TPM - Capítulo 7: A professora


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ATENÇÃO!
Alerta de gatilho para ansiedade


Tatiana saiu apressada, com os pés quase se trançando em direção ao estacionamento do café, na ânsia de se afastar dali o mais rápido possível. Embora tenha usado o trânsito como desculpa, não estava exatamente preocupada, uma vez que isso já era dado como certo, graças à chuva que persistia, ainda que agora num volume menor. São Paulo infelizmente é o tipo de cidade que parece ser feita de açúcar e simplesmente se derrete em dias molhados, aprisionando os habitantes em trilhas de tráfego nem um pouco doces que se estendem por quilômetros de distância. Isso torna o congestionamento um fato previsível, ainda que diante da instabilidade climática, responsável por provocar temporais inesperados mesmo em épocas tradicionalmente mais secas.

No fundo, ela tampouco perturbava-se com a (irreal) possibilidade de se atrasar para sua importante aula daquela noite, apesar de há pouco mais de uma semana viver com o modo ansiedade ligado em potência máxima, com a emoção de ter Elen de volta à sua rotina, num cenário melhor, diferente de quando se conheceram, anos atrás. Mas só porque mesmo calculando o pior dos mundos, com mais pontos vermelhos do que o mapa colorido do GPS indicava, ainda assim chegaria a tempo de encontrá-la, então não havia desassossego neste sentido. Dificilmente levaria mais de duas horas para fazer um percurso que não chegava a cinco quilômetros, amém.

A questão é que aborreceu-se com Miguel naquela tarde. E o sentimento somou-se à chateação provocada por Rosana na escola e também à brabeza que sentia com relação a si mesma, em especial nos últimos dias, tendo que enfrentar tanta coisa ao mesmo tempo. Isso a levou a retirar-se de maneira apressada de um lugar físico, mas sua vontade mesmo era fugir também de todo o resto.

Por isso, ao sair do café Tatiana praticamente correu, jurando para si mesma nunca mais aceitar nenhum convite só por educação. Sua saúde mental valia muito mais que os bons modos, as etiquetas e as convenções sociais, afinal. 

As pessoas erravam em querer cutucá-la, é verdade, mas ela também tinha uma (enorme) parcela de responsabilidade por ficar mal com as provocações, uma vez que se permitia se abalar toda vez que enfrentava comentários maldosos, fossem eles proferidos por um ex-namoradinho completamente sem noção, fossem disparados por uma colega de trabalho desalmada e sem coração. E isso é o que mais a incomodava no momento: se perceber tão refém de terceiros, toda vítima do mundo, passiva diante de gente que por um motivo ou outro a deixava acuada e sem reação.

Claro que sentia-se mais leve depois de ter colocado para fora os problemas que tanto a afligiam nos últimos dias. Era preciso reconhecer que ela não tinha conseguido se abrir com mais ninguém desse jeito; Gilvânia, a professora de Educação Física, até tentou uma abordagem no intervalo do trabalho, mas nem com a amiga da escola Tatiana ficou à vontade para descarregar o que pesava seu coração. O problema é só que a acidez de Miguel arranhava diretamente sua participação como ouvinte e inflacionava o alto preço pago pela dose de conforto promovido pelo desabafo. Sem falar na azia provocada pelo café, que fervilhou seu estômago tão logo deu partida no motor. 

Havia também o agravante de existir um passado entre os dois que, ainda que tenha terminado relativamente bem, não deixava de ser indigesto por inúmeros motivos. Além de tudo, o encontro daquela tarde comprometia sua promessa de manter-se longe de Miguel, conforme havia se comprometido a fazer no passado.

A verdade é que, se pudesse, Tatiana fugiria até de si mesma, assim como tendia a correr de todos os problemas que a atormentavam e que ela não sabia ou não queria resolver. Esta inclusive costumava ser a sua solução para quase tudo o que considerava difícil: fugir. Isso a levava a deixar para trás lugares, pessoas e situações diversas e adversas ao menor sinal de desconforto, como se apagar os rastros fosse suficiente para aliviar o peso das escolhas não feitas ou dos conflitos evitados. 

Naquela tarde chuvosa, na incapacidade de escapar da própria vida, Tatiana se levou depressa debaixo da garoa em direção ao carro e acelerou no limite da via até o primeiro congestionamento que encontrou nos 4,8 km que a afastavam de seu destino final, percorridos em pouco mais de meia hora. Era bom ficar sozinha, mesmo quando não se servia como boa companhia. Ao menos foi isso o que se afirmou em voz alta ao se encarar por alguns segundos no espelho retrovisor, reparando na profundidade das olheiras que deixavam seus olhos mais fundos.

– A senhora está meio caidinha, hein gata – Tatiana exclama, ajeitando o cabelo com as mãos e acelerando devagar sem segurar no volante. Quando freou novamente, poucos metros adiante, checou se havia mensagens no celular, preso no painel do carro. Fez o movimento mais por hábito, pois sabia que não encontraria nada de novo. No reflexo da tela desligada observou que continuava com uma aparência lastimável, mesmo após a tentativa de se arrumar.

Em poucos minutos, a cada freada brusca e semáforo vermelho que encontrou, começou a ficar com a impressão de que o relógio de alguma forma zombava dela, prolongando a sensação de estagnação que sentia – em relação ao trânsito, mas também à própria vida. Conforme os minutos se arrastavam, mais Tatiana sentia que o carro, que deveria ser seu veículo de escape, a mantinha aprisionada em algo maior que o simples tráfego, tipo à ausência de controle sobre o próprio destino ou algo parecido. 

De um instante para o outro, pareceu que sua vida era como um congestionamento: avançava aos poucos, mas sempre sendo barrada por algum sinal fechado ou rua bloqueada. Pensar nisso fez o carro parecer pequeno demais, insuficiente para transportar Tatiana e todos os seus anseios, receios e ansiedades. Era contraditório porque, sufocada, sentiu-se pequenininha, quase desimportante. Sem querer, se perguntou se o trânsito relacionava-se com as ruas alagadas ou com as questões emocionais que a consumiam como brasa por dentro.

Tatiana desligou a música, que logo começou a irritá-la mais que o congestionamento. Mas o aparente silêncio deu espaço para que as buzinas ecoassem mais alto em sua mente, de maneira incessante. Por um momento, pensou em buzinar junto, na tentativa de devolver ao mundo a mesma angústia que estava sendo lançada contra ela. Quis gritar também. Mas não teve forças para absolutamente nada, então só ficou imóvel, como se fosse apenas mais um automóvel no meio daquela massa de metal, fumaça e angústia. 

Com tudo isso, o nervosismo fez com que se encharcasse de suor, o que provocou calor no interior do carro, que ficou parecendo uma estufa, com as gotículas de pânico escorrendo pelos vidros. Ela segurou o volante com força, até que os nós dos dedos ficassem brancos, tentando se manter a salvo da aflição que a afogava naquele mar de carros.

Arfando, com dificuldade para respirar, Tatiana sentia o cheiro do escapamento dos outros veículos entrando pelo ar-condicionado, tornando o ambiente ainda mais sufocante. A fumaça tóxica combinava com o cenário que se tornou escurecido, no instante em que sua vista ficou turva. Mesmo chovendo, agora um pouco mais forte do que quando deixou o café para trás, ela abriu as janelas do carro para tentar se recompor. O vento molhado e gelado atingiu em cheio seu rosto, que ardeu em contato com a atmosfera úmida.

– Será que é assim que a Mariana se sente? – questionou-se, confundindo por um momento asma com crise de ansiedade – Respira, Tatiana, por favor – ela se ordena, ouvindo as próprias batidas do coração, rápidas e desordenadas, martelarem alto nos ouvidos. 

Seu peito estava apertado, como se algo invisível o esmagasse, sem nenhum tipo de compaixão. O ar, insuficiente mesmo com o vidro aberto, escorregava pelo pulmão e o esforço para regularizar a respiração só piorava a sensação de asfixia. Seus dedos tremiam sobre o volante e uma gota de suor escorreu fria pela têmpora, indicando seu alto grau de perturbação.

Sentia-se tonta, encurralada num ponto da vida impossível de escapar. Este era o principal motivo para estar tão frustrada, de castigo no meio de todo aquele caos: nem sempre conseguia fugir de tudo e ser obrigada a constatar isso foi desesperador em vários níveis, porque ela percebeu que a observação não tinha a ver apenas com o trânsito. Sua inquietude foi o gatilho que disparou a ansiedade que se apoderou de vários setores de seu corpo.

De repente, o celular tocou, como se alguém lançasse uma boia salva-vidas em meio ao naufrágio de suas inquietações. A vibração súbita quebrou o ciclo de pensamentos, oferecendo-lhe uma tábua de salvação para se agarrar, mesmo que por instinto, enquanto lutava para não ser completamente engolida pela maré de ansiedade. Tatiana imediatamente soube que não era nenhuma das esposas porque mesmo sem conseguir enxergar direito pôde ver que um número desconhecido piscava na tela, em vez de um nome ou uma letra, como P ou M. Provavelmente, em uma situação normal ela teria ignorado ou desligado a chamada, mas sem raciocinar direito, atendeu.

– Oi, Tati! Ai, que bom que esse número ainda é seu! – alguém diz, do outro lado da linha – Eu tinha o seu contato salvo na agenda do meu celular, mas sabe como é, faz tanto tempo que não te ligo... Me perguntei se teria trocado de número nesse meio-tempo. Está tudo bem? Pode falar?

– Estou passando m... me ajuda – Tatiana diz, reconhecendo a voz. Não imaginou ser acudida num momento assim, mas aceitou a oportunidade com um pedido de socorro.

– Onde você está? Respira fundo.

– Não consigo... – Tatiana afirma, com dificuldade. As buzinas raivosas à sua volta demonstravam que agora ela é quem atrapalhava o trânsito já congestionado, mas isso não lhe deu condições de avançar, muito pelo contrário.

– Consegue, sim. Se concentra na minha voz. Estou com você, Tatiana.

– Eu... não devia ter atendido. Desculpe.

– Mas já atendeu, pare com isso. Agora estou aqui. Respira comigo, conta até cinco, vem.

– Grata – Tatiana responde, depois de alguns segundos, com um fio de voz. Pareceu conseguir se acalmar um pouco, só pelo fato de não se sentir mais tão sozinha. A familiaridade daquela voz, carregada de uma intimidade quase palpável, fez tudo dentro dela se assentar.  Parecia que não apenas conseguia respirar, como também acessava algo que durante anos evitou encarar. 

– Eu sempre estive aqui, Tati. Nunca fui embora, você sabe.

Em algum ponto dentro dela, Tatiana sabia disso. E mesmo no meio do sufoco, sentiu que o comentário pairou pesado no ar como se fosse uma ferida não cicatrizada ou algum tipo de promessa, não ficou muito claro. Esforçando-se para se concentrar na própria respiração, Tatiana fechou os olhos e apertou o telefone com força contra o ouvido, como se a ligação pudesse ser um abraço. 

Ela inspirou, contando mentalmente devagar, conforme havia sido instruída, e percebeu que seu peito se expandia um pouco mais a cada tentativa. O ar foi voltando devagar, tímido, como se também precisasse de uma dose de coragem para preencher o vazio dentro dela.

Respirando fundo, o suficiente para fazer o ar voltar a oxigenar dentro do peito, Tatiana foi retomando o autocontrole pouco a pouco e em alguns segundos a confusão do trânsito se transformou em apenas um ruído distante. Ela levou a mão ao peito para se certificar de que estava de volta ao comando de sua mente e sorriu de maneira acanhada quando constatou que se sentia um pouco melhor.

– Nem sei como te agradecer – Tatiana finalmente diz, com a voz falhando no final – Você me ligou no momento exato de me salvar de mim mesma.

– Não precisa agradecer. Só respire. E fique bem. Eu torço muito pela sua felicidade, Tati.

O silêncio que se seguiu foi breve, mas significativo. Sentindo-se mais leve, Tatiana apoiou a cabeça no encosto do banco e fechou os olhos mais uma vez, como se pudesse manter a voz dentro dela por mais alguns segundos, junto do bem-estar que aquela melodia havia proporcionado. Antes que respondesse algo, porém, ouviu o som seco da ligação sendo encerrada.

Reunindo forças, Tatiana acelerou o carro devagar enquanto trocava de faixa e encostou no primeiro posto de gasolina que encontrou. Aliviada, ao estacionar ela sentiu que finalmente podia respirar de verdade, mas quando desembarcou, suas pernas bambearam a caminho da loja de conveniência. Somente ao voltar para o carro minutos depois é que se deu conta de que não havia perguntado o motivo da ligação que, sem querer, a salvou de uma crise. 

Mais calma, enquanto avançava por uma avenida com tráfego já normalizado, Tatiana admitiu que era preciso enfrentar Rosana. No fundo (e no raso também), ela era a principal disparadora de suas tensões atualmente e a clareza em seus pensamentos neste instante lhe dizia que era chegada a hora de confrontá-la, de uma vez por todas.

Há tempos a colega era uma pedra em seu sapato, sempre em seu encalço fazendo de tudo para desmerecê-la. E a hora era agora porque até mesmo aquilo que por um motivo ou outro Tatiana postergava, em algum momento voltava a bater em sua porta e com uma urgência muito maior. Elen era uma prova incontestável disso.

Reencontrá-la inevitavelmente trouxe à tona muita coisa mal resolvida. A sensação de estar à mercê de sentimentos que a confundiam e a paralisavam a remetia de volta a tudo o que fora vivenciado anos atrás, quando as duas se conheceram, na Faculdade de Artes. Na ocasião, Elen sugeriu algo que Tatiana não soube trabalhar: possibilidades que, na época, pareciam muito distantes e fora de seu alcance. Agora, as memórias ecoavam no presente, após o reencontro, reverberando também questões enfrentadas no trabalho que deixavam Tatiana igualmente rendida e acuada, ainda que por outros motivos.

Talvez seu maior defeito fosse ser tão pacífica e dar tanta importância para o que os outros diziam a seu respeito. Havia sido assim no passado, ao dar ouvidos à Patrícia quando conheceu Elen e o turbilhão de sentimentos que a mulher trouxe a tiracolo, e era agora de novo, ao reencontrá-la – logo ela, que a incentivou a ser professora – justamente no momento em que questionava seu método de ensino por causa dos palpites de Rosana. Que nem merecia tanta importância assim!

A colega era o tipo de pessoa que carrega uma aura de autoridade autoimposta, daquelas que sabem transformar qualquer tipo de ambiente em um palco para exibir suas demonstrações veladas de poder. Na escola, fazia questão de ostentar toda a sua experiência como professora de Matemática como se fosse uma espécie de medalha, sempre pronta para pontuar o que, na sua visão, os outros faziam de errado. 

Isso a levava a tecer comentários aparentemente inocentes, mas cheios de insinuações que cutucavam as inseguranças de todos, em especial de Tatiana, seu alvo preferido. Rosana falava sobre suas roupas (que ela considerava “pouco profissionais”), seu cabelo (que “parecia desleixado”) e até a falta de maquiagem (“ideal para esconder o cansaço do seu rosto”). Ela também debatia suas intimidades com estranhos, então era comum ouvi-la insinuar coisas como: “você sabia que ela é casada com mulher? Deve ser difícil lidar com tanto temperamento em casa... imagina só”, acompanhada de uma risadinha falsa que escondia o veneno de sua malícia. 

Para Tatiana, este era um dos pontos mais incômodos, já que Rosana parecia ter um talento peculiar para transformar qualquer detalhe pessoal de sua vida em conversa de corredor. Sem pudor, discutia fragmentos de sua intimidade com quem estivesse disposto a ouvir – ou mesmo com quem não tivesse interesse. Bastava uma pausa para o café ou um encontro casual na sala dos professores para que Rosana soltasse alguma observação maldosa disfarçada de curiosidade. 

Seus comentários, maliciosos, eram sempre envoltos em um tom de falsa preocupação e não apenas constantemente diminuíam e avacalhavam Tatiana, como também criavam uma atmosfera de fofoca ao seu redor, de um jeito que parecia que sua vida era uma vitrine aberta ao julgamento de quem quer que fosse. Rosana nitidamente se deleitava com o impacto de suas palavras, adorando ser o centro das atenções enquanto moldava narrativas que a colocavam como alguém muito superior e bem resolvida – o que, no fundo, estava longe de ser verdade.

Tatiana sabia que a mulher não era uma pessoa fácil de lidar e a forma como ela explorava os pontos fracos dos colegas, sempre com um sorriso educado ao cuspir palavras tão ácidas e bem escolhidas, fazia com que enfrentá-la parecesse uma batalha perdida antes mesmo de começar. Por preguiça e tomada por uma completa indisposição de se aborrecer, Tatiana se esquivava dela já de cara, logo de partida, e evitava qualquer tipo de interação ou indisposição. Quase sempre obtinha sucesso em sua fuga, exceto quando apresentava-se com a guarda mais baixa. 

Nos últimos dias, estava com a cabeça nas nuvens devido ao reencontro inesperado com Elen e porque os problemas de Patrícia também eram seus, mesmo quando fingia não ter relação com os perrengues dela. Isso a levou a se tornar presa fácil para as garras afiadas de Rosana.

Habilidosa na arte de encontrar fissuras na armadura alheia e transformá-las em grandes rachaduras, o ataque da colega naquela manhã veio disfarçado de “conselho profissional”. Segundo Rosana, Tatiana precisava “impor mais respeito” com seus alunos, especialmente com um garoto que tinha necessidades especiais e que, em sua visão limitada, “só queria aparecer”. A crítica ficou ecoando na cabeça de Tatiana durante todo o dia, não apenas pelo tom ofensivo, mas pelo que o comentário representava: um julgamento raso e cruel, feito com a intenção clara de desestabilizá-la. E ela conseguiu isso!

No começo, Tatiana acreditou que o assunto cozinharia em sua mente até o final daquele longo dia. Imaginou que nem mesmo o café com Miguel seria capaz de distraí-la, afastando o tema de suas preocupações. Porém, agora, depois de enfrentar um engarrafamento sufocante e uma crise de ansiedade extenuante, percebeu que apesar de ainda estar chateada com Rosana e aborrecida com Miguel, e embora permanecesse bastante ansiosa por rever Elen dali alguns minutos, Tatiana encontrou uma brecha para se preocupar com a esposa. Será que o encontro de Patrícia e Guto já havia terminado? Qual teria sido o desfecho do café que ela, tão ingênua, propôs ao jornalista fofoqueiro?  

Desde o início, Tatiana esperava pelo pior. Não por ser excessivamente pessimista, mas porque a convivência diária com uma cobra no trabalho já a havia convencido de que o mundo está repleto de gente com o coração cheio de maldade. E Guto, infelizmente, encaixava-se nesse perfil, já que era conhecido por suas batalhas virtuais, guerras de palavras e narrativas inflamadas, travadas no campo inflamável e minado da internet. Era movido por polêmicas fabricadas a troco de like e audiência, simplesmente. Mesmo bem-intencionada, dificilmente Patrícia conseguiria sucesso enfrentando gente assim. 

Apesar de saber disso, ao pensar na esposa, Tatiana desejou de coração que ela obtivesse algum êxito, por menor que fosse, naquela improvável empreitada. A última coisa que queria era ter de lançar o clássico “eu te avisei”, pois sabia que, além de ineficaz, só traria mais peso a uma situação já um tanto delicada. 

Cogitou mandar uma mensagem no grupo das TPM só para saber se havia novidades. Talvez Patrícia tivesse um desfecho para o café ou Mariana, com sua habitual leveza, já estivesse a caminho do aeroporto e pudesse compartilhar alguma atualização sobre sua viagem. Porém, antes que pegasse o celular, refletiu que caso houvesse notícias, as mulheres teriam falado. Na falta de um contato e sentindo-se um pouco esquecida pelas duas esposas, Tatiana permitiu que seus pensamentos se dirigissem então, mais uma vez, até Elen.

A lembrança da professora, com sua calma tão tranquilizadora, tinha algo de acolhedor, mas também de desafiador, de um jeito como se sua presença pudesse ao mesmo tempo aliviar e aumentar a inquietude que ocupava o peito de Tatiana, ainda que numa proporção bem menor do que aquela experimentada minutos atrás. Embora sentisse os resquícios da tensão reverberando pelo corpo, a ansiedade já não estava tão presente quando estacionou o carro, mais cedo do que de costume. O desconforto era mais como uma espécie de peso vago, um zumbido distante que preenchia o cérebro e amolecia o corpo, o que a levou a respirar fundo, agora por outros motivos. 

Tentando ganhar um tempo para si mesma antes da aula e no intuito de minimamente se recompor, Tatiana observou por alguns minutos a chuva batendo no vidro, como se o limpador de para-brisa fosse capaz de espanar também o turbilhão dentro dela. O movimento repetitivo era quase hipnótico e ela mal piscou. O limpador ia e vinha, sem hesitar, levando cada gota embora com uma facilidade que parecia muito distante de sua luta interior. Por causa disso, sua mente se inundou de imagens que ela tentou afastar, sem sucesso, como se a crise no meio do trânsito tivesse aberto uma porta há muito tempo trancada.

O plano era passar a próxima hora e meia no carro para tentar desacelerar o ritmo antes do curso. Mas com o organismo ainda agitado pela mistura de cafeína e adrenalina, Tatiana teve que abandonar a ideia quando seu corpo lhe impôs outro tipo de necessidade. De novo, fugir não era uma opção, já que nem mesmo seu intestino lhe dava o luxo dessa ilusão.

Ao entrar na Escola de Arte, teve a impressão de sentir o perfume de Elen no ambiente. Talvez a professora já estivesse por ali ou então sua mente é que queria convencê-la disso, lhe pregando uma peça. Direcionada para o passado através do aroma, Tatiana se lembrou de quando as duas se conheceram, enquanto apressava o passo em direção ao banheiro. 

Elen lecionava História da Arte na faculdade. Era uma mulher expansiva, que parecia ocupar todos os espaços, movendo-se com uma energia que oscilava entre autoridade e uma estranha calma. Na primeira aula, Tatiana não trocou uma palavra sequer com ela, ocupada demais em tentar passar despercebida. Na época, seu irmão caçula já era conhecido praticamente em todo o mundo graças à sua genialidade e, de alguma forma, Tatiana tentava descolar-se da figura dele, já que Ralf se distinguia não apenas por sua ousadia e atitude como artista, mas também pelo incontestável reconhecimento de seu talento técnico.

A crítica dizia que Ralf era uma “mistura de Marina Abramović com Marcel Duchamp”, com uma genialidade que mesclava “performance radical que subvertia conceitos” a uma abordagem “provocadora e filosófica sobre o que é a arte”. Tatiana, por sua vez, era mais pragmática: gostava de desenhar e se dedicar ao seu incipiente casamento com uma chef de cozinha até então desconhecida. Não almejava os voos alçados pelo irmão, pelo contrário; queria mesmo era largar a Administração assim que passasse num concurso público e, com sorte, daqui a alguns anos, se aposentar como professora de Artes do Estado.

Se duvidar, Tatiana talvez era até mais talentosa que o irmão, mas jamais conseguiu abraçar essa característica por completo. Ela era criativa no olhar, nas suas criações, mas lhe faltava confiança em si mesma. Por sorte, o irmão, embora indiscutivelmente talentoso, nunca precisou enfrentar as mesmas batalhas internas que ela. Para Ralf, a arte era um campo aberto, livre de amarras, assim como o amor e a sexualidade – espaços em que se lançava de corpo e alma, sem questionar o valor ou a validade do que fazia. Ele era aclamado e isso, Tatiana sabia, vinha não apenas de seu talento, mas da segurança que tinha em si. A maneira como o irmão se expunha ao mundo e ao público, como se fosse natural ser genial, era algo que Tatiana nunca experimentara. Por motivos de autoboicote, principalmente.

Mas ainda que tenha se esforçado para passar despercebida por Elen, a professora não fez nenhuma questão de fazer o mesmo e se esconder, conquistando cada centímetro da sala de aula e demonstrando ter visto Tatiana de imediato, em meio a uma turma composta por pessoas mais jovens que ela. Porém, ainda assim limitou-se a um primeiro contato meramente visual, que no entanto deixou Tatiana encabulada, porque imediatamente percebeu que não tinha como escapar da atenção daquela mulher.

No começo da segunda aula, na semana seguinte, tudo mudou. A professora caminhava pela sala, observando os esboços dos alunos feitos na aula anterior, de Desenho Artístico, quando de repente parou ao lado dela. Elen olhou rapidamente para o desenho de Tatiana, mas deslizou o olhar até seu rosto, como se visse algo além do que estava rabiscado no papel.

– Você tem olhos que observam demais – Elen disse, quase num sussurro – É um dom, mas pode ser um fardo, especialmente para quem não fala muito sobre o que vê. 

Mesmo proferida em um tom extremamente baixo, a frase reverberou como se fosse alguma senha que revelava algo trancado a sete chaves. Tatiana de fato observava tudo, mas por não saber traduzir as sensações em palavras, desenhava porque era o único jeito que conhecia de aliviar o peso do que acumulava por dentro.

O desenho de Tatiana reproduzia Elen com uma precisão quase obsessiva e capturava sua postura autoritária e a energia que parecia emanar dela. O retrato a mostrava ereta, confiante, com os ombros alinhados, como se estivesse pronta para dominar e ocupar tudo ao seu redor. O olhar da professora era firme e provocador, com um brilho sutil que parecia atravessar o papel, como se desafiasse quem a observasse a questionar tudo o que ela sabia sobre o mundo da arte. Ou sobre a vida. Porque Tatiana se enfeitiçou pela postura e a inteligência de Elen, e com sua capacidade de compartilhar conhecimento de forma tão apaixonada.

Nos dias que se seguiram e ao longo de todo o primeiro semestre de curso, Tatiana se viu cada vez mais absorvida por algo que não entendia. Amava Patrícia e era apaixonada pela vida sólida, tranquila e pacata que estavam construindo juntas. Também apreciava a rotina agitada que cultivavam no restaurante que, na ocasião, já contava com certo sucesso, sendo divulgado principalmente no vale, entre as amigas delas. Mas a simples presença de Elen despertava algo que Tatiana não sabia como lidar. A maneira como a professora se impunha, o brilho em seus olhos e principalmente a energia dela, tão em sintonia com a sua, levavam Tatiana a sentir um fascínio que ia além do intelectual, mas que tampouco se restringia ao campo sexual, apenas. 

Elen não precisava fazer nada para isso; era algo natural, que simplesmente emanava dela. E embora nenhuma das duas dissesse nada, ao menos não verbalmente, a química era tamanha que beirava uma tensão prazerosa, um tesão que fazia Tatiana se sentir viva e estimulada para as aulas. 

Mas ao mesmo tempo em que isso era bom, muito bom, Tatiana sentia-se extremamente culpada, como se o desejo e todo aquele interesse fosse uma espécie de traição silenciosa. Amava a esposa profundamente, o passado delas e até mesmo o futuro, e em nenhum momento sequer considerou fazer algo que pudesse magoar Patrícia. Mesmo que em seus pensamentos a professora vivesse nua e trepada em seu corpo, como um tipo de obra de arte depravada. 

Não era nada meramente carnal, vale dizer, porque o olhar de Elen, como se conseguisse ver além de sua superfície, despertava algo confuso, uma curiosidade que Tatiana não sabia controlar. Tinha consciência de sua fidelidade, mas no entanto lhe faltava a capacidade de negar o impacto que a professora exercia sobre ela. Tratava-se de uma atração silenciosa, porém evidente. E embora se esforçasse para se concentrar no restaurante, em Patrícia e nas coisas que costumavam ocupá-la, Elen estava sempre lá, em algum canto de sua mente, desafiando seus pensamentos.

A professora não demonstrava nada de forma explícita, mas Tatiana sabia que, de alguma maneira, Elen compartilhava o mesmo tipo de atração que ela sentia. Havia uma troca de olhares rápidos, um brilho sutil em seus olhos sempre que se cruzavam e microexpressões que diziam muito e que indicavam que, embora ela mantivesse sua postura de autoridade, estava igualmente cativada pela presença de Tatiana. 

Quando a professora falava com ela, o tom de sua voz era sempre mais suave, quase imperceptível, como se permitisse uma intimidade exclusiva e momentânea. Às vezes, durante uma explicação suas mãos se moviam levemente em direção a Tatiana, como se quisesse tocá-la, mas logo se reprimia, mantendo a compostura. Além disso, nos momentos em que interagiam, Elen se mantinha atenta a cada movimento seu, capturando até mesmo os menores gestos, como se a estudasse de maneira dedicada. 

Foram quatro anos de paqueras implícitas. Elen não deu mais aula para a sua turma após o primeiro semestre, mas Tatiana conhecia seus horários, sua grade de aulas e sabia sempre onde encontrá-la na faculdade – e fora de lá também. Isso a levou a frequentar cursos extracurriculares, mesmo que nem precisasse de crédito ou não se interessasse pelo assunto. 

O que a fez mudar completamente de rumo e de comportamento foi Patrícia, que nem imaginava o que se passava lá fora. Em certa ocasião, numa noite comum no restaurante, Tatiana percebeu que a esposa estava quieta, com movimentos mais lentos que o habitual, como se algo a estivesse consumindo na cozinha. Na verdade, Patrícia estava em silêncio há um bom tempo, de um jeito que parecia conhecer tudo o que se passava na cabeça da mulher, cada detalhe infiel. A remota possibilidade de ela saber sobre o que se passava com Elen fez Tatiana sentir-se muito mal, consumida por uma culpa monstruosa, ainda que em momento algum jamais tivesse concretizado nenhum de seus milhares de devaneios mentais envolvendo a professora.

Enquanto a observava, distraída, Patrícia deixou cair um prato no chão sem querer e o som quebrou o resto de calmaria daquela noite. A chef se agachou rapidamente para pegar os pedaços de vidro, mas Tatiana percebeu um tremor em suas mãos. Uma fraqueza que não era típica dela.

– Está tudo bem, querida? – Tatiana então perguntou.

– Sim, só... estou cansada – foi a resposta de Patrícia, que disse menos que seu olhar, que não acompanhou o sorriso que ela se forçou a oferecer.

E foi ali, naquele olhar vago, que algo se quebrou dentro de Tatiana, junto do prato espatifado. Ela conhecia Patrícia bem demais para não ver que por trás de suas palavras havia mais. Tatiana percebeu uma insegurança e uma fragilidade que a esposa não demonstrava frequentemente. Isso a fez engolir em seco, percebendo que ao se perder no fascínio por Elen, havia se afastado da esposa. Talvez não fosse o cansaço que abatia Patrícia e sim o peso do distanciamento que ela própria não soube enxergar.

Tatiana incontestavelmente a amava, mas em algum ponto se deixou se perder no que sentia por outra pessoa, que era só uma fantasia, algo que ela nem sabia definir, embora sentisse de um jeito que não podia ignorar. E Patrícia notavelmente sentia o impacto disso.

A questão foi só que a professora, acostumada a ser o centro de suas atenções, não pareceu disposta a ver Tatiana se distanciar, sem mais nem menos. A conexão que elas compartilhavam, embora não fosse verbalizada de forma explícita, era evidente para ambas e quando Tatiana começou a se esforçar para se afastar, tanto física quanto emocionalmente, Elen logo percebeu que a situação estava saindo de seu controle. Para ela, a falta de atenção de Tatiana não significava apenas um distanciamento afetivo, mas também um desafio ao jogo de sedução que era mútuo até aquele momento. Isso a levou a propor algo para se reaproximarem que, na verdade, foi o que motivou o afastamento por completo.  

A lembrança do último diálogo entre elas reverberava muitas emoções em Tatiana, mesmo hoje, tantos anos depois. Porque a proposta de Elen colocava em xeque tudo o que ela acreditava sobre relacionamento e compromisso, e tinha o potencial de abalar seriamente os alicerces de seu casamento com Patrícia, que morria de ciúmes de Elen, embora não soubesse da atração entre a esposa e a professora da faculdade. Tatiana sempre acreditara que o casamento era uma união exclusiva, fundamentada na confiança entre duas pessoas, e a monogamia era uma ideia profundamente enraizada em sua visão de amor, como se fosse um pacto sagrado que ela jamais imaginou questionar. 

No entanto, com o tempo e o amadurecimento conquistado na progressão dos anos, Tatiana percebeu que sua visão sobre amor e relacionamentos não precisava ser tão engessada, ou imutável. Inclusive, quando conheceu Mariana algo dentro dela se transformou, não apenas por a mulher ser quem era, mas também porque ela própria havia se tornado mais aberta às complexidades da vida e dos sentimentos, que estão longe de serem estáveis. Com Mariana, Tatiana pôde perceber que o que antes era inquestionável, por exemplo, o modelo tradicional e heteronormativo de casamento, agora já não refletia mais suas necessidades e desejos. E tudo bem!

A ideia de um trisal, embora absolutamente desafiadora desde o começo, passou a ser uma possibilidade em sua vida e não mais algum tipo de ameaça que pudesse comprometer sua relação com a esposa. O que também facilitou o processo foi o fato de Patrícia ter igualmente se mostrado aberta à ideia. Do contrário, Tatiana provavelmente nem cogitaria viver um poliamor.

Em outras palavras, ainda que tenha sido fundamental que houvesse uma mudança radical no entendimento de Tatiana quanto aos relacionamentos, assim como Patrícia, Mariana sem dúvida era a cola que dava liga às TPM. Certamente, se fosse em outra época ou envolvesse qualquer outra pessoa, o casamento a três nem daria certo.

Ao deixar o banheiro, antes que saísse para buscar o celular que esquecera lá fora, no carro, Tatiana avistou Elen. Mesmo de longe, vê-la a fez parar imediatamente, hesitando por um momento, sem saber se deveria continuar. Era estranho o contraste de emoções que sentia perto dela: uma mistura de nostalgia, desconforto e uma pontada de interesse que ainda hoje recusava-se a admitir. Era uma sensação que Tatiana conhecia bem, mas que preferia fingir não lembrar.

Elen estava em pé, conversando com alguém próximo a uma janela, e segurava um cabo de computador enrolado entre os dedos. Seus gestos eram precisos, quase calculados, como se até mesmo algo trivial, como o manuseio de um cabo, carregasse um certo ar de atitude. Seu cabelo com mechas ligeiramente desalinhadas destacava os tons de castanho em meio ao grisalho e lhe dava um charme a mais, lapidado com a ajuda do tempo. 

Ela vestia uma camiseta preta de algodão que se ajustava ao seu corpo com uma elegância totalmente despretensiosa. A roupa, embora básica, combinava com sua postura decidida, que mesmo a distância transmitia confiança e serenidade, como quem domina o espaço sem precisar reivindicá-lo ou se vestir de maneira mais formal. 

De onde estava, Tatiana notou as sobrancelhas arqueadas da professora, uma marca de expressão que, no passado, ela sabia identificar como um sinal de interesse genuíno. O rosto era o mesmo de quando se conheceram, com traços firmes e um olhar penetrante, embora mais marcados pela passagem dos anos – ou pelas histórias que haviam se acumulado. Sem dúvida alguma havia algo de magnético nela, uma combinação bonita de atenção focada e charme despreocupado.

Elen virou-se levemente, como se pressentisse estar sendo observada e Tatiana desviou os olhos no mesmo instante, com o coração acelerando como se tivesse sido pega em flagrante. Ela se obrigou a respirar fundo, tentando controlar o turbilhão interno que Elen provocava com tanta facilidade, mesmo sem dizer nada.

A professora encerrou a conversa, enroscando o cabo de computador em um laço mais firme em volta da mão antes de se despedir de seu interlocutor de forma breve, com um sorriso e um aceno de cabeça. Ela então se virou, como guiada por instinto, e encontrou o olhar de Tatiana no espaço. Com passos decididos, cruzou a distância entre as duas, com seu olhar firme a prendendo onde Tatiana permaneceu até que a mulher se aproximasse.

– Achei que talvez não viesse – Elen diz, com um tom voz casual. Ela sorriu, vendo Tatiana levantar os ombros, na tentativa de aparentar indiferença – Você está bem? 

– Acho que sim... E eu te disse que viria, na semana passada.

Elen riu, seus lábios se curvando em um sorriso ligeiramente irônico. Com um gesto rápido e confiante, cruzou os braços e estreitou os olhos levemente, analisando-a de um jeito provocador, como uma artista que já conhece cada detalhe de sua obra antes mesmo do primeiro traço. Parecia pronta para pintar mais uma cena na complexa relação que compartilhavam. 

Seu sorriso era enigmático, uma mistura clara de diversão e provocação, como se tudo fosse parte de um jogo que só ela sabia brincar.

– Ah, sim. Você é sempre fiel à sua palavra, não é? – provoca, com notável ironia, encarando-a de maneira divertida como se apenas aguardasse Tatiana morder a isca.

– Estou aqui para o curso, Elen – Tatiana responde, piscando duas vezes ao final da frase.

– Claro que sim. Não me esqueci o quanto você é... prática. Eu diria que até se supera em se convencer de que está tudo sob controle – o comentário fica no ar, afrontoso, como se Elen soubesse o quanto Tatiana resistia à sensação de descontrole que, claramente, tomava conta dela. 

– Não sei o que quer dizer – Tatiana rebate, arqueando a sobrancelha, porém transparecendo a surpresa com a insinuação.

Elen não se apressou em responder, observando-a com um olhar calculado, como se estivesse estudando cada reação de Tatiana. O silêncio ficou carregado de tensão por um momento, até que ela finalmente voltou a falar.

– Não é fácil, né? Às vezes, as coisas até parecem estar sob controle, mas a vida tem lá suas surpresas e o corpo tem meios próprios de nos dizer que algo vai mal. Ele dá sinais que a gente não tem como ignorar.

Tatiana engoliu em seco, sentindo-se desconfortável com a conversa. Elen estava claramente tocando num ponto delicado e por isso evitou o olhar direto, sentindo a pressão de cada palavra que a mulher dizia.

– Você sabe disso, não sabe? – Elen insiste, com os olhos ainda em Tatiana, como se sondasse algo que a outra tentava esconder – O corpo sempre entrega, não tem jeito... Mesmo quando a boca se esforça para convencer que está tudo bem, uma hora ou outra as coisas acabam vindo à tona.

Tatiana aperta os lábios, buscando palavras para se defender, mas Elen continuou, como se tivesse dado o empurrão no momento certo, expondo uma fragilidade que a mulher nitidamente preferia manter escondida.

– Eu te entendo. Todas temos fraquezas, Tati. Pode ser difícil falar a respeito, mas às vezes é o que a gente precisa fazer para voltar a se sentir no controle. Não estou dizendo que você precise compartilhar tudo agora, mas... dá para ver que está lidando com mais peso do que aguenta carregar. Não acha?

O tom de Elen não era mais provocativo e havia uma suavidade em sua fala, como se ela soubesse exatamente onde cutucar sem forçar a barra. A calma em sua voz era desconcertante. Tatiana sentiu um nó se formar na garganta, querendo gritar, mas sem saber como. A última coisa que queria era se mostrar vulnerável para Elen, mas suas palavras pareciam desarmá-la de um jeito único. 

De início, tentou manter a compostura, o máximo que pôde, mas a tensão logo tornou-se insuportável. Ela desviou o olhar e um tremor instantâneo tomou conta de seu corpo. Sem aviso, o nó na garganta se transformou em lágrimas, que começaram a deslizar sem controle, uma atrás da outra. Tatiana até tentou se conter, mas não conseguiu; o choro foi abafado, mas o incômodo que sentia parecia maior do que ela e a forma de se liberar de tudo aquilo foi chorando. Copiosamente.

– Eu… não sei o que fazer – a voz de Tatiana vacila, quebrando no meio da frase, como se as palavras não conseguissem sair completas – Não sei se sei lidar com isso – complementa, sem especificar ao que se referia.

Ela se encolhe, abraçando-se como se tentasse conter a avalanche de emoções prestes a transbordar. O corpo de Tatiana tremia e ela não fez nada para impedir. O vazio em seu peito parecia preencher todo o espaço à sua volta e o receio de se mostrar frágil era a única coisa que tinha para se completar.

Elen fica quieta, percebendo o esforço de Tatiana para se manter serena. A mulher não diz nada de imediato, respeitando o silêncio e aguardando o momento certo de se manifestar. Sabia que aquela crise de choro também era benéfica e terapêutica, então aguardou que Tatiana se acalmasse.

– O que está acontecendo, Tati? – Elen pergunta, depois de alguns minutos, tocando gentilmente em sua mão – Não precisa ser agora, se não quiser, mas quero entender. Você não tem que enfrentar tudo sozinha.

Sua voz era firme, mas carregada de empatia e compreensão, sem nenhum traço de julgamento. Por conhecê-la, sabia que Tatiana estava dividida, perdida entre a necessidade de desabafar e o medo de se expor demais. Mas ainda assim fez questão de mostrar-se disponível, de um jeito que mais ninguém havia se colocado. Ao menos não daquela maneira, tão Elen.

Tatiana olha para ela, ainda com lágrimas nos olhos, e a sensação de estar sendo acolhida a anima a falar. Sabia que Elen seria uma ouvinte completamente diferente de Miguel ou até mesmo de Patrícia ou Mariana. A professora tinha uma maneira única de ouvir, sem necessidade de dar respostas óbvias e rápidas.

– Eu… tenho enfrentado dificuldades na escola. Sei que deveria estar preparada para isso, mas o trabalho tem sido demais. Uma das minhas colegas… ela duvida da minha capacidade de ser professora, para não dizer que simplesmente comete bullying contra mim, o que soaria ridículo, embora seja verdade. E isso tem me deixado completamente perdida e sobrecarregada porque há outras coisas acontecendo ao mesmo tempo e sinto que estou no precipício da loucura. Não sei mais como lidar com isso e daqui a pouco vou acabar tendo uma síncope, um surto num dia aparentemente normal. Ainda pior.

As palavras saíram de uma vez e Tatiana se viu mais fragilizada do que gostaria. O medo de ser julgada pulsou em seu peito, mas sentiu-se mais leve apenas por compartilhar um pouco do peso da situação. Ela sente uma leve pressão em sua mão, com o toque suave de Elen, o que a deixa mais segura. Por isso, continuou:

– Sinto que não consigo dar o melhor de mim. É como se eu estivesse sempre à beira de ser exposta, de falhar. E a pressão tem sido... insuportável. Não sei se consigo mais ser a professora que todos esperam. 

– “Todos esperam” ou não consegue ser a professora que você mesma se determinou ser? – Elen pergunta, após alguns segundos, sem soltar sua mão.

– Acho que… – Tatiana começa a dizer, ainda com a voz embargada, tentando alinhar os pensamentos – Eu… me cobro demais. Me impus um padrão que sei que é inalcançável. Quero ser perfeita, atender a todas as expectativas, mas... não sei se posso continuar fazendo isso. Acho que no fundo estou tentando corresponder a um ideal que nem existe. E que ninguém quer, a não ser eu mesma.

– Às vezes, os limites que nós criamos são justamente os mais difíceis de superar. Mas quem disse que você precisa ser perfeita? Quem dita esses padrões? – Elen pergunta, apertando gentilmente a mão de Tatiana, que não responde – Em teoria, deveria ser você mesma, mas parece que em algum momento você começou a carregar as expectativas dos outros como se fossem suas.

– É que essa Rosana me afeta de um jeito que não entendo... – Tatiana se defende, soltando a mão de Elen para esfregar o próprio rosto, frustrada – Nunca usei a palavra “bullying” porque soa tão... escolar, infantil, sabe? Como se eu fosse fraca por admitir que uma colega de trabalho me ataca dessa forma – suas palavras saem abafadas, até que tira as mãos do rosto – Mas é exatamente isso o que ela faz. Eu tento ignorar, mas é como uma chuva fina – Tatiana aponta para o céu e para a garoa lá fora, que persistia – Não parece grande coisa, mas aos poucos vai encharcando tudo. 

– Bullying não tem idade, Tati. E os efeitos são tão reais para um adulto quanto para uma criança. O problema é que depois que a gente cresce, passa a achar que precisa aguentar tudo calada, como se falar a respeito fosse algum sinal de fraqueza. Mas não é. É preciso coragem para reconhecer quando algo está errado. Você já pensou em conversar com alguém na escola? Ou até mesmo com essa colega?

– Conversar com ela? – Tatiana solta uma risada amarga – Acho que isso só daria mais munição para ela me atacar. Quanto a buscar ajuda... eu me sentiria como uma criança choramingando na sala da diretora.

– Não é choramingar – Elen responde, com firmeza – É se proteger, ué. Não é só sobre suportar, sabe? Também é sobre entender que você tem direito a um ambiente de trabalho saudável, seguro. Às vezes, estabelecer limites significa pedir ajuda. Isso não faz de você menos forte e sim humana.

– Não sei se seria a minha solução... – Tatiana resmunga, com as palavras soando quase inaudíveis.

– Tá, então conversa com as suas esposas – Elen rebate, prática – Afinal, são duas, né? Ouvidos em dobro para te escutar.

Tatiana a encara brevemente, ciente de que a fala dizia mais do que parecia afirmar. Elen, por sua vez, não desvia o olhar, nem mesmo pisca, como se confirmasse em silêncio tudo aquilo que Tatiana pensava.

– Eu converso com elas, mas… não quero sobrecarregá-las. A Patrícia já tem tanta coisa no trabalho, vários problemas para resolver, e a Mariana está lidando com todas as questões do trabalho dela também, morando longe.... Não quero parecer egoísta.

– Egoísta? Sério, Tati? Elas são suas parceiras – Elen rebate, reforçando o óbvio – Tenho certeza de que preferem te ouvir do que te ver sufocando sozinha, tendo crise de ansiedade no meio da rua. Não digo para você despejar tudo de uma vez em cima delas, mas tem que abrir espaço para dividir, poxa. Relacionamentos são construídos assim, com troca, não com silêncio. Ainda mais sendo com duas... a comunicação não pode faltar.

– Você não aprova o que tenho com elas, né? – Tatiana arrisca, com voz baixa, quase num sussurro.

– Não é questão de aprovar ou não – Elen inclina a cabeça, mantendo o olhar firme – Não sou eu quem vive essa relação, Tati. O que acho ou deixo de achar não importa. Mas se você está dividida ou sobrecarregada, talvez valha a pena pensar sobre o porquê disso.

– Sim, você razão – Tatiana diz, hesitante – É só que… às vezes, sinto que a minha relação com elas é mais uma pressão. Não porque elas façam isso, mas porque eu faço. Quero ser tudo: a parceira ideal, a profissional exemplar, a pessoa que todo mundo pode contar. Só que no final das contas, me sinto falhando em tudo.

– Às vezes, a maior pressão vem de dentro. E o curioso é que, como disse há pouco, com relação ao seu trabalho, aqui também você provavelmente está projetando uma versão sua que acha que elas esperam, mas que talvez nem seja a realidade. Já pensou nisso?

– Então agora, além de tudo, sou paranoica? – Tatiana força uma risada.

– Não é paranoia, é medo – Elen rebate firme, mas com ternura – Você tem medo de desapontar. Medo de ser menos do que acredita que deveria ser. Isso não é falha de caráter, Tati. É humano. E a única forma de enfrentar isso é falando. Se não com elas, com alguém que te ajude a enxergar tudo de outra forma.

– É, talvez… – Tatiana resmunga, olhando para o chão – Talvez eu precise mesmo começar a falar.

– Você já começou – Elen fala, com um sorriso leve, quase imperceptível, mas não para seu olhar acurado.

Tatiana sorri para ela, sentindo-se infinitamente mais calma. Era bom poder conversar, especialmente com alguém que transmitia confiança e com quem tinha intimidade. Nem parecia que minutos atrás sentia tanta angústia e vazio.

Ela a observa, na tentativa de entender o que a atraía tanto. A professora não se encaixava em nenhum padrão de beleza, mas havia algo nela que hipnotizava Tatiana. Fascinante, seu rosto tinha ângulos suaves e imperfeições que apenas a tornavam mais interessante. Não era uma beleza óbvia, exibida, e sim um tipo de graciosidade que se sente porque se insinua. A maneira como ela se movia e se impunha era bela, assim como a serenidade em seu olhar e a confiança que exalava de cada poro seu quando explanava sobre arte ou qualquer outro assunto (porque ela era do tipo que consegue falar sobre tudo, com propriedade). Para Tatiana, Elen era lindíssima e a ideia de isso ser secreto, não dito, só a tornava mais atraente.

Elen a encara de volta, sorrindo com os olhos, como se pudesse acessar algo que Tatiana se preparava para falar. Embora fosse firme, seu olhar não era invasivo, ainda que parecesse penetrar em suas camadas mais profundas, sem pressa alguma, mas com uma curiosidade que fez Tatiana se sentir nua, exposta, sem realmente saber o que ela via.

Em sua percepção, a atração era um tipo de força invisível, uma espécie de ímã, atraindo corpos inclusive contra a sua vontade. Mesmo sendo feliz com a vida que tinha e com suas esposas, Tatiana não sentia ser capaz de se proteger dessa energia que surgia sempre que Elen estava por perto. Era algo natural que ela não controlava, como se as duas se atraíssem de forma magnética. E embora isso não significasse que amasse menos Patrícia e Mariana, Tatiana sabia que os assuntos do coração são sempre muito complexos. O amor por elas não a tornava imune a outras conexões, outros sentimentos. Porém, mesmo que a atração por Elen não alterasse o que havia em seu lar, o fato de existir e resistir ao tempo era uma prova de que o desejo não é algo simples de se entender ou controlar.

É claro que sabia que se isso acontecia com ela, provavelmente também ocorria com as esposas. Afinal, atração e desejo são forças que não pedem permissão para surgir. Por não ser algo que podia controlar, o mesmo se aplicava a elas. Patrícia era dona de um restaurante e interagia com infinitas pessoas todos os dias e, Mariana, ainda que trabalhasse de casa, conhecia muita gente e tinha um passado consideravelmente vasto, com muitas conexões.

Mas a maturidade a havia ensinado que ainda que a atração possa aparecer e novas pessoas possam surgir, nada disso significa que o amor entre as três seja menos real ou menor. Pelo contrário. E Tatiana compreendeu o que era desapego justamente depois de conhecer Elen, no dia em que se abdicou do que sentia por ela para ficar com o que nutria por Patrícia, e depois de novo, algum tempo mais tarde, com Mariana, quando compreendeu que é possível amar muitas pessoas e ainda assim se manter fiel aos compromissos.

Basicamente, ela entendia que o amor não se apega à posse nem se restringe ao medo de perder, já que entende que as pessoas são complexas e podem se conectar a outras. E desapego, ao contrário do que acreditava, não significa menos amor, mas mais: mais espaço, mais liberdade e até mesmo mais confiança.

Sempre paciente e respeitando o tempo de Tatiana, Elen não disse nada enquanto a mulher viajava em seus devaneios e manteve os olhos nela, estáticos. Não era um olhar impaciente ou cobiçoso, mas observador, como se apenas aguardasse, sem pressa, que ela se encontrasse novamente. O silêncio era confortável, mas carregado de uma intensidade que Tatiana não conseguiu ignorar. Por isso, sentiu que era o momento perfeito para finalmente ajustarem alguns pontos do passado.

– Eu… – Tatiana começa, mas logo para e pigarreia, sem saber a melhor maneira de abordar o assunto – Lembro das nossas conversas, sabe? De quando você falou sobre… quando propôs outro tipo de possibilidade, de relações, enfim – ela se força a sorrir, mas o gesto não disfarça o rubor que se espalha pelo rosto, contra a sua vontade – É só que... – ela tenta novamente, com a voz baixa e um pouco nervosa – Naquela época, Elen, quando você falou aquelas coisas, não sei, parece que de alguma maneira eu ainda era muito imatura e estava presa a uma ideia errada de relacionamento, de monogamia, ideias que não eram minhas, que foram só… impostas, sei lá. Como se eu fosse obrigada a seguir esse único caminho só porque alguém um dia determinou. Como se o amor não fosse fluido.

Tatiana não olhou para Elen, mas sabia que ela a escutava com atenção. O hiato entre as duas se estendeu, como se as palavras precisassem de um espaço para se acomodar.

– Sei o que quer dizer – Elen finalmente fala, com a voz calma – Como sempre te falei, a vida toda eu senti que as relações, como tudo no mundo, devem ser espontâneas, descomplicadas. Não vejo a possibilidade de simplesmente me encaixar em moldes fixos, tentar ajustar quem sou em algo que não me cabe. No passado também vivi com essa ideia de que o amor tinha que ser um só, com uma única pessoa, o resto da vida, ponto final. Mas com o tempo comecei a ver que tudo pode ser mais leve, mais aberto, sem se prender a esses conceitos tão rígidos.

– É, é que na época eu...

– Às vezes, Tati, as expectativas sociais e as histórias que nós ouvimos nos moldam mais do que a gente percebe, nos influenciam mais do que acreditamos ser possível de acontecer – Elen diz, a interrompendo – A monogamia, do jeito que ensinam, é uma das maiores falácias da nossa sociedade porque é retratada como se fosse a única maneira “certa” de se viver o amor, a única fórmula para a felicidade, para a estabilidade. Só que, no meu humilde entender, tudo isso tem uma relação muito maior com controle do que sobre o que sentimos, propriamente dito. E não dá para deixar de lado o fato de que essa questão monogâmica está profundamente enraizada em uma visão heteronormativa, em que o padrão de relacionamento “correto” é aquele que funciona dentro da lógica de um casal hétero e só. Isso simplesmente não se encaixa, nem de longe, no que é natural para pessoas como nós. Essa ideia de possessão, de exclusividade, de uma única fonte de felicidade e amor… – Elen vira os olhos, entediada – É tudo uma construção social, Tati, que não serve para todos e, especialmente, não serve para nós, mulheres lésbicas. A nossa verdade está muito além disso.

– Sim, é que… – Tatiana responde, hesitante, e pigarreia mais uma vez. Sentia que as palavras estavam difíceis de formar, talvez porque aguardaram muito tempo para serem ditas – Naquela época, eu não tinha condições de aceitar um formato diferente de relação porque acreditava que o amor verdadeiro deveria ser assim, nesse padrão, com uma pessoa só, de maneira fechada, e tal... Eu achava que qualquer coisa fora disso era como se fosse um erro, uma falha. Estava presa a uma visão idealizada ou algo do tipo e não conseguia enxergar outra possibilidade sem sentir que ao fazer isso eu me traía de alguma forma, ou à Patrícia. Especialmente ela.

Tatiana faz uma pausa, refletindo sobre o que tinha acabado de dizer, como se tentasse entender a si mesma enquanto verbalizava. Como Elen permaneceu em silêncio, continuou.

– Talvez fosse por medo… – Tatiana então diz – Medo de que, ao abrir essa porta, eu perdesse algo fundamental para mim. A ideia de dividir o amor, de deixá-lo mais fluido, mais aberto... não sei, parecia um risco. Algo que poderia desmoronar tudo o que eu acreditava ser seguro e certo. Sem falar no ciúmes da Pati, que sempre foi um empecilho para qualquer possibilidade que fugisse do convencional. Por isso nunca mencionei sobre as nossas conversas. Não comentei com ela sobre a sua proposta.

– A Patrícia não sabe? – a pergunta de Elen soou surpresa e a rapidez com que foi feita serviu como mais um indício de sua sincera incredulidade.

– Ela morria de ciúmes de você, Elen. De alguma forma, sempre pareceu saber o que havia entre nós, como se pudesse ler meus pensamentos ou tivesse algum super poder.

– E o que havia? – a pergunta foi rápida, mais uma vez.

Tatiana sente o peso do questionamento, como se Elen tivesse ligado refletores potentes de luz e ela fosse o alvo, sem escapatória. Havia algo entre elas? Claro que sim, mas o que, exatamente? Buscando organizar os próprios pensamentos, respirou fundo antes de responder.

– Na época achava que era admiração, fascínio pelo jeito como você vê o mundo, a forma como fala sobre arte, como... – Tatiana pigarreia, encarando os próprios pés – ...como fazia eu me sentir. Me sentia vista, sei lá.

– E hoje? O que acha que era? – a pergunta de Elen soou suave, diferente das anteriores, mas firme, como se intencionasse que Tatiana expusesse a verdade.

– Hoje eu sei que era mais que uma simples admiração. Era... desejo. Uma vontade reprimida de me permitir sentir mais, de experimentar você. Mas eu estava presa a tantos conceitos errados... – Tatiana suspira e olha para Elen – E, no fundo, acho que sabia que, se deixasse aquilo crescer, não teria volta.

– E isso seria um erro – Elen afirma, enfática.

– Naquele contexto, sim – Tatiana volta a suspirar – Não parecia certo, Elen. Um relacionamento a três, àquela altura, não fazia o menor sentido para mim.

– E agora faz? – ela questiona, com a voz calma, mas carregada de curiosidade – Afinal, o brejo todo sabe que você é casada com duas mulheres já há algum tempo.

– Sim, hoje faz todo o sentido – Tatiana afirma, contendo um sorriso que ameaçou brotar quando pensou em Mariana – Porque eu mudei. A forma como vejo o amor, os relacionamentos, o próprio compromisso... tudo mudou. Mas na época, a simples ideia de experimentar algo fora daquele formato parecia... proibida, perigosa e errada. Como se fosse trair tudo o que eu já tinha construído com a Pati. E eu tinha medo, sabe? Medo de te perder, um medo maior ainda de perder a minha esposa e até medo de me perder no meio disso tudo. Por isso fugi de você. Foi uma técnica de sobrevivência, bem dizer.

Elen fica em silêncio, permitindo que Tatiana desabafasse no ritmo que precisava e absorvendo tudo o que estava sendo dito. Esta era uma de suas qualidades mais marcantes: a capacidade de ouvir sem julgar, de estar presente sem invadir.

– Antes, eu achava que abrir espaço para outra pessoa significava perder algo essencial, especial. Como se amar mais de uma pessoa diminuísse o que eu sentia pela Pati. Mas com o tempo percebi que definitivamente o amor não funciona assim. Ele não é um recurso finito, né? O amor cresce, se adapta... Mariana me mostrou isso – Tatiana agora sorri, porque desta vez não conseguiu evitar – Com ela, percebi que podia amar de formas diferentes, mas igualmente profundas. E também aprendi que não precisava abrir mão do que já tinha para construir algo novo.

– E você acha que se tivesse entendido isso antes as coisas teriam sido diferentes? Entre nós? – Elen quis saber, com a voz baixa, quase sussurrando.

– Talvez – Tatiana responde, com honestidade – Mas não sei se eu teria sido capaz de viver tudo isso antes. Ou a Pati. Tanto eu quanto ela precisávamos passar por algumas coisas, aprender, errar... Tínhamos que crescer para chegar onde estamos agora.

– E ela não tem mais ciúmes? De mim? 

Tatiana sorri sem graça e faz uma pausa, mordendo o lábio inferior. Ficou alguns segundos pensativa, deliberando se deveria ou não responder. 

– A verdade é que a Pati nem sabe que você vai dar aula para mim de novo – ela então diz, vendo a surpresa de Elen se expressar em suas sobrancelhas, que se arquearam. A mulher, no entanto, permaneceu quieta – Ela surtaria se soubesse – Tatiana continua, deixando os ombros caírem, um pouco frustrada – A Patrícia nunca lidou bem com ciúmes de maneira geral e você sempre representou uma espécie de ameaça, na visão dela. Não sei, acho que quando a gente cresce com certos vazios, determinadas coisas ficam gravadas de um jeito que a gente nem percebe. 

– E você não pretende contar? – Elen questiona, curiosa.

– Não sei... Não quero que ela estrague isso – Tatiana confessa e a honestidade a pega de surpresa. Não percebeu o que dizia até se ouvir – Estar aqui, falando com você, aprendendo de novo... É algo que preciso para mim, é importante. É um momento meu que me lembra quem eu sou, antes de tudo o que veio depois.

Elen muda o peso do corpo de uma perna para a outra, como se estivesse desconfortável, apesar da confissão tão sincera. Enrolou ainda mais o cabo do computador na mão, como se o corpo tentasse distrair a mente. 

– Eu entendo, Tati – Elen diz, com calma, mas incisiva – Sei que você tem sua vida, seus próprios processos, mas se for algo que te pesa, por que não tirar do caminho? Às vezes, o melhor é não deixar esses pequenos segredos crescerem, porque acabam se tornando maiores do que realmente são. Isso inclui as questões do bullying.

– Eu sei... Mas não quero que ela se sinta pressionada agora, com tudo o que está passando. Tem muita coisa rolando na cabeça da Patrícia e não sei se seria justo jogar mais uma bomba nesse momento. Estar aqui nesse curso já é todo um drama, ela reclamou disso por dias, imagina se eu ainda acrescentar esse agravante...

– Ora, muito obrigada – Elen ri, se fazendo de ofendida. A leveza de sua risada ajuda a tirar uma parte do peso da conversa – Já era uma “ameaça”, agora vou ser também o “agravante” dessa história? Vou começar a me sentir importante, hein? 

– Não é isso – Tatiana responde, rindo também – Eu só... não sei o que é mais difícil: lidar com tudo o que estou vivendo ou com a expectativa de como ela vai reagir. É complicado.

– Sei. Bom, acredito que se tem algo para dizer, o melhor é falar. Pode ser difícil para ela, pode ser difícil para você... mas se for a verdade, o ideal é que seja dito.

– É, vou... – Tatiana faz um leve movimento no quadril, como se pretendesse se afastar – Vou ver o que faço. Tenho que pegar meu celular no carro, preciso ver se tem alguma novidade... Aliás, por falar nisso, agora que lembrei... Esqueci de perguntar o que queria, quando me ligou mais cedo. Inclusive, agradeço de novo por ter me salvado.

– Ah, sim – Elen levanta o cabo do computador enrolado no punho – Ia te pedir um cabo emprestado, esqueci o meu na faculdade. Mas no fim deu tudo certo – ela sorri, sem especificar se estava se referindo ao cabo ou à crise de ansiedade – Nos vemos na aula?

– Com certeza, sim – Tatiana sorri para ela, satisfeita com a conversa. Sentia-se mais leve, como se o diálogo tivesse aliviado uma tensão que ela nem sabia a dimensão. Não era a solução de nada, mas um começo, um passo em direção a uma comunicação mais clara.

A paz só não durou mais porque ao resgatar o celular lá fora, Tatiana finalmente lê a mensagem que Patrícia havia enviado no grupo do zap. Era um texto curto, mas forte, impactante. Dizia: “Perdi a linha com o jornalista fofoqueiro. Acabei com tudo”.


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