava o esforço que Miguel fazia para se manter daquele jeito, com os membros contraídos contra a luz. Por ter bastante tempo para a finalização, Tatiana conseguiu captar o efeito que as sombras faziam sobre seu corpo dobrado.

A segunda postura foi em pé, com as pernas levemente afastadas, um pouco mais que a largura de seus ombros, criando uma base que o permitiu ficar imóvel por longos minutos. Miguel ergueu o banco com as duas mãos acima da cabeça e o manteve lá no alto até o final.

Propositalmente Tatiana se focou nos membros superiores, em especial nas mãos segurando o banco, indisposta a desenhar o corpo inteiro, embora tivesse tempo para tal. Concentrada no desenho, mas com a mente distraída, se perguntou se Rebeca teria feito o mesmo e se o tédio é o que a levava a optar por recortes específicos para desenhar. Alguns minutos mais tarde constataria que a colega havia retratado apenas as costelas do modelo naquela posição.

A terceira e última postura foi sentado no banco, mais relaxado, embora com braços e pernas cruzados, tensionando bem os músculos. A expressão em seu rosto era serena e Miguel decidiu encarar Tatiana durante longos 37 minutos, com um sorrisinho que lhe escapava também pelos olhos. Parecia satisfeito por estar sendo desenhado por ela.

E Tatiana o desenhou, concentrada, numa postura que refletia a dedicação ao trabalho que desempenhava. O lápis se manteve firme enquanto ela fazia movimentos rápidos e decididos sobre o papel à sua frente. Manteve o olhar fixo no modelo, capturando detalhes da pose e da forma nua, com cada traço sendo feito com uma mistura de técnica e dom.

O lápis dava a impressão de dançar sobre o papel, traçando linhas e sombras que, ao começarem a tomar forma, revelaram sua habilidade e sensibilidade como artista. Antes da aula terminar, Tatiana se flagrou imaginando se Elen aprovaria sua arte atual, o que a levou a pensar novamente na mulher, pela primeira vez desde que Miguel entrara na sala.

– E aí, minha gatona! – Miguel fala, a cumprimentando com um beijo estalado na bochecha, depois que já estava vestido – Há quanto tempo! Como é que você está, e seu irmão? Faz tempo que não falo com ele.

– Tudo bem, querido, e você? – Tatiana fica na ponta do pé para abraçá-lo – O Ralf está bem, em algum lugar da Europa.

– Que vida difícil – ele ri – Não sabia que você ainda desenhava, que coisa boa te encontrar aqui! – Miguel puxa os desenhos de Tatiana do cavalete e ri novamente – O banco, Tati? Sério? Tanta coisa para desenhar e você opta justamente pelo banco?

– Não, na verdade eu desenhei as suas mãos – ela ri também – Tudo é uma questão de perspectiva, Miguelito.

– Aham – Miguel ri e antes de devolver as folhas observa atentamente os desenhos da semana anterior, feitos com carvão – Realmente, é tudo uma questão de perspectiva – ele vira em sua direção o desenho da modelo sentada com as pernas abertas, repleto de detalhes, da cabeça aos pés – Só por isso você me deve um café, não quero nem saber – ele complementa, um pouco afetado – Semana que vem?

Miguel anota o número de seu celular atrás do desenho do banco e se despede de Tatiana com outro abraço, bem apertado.

– Eu me sinto ótima, a aula foi boa, sim – Tatiana finalmente responde, alguns minutos mais tarde. No sofá de sua casa, Mariana ainda aguardava resposta para a pergunta que havia feito, segundos atrás – Que bom que eu não desisti, grata por me incentivar a não parar! Depois vou te mostrar os desenhos, para você contemplar e admirar a minha arte.

– Com certeza eu vou, amor – Mariana dá um selinho nela e, após se levantar, dá a mão para que a esposa a acompanhe – Inclusive, hoje na volta para casa eu fiquei pensando que você podia desenhar a gente, né? A Pati e eu, peladas.

– Podia, sim – Tatiana ri e, antes de ir com ela até a cozinha resgatar Patrícia, que agora estava zangada por causa da mudança de Mariana, puxa a esposa para outro beijo, mais molhado e demorado que o anterior.

– Ai, amor... – Mariana murmura, quando a mão de Tatiana avança para dentro de sua calça, sem se anunciar, roçando os dedos por baixo de sua calcinha – Que maldade... – ela volta a murmurar, quando a mulher se afasta dela.

– Maldade é você querer morar longe de mim – Tatiana rebate, mas num tom ameno – Vou aparecer na sua casa toda quarta-feira, só para trepar com você.

– Isso, amor – Mariana beija a mão da esposa, entrelaçando os dedos nos dela – Vamos ressignificar o nosso “dia do trisal”.

– Vamos, sim. Mas para isso, saiba que você é quem vai ter que amansá-la – Tatiana aponta para o cômodo onde Patrícia se encontrava. O aroma de café estava delicioso – Inclusive com relação ao meu curso, Mari. Preciso da sua ajuda porque isso vai dar um xabu danado.

– Mais ainda? – Mariana ri – Claro, querida. Deixa comigo, sei qual é o chá que acalma a Pati. Te falei do meu sonho dessa noite, né?

As duas dão uma risadinha baixa, cúmplice, mas escolhem uma expressão séria para estampar o rosto antes de entrarem na cozinha. Na cabeça de Tatiana, “Marinheiro só” finalmente parou de tocar.    


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