TPM - Capítulo 5: A surpresa
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Existem
determinados momentos na vida em que somos obrigadas a nos confrontar com uma
dura, porém importante realidade, travestida de ensinamento: nem sempre o mundo
conspira contra nós. Há casos, muitas vezes, em que somos inteiramente
responsáveis por nossas próprias decisões, ações, determinações, enfim, e aí depois
que tudo desanda não há nem quem responsabilizar a não ser nós mesmas.
Infelizmente, porque é sempre mais fácil terceirizar a culpa, especialmente
quando não gostamos do que vemos.
Constatar
isso inevitavelmente coloca em xeque muito do que sabemos, como nossa percepção
em relação a conceitos importantes, tipo sucesso e felicidade, transformando
experiências aparentemente positivas, ao menos à primeira vista, em desafios
tenebrosos. Exemplo disso é tudo o que Mariana instantaneamente passou a encarar
depois que resolveu passar os dias da semana longe de casa.
É
curioso como nessas horas de confronto conceitos como bom e ruim tornam-se
relativos e, consequentemente, subjetivos. Ela experimentava com estranhamento
a sensação de vivenciar uma situação incrível que conseguia ser também horrorosa,
terrível em vários sentidos. Tudo porque decidiu investir alguns meses na
própria carreira, o que significava de alguma forma colocar sua vida pessoal em
detrimento à profissional. No começo, pareceu ser uma boa ideia...
Mariana
não fazia o tipo mística, mas ainda assim vez ou outra gostava de acreditar que
certas coincidências também poderiam ser algum tipo de sinal. Como no dia em
que se encontrou por acaso com Carmen num café no Ipiranga, por exemplo. Quer
dizer, “café” não é exatamente o melhor termo para designar o estabelecimento
que resolveu entrar, embora tenha sido desta forma que descreveu para as
esposas. O lugar estava mais para um boteco, inclusive em relação ao público, embora
servisse almoço também, além de salgados suspeitos expostos numa vitrine
engordurada. O ambiente era daqueles impregnados com cheiro de fritura, combinava
com as paredes encardidas, e foi sua melhor opção de parada.
Assim
que chegou, pediu água para beber, na falta de um rio para se atirar. Ao sentar
em frente ao balcão, viu Cacá no fundo do bar, almoçando um “prato feito”,
acompanhada do celular e de uma garrafa de cerveja gelada. Parecia tão serena ali
sozinha que quase deu a impressão de viver em outra realidade, muito mais divertida
que a vida real.
Naquela
tarde, frustrada, Mariana tinha perdido um cliente importante, fundamental para
o equilíbrio das contas de sua empresa. Isso a deixou meio sem rumo depois da
reunião, então decidiu parar, sem se importar onde. Precisava de alguns minutos
para respirar ou ia surtar no meio do trânsito, correndo o risco de viralizar
depois como alguém vivendo um dia de fúria.
Se por
acaso tudo tivesse corrido bem em seu encontro de negócios, teria voltado
direto para casa, não encontraria a ex-colega de faculdade e nada do presente
estaria acontecendo. O que envolvia, é claro, alguns meses de sobrevivência de
sua empresa e a manutenção de Nicole e Matilde em seu quadro de funcionárias.
Ou
seja, supostamente o acaso a reconectou a alguém que não via há muito tempo, no
momento exato de se salvar. Pareceu tão perfeito e pertinente que no começo ela
sequer se deu ao trabalho de considerar os contras de todos aqueles
maravilhosos prós.
O
problema é que antes mesmo de se mudar, já naquele sábado, logo após pegar as
chaves do apartamento que a abrigaria pelos próximos longos e solitários meses,
Mariana se questionou sobre suas decisões recentes. Foi inevitável, assim que
viu Patrícia sair correndo do restaurante sem almoçar e nem ao menos se
despedir. Assinar o contrato para vender sua alma à TechFuture por alguns meses
indiscutivelmente livrou sua empresa da falência, ou da mediocridade, mas era o
tipo de pacto que o diabo cobra um preço alto, inflacionado. Agora ficaria
ocupada e distante de casa num emprego quase perfeito, no momento em que a
esposa mais precisaria dela.
As
esposas, melhor dizendo.
– Vou te
dizer que já estou de saco cheio disso, honestamente não sei até quanto ainda
quero permanecer nesse tipo de relação – Tatiana falou, tão logo Patrícia saiu.
Mariana
ainda tentava assimilar a retirada repentina da mulher e, por isso, não disse
nada num primeiro instante. Também porque se chocou diante da revelação. Em
poucas horas, tanto Patrícia quanto Tatiana diziam coisas semelhantes e, até
aqui, ela própria creditava qualquer possibilidade de crise entre as três apenas
à sua mudança. Mas havia claramente outras questões em jogo, igualmente graves.
– Já
são anos vendo esse tipo de coisa acontecer, com a Patrícia sempre priorizando
o trabalho... nada parece ser mais importante que O Bistrô. Nem mesmo eu... ou
você – Tatiana continua, num tom de voz sentido, magoado – Durante um tempo até
acreditei que a sua presença em casa mudaria isso, mas... Desculpa, amor, sei
que é a pior hora para falar essas coisas... é só um desabafo, não dê
importância. Ainda acho que você está corretíssima em vir para cá, são
situações completamente diferentes.
– Não
são... – Mariana resmunga, cabisbaixa. Segurou a mão da esposa por cima da mesa
na tentativa de se ancorar, se esforçando para não chorar em público – Com
certeza tudo isso é um erro, eu tinha que ter procurado outros meios para
chegar a uma solução parecida, não precisava ser algo tão radical...
– É só
que embora eu entenda que seja preciso se dedicar ao trabalho, acredito que a
vida tem outros setores que também são importantes e que por isso mesmo necessitam
do nosso cuidado e atenção – Tatiana continua, como se não tivesse escutado às
lamúrias da mulher – Sem dedicação, qualquer casamento está fadado ao fracasso.
– Mas
pela maneira como a Pati saiu, algum problema grave pode ter acontecido, Tati –
Mariana alega, na tentativa de sensibilizá-la. Sem soltar a mão da esposa, usou
a outra para acessar a internet do celular. A depender da gravidade do
ocorrido, com certeza já teria algo circulando, nem que fosse via rede social.
– É
sempre uma emergência qualquer, os incêndios variam, tanto faz – Tatiana
rebate, levantando os ombros, sem realmente parecer preocupada. Fez um gesto
chamando o garçom e pediu uma caipirinha com bastante gelo, além do cardápio –
Sabe, na quinta-feira passada... – ela pigarreia, antes de continuar – ...eu encontrei
alguém que não via há muito tempo, há vários anos, e vê-la me fez pensar...
– Amor,
desculpa, não quero te cortar, mas olha isso – Mariana vira a tela do celular, com
um meme em forma de quadrinho, numa montagem tosca em que o rosto da personagem
era o logo dO Bistrô. A legenda dizia: “cardápio Control C, Control V”.
Aquele
na verdade era apenas um dentre os vários que Mariana encontrou em poucos
segundos de pesquisa. Em questão de minutos, especificamente enquanto visitavam
três apartamentos nos arredores de onde Tatiana e ela ainda se encontravam, uma
vastidão de imagens tinha sido adaptada e compartilhada quase na velocidade da
luz, todas prejudicando a reputação de Patrícia e de seu restaurante. Em algumas
o rosto da mulher estampava montagens em situações embaraçosas, que caíram no
gosto dos haters de plantão, levando o nome dO Bistrô para a lista dos principais
assuntos discutidos na rede social mais tóxica que Mariana conhecia.
– Nossa,
a Pati vai ficar passada com isso... – ela diz, antes que Tatiana elaborasse qualquer
som como resposta. Soltando a mão da esposa por um breve momento, ligou para a
outra mulher – Oi, amor. Estava vendo aqui no Twitter que aquele tal de Guto
Morais, que se diz jornalista, inventou que você copiou uma receita e o público
dele comprou a história. Sim, já ganhou uma proporção típica de internet...
Uhum, você está nos trending topics. É, o ideal seria descobrir o porquê
de ele ter dito isso, para então poder desmentir. Sim... Eu vou, sei lá, dar um
jeito de abrir mão desse trabalho aqui, vou devolver a chave do apart... não, gata.
Mas, Pati... Eu sei, querida, mas e se... Tá. Tá bom, Patrícia. Claro, se acha
melhor assim, faremos do seu jeito. Também te amo, até mais tarde. Outro,
tchau.
– O que
ela disse? Alguma menção sobre como vamos voltar para casa, considerando que ela
nos largou aqui sem carro, no meio do nada?
A
pergunta de Tatiana foi feita da beira de um copo decorado porque, longe de
Patrícia, a mulher abusava da própria sorte e até se arriscava a beber no meio
da tarde. O álcool obviamente era vetado de sua dieta, controlada de perto pela
outra esposa, sempre muito preocupada com este assunto. Mas Mariana entendeu
que o gesto era puro ato de rebeldia, ainda que depois Tatiana fosse a única a
ter que arcar com o alto preço de sua própria transgressão.
O fato
é que ela não parecia estar nem um pouco preocupada com o mal-estar que
certamente a brindaria mais tarde e se recostou na cadeira com o semblante
sereno, sem transparecer nenhum tipo de indisposição, ainda que o mundo desse a
impressão de estar ruindo.
– Patrícia
falou que ela mesma vai resolver tudo, que eu não devo desistir de nada... disse
que tenho que “seguir o roteiro” e focar no novo trabalho – Mariana responde, desviando
a atenção para o cardápio, empurrando os óculos para cima do nariz. No entanto,
não leu nenhuma informação do menu. Não conseguiu! Sentia-se angustiada demais
para desempenhar qualquer atividade, por isso imediatamente colocou-o de lado novamente,
de um jeito inquieto – Acho que ela ainda não tem noção da dimensão e da
gravidade desse tipo de problema, por isso está tão tranquila.
– Ou tem,
mas ainda assim quer que você aja exatamente como ela – Tatiana volta a erguer
os ombros, num claro desdém – Você não desistir do seu trabalho é uma ótima maneira
para ela não se culpar por agir exatamente da mesma forma – complementou,
fazendo um biquinho em volta do canudo, sexy demais para o contexto daquele
tipo de conversa, embora tenha parecido proposital.
– Você
não está mesmo preocupada? – Mariana pergunta, largando o celular e voltando a
segurar em sua mão, num gesto quase de súplica.
Em
silêncio, desejou também ser capaz de um dia reagir tão calma e tranquilamente
às situações, assim como Tatiana. Por dentro ela mesma gritava, aflita por estar
ali e não dirigindo de volta a São Paulo junto com Patrícia. Sua vontade
sincera naquele momento era quebrar uma cadeira em cima do jornalista safado
que tinha inventado aquela mentira ridícula. Como se a mulher precisasse copiar
a receita de alguém! Que audácia!
Tatiana,
a seu turno, não apenas seguia plena como dava mostras de nem mesmo estarem
vivenciando o mesmo drama. Ao menos aparentemente, a mulher era um exemplo
irretocável de autocontrole. Ou então já tinha desistido de tudo e realmente
não se importava com mais nada.
– Amor,
vira e mexe acontecem situações deste tipo, não é a primeira vez – Tatiana
então diz – Ou melhor, talvez seja inédito porque agora envolve meme e rede
social, mas a Patrícia já foi vítima de calúnia praticada por gente que só está
atrás de palco, de audiência... Sabendo que não vai ser a última vez, vou me
aborrecer por quê?
– É,
mas é que...
– O que
a gente precisa fazer é almoçar, exatamente conforme o planejado, e depois ir
até uma loja para comprar alguns móveis para você, eletrodomésticos, uma
cama... – Tatiana insiste, a interrompendo – Prioridades, Mari – completou,
sorvendo mais um pouco de sua bebida gelada.
Sem
dizer mais nada, Mariana assentiu com a cabeça, fez um gesto para o garçom e
pediu uma caipirinha igual à de Tatiana. Já que não precisaria mais dirigir
pelas próximas horas, uma vez que Patrícia realmente havia largado as duas a pé
numa cidade que elas não conheciam, permitiria amolecer um pouco a ansiedade
com uma dose gelada de cachaça, limão e açúcar. Beber definitivamente não
resolveria nenhum de seus problemas, mas se manter sóbria geraria o mesmíssimo
resultado, então acompanharia a mulher. Não era do tipo que ficava junto de uma
dama que se embebeda sozinha, afinal.
Amortecida,
depois do merecido segundo copo gelado naquela tarde tão quente e abafada, degustado
com a sincera desculpa de tão somente acompanhar Tatiana, Mariana contemplou seu
almoço bem servido e enfeitado, refletindo que com certeza Patrícia encontraria
erros e defeitos na comida, se não tivesse ido embora. Comer fora com a mulher
era um verdadeiro passeio gastronômico, dava para aprender bastante.
Ainda
assim, por ser leiga e ter duas caipirinhas dançando no organismo, considerou
que caso estivesse sozinha, teria fotografado o prato só para mandar para
Tatiana, porque gostava de dividir com ela esses detalhes do dia a dia e porque
era um pedido que a esposa também podia comer – nhoque de mandioquinha com
salada verde.
Sorriu
ao vê-la a seu lado, almoçando com ela, serenamente; era importante tê-la por perto
neste momento. Sem querer, Mariana refletiu que Tatiana jamais a deixaria para
trás numa cidade desconhecida e neste ponto da vida.
Quando
chegou na beirinha do precipício dos pensamentos, prestes a se atirar no
julgamento contra Patrícia, lembrou-se do motivo que fez a mulher se levantar
de repente, antes mesmo de sequer almoçar, e ir embora, deixando-as ali. Pior: Mariana
precisou reforçar internamente que ela própria estava fazendo exatamente o mesmo
que Patrícia, o que a impossibilitava de julgar a esposa por ter priorizado o
trabalho naquela tarde. O Bistrô enfrentava nítidos problemas!
Levemente
alcoolizada, compreendeu o que Carmen quis dizer ao mencionar que a bebida
favorecia sua criatividade. Com o estômago cheio e a mente muito mais apaziguada,
acalmada em variados níveis, em poucos segundos conseguiu pensar numa dezena de
ótimos adjetivos para defender a honra de sua mulher e rebater a “puta falta de
sacanagem” do jornalista colunista amante de mentiras, e “xingar muito no Twitter”.
Só não o fez porque se distraiu com Tatiana. A mulher tinha o poder de
entretê-la a ponto de se esquecer completamente dos problemas, como agora.
Tatiana
tinha um dom poderoso, capaz de fazer Mariana até mesmo olvidar que estava de
mudança, que sentia-se ansiosa e preocupada com a nova fase, e também um pouco insegura
com o trabalho, embora otimista. Com facilidade, a mulher a transportava para
um lugar distante, só delas, em que problemas eram impenetráveis, dos pequenos
aos grandes. Ali, enquanto almoçavam, por breves momentos até se esqueceu de que
em um dia tudo mudaria na rotina delas.
Ainda
assim, mesmo distraída, durante a sobremesa Mariana considerou que mais tarde poderia
ser interessante conversar com Carmen, que praticamente morava dentro da
internet. Se alguém tinha o potencial de ser uma boa aliada das TPM nessa guerra
cibernética, com certeza era a amiga, que entendia do assunto e podia ajudar a
traçar uma estratégia de defesa, um plano de gerenciamento de crise, alguma
coisa. Todo tipo de socorro valia.
– Mas
ela é apenas a mascote de uma marca de café – Tatiana rebate, num tom
divertido, enquanto aguardavam para pagar a conta. Deixou para Mariana a missão
de chamar um Uber, com a desculpa de estar com a vista cansada, quando em
realidade sentia-se levemente ébria, às duas da tarde – Não estou desmerecendo
ninguém, gatinha, mas não é como se a sua amiga tivesse o poder de, sei lá,
derrubar o Twitter. Suspender a conta do sujeito já seria impossível, embora
fosse o correto a ser feito numa situação assim. Na verdade, nem deveria ser
permitido que uma rede social estrangeira mantivesse no ar mentiras travestidas
de calúnias e difamações...
– Mas é
que além de ter influência, a Cacá manja dessas coisas. Não para derrubar a
rede social, eu acho, mas ela pode dar dicas, apontar caminhos, indicar soluções...
Que tal se gente, sei lá, marcasse um café para mais tarde? Aí vocês se
conhecem também, o que acha?
– Você
desistiu de me levar para conhecer seu quarto de hotel? – a pergunta foi feita
tão perto que Mariana sentiu o hálito de Tatiana arrepiar sua nuca. A mão dela
em sua coxa serviu como uma espécie de chave e fechadura, levando-a a se abrir
debaixo da mesa.
– Ai,
amor... – foi tudo o que conseguiu responder, num tom que lembrou o miado de uma
gata. Quis se empinar, mas se conteve, afinal, estavam em público.
Ressabiada,
Mariana olhou para os lados, preocupada de estarem chamando atenção de alguém.
Não podia se esquecer que não estavam em São Paulo e ainda não sabia como era a
aceitação da sociedade campineira em relação a casais de lésbicas. Por sorte,
um total de zero pessoa se preocupava com elas, o que a fez baixar os ombros,
desanuviando a tensão autoimposta. Ainda assim, considerou que irem para o
hotel era realmente o melhor programa para fechar aquele dia, o que a fez voltar
a sorrir.
– O
quê? – Tatiana pergunta com malícia, afastando-se alguns centímetros apenas
para encará-la diretamente nos olhos. Antes de retornar a falar, mordeu o lábio
inferior de um jeito sedutor, como se quisesse literalmente comer Mariana (ali,
inclusive). Isso a levou a miar novamente, porque embora sem palavras, era
capaz de reconhecer os trejeitos e também as intenções da esposa – Não era este
o nosso combinado? Já quer mudar de ideia? – ela leva a mão de Mariana até os
lábios, mas em vez de beijar seus dedos, a mordisca de levinho.
– Não,
mas é que como a Pati foi embora, pensei que...
– Azar
o dela, ué – Tatiana a interrompe, levantando-se num impulso repentino –
Ninguém mandou querer voltar mais cedo para casa – ela estende a mão,
convidando Mariana a se levantar também – Você está me devendo uma desde aquele
beijo no sofá ontem à noite lá em casa, ainda não esqueci. E sim, estou te
cobrando. Você vai se mudar amanhã, Mari!
– Tatiana!
– o tom de Mariana foi indignado – Você está me devendo uma desde o
sonho que eu tive na quinta! – ela sorri, enrugando a testa para ver a
localização do Uber pelo celular. Lá fora, na calçada, o clima era
completamente diferente, bem mais quente – E me cobre mesmo, sempre, com juros
– completa, dando um selinho rápido na mulher.
Como
programado, comprou apenas o essencial para mobiliar parcamente o espaço onde
dormiria nos próximos meses, só o básico, mesmo, sem se importar com objetos de
decoração e outras besteiras do tipo porque não havia motivos para se apegar,
ou melhor, adornar. Como Tatiana bem havia dito na noite anterior, ela ainda
tinha uma casa, ninguém estava se divorciando, afinal.
Tentou
ser prática, como Patrícia seria, se estivesse junto com elas. Todavia, em sua
ausência, conseguiu ser ainda mais assertiva porque a mulher, assim como
Tatiana, com certeza colocaria no carrinho itens que se dependesse de Mariana
nem entrariam no apartamento, por exemplo, cortinas, almofadas e uma colcha
grossa em tom mostarda para usar de cobre-leito.
Tatiana
sugeriu de comprarem tudo no mesmo lugar, no caso, um hipermercado enorme, quase
do tamanho de um quarteirão. Outra precaução foi programar toda a entrega para
o mesmo dia, para não correr o risco de deixar de receber algo por estar
trabalhando. O prazo foi de dez dias, o mesmo informado pela loja de colchão, localizada
do outro lado da avenida.
Inclusive,
a compra da cama foi o que mais demorou naquele dia porque Tatiana não quis ser
descuidada, insistiu que aquele era o absolutamente o item mais importante e
era preciso escolherem a melhor opção, o que envolvia conforto e durabilidade,
sem deixar de lado a questão financeira. Isso a levou a se sentar em absolutamente
todos os colchões disponíveis (alguns mais de uma vez) e, quando gostava do que
encontrava, sorria de um jeito malicioso que dizia muito, ainda que verbalmente
ela não falasse nada.
Mentalmente,
Tatiana e Mariana se pegaram de variadas formas dentro daquela loja, à vista de
todos, inclusive do vendedor atencioso que demorou a perceber que elas eram um
casal. Foram momentos de tortura porque embora de fato Tatiana a provocasse, estava
igualmente empenhada na compra do melhor colchão. E ela só se deu por
satisfeita no final daquela longa tarde.
Apenas
quando encerraram as compras e chamaram um Uber com destino ao hotel de Bruna, localizado
não muito longe dali, é que as duas voltaram juntas à completa sobriedade. Passear
alcoolizada com Tatiana munida do cartão de crédito de Patrícia deixou Mariana espantada
quando o caminhão finalmente encostou em frente ao prédio, alguns dias mais
tarde. Muito do que chegou ela nem se recordava de ter comprado, embora se
lembrasse de andar nas nuvens enquanto esteve empenhada na função de ser adulta
responsável junto com a mulher.
Naquele
dia, durante o trajeto até o hotel, cansada depois de um dia cheio e exaustivo,
Mariana deitou a cabeça no ombro da esposa, contemplando ao entardecer que tingia
o céu de um rosa escuro deslumbrante, e ao fechar os olhos se comprometeu a ter
sempre Tatiana à vista. Mesmo longe nos próximos meses, se manteria por perto,
para o caso de a mulher precisar. Inclusive sexualmente.
O
quarto era luxuoso e deslumbrante, ficava realmente no subsolo de uma torre
alta. Na ausência de janelas, ostentava nas paredes cobertas por cortinas de
veludo telas em alta definição, exibindo obras de arte que imediatamente
ganharam a atenção de Tatiana, assim que chegaram ao local, carregando duas
sacolas com algumas guloseimas. Nada foi dito a respeito, mas pareceram estar
preparadas para passar a noite ali.
– Vermeer,
Matisse, Monet, Botticelli – ela foi identificando, apontando o dedo em direção
às telas, num tom didático – Velázquez, reproduzido na própria tela... – ela leva
a mão ao queixo e observa em silêncio a obra “As meninas”, com os olhos
apertados, na mesma postura que adotava quando ia ao museu.
Mariana
não disse nada para não interromper a contemplação da mulher, que se manteve em
silêncio, sem vontade de compartilhar os próprios pensamentos. Quando a encarou
de volta, porém, Tatiana revelou um brilho no olhar que a fez se questionar se estaria
a par de tudo. Será que tinha perdido algo?
– O que
foi? A pintura te deixou reflexiva? – Mariana indaga em tom de riso, ainda que
a pergunta fosse séria.
– É...
quer dizer, não – Tatiana dá um meio sorriso breve em sua direção, desviando o
olhar para o chão – Só me lembrei de uma professora que tive na faculdade, não
sei se já te falei sobre ela. O nome dela é Elen.
– Hum,
acho que não, amor – Mariana responde, se ordenando para não se esquecer
daquele nome. Depois sondaria com Patrícia para saber quem era, apenas a título
de curiosidade. As mulheres costumavam apresentar versões diferentes para as
mesmas pessoas, segundo seus próprios pontos de vista. Isso dizia muito mais
sobre elas do que os outros, exatamente.
– Certa
vez, Elen comentou sobre como esta obra brinca com a perspectiva entre quem
observa e quem é observado. Velásquez inclui a corte, ele próprio e até o espectador,
como se a gente também estivesse dentro da cena, misturando realidade e ilusão
– ela observa a tela novamente, pensativa – Isso me faz refletir até hoje sobre
a percepção que nós temos das nossas próprias relações. Na minha cabeça é como
se fôssemos, sei lá, personagens de um livro, que só existem a partir do
momento em que são lidas.
– Que profundo...
– Mariana comenta, com sinceridade. Voltou a olhar para a tela, para ver se
também conseguia enxergar tudo aquilo – E qual foi o tipo de relação que você
teve com essa professora Elen? Há algum passado entre vocês? – ela pergunta, do
mesmo jeito que Tatiana costumava questionar a respeito de alguém que Mariana
eventualmente mencionasse.
Em seu
caso, geralmente havia algo, mas isso era apenas um detalhe, como aqueles
presentes na pintura do espanhol, que quase não são notados quando se observa a
composição geral. “Passou, é passado” foi uma frase que disse bastante no
começo do namoro com Tatiana e Patrícia. Ainda que contasse com experiências
variadas de outrora, atualmente era comportada e isso é que importava.
– Como
assim? Eu já era casada com a Pati quando a conheci, que tipo de relação ou
passado você acha que poderia ter havido? – a pergunta foi feita num tom um
pouco ofendido, como se Mariana tivesse dito algo muito absurdo ou descabido.
Sem
dizer mais nada, Tatiana cruza os braços, na defensiva, e olha para a mulher como
se aquilo bastasse como resposta, ou como se o fato de ser comprometida na
época a impedisse de ter algo com outra pessoa que não fosse a própria esposa. Parecia
pronta para a briga, como ficava às vezes com Patrícia. Porém, logo tratou de
desviar o assunto e a atenção para o ambiente à volta delas, de um jeito como
se nitidamente não estivesse mais disposta a falar sobre arte. Muito menos
sobre Elen.
– Nossa,
mas aqui é muito legal, né? Que bom, você vai ficar bem acomodada até conseguir
se mudar para o apartamento.
Mariana
nem de longe fazia o tipo ciumenta. Nem podia, dado todo o seu histórico. Mas ainda
que tivesse optado ser uma virgem pura, ela de verdade acreditava que cada
pessoa é dona do próprio nariz e que por isso mesmo somos livres para fazer o
que bem entendermos e quisermos. Obviamente, não era egoísta e esta era uma
regra aplicável também às esposas que, assim como ela, haviam se envolvido com
outras mulheres antes de formarem um trisal (e com homens; vide o caso de Miguel,
o modelo nu). E por saber ser humanamente impossível alterar o passado, não
perdia tempo nem dispendia energia tentando controlar o incontrolável.
Entretanto,
esse tipo de postura não a impedia de vez ou outra se enciumar, especialmente quando
seu radar interno captava algo que passava às margens do que sua fria
racionalidade era capaz de observar. Por exemplo, a maneira como Tatiana falou
da ex-professora, o brilho em seu olhar ao contemplar a pintura que a fez se
lembrar de Elen e até mesmo a desviada que decidiu dar ao assunto,
finalizando-o. Ainda assim, optou por não insistir. Na hora certa, sabia que o
assunto voltaria à tona.
– Aqui
é muito legal mesmo. Para ficar melhor, só precisamos criar algumas memórias
para depois eu não me sentir tão sozinha – Mariana se atira na cama extremamente
macia, envolta em engomados lençóis brancos – Podemos começar por aqui, olha
que delícia esse colchão... – ela fecha os olhos por alguns segundos porque a
cama era convidativa e sentia-se cansada. Mal havia dormido na noite anterior,
ansiosa com todas as novidades agitando sua vida.
– Mas
aqui tem uma banheira, amor – Tatiana informa, com a voz abafada, no cômodo ao
lado – Esse banheiro é enorme, vem ver o tamanho do chuveiro!
O box
em vidro temperado transparente contava com um chuveiro de teto estilo “rain
shower”, com uma queda d’água grande o suficiente para banhar no mínimo
umas cinco pessoas simultaneamente. Mas o que chamou mesmo a atenção de Mariana
foi a banheira gigantesca, bem no centro do banheiro, estilo vitoriana,
certamente feita sob medida porque era capaz de acomodar perfeitamente ela e
Tatiana para alguns minutos de uma relaxante hidromassagem. Ou várias horas, se
assim desejassem.
– Que
delícia, com certeza nós vamos transar aqui – Mariana diz, acionando o sistema
para encher a banheira, observada pela mulher – Mas antes precisamos
experimentar lá – ela aponta para o chuveiro, tirando a camiseta sem anunciar.
Tatiana
a acompanhou, tomando apenas o cuidado de antes puxar para perto duas toalhas que
tinham o nome do hotel, bordado em letras douradas. No armário perto da pia de
mármore com dois lavatórios, encontrou também roupões felpudos, pantufas e
chinelos de spa, além de acessórios de banho que contavam com escovas e
espelhos coloridos, acompanhados de miniaturas de xampu, condicionador e vários
tipos de sabonete líquido.
Havia
três conjuntos de cada, certamente a pedido de Bruna. Em sua gentileza, a amiga
não considerou que Patrícia poderia não estar presente na primeira noite daquela
luxuosa hospedagem.
– Ela
ainda pode aparecer – Mariana diz, colocando apenas a cabeça para fora do box,
observando Tatiana contemplar os itens em trio. Seu cabelo, molhado, fez
escorrer água pelo chão de porcelanato.
– Não
estou preocupada com isso – ela rebate, despindo-se – O quê? Não estou mesmo! –
Tatiana afirma, observando Mariana levantar uma sobrancelha, como se duvidasse
do que ouvia – Quem mais perde por não estar aqui é a Patrícia, Mari.
– Sim,
mas tudo bem estar chateada pela ausência dela. Eu também estou um pouco –
Mariana fala, abraçando a mulher debaixo da água morna, encaixando os ossos das
pelves. Deu um beijo nela, antes de continuar – Te agradeço muito por estar
aqui comigo e peço desculpas por estar fazendo tudo isso. Não queria te
abandonar em São Paulo...
–
Bobagem, gata – Tatiana dá um selinho nela, soltando-se do abraço – Você não
está abandonando ninguém e esse trabalho vai ser legal para você. Não vai? –
ela insiste, erguendo seu queixo, diante do silêncio – Hum?
– Vai, sim...
– Mariana murmura – Eu vou coordenar uma equipe que desenvolve soluções em
inteligência artificial, é quase um sonho – ela sorri, timidamente – Vou
trabalhar numa das principais empresas do ramo no mundo, criada e comandada por
uma mulher...
– Pois
então, aproveite. Sabe que tem o meu apoio total. E o da Pati também – Tatiana
complementa, rapidamente. Pareceu não querer compartilhar a carga dos anos
anteriores de relação conjugal – E você está certa, logo ela aparece.
Como se
estivesse em completa sintonia com Tatiana, Patrícia interfonou para o quarto
naquele mesmo instante, junto com a fala da mulher. Quer dizer, a recepção
ligou, perguntando se a terceira esposa estava autorizada a descer. Em todo
caso, um timing que Mariana invejava porque parecia ser algo que só se
conquista com o tempo. A sincronia entre as duas era perfeita, mas ainda assim
parecia que nenhuma delas parecia reparar na magia daquilo.
De
propósito, Mariana foi abrir a porta só de toalha. Escolheu uma pequena, de
rosto, que mal tampava o tronco, e a puxou para cima da cintura, deixando à
mostra o foco de seu tesão, que pingava junto com a água do banho incompleto.
Já fazia dois dias que sentia-se pegando fogo, achava muito excitante ser casada
com Patrícia e Tatiana, o que a levava a pensar em sexo até nos momentos
impróprios. Como agora.
Patrícia
demonstrou que sua energia estava direcionada para outro setor sem nem mesmo
precisar dizer algo. A expressão em seu rosto revelava, na verdade, certa
apatia, como se sua energia tivesse sido sugada ao longo do dia. Isso levou
Mariana a desviar-se do assunto também, abraçando-a assim que fechou a porta.
Ficaram ali alguns segundos, em silêncio, até que Patrícia começou a chorar em
seu ombro. E esse foi o único som que se ouviu, ao longo de vários minutos.
Tatiana
não se demorou a aparecer, mas quando surgiu tinha cheiro de xampu e sabonete.
Veio em silêncio, de banho tomado, vestindo um belíssimo roupão branco, linda,
com o cabelo molhado escorrendo sobre os ombros. Ela abraçou Patrícia, que pareceu
se lançar em seus braços tão logo a viu. Mariana não era mesmo do tipo ciumenta,
de verdade, mas sentia que toda vez que se afirmava isso a vida a fazia ter que
provar, esfregando em sua cara situações que a deixavam enciumada. E o pior
momento para sentir essas coisas era justamente em casos assim, em que aparentemente
não supria às necessidades das esposas, quando as duas davam a impressão de se
bastar.
Mas Tatiana
e Patrícia demonstraram ter sintonia também com ela, quando abriram juntas os
braços para abrigá-la dentro do abraço, levando-a às lágrimas por outros
motivos, mas pelos mesmos também. Só Tatiana manteve-se impassível, não
exatamente por se encontrar equilibrada, mas ela não chorou. Fosse porque
sentia-se na responsabilidade de acalmar as mulheres, fosse por estar ansiosa
demais para render-se assim. Sabe-se lá por quais motivos, porém, o radar de
Mariana relançou o nome de Elen de volta à sua órbita.
Mais
tarde iria mesmo averiguar com Patrícia sobre essa tal professora, com cautela,
pois assim aconselhava sua intuição naquele momento. Era muita coisa
acontecendo ao mesmo tempo, mas Mariana mantinha-se atenta a tudo. Ou
manteve-se, pelo menos, até se mudar, na noite seguinte.
Ela podia
perfeitamente ter saído de casa na segunda-feira, mas Tatiana e Patrícia
insistiram para que fosse antes, com a justificativa de não precisar acordar
muito cedo, não correr o risco de se atrasar para o primeiro dia de trabalho
etc. Talvez, se não estivesse tão ocupada com a arrumação das malas, Mariana
teria cogitado que as mulheres queriam se livrar logo dela. Mas não teve tempo
para pensar nisso, uma vez que os preparativos tiveram de ser cuidadosamente
executados naquele domingo; embora o intuito fosse voltar para casa dali alguns
dias, considerou que talvez não conseguisse tal feito, já que Simone Albuquerque
Peixoto Gama havia deixado claro que trabalho também fazia parte de seu extenso
sobrenome, então provavelmente o primeiro final de semana já estava
comprometido. Todavia, não compartilhou com as esposas tal possibilidade porque
não quis antecipar os estresses. Se por algum milagre voltasse para São Paulo, teria
aborrecido as três à toa, então as poupou, incluindo ela mesma.
Sentindo
um misto estranho de alegria e infelicidade, não conseguiu se lembrar se no dia
anterior havia comprado também uma máquina de lavar, então foi prudente ao
arrumar as malas. Suas roupas foram separadas para duas semanas de trabalho,
além de dois pijamas que pegou da gaveta de cada uma das esposas. Vestiria algo
delas na hora de dormir, precaução que a fez chorar e sorrir em suas primeiras
noites longe dali. Mariana também levou a mochilinha de Percival, ainda que o
gato não fosse acompanhá-la. A bolsa felina jamais foi desfeita, nem mesmo
depois que se casou, e foi junto com ela para Campinas como se fosse uma
espécie de amuleto. Ou porque inconscientemente Mariana julgou que assim se
sentiria menos só longe de casa e, pela primeira vez, longe de seu Juvenal Nômade
também.
Por
sorte, estava tão cansada que em sua primeira noite sozinha dormiu assim que se
deitou. A cama do hotel era nível cinco estrelas, embalou seu sono tão logo
cerrou olhos e, se sonhou, não sobrou nenhum resquício em sua mente, na manhã
seguinte. Despertou às cinco da manhã, animada para começar o trabalho novo,
embora tenha xingado o despertador quando ele tocou.
Em seu
primeiro dia na TechFuture, Mariana se esforçou para socializar ao máximo e
descobrir o nome de seus novos colegas, liderados por ela, ainda que soubesse
que seria uma tarefa bastante difícil. Havia em seu time um total de 33 pessoas
e a primeira a ter o nome decorado foi Laura, que chegou atrasada naquela
manhã. A mulher tinha quase dois metros de altura e ouvia um rock pesado que
escapava de seus fones de ouvido, características que a tornariam fácil de ser
memorizada também.
As
profissões dos integrantes de sua equipe variavam, desde engenheiros de software
a cientistas de dados, incluindo analistas, desenvolvedores, designers e
especialistas em segurança da informação. Mas Laura, além de aparentemente
fazer seu próprio horário, destacava-se também em sua área de atuação,
diferente de todos no local: era psicóloga, especialista em comportamento. Sua
função era ajudar a desenvolver interações humanas mais naturais com a inteligência
artificial. Ou seja, sua perspectiva ali também colaborava para que ela se
diferenciasse dos demais.
Antes
de começar a tocar os projetos para os quais havia sido contratada, surgiu uma
demanda urgente, informada por Isadora, a secretária da dona da empresa, já na
primeira hora. Mariana nem teve tempo de debater com a equipe qual ideia gostariam
de trabalhar, promessa feita por Simone nas primeiras negociações, pois teria
de coordenar o desenvolvimento de um assistente virtual inteligente voltado
para a automação de serviços empresariais. A meta era aumentar a eficiência
operacional e gerar ganho de produtividade, programando desde a gestão de
agendamentos de tarefas até a análise de dados.
– Chatoooo...
– Laura diz, verbalizando o que todos naquela enorme sala pareciam pensar. Imediatamente
as pessoas ao seu redor se fitaram, com olhares que variavam entre o divertimento
e o julgamento, sem que ela se abalasse, no entanto.
A psicóloga
tinha o semblante sereno, como se não se importasse com o que pensavam a seu
respeito. Seu cabelo picotado, despenteado, parecia ter sido cortado por ela
mesma em frente ao espelho, num momento de tédio. Combinava com sua calça jeans
rasgada no joelho, o all star encardido de cano alto e a camiseta preta estampada
com a capa de algum álbum do Slipknot. Embora destoasse do ambiente formal da
TechFuture, impunha bastante respeito.
– É chato
sim, Isadora, você há de concordar. O que houve com a proposta de criarmos uma
plataforma de saúde digital usando IA? Desistiram? – Laura continua, impassível
– Não era preciso só que a Mariana chegasse para nos coordenar, como você
afirmou na semana passada? Ela não disse isso, gente? – a mulher insiste,
olhando para os colegas, que murmuraram respostas sem querer se comprometer.
–
Existem ordens que vêm de cima, Laura – Isadora responde, sem piscar, fazendo
todos se silenciarem ao mesmo tempo. Tinha uma expressão sisuda estampando o
rosto naquela manhã, combinava com seu terninho preto, bem cortado – A doutora
Simone manda e a gente obedece. Não foi sempre assim?
Laura
não respondeu nada, não verbalmente, pelo menos, considerando que fez uma
careta que disse muito. Em outras situações, Mariana imediatamente teria
sentido vontade de se aproximar dela, mas como líder de equipe percebeu que
teria que ser sua amiga por outros motivos. Laura era o tipo de profissional que
é bom ter como aliada, jamais como adversária ou inimiga.
Além
disso, Mariana também se frustrou com o anúncio, imaginou que seu começo na
empresa seria diferente, mas acatou. Estava naquela chuva, longe de casa,
disposta a se molhar, então se encharcaria daquilo. Ainda que fazendo algo que
não a empolgasse.
E quem
tornou tudo interessante neste começo foi justamente Laura, que já naquele dia ofereceu
insights valiosos e boas ideias sobre como a IA poderia ser usada para atuar
de acordo com as questões humanas. Por exemplo, partiu dela a preocupação de
que a nova ferramenta evitasse respostas excessivamente técnicas e para isso
adotasse uma linguagem acessível a qualquer funcionário, independentemente do
nível de conhecimento. Enquanto prestava atenção ao que era proposto, Mariana
tentava estabelecer um mínimo de harmonia entre as habilidades de seus
liderados para a execução daquele projeto, tarefa que também contou com o
auxílio de Laura.
Naturalmente
as duas se tornariam próximas ao longo das semanas, especialmente depois que
descobrissem que moravam no mesmo prédio, porém já em seu primeiro dia Mariana
saiu do trabalho muito satisfeita com os resultados encontrados. Só não
agradeceu Laura pessoalmente no final do expediente porque não a encontrou para
poderem conversar. Aparentemente ela foi embora mais cedo, sem avisar.
Somente
ao voltar para o hotel bem mais tarde, já de noite, é que Mariana pareceu
retomar a consciência de que o alto preço para trabalhar na TechFuture era ter que
ficar longe das esposas. E sentiu falta das duas imediatamente quando se deitou
após o banho, vestindo o camisetão que Tatiana gostava de usar para dormir.
O
cheiro familiar que misturava o perfume da esposa com o aroma do amaciante que
Patrícia gostava despertou uma saudade imediata, dolorida, que comprimiu seu
coração de um jeito tão intenso que a fez levar a mão ao peito sem perceber.
Sua respiração tornou-se pesada instantes antes de começar a chorar, rendida
pelas emoções que transbordavam de seu interior, inundando todo o mundo à sua
volta. O enorme e luxuoso quarto de hotel tornou-se pequeno e sufocante enquanto
ela afundava sentindo o peso de suas próprias decisões. A sensação ruim de
angústia contrastava com o toque macio do tecido da camiseta roçando em sua
pele.
Quis
ligar para as duas, sair daquela espiral de arrependimento através de uma
chamada de vídeo, contar como tinha se saído em seu primeiro dia no emprego
novo, mas sabia que naquele horário Patrícia ainda estava no trabalho e, na
tentativa de aguardar pelo melhor momento para essa conversa salvadora, chorou
até se cansar e dormiu sem perceber, abraçando o celular.
Na
manhã seguinte, quando o despertador tocou novamente antes do sol nascer,
Mariana viu que havia duas chamadas não atendidas das mulheres e uma terceira,
só de Tatiana. Suspirou fundo, frustrada, antes mesmo de se levantar. Quis
tanto conversar com as esposas e ainda assim conseguiu não ouvir às chamadas feitas
por elas.
– Oi,
meu amor. Bom dia, querida, como é que você está? – Mariana pergunta, assim que
Patrícia aparece na tela de seu celular – A Tati já acordou? Tudo bem por aí?
– Oi,
Mari! Ontem à noite a gente tentou te ligar – Patrícia responde, com a voz
sonolenta. Estava na cozinha e não parou de cuidar dos preparativos do café
enquanto falava – A Tati está no banho, vou lá em cima chamá-la.
– Não
precisa, querida. Mais tarde falo com ela. Me diz de você, já estou com
saudades.
– Senti
sua falta na cama essa noite, na hora de dormir – Patrícia dá um sorriso,
tentando disfarçar o tom de sua voz, que saiu falhada – Estou com saudades
também, gatinha. Como foi sua estreia no trabalho ontem?
– Foi tudo
bem, mas voltar para o hotel no fim do dia foi terrível... Vou tentar dormir em
casa amanhã. É a sua condição para que vocês passem a vir me visitar toda semana,
né?
– Isso,
vem. Inaugura a nossa nova “quarta do trisal”. A gente deita as três sem
calcinha – Patrícia ri baixinho ao repetir a proposta que sempre partia de
Mariana.
– Ai, com
certeza, sim! – ela também ri, mas a boca logo se curva para um choro sentido,
sincero e incontido.
– Ah, não,
amorzinha, ei... – Patrícia larga o bule de chá em cima do fogão e segura o
celular com as duas mãos, fazendo seu rosto preencher praticamente a tela inteira
– Chorar tão cedo assim não pode, meu bem... Hum? Vem cá, fala comigo.
– Acho que
nunca na vida me senti tão dividida – Mariana fala, junto de uma fungada,
secando as lágrimas com a palma da mão – Desde que conheci vocês, tenho certeza
de que o meu lugar é aí, com vocês... Já estou tão arrependida de ter vindo
para cá! Fico aflita aqui sozinha, longe de vocês, preocupada que isso de
alguma forma afete a nossa relação, estrague o nosso casamento... Eu jamais me
perdoaria se algo assim acontecesse.
– Eu
sei, mas é tudo provisório, meu amor – Patrícia rebate, na tentativa de consolá-la
– Daqui a pouco as coisas voltam todas ao normal, está tudo bem, ainda estamos
pertinho. Vem para casa amanhã que a gente te prova que nada mudou.
– É,
vou me esforçar para isso. Ontem saí tarde, mas hoje vou me programar para fazer
diferente, até para facilitar de amanhã fazer o mesmo. Até para não ser sugada
pelo trabalho logo de cara, né?
– Sim,
faz isso. Precisa se cuidar mesmo. Vai me avisando, tá? E liga para a Tati
depois, ela vai gostar de falar com você – Patrícia diz, voltando a cuidar de
seus afazeres.
– Vou
sim, Pati. Fica bem, ótimo dia, minha linda. Qualquer coisa manda mensagem aqui
no grupo.
– Sim,
você também – Patrícia dá uma piscadinha e manda um beijinho no ar antes de
desligar.
A alguns
quilômetros longe dali, a mulher não viu Mariana permanecer na mesma posição,
sentada na beira da cama, segurando o celular por alguns minutos após o término
da conversa. Tampouco imaginou que a ligação a fez considerar, de novo, a desistir
de tudo aquilo. Afinal, Patrícia desconversou e em momento algum revelou como
estava. Não fez nenhuma menção sequer sobre a fake news, os memes, nada.
– A
Pati está bem, Mari – Tatiana garante, alguns minutos mais tarde. Estava
dirigindo e aparecia na chamada de vídeo de acordo com o ângulo do painel do
carro, onde havia prendido o telefone. Ao fundo, diferentes sons de buzinas e
sirenes serviam como trilha sonora para suas palavras, abafadas pelos vidros
fechados e o ruído do ar-condicionado – Ontem as coisas deram uma boa acalmada
na internet, você viu que vazaram novas imagens gravadas com câmeras escondidas
em hotel? Já é o assunto mais falado desde então.
– Não
vi, amor – Mariana responde, enquanto dirigia também. Mas ao contrário da esposa,
que ainda estava bem distante do serviço, ela já fazia baliza no estacionamento
do trabalho – O que houve?
– Aquele
médico famoso, que virou influencer com essa moda de harmonização facial,
sabe? Rodolfo... Lemos, acho.
– Sei, o
direitista que tem cara de bolacha Trakinas – Mariana ri ao ver a esposa sorrir
– Que vende procedimentos estéticos que ele próprio não realiza.
– Esse
mesmo – Tatiana dá uma olhadela rápida para a tela do celular, mas logo desvia
a atenção novamente para o trânsito – Está envolvido num esquema de fraude. Foi
descoberto que ele falsifica os resultados dos testes de segurança dos produtos
usados. No fim de semana ele foi flagrado numa reunião negociando propina com
um fornecedor.
– Que
babado! Mas que bom, também! Além de ser ótimo que essas coisas venham à tona,
a maior vantagem da internet é justamente essa: sempre surge algo que viraliza
de um dia para o outro, anulando o estrago do caso anterior. Daqui a pouco
ninguém nem se lembra mais da história que envolve a Pati e O Bistrô, inventada
por aquele jornalista safado, salafrário, chinfrim.
– É, parece
que sim... – Tatiana rebate, com o fim da frase travando por causa do sinal –
Em todo caso, a Patrícia insiste em tomar um café com esse tal de Guto Morais,
ao que me oponho fortemente, mas você sabe como é a sua mulher... Teimosa que
nem uma mula.
– Ué, como
assim? Vai tomar café com ele para quê? – Mariana questiona, desligando o
automóvel no estacionamento da TechFuture – Com essa gente é preciso manter
distância, não o contrário! Eu, hein... Tenta convencê-la a não fazer isso,
Tati – ela pede, trancando o carro. Com o celular na mão, revelou um céu azul
acima de sua cabeça bem diferente do clima cinzento que encobria São Paulo
naquele momento.
– Ah, não,
Mari... não tenho tempo para essas coisas, não. Nem paciência – Tatiana afirma,
num tom firme e inflexível – A Patrícia já é grandinha, sabe bem o que faz,
deixa ela.
– Tá
bom, amor. Claro. Faz como achar melhor, confio no seu tato – Mariana rebate,
passando pela catraca na recepção da empresa usando um crachá que ainda estava
sem foto, embora tivesse seu nome – Estou chegando aqui no trabalho, a gente
volta a se falar até o fim do dia. Te amo, tá? Amanhã vou fazer de tudo para
dormir em casa.
– Boa,
Mari, vem sim. Eu te amo também, bom trabalho, se cuide aí.
– Você
também. Um beijo, Tati – Mariana manda um beijinho para a tela, sorrindo ao ser
retribuída com um gesto igual feito por Tatiana. A mulher a esperou desligar, depois
que entrou no elevador.
– Era a
sua esposa? – Isadora pergunta, entrando no elevador logo atrás. Mariana não
havia reparado que estava acompanhada e se assustou, num sobressalto, ao ouvir a
voz da assistente de Simone dentro da caixa metálica.
– Oi, bom
dia, era sim – Mariana responde, virando-se surpresa em sua direção, girando em
cima dos calcanhares.
As duas
pareciam ter combinado o look antes de saírem e estavam vestidas inteiramente
de preto, embora a roupa de Isadora fosse mais careta e mais cheia de botão.
Naquela manhã, Mariana usava um suspensório que dava um toque especial ao seu
modelito, extremamente formal, incluindo sua camisa com gola italiana e sua calça
social com pregas.
– Bom
dia, desculpe, não pude deixar de ouvir... acho que esqueci de mencionar que a
doutora Simone pretende implantar um novo sistema na TechFuture... Amanhã ela vai
compartilhar alguns de seus planos com você, no fim do dia – Isadora diz,
enquanto subiam, piscando mais vezes do que era necessário – Talvez não consiga
dormir em São Paulo, conforme comentou na sua ligação.
Mariana
optou por não dizer nada num primeiro momento porque todas as respostas que
pensou de imediato eram bastante indelicadas e até mesmo grosseiras. Por sorte,
sabia se comportar socialmente, o que incluía engolir algumas palavras na
intenção de manter a cordialidade, principalmente no ambiente de trabalho.
– Certo,
uhum, tchau, tchau, tenha um excelente dia – Mariana então falou, quando a
porta do elevador se abriu.
Diferentemente
das palavras proferidas, as pensadas foram: “cuida da sua vida, bruaca
horrorosa, ridícula”. Achou a impertinência de Isadora de uma audácia que se
por acaso fosse responder o que teve vontade, certamente seria demitida naquele
mesmo dia, e por justa causa! Mas se conteve porque não podia jamais perder de
vista que aquela mulher era mais do que a simples assistente de Simone; ela era
também os olhos da dona da empresa naquele lugar.
– Você
está sabendo de um sistema novo que a Simone pretende implantar aqui na empresa?
– Mariana pergunta para Laura, assim que a mulher alta finalmente chega ao
trabalho, novamente com atraso. Desta vez, foram exatos 28 minutos.
–
Sistema novo? – Laura rebate a indagação com outra, assoprando o café dentro de
um copinho de isopor, que ela segurava com a pontinha dos dedos. Tinha os
cabelos molhados, como se recém-saída do banho – Não que eu saiba, quem te disse
isso? Foi a Isadora? – insiste, vendo que Mariana permanece quieta.
– É,
por acaso ela me ouviu falar para a minha esposa que eu tentaria dormir em casa
amanhã, enfim... Achei que você pudesse saber de algo.
– Ah, é
verdade! Você mora em São Paulo, né? Tinha esquecido desse detalhe, mas lembro
que alguém comentou... Está hospedada em um hotel? – Laura então pergunta, como
se isso fosse mais importante.
– Até o
fim da semana, sim. Mas já assinei contrato para me mudar para perto daqui, vou
morar próximo aos estádios.
– Legal,
conheço bem. É ótimo, mas alaga quando chove muito, precisa tomar cuidado.
– Nossa,
sério...? – Mariana resmunga.
– Vamos
ser vizinhas, eu também moro naquela região – ela toma um golinho curto de seu
café quente antes de continuar, sem tirar os olhos de Mariana – Não sei nada
sobre o tal sistema novo, mas posso sondar e tentar descobrir, chefinha – Laura
dá uma piscadinha para ela no final da frase, cúmplice – Que legal que você é
casada! Faz tempo? Reparei que usa aliança, mas achei que era só para fazer
graça. Sabe? Que nem a Isadora?
– A
Isadora usa aliança de mentirinha? Como assim? – Mariana questiona, um pouco
incrédula. Desejou um café também, mas ainda não sabia onde ficava a máquina.
– Eu
tenho uma teoria que sim – Laura dá uma risadinha malvada, que logo contém.
Voltou a falar usando um tom extremamente baixo – Para mim, essa história de
que ela é noiva é pura balela. Na minha fanfic, a Isadora é apaixonada pela
Simone e inventou isso de noivado só para não ficar por baixo, para ter o que
falar. Você já viu a maneira como ela olha para a mulher? É descarado – ela ri
de novo.
– Não
reparei, mas vou observar – Mariana ri também, retornando ao trabalho.
Embora
incomodada com a invasão de privacidade e o anúncio feito pela assistente mais
cedo, havia bastante coisa para fazer e Mariana se distraiu com facilidade. Tanto
que nem viu em que momento Laura deixou um copinho de isopor em sua mesa,
perfumando o ambiente com o delicioso aroma de café.
Naquela
noite, não teve tempo para saudosismos na hora de dormir. Tinha um milhão de
e-mails para responder e se inteirar dos assuntos de sua empresa, que
permanecia ativa e funcionando a pleno vapor, ainda que com um cliente a menos
e sem a sua presença. Por causa disso, Mariana dormiu perto da hora de acordar
e terminou de tomar o café da manhã no carro, aproveitando os minutos do
trajeto para falar com Nicole por videochamada. Embora fosse extremamente cedo,
sabia que a funcionária se levantava antes do sol nascer.
– Oi,
Mari! Bom dia! Vi que me mandou um e-mail, mas ainda não tive tempo de olhar –
Nicole diz, ajeitando os óculos escuros presos na gola da camiseta. Usava um
boné e suava, como se ainda não fosse 6h15 da manhã. Sua respiração ofegante
denunciou que estava no meio de um treino de corrida – Nossa, a sua cara está
horrível, o que houve? Você não dormiu?
– Um
pouco, eu preciso que você resolva aquele problema de atualização do site do Pé
Perfeito. Precisa só sincronizar os usuários, Ni, é coisa simples. Eu não vou
dar conta de fazer isso e a Matilde já está cuidando de outras demandas. Como
você está de tempo?
– Tenho
pouco, mas dou um jeito. Ontem entreguei o projeto do aplicativo que você pediu
semana passada, deu uma desafogada.
– Ótimo,
que bom. Estou me organizando aqui, me adaptando à nova rotina, mas logo volto
a dar uma atenção maior para vocês, para a empresa...
– Fica
tranquila, Mari! A gente cuida de tudo enquanto você está aí, criando soluções revolucionárias
para salvar o mundo – Nicole dá uma risadinha.
– Uhum,
vou sim, pode deixar – Mariana retruca, com a voz um pouco fraca. De propósito,
não compartilhou que o trabalho não era assim, tão incrível quanto parecia.
Ainda não tinha digerido direito a ideia de ter que fazer algo fora do que
havia sido acordado, mas preferiu se calar.
– Se
cuida aí. Vê se dorme! – Nicole diz, despedindo-se.
Mariana
pretendia dormir. E bem! Naquela noite, inclusive, a meta era fazer isso no
melhor lugar do mundo: sua cama, devidamente aninhada no meio de suas esposas. Ela
se agarrou a isso com afinco ao longo de todo o dia e só descartou por completo
a possibilidade de voltar para casa quando percebeu que não conseguiria sair
num horário confortável, que valesse a pena dirigir por uma estrada inteira (e
no dia seguinte ter de voltar, bem cedinho). Tudo porque embora Isadora tivesse
dito que a conversa com Simone ocorreria ao término daquele expediente, a
mulher a enrolou por horas e no fim ninguém apareceu para falar nada.
Isso
voltaria a acontecer nos dias seguintes, ao longo de todo o primeiro mês de
trabalho. A assistente inventava sempre uma desculpa, parecendo criar um motivo
para manter Mariana na empresa além do que deveria. Ao menos nesse meio-tempo
ela descobriu onde ficava a máquina de café, que a salvou naquele emprego
desgastante.
Na
volta para o hotel naquela quarta, tarde da noite, chateada por não ter
conseguido ir para São Paulo e exausta até o último fio de cabelo, Mariana considerou
que se pudesse faria como Laura, que estabelecia seus próprios horários, gerenciando
o tempo de modo a entregar apenas aquilo que era paga para fazer – e só. Nem a
mais, nem a menos. Não à toa, não a viu naquele happy hour, na noite em
que assinou o contrato para trabalhar na TechFuture. A mulher certamente foi
embora na primeira oportunidade, muito antes de Mariana ser finalmente chamada
pela dona da empresa. Impossível julgá-la.
A
questão é que Mariana agora atuava em outra posição, com um contrato de
trabalho diferente. E em vez de se entregar ao desânimo por causa disso, pensar
a respeito a fez resgatar o documento assinado dias atrás, enviado por e-mail
na ocasião, e que ela ainda nem tinha lido. Naquele momento, no calor da emoção,
carimbou o papel timbrado com sua assinatura mais bonita, satisfeita pela nova
fase que além de tudo salvaria sua empresa, e nem se deu ao trabalho de focar
na parte burocrática. Assinou sem prestar muita atenção.
Ler o
contrato de trabalho da TechFuture a consolou ao ponto de se confortar pela
primeira vez, desde que havia saído de casa. Tanto que nem ficou triste ao
sentir o cheiro de Patrícia, quando vestiu o pijama da mulher. Ao contrário, o
perfume embalou seu sono e, no dia seguinte, ao acordar, Mariana ineditamente
não xingou o alarme.
Determinada,
acordou disposta a aceitar o que aquela experiência lhe trazia como
ensinamento. Não dava para jogar a toalha antes de completar um mês, afinal!
Ainda nem tinha concluído a primeira semana de trabalho e o fato de ser perceptível
o que vinha pela frente até que era bom, servia para prepará-la, deixá-la forte
para enfrentar os dias difíceis que certamente viriam. Isadora era uma maluca
sugadora de almas que gostava de deixar as pessoas longe de suas famílias. Era
isso. E foi importante tomar consciência de que provavelmente não voltaria para
casa tão cedo porque isso livrou Mariana de um peso desnecessário. Bastava todo
o resto de seu fardo emocional, pesadíssimo.
Num
cenário perfeito, Patrícia e Tatiana apareceriam de surpresa para visitá-la no
hotel, mesmo depois de ela furar no primeiro “novo dia do trisal”. Entendia que
o combinado nem de longe era este, mas a realidade imaginada tampouco se
comparava com a vida real. Em suas fantasias, ainda idealizava ficar submersa
na enorme banheira com suas esposas ou dormir de conchinha na cama que parecia
grande demais quando se deitava só.
Por
ser um assunto sensível, deixou-o de lado assim que passou pela catraca da
TechFuture, 100% focada no trabalho do dia, muito embora tenha pensado em
Isadora antes de descer em seu andar. A assistente de Simone apresentava um
comportamento estranho, arisco, nunca estava nos lugares, mas sempre surgia de
repente, fosse na sala em que Mariana ficava, fosse na salinha do café – que
por sinal reunia as melhores pessoas, não só de sua equipe. Sem contar sua
reação na manhã anterior, ao ouvi-la dizer que pretendia dormir em casa. Na
mesma hora surgiu uma desculpa para que não fosse, ainda que depois nada tenha
ocorrido.
Naquele
dia, Laura não apareceu para trabalhar. Não justificou sua falta nem avisou
ninguém. Simplesmente não foi. Isso levou Mariana a pensar brevemente sobre os
problemas que uma pessoa assim podia causar à equipe, mas durou pouco porque se
entretinha facilmente com as atividades. E na empresa de Simone sempre havia
algo para fazer, era incrível, novas demandas surgiam nem via de onde.
– A
doutora precisa muito falar com você, ainda hoje – Isadora informa, interpelando
Mariana na saída do banheiro. Pareceu esperá-la ali, de tocaia, só para
abordá-la de surpresa – No fim do dia, antes que ela viaje. Ontem surgiu um
contratempo e...
– Tudo
bem – Mariana interrompe. Contraiu os olhos ao encará-la, ainda que estivesse
de óculos. Na tentativa de se demonstrar astuta, pareceu apenas míope, nem um
pouco ameaçadora – Eu estarei aqui. Umas sete? Oito horas?
–
Isso, te aviso – a assistente diz, afastando-se na sequência.
Não
havia garantia nenhuma de que desta vez a empresária a chamaria, mas Mariana
não tinha muitas opções a não ser pagar para ver, inclusive porque chegar muito
cedo no hotel serviria apenas para deprimi-la. E ficar por ali até mais tarde
nem era de todo ruim; ela aproveitaria a solidão em seu ambiente de trabalho
para colocar os assuntos de sua empresa em dia. Naquela manhã encontrou uma
máquina de café em seu andar, então nem precisaria mais se deslocar até os
fundos da empresa, perto do fumódromo. Quase tão prático quanto um serviço de
quarto!
Conforme
imaginado, Simone tomou chá de sumiço e Isadora também. Ao dar partida no carro,
um dos poucos que ainda restavam no estacionamento da TechFuture, Mariana viu
que o relógio marcava 23h05. Um bom horário para chegar no hotel, tomar banho e
dormir. Com dor no estômago, naquela noite abriria mão de jantar, mas ainda
assim sentia-se satisfeita: tinha zerado sua lista de pendências do dia, dos
dois trabalhos – com exceção de um serviço de última hora encaminhado por
Isadora que ela deliberadamente preferiu ignorar.
Quando
chegou ao hotel, voltou a imaginar como seria bom encontrar Tatiana e Patrícia
no quarto, numa surpresa inesperada. Mariana desejou que seu pensamento criasse
uma realidade em que as mulheres transgrediam as próprias regras, por amor.
Porém, logo o devaneio foi embora porque a caminho do elevador reconheceu a
silhueta de Simone, lá no fundo, perto do saguão da recepção. E o que provocou
estranheza mesmo é que Isadora estava junto, apesar da hora.
De
propósito, mandou uma mensagem para a assistente, se fazendo de boba. Perguntou
se por acaso Simone ainda falaria com ela, questionou se tudo bem ir embora. E Mariana
precisou de muito autocontrole ao ver Isadora simplesmente ignorar suas
indagações. A mulher apenas olhou rapidamente para a tela do celular e logo
guardou o aparelho de volta na bolsa.
– Vaca
– Mariana quis dizer, mas só pensou. Caminhou depressa em direção ao elevador, com
receio de que a vissem, mas no meio do caminho esbarrou sem querer em uma mulher
– Desc... – ela se cala repentinamente, estranhando por reconhecê-la –
...culpa?
A
confusão de Mariana foi acompanhada pela campainha do elevador se abrindo.
Laura a empurrou para dentro, sem dizer nada, aguardando que o andar fosse
acionado no painel. Até a porta voltar a se abrir, lá embaixo, ela não falou uma
palavra, nem mesmo o porquê de estar usando o uniforme de uma empresa de
internet.
– Hum,
quarto exclusivo, que chique – ela então diz, parada em frente à porta, depois
de desembarcar do elevador, forçando Mariana a sair também – Oi, boa noite!
Tudo bem?
– O
que você... – a pergunta não sai porque Mariana percebe que havia muitos
questionamentos rondando sua cabeça ao mesmo tempo – Por que a... Não, quer
dizer... – frustrada, ela puxa a bombinha de asma do bolso e aspira três vezes.
– Você
viu a Simone e a Isadora lá no saguão? – Laura então pergunta – Olha, não sei
não, mas acho que o tal sistema que ela te falou que ia implantar é pura
balela.
–
Você... – Mariana não termina a frase novamente. Suspirou aliviada depois que
destrancou a porta e não encontrou as esposas lá dentro. Elas certamente
estranhariam o fato de chegar acompanhada por uma mulher estranha – Por que você
está vestida assim? – a pergunta finalmente sai.
– Ai,
é uma longa história – Laura ri, puxando uma poltrona, super à vontade – Mas,
tá, para resumir, estou a fim de uma mulher que trabalha nessa empresa, eu gosto
de obedecer às ordens dela, fim. A gente faz cada coisa quando se apaixona, né?
Mariana
permaneceu quieta enquanto sua mente a inundava com inúmeras questões ao mesmo
tempo. Sabia que não estava em São Paulo, mas Campinas não era exatamente uma
cidade pequena e considerou que era coincidência demais que Laura, Simone e
Isadora estivessem justamente no mesmo lugar. No caso, o hotel em que estava
hospedada. De imediato, acatou a teoria de que Laura tinha levado a sério
demais sua “investigação”. Porque com aquela roupa ela parecia uma espiã
disfarçada!
– Uma
vez, me apaixonei por uma instrutora de yoga, imagina só. Ela era linda e eu
mal alcançava a ponta do pé – Laura se levanta de repente, demostrando que
talvez fosse só uma cidadã comum. Ou quase isso – Foram meses decorando ásanas,
mantras... Treinei tanto, fui tão dedicada que agora sei fazer isso – ela ergue
uma das pernas em direção à cabeça, quase encostando o joelho na testa.
– Uau
– Mariana exclama, admirada com tanta flexibilidade. Quis saber no que deu o
relacionamento, mas conteve a curiosidade.
– O
segredo é manter a mente tranquila – Laura diz, encurvando-se em direção ao
chão, apoiando-se nas mãos.
Em câmera lenta, a psicóloga plantou uma bananeira no meio do quarto, sem mais nem menos. Ela, que já era enorme, ficou ainda maior naquela posição, sustentada por vários segundos, bem retinha. E essa foi justamente a cena que Patrícia e Tatiana viram quando abriram a porta, ao chegarem no hotel para uma visita surpresa.
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