TPM - Capítulo 6: O café
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Tatiana e Patrícia estavam lindas sob aquela luz. Cansadas, como era esperado que ficassem ao fim da semana e após rodarem vários quilômetros de São Paulo até ali, mas ainda assim belíssimas. Patrícia estava vestida inteira de preto, parecendo uma mulher fatal, com o cabelo solto escorrendo sobre os ombros. Tatiana, por sua vez, tinha um rabo de cavalo no alto da cabeça que deixava à mostra uma veia saltitante na lateral do pescoço, que ao pulsar movimentava seu colar fino de prata, fazendo-o dançar. Com a surpresa do encontro com Laura plantando bananeira no quarto de Mariana, as duas se deram as mãos demonstrando uma união sincronizada. Cena digna de aplauso.
Estáticas e coordenadas, com os lábios entreabertos sem emitir som nenhum, as esposas lembravam as pinturas das telas em alta definição expostas por aquelas paredes; ambas carregadas de mensagens subliminares, pinceladas em várias camadas, embora permanecessem caladas, como se de fato fossem obras de arte. O único movimento que fizeram foi uma virada de cabeça, cúmplice e bastante sutil, quando se olharam por breves segundos, retornando juntas na sequência para o mesmo lugar. No caso, em direção à Laura, que se desmontou da posição de maneira calma e elegante, sem falar nada.
Num sincero misto de incredulidade e completa admiração, Mariana comprovou, estatelada no meio do elegante e suntuoso quarto, a força de seu pensamento. Afinal, desde o dia anterior, depois que o trabalho a impediu de dormir em casa, vinha desejando que Patrícia e Tatiana aparecessem ali no hotel de repente, de surpresa. E lá estavam elas, compartilhando o choque de encontrar uma estranha de quase dois metros de altura apoiada nas mãos, de ponta-cabeça.
Por impulso, quase disse algo, a língua chegou a coçar dentro da boca, formando uma frase. Mas Mariana se calou antes mesmo de verbalizar alguma sílaba porque não tinha nada para dizer. Não dava nem para lançar o clássico “eu posso explicar” porque não havia explicação para algo que ela própria não compreendia. Para poder esclarecer algo, antes precisava juntar informações por ora desencontradas.
As perguntas que rondavam sua mente ao girar a chave, após ser interpelada por Laura na entrada do elevador, não haviam se calado ao ouvir a desculpa esfarrapada da psicóloga, depois que entraram no quarto. Porque a alegação de que ela estava apaixonada por alguém do segundo emprego pareceu apenas isso: uma desculpa e das mais deslavadas.
– A gente deveria ter avisado que vinha? – Tatiana então perguntou, num tom zangado. Não combinava com ela, que era sempre a mais tranquila das três.
– É claro que não – Patrícia retrucou, sem nem pensar, jogando a bolsa no chão e cruzando os braços. Em momento algum desviou os olhos de Mariana. Nem mesmo piscou.
– Ah, vocês devem ser as esposas da Mariana – Laura arruma o cabelo e estica a mão primeiro em direção à Tatiana, cumprimentando-a – Muito prazer, ouvi falar bem de vocês, espero que tenhamos outra oportunidade de conversarmos em breve... Mari, eu preciso ir – ela diz, com as palavras se atropelando, enquanto apertava a mão de Patrícia de um jeito apressado. Quase correu em direção à porta ao se despedir – Senhoras, se me dão licença...
Tão rápido quanto chegou, Laura saiu. Como se fosse uma ninja de alguma história de ação (e suspense!) mal contada, deixou Mariana sozinha no quarto com duas mulheres zangadas sem ter como explicar que raio de cena tinha sido aquela.
– Quem é essa pessoa? – Patrícia então perguntou, varrendo o ambiente com os olhos, como se buscasse algo que de alguma forma pudesse ser incriminador. Como uma calcinha ou uma câmera escondida, não deu para saber direito.
– Eu... não sei, Pati – Mariana resmunga, com a voz falhando – Quer dizer, em teoria nós trabalhamos juntas, mas agora... eu... – ela leva a mão à barriga, sem perceber, sentindo a gastrite maltratar seu estômago com o nervosismo – Tem algo muito estranho acontecendo, mas não sei o que é. Não sei explicar.
– É bem estranho mesmo chegar aqui e deparar com uma estranha plantando bananeira no meio do seu quarto. Quase começo a imaginar o porquê de você não ter voltado para casa ontem... – Tatiana rebate, brava. Definitivamente não se encontrava em seu melhor estado e a expressão sisuda estampando seu rosto era apenas um dentre os vários sinais que apontavam isso.
Em um relacionamento com Patrícia e Tatiana, eventualmente Mariana acabava fazendo o papel de aliada de uma das esposas diante de algum embate entre as duas, embora dificilmente ficasse sabendo dos detalhes, os pormenores. Mas sem dúvida alguma a situação era muito pior quando as mulheres se conciliavam contra ela, como parecia ser o caso agora, ainda que Tatiana parecesse aborrecida também por outros motivos e apenas usasse Laura como válvula de escape.
Era compreensível que as duas se unissem contra ela depois da cena com Laura, Mariana não tirava o mérito da questão, mas não deixava de ser uma situação incômoda ainda assim. Um pouco aflita, sentiu-se acuada diante da situação.
– Amor, eu... – Mariana estica a mão em direção à Tatiana num gesto apaziguador, mas logo recolhe, abraçando o tronco com os dois braços – Ai!
– Quanto de café você ingeriu hoje? – Patrícia pergunta, puxando-a em direção à cama. Instantaneamente, pareceu se esquecer de que estava zangada.
– Você jantou hoje, Mari? – Tatiana questiona ao mesmo tempo, abaixando-se para pegar algo dentro da bolsa da outra mulher – Que horas almoçou?
– Hoje dei uma exagerada mesmo – Mariana responde, sem se direcionar a ninguém, exatamente – Minha última refeição foi... – ela fecha os olhos, deitando-se encolhida na enorme cama, sem dizer mais nada por alguns segundos – Aquela vaca daquela Isadora me faz de otária, a culpa é dela, que raiva – Mariana complementa, finalizando a frase com uma careta, que a fez se sentar.
– Toma esse antiácido – Tatiana oferece, como se hasteasse uma bandeira de paz. Ou de trégua. Colocou na mão trêmula da mulher um comprimido branco e um copo d’água – Precisa maneirar nessa cafeína, garota. Ou não tomar tanto café com estômago vazio.
– Não sei o que se passa, meu corpo sempre foi tão...
– Você não é mais uma jovenzinha, Mari – Patrícia a interrompe, um pouco seca demais – O quê? É verdade! – ela senta na beira da cama e acaricia o cabelo de Mariana, brevemente – Já que decidiu passar a semana aqui sozinha, você precisa se cuidar, meu amor.
– Ainda mais se pretende sobreviver até o final desse contrato – Tatiana complementa, com a guarda notavelmente mais baixa. Assim como a esposa, não conseguia se zangar por muito tempo com Mariana.
– Eu amo vocês – Mariana abraça Patrícia e puxa Tatiana com a mão desocupada, abraçando-a também – Que bom que vieram e que delícia de surpresa, embora num momento tão estranho.
– Uhum, bem estranho – Patrícia concorda, sem soltá-las do abraço.
– Estranhíssimo – Tatiana também diz, com a voz abafada contra o seu pescoço.
– Ela me falou que está apaixonada por uma mulher – Mariana cochicha, como se precisasse, sem citar o nome de Laura – Hoje ela simplesmente não apareceu para trabalhar e aí a encontro aqui, tarde da noite, vestindo o uniforme de outra empresa?
– E você...
– Eu jamais mencionei para ela, nem para ninguém do trabalho, que sou casada com duas mulheres – Mariana interrompe o que Patrícia pretendia dizer e a observa se calar diante da informação – Achei muito estranho ela estar aqui hoje, justamente nesse hotel, parecendo disfarçada. E...
– E? – Tatiana pergunta, sentando-se ao lado dela também, tirando o copo vazio de suas mãos.
– A Isadora, a assistente da Simone, me enrolou ontem no trabalho até umas horas. Me fez ficar até tarde na empresa, sem motivo – Mariana vira os olhos, aborrecida – Hoje de novo, por isso nem almocei. Ela falou que a Simone falaria comigo antes de uma suposta viagem, mas quando cheguei aqui, vi as duas juntinhas no saguão. E não parecia que nenhuma delas ia viajar!
– Viu só? Não te falei que a conhecia? – Patrícia comenta, cutucando Tatiana – Eu disse que já tinha visto aquela Fulana lá na entrada! – ela complementa, com ar de triunfo.
– A Simone? Você a viu aqui no hotel? De onde a conhece? – Mariana então pergunta. Tatiana permaneceu em silêncio, mas mandou um beijinho no ar para Patrícia, como se a parabenizasse.
– Eu vi uma foto dela na internet, semana passada. É, ué, fui saber quem era a mulher tomando um drinque no seu story, acabei investigando sobre a empresa que você ia trabalhar, vi fotos da diretoria, enfim. Uma coisa puxou a outra.
– Sei... Você é muito astuta e sagaz, amor – Mariana dá um selinho na esposa e outro em Tatiana – Me ajuda a desvendar esse mistério?
– Posso pensar no seu caso, uhum – Patrícia levanta-se junto da fala – Mas precisamos tomar um banho antes e seria bom você comer algo para amenizar essa dor de estômago. Será que o serviço de quarto ainda está funcionando?
– Tudo bem, amanhã eu como... comida – Mariana ri e levanta-se também, dando a mão para Tatiana, numa espécie de convite – Mas aceito o banho. Está tarde para encher a banheira?
– São 11 e meia da noite... – Tatiana resmunga, virando o pulso para consultar as horas, mas logo muda o tom – Não. Não está tarde, não, eu topo.
– Amor, a Tati comentou que você pretende marcar de tomar um café com o tal jornalista... o da fake news – Mariana fala, assim que entram no banheiro – Guto...?
– Morais, sim. Marquei de fazer isso amanhã, inclusive – Patrícia responde, sem ver a careta que Tatiana fazia, logo atrás dela – Ele sugeriu um café em Pinheiros, mas o convenci de nos encontrarmos nO Bistrô. Vou descer o cardápio inteiro em cima dele se for preciso, ele vai ver só.
– Tem certeza disso, Pati?
– Já falei com ela, Mari. Não adianta – Tatiana interrompe, se despindo, começando pela camiseta – A Patrícia enfiou na cabeça que vai resolver essa questão com cordialidade, deixa ela...
– Ué, por acaso devo me rebaixar ao nível dele? É isso que acha que tenho que fazer? – Patrícia retruca, revelando usar uma calcinha preta minúscula por baixo da roupa. Ela contraiu o abdômen enquanto questionava, demonstrando que sua respiração pelo diafragma era a responsável por permiti-la se expressar tão claramente, especialmente em um ambiente cheio de eco como aquele. Em questão de segundos, a tensão entre as duas voltou a se apresentar, de maneira bem clara.
– Tá bom, então vai lá jogar xadrez com pombo, já que insiste tanto! – Tatiana rebate, atirando na pilha de roupa que se formava no chão uma lingerie igual, só que branca, que destoava de seu sutiã amarelo, lançado para baixo logo em seguida – Deixe que ele cague ainda mais no seu tabuleiro e cante vantagem por aí, Patrícia. Dê munição para que ele invente novas histórias a seu respeito, vai lá. Só não venha reclamar no meu ouvido depois que isso acontecer!
– Amor... – Mariana chama, se esforçando para desviar a atenção das roupas íntimas das mulheres e se focar no que era realmente importante – Deixa eu...
– O sujeito anuncia para o mundo inteiro que eu não sei cozinhar e você quer que eu simplesmente fique calada? – Patrícia insiste, num tom um pouco mais alto. Parecia disposta a querer brigar, assim como a outra mulher – Estou intimando o filho da puta para um combate, para um duelo cara a cara. Não vai ser nenhum tipo de encontro, Tatiana.
– O que você está insinuando? – Tatiana retruca, parecendo desistir de entrar na banheira, embora já estivesse com o corpo quase todo dentro da água borbulhante.
– Você sabe muito bem do que estou falando – Patrícia rebate, acomodando-se na banheira, esfregando água morna nos braços com uma veemência um pouco exagerada – Não vem querer se fazer de desentendida, não...
– E o que é que o Miguel tem a ver com tudo isso? Me diz – Tatiana insiste, mantendo Patrícia em seu campo de visão, mesmo depois que Mariana entrou na banheira e a cobriu momentaneamente.
– Não tem nada a ver, só estou comentando...
– Você vai se encontrar com o seu ex? – foi a vez de Mariana questionar. Achou a água quente demais, assim como o clima entre elas.
– E daí? Cinco minutos atrás tinha uma mulher literalmente plantando bananeira no meio do seu quarto e eu não falei nada – Tatiana rebate, quase gritando, deslocando para Mariana a energia direcionada anteriormente para a outra mulher. A veia em seu pescoço estava ainda mais saliente agora.
– A Laura não é minha ex... Mas tá – Mariana responde, levantando as mãos como se estivesse se rendendo – Não quero discutir, amor. Só perguntei porque não é algo que você costuma fazer.
– Claro, porque eu não passo de uma mosca morta – Tatiana responde, parecendo ofendida.
– O quê? Não, gatinha, eu não disse isso!
– A Rosana disse, mais cedo – Patrícia informa, juntando água com as mãos em concha para lavar o rosto. Com o movimento, uniu os seios de um jeito sexy, sem reparar no que fazia – O que não é verdade, assim como também não foi algo dito pela Mari – ela fala agora com Tatiana, que não pareceu ver a sensualidade da mulher molhada, bem ao lado – Ninguém aqui tem culpa de você trabalhar com gente tóxica, Tati.
– Ai, tá bom, Patrícia. Que saco! – Tatiana se levanta, aborrecida, e sai da banheira batendo o pé – Parabéns por conseguir estragar ainda mais o clima, que já estava uma droga desde São Paulo.
– Amor...
– Deixa, Mari – Patrícia diz, vendo que Mariana pretendia ir atrás da mulher – A Tatiana está chateada por outros motivos, vamos deixá-la em paz. Ela tem enfrentado dias difíceis com aquela bruxa daquela colega de trabalho dela, nada que a gente fale poderá ajudá-la. Até a hora de dormir ela se acalma.
– Que fase horrorosa essa nossa – Mariana então diz, segundos depois, cabisbaixa. Suas costas estavam tão arqueadas que por pouco não encostou a ponta do nariz na água – Tudo ia tão bem entre nós e de repente...
– É, a vida tem dessas – Patrícia suspira, recostando a cabeça na beira almofadada da banheira.
Com o semblante cansado, após dias tão agitados, Patrícia se obrigou a relaxar com os jatos de água massageando suas costas. Com o cabelo para o alto, amarrado para cima, tinha a testa marcada por uma ruga de preocupação. Sem perceber que estava sendo observada, deixou escapar um gemidinho que pareceu ser de satisfação, sem no entanto desfazer a cara amarrada. Escorada na banheira, manteve metade dos seios submersos na espuma perfumada, ancorando entre eles um pingente de ouro branco em formato de pimenta, que brilhava ao refletir a luz baixa do ambiente. Mariana não resistiu e a beijou, e teria ido além, até desfazer o bico da esposa, não fosse todo o clima pesado que havia fora daquelas bolhas.
– Se duvidar, essa sua chefe está metida em algum esquema ilegal – Patrícia fala, fechando os olhos mais uma vez, depois do beijo. Embora vários assuntos povoassem sua mente ao mesmo tempo, era nítido qual tema estava sendo priorizado naquele momento – E eu não ficaria surpresa se a mulher da bananeira estiver envolvida no rolo também.
– Você acha? – Mariana desloca-se para o lado dela na banheira, tomando o cuidado de se encostar ao máximo na lateral do corpo de Patrícia. Deslizou com a mão esquerda em sua coxa, antes de voltar a falar – Acha mesmo que não sou mais uma jovenzinha, amor?
Patrícia abre um dos olhos para encará-la de canto e logo volta a fechá-lo, sem responder à segunda pergunta. Mas Mariana notou em seu rosto um micro sorriso, breve. Bastou como resposta.
– Acredito que seja algo ilegal... não sei, um lobby, talvez... ou ela está apaixonada por você – a mulher então diz – Provavelmente ambos.
– Seria um gostar bem estranho, me fazendo ficar de castigo sozinha até tarde no trabalho... – Mariana murmura, tentando encaixar a linha de raciocínio de Patrícia dentro da lógica de sua mente.
– Não se isso te impedir de voltar para casa, para junto das suas esposas. Que ela inclusive sabe que você tem, embora não tenha mencionado nada a nosso respeito – Patrícia finaliza, certeira.
Mariana não diz nada, mas acena com a cabeça, em concordância. Patrícia sempre acabava direcionando suas teorias para o caminho ladrilhado pelo ciúmes, mas aquela especulação até que fazia sentido. Inclusive mais do que imaginar Simone envolvida em algum esquema ilegal, embora a possibilidade também tivesse uma pitada de razão. Explicaria como a mulher conseguiu tanto sucesso num mercado predominantemente masculino, por exemplo, e mantendo-se no topo, o que era igualmente surpreendente.
Só uma parte de tudo isso não fazia sentido: a eventualidade de Laura ser parte do esquema de Simone – caso houvesse algum. Embora parecesse ingênuo, Mariana confiava em seu instinto, que sempre lhe indicava as pessoas com quem realmente podia contar e quem eram as traíras ao seu redor, e em nenhum momento a psicóloga pareceu representar uma ameaça, pelo contrário; o tempo todo Laura se mostrou bastante amigável e transparente. Pelo menos até ser flagrada aquela noite no hotel, vestindo o uniforme de outra empresa.
Mariana tiraria tudo a limpo, e logo. No dia seguinte intimaria Laura para um café em alguma pausa do trabalho e a pressionaria até descobrir tudo, cada detalhe do que a mulher escondia. Quer dizer, desde que a colega aparecesse para trabalhar, é claro.
Pensar nisso a deixou levemente ansiosa e ela precisou se enrolar na toalha e sair da banheira em busca de sua bombinha de asma. A ideia era voltar para a água quentinha logo em seguida, mas Mariana acabou se enroscando em Tatiana, deitada sozinha no quarto.
– Seu cheiro é tão bom – Tatiana resmunga, parecendo mais sonolenta que chateada. Ela desnudou Mariana e a abraçou assim que percebeu sua presença, em busca da bombinha sob o travesseiro.
– O seu que é – Mariana rebate, afundando o nariz no pescoço da mulher após aspirar o remédio, montando em cima dela e se desmontando sobre ela, ao cheirá-la de maneira demorada – Eu fico tão aflita quando você está brava, Tati – complementa, bem baixinho, como se nem pretendesse ser escutada.
– Não estou brava, Mari. É só que... – Tatiana se cala, parecendo buscar as melhores palavras para se expressar – Tem muita coisa acontecendo nesse momento, aí a vida pesa um pouco, sei lá.
– Deixa eu te ajudar! Sou forte, amor, te ajudo com o seu fardo.
Mariana encaixa as pernas em Tatiana, firmando o corpo sobre o tronco da esposa com o auxílio das mãos. Segurou sua coxa com a esquerda e com a direita puxou o ombro de Tatiana, prendendo-se nela. As duas encostaram estrategicamente cada centímetro de pele nua uma na outra e compartilharam uma risadinha carregada de cumplicidade, ao sentirem contrações involuntárias despertadas através do contato pelo no pelo.
Tatiana a acomodou, inclinando a pelve e a cabeça para trás, dando espaço para que a esposa encaixasse o rosto na curva entre seu pescoço e o ombro. O suspiro de Mariana foi um claro sinal de que ela estava confortável na posição que era quase um abraço, mas que carregava a intimidade de algo além disso.
– Você é uma delícia, uhum – Tatiana a beija e geme baixinho, ao senti-la se apertando com mais força em cima dela, aumentando a pressão, especialmente entre os púbis.
– E forte! – Mariana insiste, pressionando-se contra ela ainda mais, fazendo Tatiana gemer agora por outros motivos. Todavia, mesmo quase sufocada, não reclamou.
– É forte, sim! O que é ótimo, considerando que também está cheia de problema para carregar. Vai me ajudar como, gata?
– Hum... eu posso, sei lá, pegar essa ridícula que fica te incomodando, na saída da escola – ela sugere, com a voz abafada.
– Do jeito que os meus alunos fazem? – Tatiana ri.
– Sim, já que ela age como se também fosse um deles.
– Olha, até que não seria má ideia enchê-la de porrada... Mas podemos pensar em outro jeito. Quem sabe algo mais apropriado.
– Você também acha que eu não sou mais uma jovenzinha? – Mariana questiona, no escuro, fazendo Tatiana rir mais uma vez.
– A Pati sabe pegar bem no ponto, né? – ela beija a esposa, carinhosa – Amor, você ainda nem completou 30 anos para a gente começar a sequer pensar em ter essa conversa. Por enquanto está muito cedo para isso, fica tranquila.
– É que...
– Você só precisa se cuidar, o que significa no mínimo se alimentar direito, se pretende se manter bem até o final do seu contrato. Ou pelo menos até descobrir qual é o rolo que essa sua chefe esquisita está enfiada. Porque tem algo de estranho nessa história.
– É, a Pati também acha... – Mariana resmunga, enrijecendo o corpo agora por motivos de ansiedade – Tem algum palpite do que possa ser?
– Não sei, talvez... um lobby, quem sabe, algo nesse sentido – Tatiana acaricia as costas da esposa, empurrando com os dedos alguns nódulos de tensão – E essa mulher da bananeira deve saber o que é. Ou quer descobrir.
– Tá, isso faz mais sentido – Mariana diz, amolecendo o corpo, permitindo-se relaxar no melhor lugar para se entregar assim – Talvez a Laura ainda não saiba no que a Simone está envolvida, mas ela querer saber faz mais sentido do que estar envolvida, simplesmente.
– A Patrícia acha que ela tem envolvimento? Então dobro a aposta – Tatiana ri, sentindo-se competitiva – Pois eu acredito que tem algo de ilegal acontecendo e a psicóloga da bananeira está atrás para saber o que é. Ou então a tal da Simone está apaixonada por você. Também é uma possibilidade, acrescenta isso ao meu palpite.
Mariana ri e não diz nada porque Patrícia também tinha apostado exatamente nisso. Até quando as mulheres pretendiam se mostrar diferentes elas pareciam iguais. Ou eram de fato discordantes, mas ainda assim tinham sintonia em suas semelhanças, num tipo de complemento único, só delas, especial.
Ao perceber o sono avançar sorrateiro, desligando os comandos de sua mente, um por um, relaxando cada músculo de seu cansado corpo, Mariana refletiu que, talvez, se por acaso envolvesse outras pessoas, caso não fossem T e P se somando à M, o casamento das TPM nem daria tão certo. Quer dizer, considerando que estavam indo bem até aqui.
O sobressalto de sem querer pensar na possibilidade de um término, ainda que remoto, foi acalmado pelo aconchego do calor de Tatiana e pelas mãos da esposa, que voltaram a subir e descer por suas costas em carícias leves, embalando o sono tanto quanto a respiração dela, que logo tornou-se mais pesada no instante em que a mulher também dormiu e deixou seu braço pesar sobre ela.
Quando Patrícia terminou o banho alguns minutos mais tarde e encontrou as duas dormindo no quarto, uma em cima da outra, por um segundo vacilou em frente à cama, iluminando-as com o celular, na dúvida se deveria acordá-las para que se deitassem numa posição mais confortável. Mas desistiu porque, embora tortas, pareciam bem, com seus corpos unidos e entrelaçados lembrando uma escultura bonita.
Ao acender a luz fraca do abajur próximo à cama, Patrícia observou as pontas dos dedos de Mariana descansando sobre o quadril nu de Tatiana, com a palma da mão aberta em um gesto de posse tão suave quanto natural. A respiração sincronizada delas preenchia o ambiente e o ar ao redor das duas parecia carregado de calor, não apenas devido ao contato entre elas, mas também pela energia compartilhada, que persistia mesmo na calma do sono.
Elas não acordaram quando Patrícia se deitou, mas no momento em que o colchão afundou levemente com o peso de seu corpo, Mariana murmurou algo incompreensível e Tatiana mexeu os dedos do pé, numa demonstração de que haviam percebido sua aproximação, ainda que de maneira inconsciente. De olhos fechados, as duas se moveram instintivamente em sua direção no colchão, num gesto tão natural que pareceu ter sido ensaiado.
Mariana se aconchegou em seu colo e Tatiana, por cima dela, abraçou Patrícia apoiando um dos braços sobre seu peito. Antes de se entregar novamente ao sono, Mariana ainda resmungou algo e os dedos de Tatiana a apertaram levemente, mas logo as respirações, até aqui desalinhadas, voltaram a se sincronizar, preenchendo o silêncio do quarto com um ritmo único, quase melódico.
Naquela noite, as três dormiram o melhor dos sonos desde que Mariana se mudara para Campinas, há quase uma semana. E só não foi tudo perfeito porque na manhã seguinte, bem cedo, quando ainda estava escuro, o despertador as trouxe de volta à dura realidade. Antes mesmo de o sol raiar tiveram que se despedir, pois Patrícia e Tatiana também tinham um longo dia para enfrentar, estrada afora.
Mariana ainda se vestia para o trabalho quando ouviu uma batida leve na porta do quarto. Foi atender sorrindo, acreditando que uma das esposas havia esquecido algo por ali e demorou alguns segundos até reconhecer Simone parada no corredor do hotel. Embora ainda fosse muito cedo, a empresária estava impecavelmente maquiada e perfumada, com o cabelo meticulosamente penteado.
– Bom dia, espero não estar atrapalhando – Simone diz, espichando o olhar para dentro do quarto, olhando na sequência brevemente para o decote de Mariana – Está sozinha? Posso entrar?
– Eu... – Mariana gagueja, vendo a mulher avançar pela porta mesmo sem permissão. Fechou o botão da camisa, um pouco sem reação em relação ao resto.
– Por acaso passei por perto, lembrei que comentou algo sobre sua hospedagem aqui... aproveitei que estava de passagem e decidi vir pessoalmente convidá-la para me acompanhar em uma viagem até Brasília neste fim de semana. Partimos hoje, com retorno previsto para segunda-feira de manhã.
– Viagem? – Mariana bate a mão na altura do bolso da calça em busca da bombinha de asma e só então percebe que ainda estava com o short curto do pijama. Isso a fez sentir-se ainda mais acuada, especialmente porque tinha certeza de não ter mencionado nada no trabalho sobre o hotel em que estava hospedada. Cruzou as mãos na altura da cintura, na tentativa de se cobrir e procurou pela calça em uma varrida nervosa com o olhar pelo quarto bagunçado.
– Sim, eventualmente sou chamada para encontros, reuniões informais e coquetéis, eventos sociais, enfim, ossos do ofício – ela se aproxima de uma das poltronas, a mesma que Laura havia sentado na noite anterior, mas logo parece mudar de ideia e se mantém em pé, de costas para a mesa e o arranjo bonito que enfeitava, no centro – Eu adoraria a sua companhia – ela complementa, com uma intimidade que não existia, acariciando o cabelo de Mariana, colocando uma mecha para trás de sua orelha.
– Simone, olha... – Mariana recua, dando um passo para trás, ao mesmo tempo em que levantava a mão esquerda – ...acho que você entendeu errado, eu sou casada – ela diz, apontando para a aliança, para deixar a mensagem bem clara. Teria atirado o anel nela, se isso ajudasse a convencê-la – Sou muito bem casada, inclusive. Com duas mulheres – afirma, acreditando que o argumento final bastaria.
– Tudo bem, fiquei sabendo. É uma pena, mas... não costumo ser ciumenta – Simone avança um passo em sua direção, parecendo determinada na investida – Em todo caso, ninguém precisa saber da gente – ela se aproxima ainda mais, envolvendo Mariana com seu perfume enjoativo, na tentativa de beijá-la.
– Não! O que é isso, como assim? Já falei que não, eu sou comprometida e monogâmica! Tenho duas esposas, na falta de uma só – Mariana a empurra e praticamente dá um salto para escapar dela, com a voz falhando por causa da falta de ar – Sou fiel às minhas esposas, não vai rolar nada entre a gente. Esquece!
– Bom, isso é o que veremos – Simone ameaça, caminhando em direção à porta – O voo sai às 19h. Sua presença em Brasília faz parte do escopo do seu trabalho, portanto, te vejo mais tarde no aeroporto – a mulher finaliza, deixando Mariana estupefata no quarto.
Um tanto incrédula com a visita inesperada, tão rápida e devastadora quanto um furacão, Mariana constata que, agora, mais do que nunca, precisava apertar Laura para que a psicóloga contasse tudo o que sabia a respeito de Simone. Incluindo se era corriqueiro que a empresária atacasse as pessoas que trabalhavam para ela.
Depois que terminou de se vestir, ao entrar no elevador, Mariana viu que Patrícia havia enviado minutos antes uma mensagem no grupo do WhatsApp, que dizia: “Acabamos de encontrar sua chefe no saguão, na saída do hotel. Desta vez ela nos viu e pareceu surpresa por estarmos ali, embora nem nos conheça. Mari, se ela realmente está a fim de você, com certeza agora está bem zangada porque percebeu que o plano de te manter longe de nós falhou miseravelmente”.
Ao sair do elevador e atravessar o saguão, Mariana sorriu porque em vez de ponto Patrícia finalizou o texto com um coração azul, mas imediatamente suspirou fundo porque entendeu o motivo da aparição surpresa de Simone na porta de seu quarto, minutos atrás. Realmente, ela parecia estar bem zangada. Até mais do que audaciosa (o que havia sido também).
– Bom dia! Que bom encontrá-la aqui, preciso muito falar com você – Mariana diz, assim que chega ao trabalho e vê Laura sozinha na sala escura.
A mulher estava em frente ao computador, parecendo compenetrada. Por um milagre havia chegado cedo, antes de todo mundo e estava sem o fone de ouvido gritando algum rock pesado. A distância, assemelhava-se a uma espiã, embora digitasse com a destreza de uma hacker. Num sobressalto, ao ouvi-la chegar, abaixou a tela do notebook, desligando o computador.
– Eu imagino que sim, depois de toda aquela cena ontem lá no hotel – Laura diz, parecendo prestes a sorrir, porém manteve-se séria – Mas infelizmente aqui não é um bom lugar para conversarmos, Mari – complementa, encarando-a com um olhar penetrante – Nessa empresa, as paredes têm ouvidos – ela cochicha, puxando uma garrafinha térmica de dentro da mochila.
– Eu... não sei se ainda posso confiar em você – Mariana murmura, aceitando o café que a mulher lhe oferecia, num copinho mole de plástico que ela também tirou do meio de seus pertences.
De todas as possibilidades para esta conversa, em momento algum imaginou que Laura arrancaria simplesmente uma garrafa de café de dentro da própria bolsa, como se fosse um mágico tirando um coelho da cartola para uma plateia admirada. Que outros truques ela saberia? Quem era essa mulher, afinal?
– Pode e deve – Laura afirma, puxando mais uma vez a mochila para cima do próprio colo. Pegou algo lá dentro e colocou discretamente na mão de Mariana. Pelo tamanho, pareceu ser um pendrive – Esta é a minha prova de amizade. Ou o seu trunfo, chame como quiser.
– Você...
– Não! – Laura a interrompe, impedindo que Mariana abrisse a mão, ao segurá-la de maneira firme – Guarde isso com você e só veja quando estiver em um lugar seguro. Aqui, não – ela cochicha novamente, usando um tom sério, convincente.
– Tá... – Mariana volta a murmurar, sem entender direito, e guarda a mão no bolso da calça, junto do objeto misterioso – Vamos lá para fora então, por favor, pode ser no fumódromo. Eu preciso muito saber algumas coisas sobre a Simone – ela diz, sem produzir nenhum som nas últimas palavras.
– Não sei se teria algo para compartilhar sobre este assunto... E também nem estou com tempo, desculpe, vou ter que fazer uma viagem rápida, surgiu um compromisso de última hora – Laura anuncia, enfiando o notebook na mochila – Mas na segunda já estou de volta. Chego antes que você – ela diz, saindo apressada sem se explicar.
Pensativa e agora com ainda mais dúvidas rondando a mente, Mariana só abriu a mão quando parou perto de sua mesa. Nem chegou a ver qual era a cor do pendrive que guardou dentro da mochila. Não reparou também que, na pressa de mucosar o objeto, deixou-o cair num fundo falso que manteve o dispositivo escondido ali por várias semanas.
Longe de ser curiosa e distante de um lugar seguro onde pudesse conferir o conteúdo daquele pendrive, Mariana deixou o assunto de lado por motivos de força maior. Tinha, sim, toda uma questão envolvendo Laura, que agora andava com atitudes para lá de suspeitas, embora ainda se mostrasse amigável e confiável, mas havia um problema muito maior e mais urgente chamado Simone.
Infelizmente, esta não era a primeira vez que Mariana se via vítima de assédio. Porém, o fato de ter sido assediada por alguém que estava acima dela na hierarquia do trabalho tornava a situação muito mais desconfortável.
Prevenida e devidamente precavida, avisou Patrícia e Tatiana sobre a viagem que teria que fazer naquela noite, mas omitiu o ataque de Simone. Considerou por bem compartilhar aquilo apenas quando não corresse mais o risco de as esposas insistirem para ela desistir do emprego. Não tinha nem completado uma semana trabalhando na TechFuture! Abandonar tudo não era uma opção. Ainda.
– Tá, mas essa viagem até Brasília, assim, em cima da hora, é para fazer o que, exatamente? – Tatiana questiona, quando Mariana finalmente atende o telefone. Pela manhã havia enviado algumas mensagens no grupo, que até o momento permaneciam sem resposta. Por conhecer a mulher com quem havia se casado, sabia que mesmo ocupada Mariana só ficava indisponível quando estava com algum problema sério, o que a levava a se esconder e se isolar. Isso a fez insistir com uma ligação, que foi retornada horas depois.
– Não sei, amor. Ela não explicou direito, só disse que eventualmente é convidada para reuniões em outras cidades e que eu preciso acompanhá-la nesta.
– Estranho, né? Tão de repente... Quem garante que essa jararaca não está só armando um bote para pegar você? Bem longe da vista de todos, ainda por cima?
– Ninguém garante, amor. Mas não acho que seja isso – Mariana se apressa em dizer – Até porque essa história de que ela está a fim de mim ainda é apenas uma suposição, certo?
– Não é bem assim, Mari... Eu fiquei pensando nisso tudo depois da nossa conversa e agora já estou bem convencida, na verdade. E a Pati também.
– Ah, que bom, então quer dizer que vocês conversaram na volta para casa? Se acertaram no caminho até São Paulo, Tati?
– Conversamos brevemente, sobre isso, uhum – Tatiana pigarreia, claramente fugindo do assunto – Olha, não esquece de levar seu remédio de asma na bolsa e, antes de sair, verifica se pegou seus óculos, seus documentos... Não arrisca de chegar no aeroporto com algo faltando e aí ter que voltar. Quer dizer, não que perder o voo e voltar para casa seja exatamente uma má ideia – ela ri.
– Tá bom, amor. Não vou esquecer de nada não, fica tranquila – Mariana responde, sem querer insistir no assunto. Sabia que Tatiana falava muito quando não dizia nada – Se cuide neste fim de semana, por favor, evite brigar com a Pati.
– Eu não brigo. Já ela...
– Amor...
– Pode deixar, meu bem. Vai tranquila, se cuide também e qualquer problema me chama. Se precisar, vou até Brasília te buscar e quebro essa Simone no meio da rua.
– Eu sei que sim, gatinha – Mariana ri. Sem querer se lembrou da colega de Tatiana a chamando de mosca morta no trabalho e isso a fez querer socá-la de novo – Você também, tá? Sabe que pode contar comigo, para tudo, mesmo que esteja temporariamente longe. Eu sou forte de verdade, Tati – ela complementa, despertando em ambas lembranças da última noite. Sem que notassem, suspiraram juntas, em uma fina sintonia.
– Eu sei, sim. Te amo, Mari. Manda mensagem sempre que puder. Já estou com saudades.
– Te amo também, minha linda. A gente vai ficar em contato, prometo. Um beijo, amor.
Tatiana desliga o celular e o apoia sobre a mesa, alinhando-o ao lado do cardápio fechado, entre o açucareiro e o pratinho enfeitado com biscoito. Estava em um café em Perdizes, que escondia com suas luzes baixas e decoração aconchegante a tempestade feia que fazia o céu de São Paulo despencar no mundo lá fora, a esta altura escuro e trovejante. O clarão de um raio a trouxe de volta ao momento presente após a ligação.
– Ah, o amor... – Miguel comenta, com ar ligeiramente debochado. Encarou Tatiana por cima da xícara de café depois do comentário, provocativo, estreitando os olhos – Quase dá para ver os coraçõezinhos à sua volta! Olha só, toda apaixonada, a Patrícia não fica com ciúmes, não? Nunca imaginei você num relacionamento neste formato, Tati. O quê? Um trisal? Você? – ele ri – Jamais. Me conte tudo! Como que você esconde uma notícia dessas do mundo? Eu não te sigo mais no Instagram? Por que não fiquei sabendo disso? – Miguel tira o celular do bolso – Como funciona? Quero detalhes.
– Ué, as pessoas mudam e podem surpreender, inclusive eu – Tatiana ri também, sem parecer ofendida com a surpresa dele – Mas confesso que realmente não era algo que estava nos meus planos... Nos nossos planos, melhor dizendo, já que a Patrícia também não tinha essa pretensão. Funciona... bom, não sei, não temos regras, acho. Mas funciona bem, somos amigas, amantes, parceiras, enfim. Meu casamento não é algo que eu divulgue, exatamente, talvez por isso não ficou sabendo. Mas foi notícia no brejo todo.
– Claro que sim – ele vira os olhos – E vocês são as três monogâmicas? Sim, tem que ser, imagina só administrar esse tanto de mulher junta. Meu Deus do céu! – Miguel exclama, largando o celular, sem demonstrar se o comentário era positivo ou não.
– Somos monogâmicas, sim. As três, claro. Nosso relacionamento é fechado.
– Sei, e como a Patrícia está, por falar nisso? Ainda chata, mandona e perfeccionista? – Miguel volta a rir, um pouco mais ácido. Deu uma piscadinha, todo galanteador, quando a garçonete trouxe até a mesa uma garrafa de água com gás – Grande Patrícia Figueiredo... qual era mesmo o apelido que eu costumava usar para me referir a ela? Chef... – ele encara o teto, tentando lembrar – Calma que já já eu me lembro – complementa, como se o detalhe fosse importante.
– A Pati está muito bem, obrigada, o restaurante dela é um sucesso absoluto... – Tatiana responde, sem se afetar.
– Graças a você – Miguel a interrompe, não parecendo se importar de ser desagradável. Tão logo a garçonete se afastou, piscou para um rapaz sentado na mesa ao lado.
– ...tem uma clientela fiel, é bem avaliado pela crítica gastronômica da cidade toda, recebeu cinco estrelas no Guia Goodyear por mais de uma vez – Tatiana lista, não se abalando com a interrupção – O Bistrô é fruto do trabalho dela, Miguelito. Muito trabalho, por sinal, eu sei bem o quanto. A única contribuição que dei foi apenas ajudá-la a organizar a parte burocrática.
– Sei... Se não te conhecesse, diria que está minimizando a sua participação nesse sucesso todo. Como te conheço, sei que é exatamente isso o que está fazendo.
– Mas é verdade – Tatiana retruca, soando pouco convincente de dentro de sua enorme xícara de café.
– Vou fingir que acredito. E me fala uma coisa, a Patrícia não fica enciumada, não? De te ver com outra mulher?
– Que também é esposa dela? Por que ficaria? Somos um trisal, Miguel.
– Tá certo, dona Tatiana, tá certo. A propósito, tenho acompanhado a tour envolvendo o Guto Morais e a senhora sua esposa, nas redes sociais. Os memes são ótimos, por sinal, um melhor que o outro.
– Como assim? Não é uma “tour”, é uma grande de uma mentira deslavada inventada por um sujeito à toa, isso sim. Ele só quer palco e ganhar audiência em cima dela.
– Meu amor, como assim? O Guto é simplesmente o maior jornalista de fofoca de todos os tempos! O canal dele tem milhares de seguidores (mi-lha-res!), o cara é um ícone, um Influencer com i maiúsculo. Jamais que precisaria de palco para alguma coisa, até parece! Ele é o palco. Nessa trend, a Patrícia é quem sai ganhando com essa publicidade toda, gratuita, ainda por cima. E nos últimos dias só se fala nisso, então é uma tour, sim! Onde já se viu, eu hein...
– “Jornalista de fofoca” – Tatiana repete, imitando a voz dele, como se Miguel fosse bobo.
Aquele sem dúvida já era o café mais indigesto dos últimos tempos, a pior decisão que poderia ter tomado para uma tarde chuvosa. Tatiana já estava amargamente arrependida de ter aceitado o convite de Miguel, uma semana atrás. Tinha se esquecido completamente de como ele sabia ser chato e inconveniente.
– Desde quando fofoca é editoria de jornalismo? – Tatiana pergunta – O cara é um fodido, nem jornalista ele é... fofoqueiro mentiroso. Inventor de fake news...
– Colunista, jornalista, é tudo a mesma coisa. Para nenhum dos dois precisa ter diploma, tanto faz – Miguel rebate, com desdém. Parecia estar se divertindo com aquilo, como se provocá-la fosse algum tipo de esporte.
– Tá, foda-se, que seja – Tatiana retruca, irritada. Só não se levantou e foi embora porque estava chovendo muito e sair agora seria perigoso. Mas quis.
Não se incomodava com perguntas inconvenientes ou deboches, mas nem por isso admitia que falassem mal de Patrícia, quem quer que fosse. Ainda mais agora, com a mulher sendo vítima de uma calúnia inventada por um qualquer. E daí que o fofoqueiro tinha milhares de seguidores? Desde quando isso credibiliza alguém?
– Tudo bem, meu bem, não quis te irritar – Miguel diz, com a voz pastosa, tentando ser conciliador. Encostou na mão dela enquanto falava, no intuito de apaziguar os ânimos – Fico feliz que o restaurante da sua esposa seja um sucesso e espero que ela consiga sair dessa história de copiar receita dos outros da melhor forma.
– Ela vai se sair bem, não tenha dúvidas – Tatiana afirma, fazendo um gesto ao solicitar mais um café. Provavelmente se arrependeria disso mais tarde, mas havia certos momentos na vida em que precisava pagar o preço por uma dose extra de cafeína. No caso, uma azia até o fim do dia, no mínimo – Hoje inclusive ela marcou de encontrá-lo nO Bistrô e...
– Encontrar o Guto? – Miguel a interrompe com uma risada estridente e demorada – Coitadinha, a “Chef Panelinha” vai ser devorada viva em seu próprio restaurante – ele ri de novo, demonstrando ter se lembrado do apelido – Ei, isso dá um ótimo meme – diz, pegando o celular, completamente mal intencionado.
– Diga uma palavra sobre isso e eu juro que te mato, Miguel –Tatiana afirma, firme, segurando forte em seu braço. Cada sílaba foi muito bem pronunciada, evidenciando a seriedade com que falava – Não ouse também falar um A na internet sobre o meu casamento.
– Tá bom, calma, ei – Miguel solta o aparelho em cima da mesa, como se rendesse, desvencilhando-se dela – Que agressividade, Tati! O que está acontecendo? Você não era assim!
– Não era assim mil anos atrás, quando me conheceu. As pessoas mudam, ué, qual é a surpresa?
– Foi essa sua esposa nova que te deixou assim? Hein? – Miguel insiste, como se não a tivesse escutado – Fica de boa, Tati, sou eu, ei? Está toda reativa, agressiva...
– Claro, vem dizer na minha cara que a minha mulher não sabe cozinhar! – Tatiana responde, aborrecida.
– Eu nem disse isso... Amor, olha, não quis te ofender, acredite – Miguel toca em sua mão, na tentativa de ganhar sua atenção – Não foi minha intenção, de verdade.
– Tá, tudo bem – ela diz, erguendo os ombros como se não fosse importante.
– Vamos começar de novo – ele propõe – Oi, Tati! Tudo bem? E aí, há quanto tempo! Como vai a família, e o seu irmão?
– Sério mesmo que a sua solução é falar sobre o Ralf?
– Ué...
– Não tenho notícias dele, Miguel, sei lá, deve estar em algum lugar da Europa fazendo algo que só ele pode te dizer.
– Tá, entendi, nada de Ralf – Miguel faz um gesto como se riscasse o nome de uma lista imaginária – Eu só achei que o fato de ele ser uma pessoa em comum entre nós poderia ser um bom assunto para conversarmos e...
– “Pessoa em comum”? – Tatiana ri, embora parecesse ofendida – Você era meu namorado na época, terminou comigo porque se apaixonou pelo meu irmão...
– Mas no fim foi bom, não foi? Você se descobriu, saiu do armário – Miguel justifica, se defendendo – Deveria até me agradecer.
– Meu irmão não será assunto neste nosso encontro hoje. Quer saber dele? Ligue para ele e pergunte.
– Tudo bem, Tatiana. Entendi.
– Que bom, porq...
– Você já chegou aqui toda abalada, provavelmente aconteceu algo no seu trabalho ou no trajeto e agora está descontando em cima mim – Miguel diz, interrompendo-a mais uma vez – Não tem problema, posso ser esta pessoa para você. O que aconteceu?
– De verdade? Quer mesmo saber? – Tatiana pergunta, recebendo como resposta um levantar de sobrancelhas, como se fosse um tipo de convite para o desabafo – O que aconteceu é que tem uma infeliz que trabalha comigo e faz de tudo para me irritar, como se isso fosse parte do serviço dela, e essa mal amada implica comigo, caçoa de mim, me expõe de todas as formas e para todas as pessoas que puder imaginar, se satisfaz em me humilhar e agora encabeça uma campanha ridícula na escola contra a minha atuação em sala de aula, com um aluno que tem necessidades especiais, porque na visão dela eu não tenho “pulso firme” com uma criança que “só quer aparecer” – ela faz um gesto no ar, imitando aspas – No meio disso uma das minhas esposas precisou se mudar para longe para trabalhar em outra cidade e agora passa a semana inteira fora dando expediente numa empresa comandada por uma esquisita que provavelmente está a fim dela enquanto minha outra esposa é vítima de uma mentira ridícula que arranha a credibilidade de um negócio que ela se esforçou muito para criar, conquistar e manter. Hoje eu tive um dia terrível, Miguel, terrível! Além de tudo estou muito cansada, dirigi por várias horas ontem e hoje, dormi pouco à noite, acordei cedíssimo... Aí me despenco até aqui e ainda sou obrigada a te ouvir criticar a minha mulher. Sabe...?
Quando terminou de falar, Tatiana viu que Miguel mantinha as sobrancelhas arqueadas, provavelmente surpreso porque não imaginou que ela dispararia tudo aquilo, praticamente sem respirar.
– Se sente melhor? – ele pergunta, parecendo se importar – Colocar as coisas para fora é importante, Tatiana.
– Um pouco, sim – ela responde, bebendo o resto do café.
– Permite? Posso falar? – Miguel pergunta, aguardando uma resposta que não veio – Acho que você deveria denunciar essa imbecil do seu trabalho, a errada é ela e como este é um assunto delicado, o mundo inteiro ficaria a seu favor, caso tornasse público. Quanto à sua esposa que se mudou, bom, acredito que se ela se casou com vocês não pretende traí-las, seja com a chefe, seja com qualquer outra mulher. E a distância no fundo pode até ser benéfica, agita um pouco as coisas em casa e vocês têm bastante saudade para matar quando vez ou outra se encontrarem. Sobre a Chef Panelinha, logo outro assunto surge na internet e as pessoas se esquecem dessa história do Guto. Ele mesmo em breve aparece com outro tema mais relevante.
– Esse apelido é ridículo...
– Assim como era ridícula a ideia dela cozinhar só para lésbicas – Miguel rebate – Nunca vi, restaurante segmentado, voltado para um único nicho... Panelinha, sim.
– Nunca foi nada exclusivo, apenas direcionado no começo, deixa de história. A Patrícia se compadece de quem às vezes só encontra consolo num prato quente de comida e muitas destas pessoas são mulheres lésbicas. Mas você ainda não está preparado para esta conversa. Ela jamais impediu quem quer que fosse de entrar em seu restaurante, ou saboreasse a comida dela. A questão é que você gosta mesmo é de falar mal, sabemos, já que nunca foi lá experimentar.
– Sim, porque sempre imaginei que não seria bem-vindo, já que na minha condição de homem, branco, pansexual...
– O que houve? Não se define mais como bi? – Tatiana o interrompe, não parecendo mais estar tão zangada. No fundo, desabafar foi bom e agora sentia-se até mais leve.
– Rótulos são apenas rótulos, Tati – ele sorri, também dando mostras de estar desarmado – O fato é que amo as pessoas, acho todas lindíssimas, me atraio e me apaixono por todas, sem distinção.
– Entendi – ela fala, observando que a chuva parecia estar dando uma trégua lá fora. Clima perfeito para ir embora.
– Já está dando a sua hora, né? – Miguel pergunta, observando-a olhar as horas, depois de fitar a janela – Hoje tem o curso, é verdade – ele mesmo se responde – Me disseram que a professora Elen aceitou conduzir as aulas lá no Instituto, você vai gostar dela.
– Ah, sim. Eu já a conheço, ela deu aula para mim na faculdade. Nós temos uma história.
– Hum... – Miguel rebate, num tom maldoso, insinuando algo que ela não havia dito.
– Não esse tipo de história – Tatiana afirma, levantando-se – Mas sim, preciso ir por causa do curso. Essa chuva com certeza triplicou meu tempo de percurso até lá, então quanto antes eu sair, melhor.
– Tchau, gata. Foi um prazer revê-la, espero encontrá-la novamente em breve – Miguel se levanta para despedirem-se – Deixa o meu contato salvo, hein? – ele brinca, sem imaginar que ela sequer havia inserido seu número na agenda do celular.
Tatiana jamais daria o gostinho de revelar que isso não aconteceu porque Patrícia tinha ciúmes dele e o salvamento poderia gerar estresses no futuro. Mal sabia ela de quem exatamente se enciumava!
– Boa sorte com as coisas do trabalho, que sua esposa volte logo e espero que sua outra mulher conduza a situação com o Guto da melhor maneira possível. Diga à Patrícia que mandei lembranças.
– É, eu espero também... – Tatiana diz, ao acenar, desejando que a mulher realmente tivesse êxito em seu encontro com o tal fofoqueiro – Seu recado será dado – ela mente, indo embora.
Tatiana teve que mentir porque a insistência de Patrícia em encontrar com o jornalista fez com que as duas discutissem feio. Tanto que fazia dois dias que elas mal se falavam. A viagem até Campinas só não foi em completo silêncio porque na ida brigaram mais um pouco e na volta falaram brevemente sobre Simone e suas impressões nada positivas em relação à Laura. Mas foi tudo. E, em todo caso, ainda que estivessem bem, Tatiana jamais seria boba de levar recadinho de Miguel para casa. Conhecia bem a esposa que tinha, afinal.
A alguns quilômetros dali, brevemente esquecida do que se passava com a mulher, Patrícia examina a organização das mesas do salão de seu restaurante, com a rigidez de um general que avalia a conformidade de sua tropa. Ainda que Zezé fosse eficiente na organização dO Bistrô, treinada de perto por Tatiana desde quando ainda estava no período de experiência, alguns anos atrás, naquela tarde a chef sentia que precisava conferir tudo com os próprios olhos para garantir que estava realmente como o planejado. No caso, de maneira absolutamente impecável.
Se não fosse o encontro com Guto Morais, certamente Patrícia estaria se comendo de ciúmes, imaginando mil e um cenários onde Tatiana e Miguel se encontravam felizes para relembrar as alegrias do passado. Ou então confabulando como a chefe predatória de Mariana estaria avançando para cima dela, no ambiente de trabalho. Mas como havia uma preocupação maior no meio do caminho, abstraiu-se de um problema para se focar em outro. Exatamente como Tatiana havia sugerido, quando disse que o que lhe faltava era algo para se ocupar de verdade.
– A cozinha já está preparada para recebermos nosso visitante especial – a gerente informa, em tom confiante – Não se preocupe com nada, Pati – Zezé complementa, afastando-se para atender um cliente fora de hora, conhecido nO Bistrô como “penetra de horário”.
Guto chegou por volta das 17h. Estava uma hora atrasado e vestia-se como se fizesse questão de ser notado. Ou como se dissesse: “eu sou relevante, antenado e digno da sua atenção”. Usava uma jaqueta verde de nylon, calça jeans rasgada e um Nike Air Jordan retrô. Embora fosse pequeno e magro, do tipo “cabeça de Ozempic”, apresentava-se de maneira confiante, quase arrogante, o que combinava com seu topete armado com muito laquê. O cheiro de seu perfume, extremamente adocicado, chegou antes que ele, fazendo Patrícia franzir o nariz sem perceber. O jornalista entrou no restaurante como se estivesse no meio de uma live.
– Aqui estamos, meus queridos, com a rainha da polêmica – anunciou, tão logo viu Patrícia, lançando um sorriso provocativo. Seus olhos, brilhando, varreram o ambiente como se estivessem em busca de algo digno de crítica ou procurassem conteúdo para a próxima postagem. Só depois ele a encarou, de fato, avaliando-a de cima a baixo, com o olhar carregado de julgamentos.
– Seja muito bem-vindo ao O Bistrô – Patrícia cumprimenta, gentil.
A chef vestia um dólmã feito sob medida impecavelmente branco, bem cortado, com detalhes nas golas, costuras e botões no mesmo tom de azul dos enfeites das toalhas, que destacavam o logo do restaurante. Estava com o cabelo solto, escorrendo sobre os ombros em ondas suaves, como se tivesse acabado de sair de um coque. Sua voz saiu límpida, sem demonstrar o nervosismo que sentia e que se misturava à raiva que ela tentava controlar. Patrícia já o havia visto antes, na internet, mas vê-lo pessoalmente fez a adrenalina agitar seu estômago.
Àquela hora o restaurante estava praticamente vazio e a música suave que escapava do bar, nos fundos, ampliava a sensação de privacidade. Um ou outro funcionário circulava pelo salão, já no começo dos preparativos para o jantar. O som, uma melodia instrumental delicada, se misturava com o sutil tilintar de pratos e copos, criando uma atmosfera calma, perfeita para um duelo. Quer dizer, propícia para uma conversa educada entre duas pessoas adultas.
– Agradeço pela recepção e convite – Guto responde, um pouco afetado, apertando a mão de Patrícia sem aplicar muita força no cumprimento – Afinal, não é sempre que tenho o privilégio de ser recebido por uma chef aclamada. Espero não estar atrapalhando a sua rotina tão ocupada.
– Fico feliz que tenha aceitado, é uma alegria ter a oportunidade de esclarecer o meu lado numa história que, na verdade, é um grande mal-entendido.
– Claro, chef! Eu também quero muito entender qual é o seu lado. Estamos aqui para servir a verdade, com ou sem temperos – ele senta na cadeira indicada por ela e puxa do bolso da jaqueta um aparelho celular moderno – Deixa só eu... – Miguel faz um giro, gravando o ambiente praticamente em 360o – Preciso manter meus seguidores sempre atualizados, “alimentados”, sabe como é – complementa, postando o vídeo com uma legenda para lá de sugestiva: “A verdade por trás da cozinha” – O seu restaurante costuma ser sempre assim, tão vazio? – ele puxa um bloquinho de anotações e gira a caneta entre os dedos.
– De maneira nenhuma – Patrícia responde, cruzando as mãos sobre a mesa, sorrindo para disfarçar o desconforto – Ainda estamos fechados para o jantar, posso oferecer algo antes de começarmos? Preparei uma degustação completa do nosso cardápio e...
– Somente um copo de água, agradeço – ele interrompe, olhando mais uma vez ao seu redor, com uma careta – Achei a decoração tão... interessante. Reflete bem o seu gosto – o jornalista então dispara, como se o elogio fosse uma ofensa.
– É, aqui nós prezamos pel...
– Nas minhas pesquisas, observei que você trabalha com uma equipe bastante jovem – Guto interrompe de novo, como se a resposta dela fosse irrelevante – Certamente eles já ouviram os boatos, não é? Como você lida com isso no dia a dia? Chama todos para uma conversa olho no olho, oferece uma degustação completa, como é?
– Minha equipe é realmente jovem, mas também extremamente talentosa e muito dedicada – Patrícia rebate, cruzando os braços e inclinando-se levemente para a frente – Não preciso oferecer degustação de nada porque eles conhecem a verdade e o cardápio de cor. As pessoas que trabalham comigo sabem diferenciar boato de trabalho duro – completa, se esforçando para continuar sendo cordial.
– Sei... então você nunca teve que apagar incêndio na cozinha por causa de fofoca? Deve ser uma equipe muito... compreensiva.
– São os melhores – ela garante, sem piscar – Nosso processo de contratação baseia-se em...
– Me diga uma coisa, Patrícia Figueiredo – Guto a interrompe novamente, abrindo o bloco de anotações, cheio de rabiscos, como se fosse um revólver sendo destravado – O que a levou a cozinhar? Por que decidiu abrir um restaurante?
– Bom, eu comecei a cozinhar muito cedo e...
– E nessa época você já sonhava em recriar receitas consagradas? Como é exatamente a sua relação quanto a “se inspirar” em outros chefs e cozinheiros renomados?
– Olha, para ser honesta na ocasião eu mal sabia segurar uma faca direito, pois era muito pequena. Mas sabe o que nunca precisei aprender, Guto? A roubar o trabalho dos outros.
– Não é isso que andam dizendo por aí... – Guto provoca, como se não fosse ele mesmo o responsável pelo boato.
– Talvez porque inventar mentiras seja mais fácil que criar receitas... – ela provoca, preocupando-se em sorrir no final. Esforçava-se ao máximo para não perder a compostura, já que a última coisa que pretendia era se rebaixar ao nível dele, que jogava baixo, rasteiro.
– É verdade que você tem o costume de mudar o menu do seu restaurante apenas uma vez a cada 12 meses? Sempre em janeiro, é isso? – Guto continua, inabalado – Soube que no fim do ano você oferece um jantar reservado, a portas fechadas, para testar o novo cardápio, confere?
– Hã... sim, porq... – Patrícia balbucia, ajeitando-se na cadeira, um pouco surpresa com a abordagem. Tentou entender o que aquilo tinha a ver com a fake news criada por Guto. Afinal, a história dizia apenas que ela havia copiado uma receita de alguém, sem especificar qual seria e de quem.
– E existe razão para isso? – o jornalista finge anotar alguma coisa e logo volta a girar a caneta entre os dedos, um pouco ameaçador – Ou é só mania de uma chef de cozinha excêntrica?
– Bom, eu acredito que começo de ano é uma época ideal para instituir coisas novas e...
– Se é mesmo assim, por que foi que você decidiu lançar um prato novo recentemente? – Guto a interrompe novamente, desta vez com o volume da voz um pouco mais alto, em tom acusatório – De quem você copiou a receita, Patrícia? Ou melhor, em quem você... se inspirou... para criá-la? – o jornalista se corrige, como se a mudança anulasse a frase anterior.
Patrícia estreita os olhos, convencendo-se de que a conversa seria assim, rude e sem rodeios, numa pegada bem passivo-agressiva. Aproveitou que Pedro trazia a água solicitada pelo jornalista para elaborar uma resposta. Afinal, não podia simplesmente dizer que decidiu recriar uma receita de infância num momento de instabilidade em seu lar, com o intuito de se consolar, primeiramente, levando-a a burlar sua própria programação anual.
– Eu acredito no poder da “comida afetiva”, que pode ser apreciada independentemente da época do ano – a chef então responde, depois que o garçom se afasta.
– Então a exceção foi por motivos afetivos, sei, interessante – Guto anota algo em seu bloquinho, sem desviar os olhos dela – Sempre uma história emocionante por trás, não é mesmo? Mas me diga, chef, é afeto de quem? O seu ou de quem criou originalmente a receita?
– Eu de verdade não sei do que está falando – Patrícia responde, deixando transparecer em sua voz um pouco da irritação que sentia. O jornalista não apenas tinha a audácia de questionar a autenticidade de um de seus pratos (o mais especial, por ter sido o primeiro), como também sugeria que ela havia se apropriado do esforço de outra pessoa. Alguém que por sinal ela não tinha o menor contato e nem fazia questão de ter – Absolutamente todos os pratos dO Bistrô são meus, criados por mim, cada ideia, cada memória que eles carregam. Só eu sei tudo o que passei desde que comecei a cozinhar até aqui. Minha comida tem total relação com a minha história.
– Certo, você garante que não copiou nada? Nem mesmo a receita do seu criativo... como se chama? “Suflê de batata, queijo e um toque especial”? – ele lê o nome do prato no menu on-line.
– Especialmente este! Aprendi a fazê-lo quando era criança, com minha avó. Tenho até a forminha que ela me deu na ocasião.
– Sua avó? – Guto demonstra uma sincera surpresa – Uau, que informação interessante, Patrícia! Posso ver essa tal forminha?
– Eu... não sei... onde ela está... – Patrícia balbucia, sem graça.
– Ah, mas aí fica muito fácil – ele fala, sarcástico.
– Muito fácil é mentir na internet – ela rebate, sem pensar.
– Opa, vamos com calma! – Guto diz, erguendo as mãos de maneira teatral – Se não tem nada a esconder, por que está na defensiva?
– Peraí, você está me gravando? – Patrícia questiona, ao perceber um brilho na jaqueta do jornalista. Com o movimento exagerado, ele acabou revelando outro telefone celular, no bolso perto do peito, com a câmera apontada diretamente em sua direção.
Neste momento, Patrícia compreendeu que aquela conversa, que inicialmente ela pensou que de alguma forma poderia controlar, já havia sido distorcida por Guto – o que seria comprovado logo depois, ao ver os stories do jornalista, inclusive o conteúdo postado antes do encontro, mas o que viria depois também. Sem saber, Patrícia estava ao vivo para milhões de pessoas, em uma live no perfil do colunista.
Num ímpeto de raiva, ela levanta-se e avança em sua direção, na intenção de pegar o aparelho, sem perceber uma movimentação logo ao lado, por parte do “penetra de horário”. O cliente, que fingia ser um sujeito comum, estava em realidade mancomunado com o jornalista e gravou toda a cena, de outro ângulo.
Guto se esquiva e sorri, satisfeito, ciente do engajamento que aquele tipo de ação geraria. O vídeo postado com a reação de Patrícia, em dois ângulos, teve como legenda: “Explosão na cozinha: chef perde a linha em encontro revelador (comida afetiva, plágio ou estratégia de marketing? O descontrole de uma mulher que tem muito a explicar)”.
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