TPM - Capítulo 8: O plágio
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Patrícia respira fundo, com as mãos um pouco trêmulas, sentindo na boca o gosto amargo da derrota. Ou de arrependimento. Ou apenas de café morno sem açúcar, que a esta altura parecia ter um sabor azedo de remorso. Havia traçado um plano perfeito na cabeça, mas Guto Morais nem de longe seguiu seu roteiro mental e sua descompostura agora sairia muito mais cara que a fake news inventada pelo jornalista fofoqueiro – e esta já tinha sido bastante negativa e desagradável, para dizer o mínimo.
Ela apoia a xícara com o café pela metade em cima do pires delicado, feito de louça branca e estampado com o logo bonito do restaurante. O Bistrô ainda estava vazio, mas o silêncio à sua volta ao invés de confortá-la, a assustou. E se os clientes resolvessem praticar um boicote generalizado, influenciados por notícia falsa? Ou deixassem de ir como protesto devido ao seu comportamento recente, como seria?
– Não – Patrícia resmunga para si mesma, falando sozinha – O canalha estava me gravando sem que eu autorizasse, as pessoas vão entender o meu lado – afirma, com a voz meio falha, sem conseguir se convencer.
Nem de longe fazia o tipo “viciada em internet”, já que vivia uma rotina extenuante, muito corrida, que a impedia de se dar ao luxo de ficar no celular. Além de um trabalho que consumia praticamente todas as horas de seu dia, era casada com duas mulheres, uma vegetariana e outra com restrições alimentares – um prato cheio para uma chef que gostava de cozinhar e cuidar. Mas ainda assim sabia do potencial destrutivo da rede, que tem o poder de arruinar vidas. E Patrícia precisou se amparar na mesa quando considerou o que realmente significava ser o alvo do momento na internet.
Seu uniforme perfeitamente ajustado ao corpo combinava com as toalhas do restaurante, seu pequeno império construído e mantido com muito trabalho e muito suor. Um negócio que se mantinha no topo dos melhores locais para se visitar em São Paulo e que agora estava sob ameaça por causa de um sujeitinho à toa.
– Toma, bebe essa água – Zezé aparece, com um copo gelado. A gerente estava com uma cara péssima, como se não conseguisse esconder nas feições o que a atemorizava por dentro – Deixa esse café para lá, Pati – ela tira a xícara de seu alcance, como se fosse algum tipo de mãe controladora – Tudo o que não precisamos agora é que você fique mais pilhada. O que o cafajeste te falou? O que respondeu? – pergunta, como se ela própria estivesse acelerada por excesso de cafeína.
– Ele estava me gravando – Patrícia balbucia, sentando-se em uma das cadeiras macias de encosto alto. Era raro ter aquela perspectiva do salão, já que dificilmente sentava-se nO Bistrô, especialmente ali, como se fosse cliente. Ela esfrega a testa, como se o gesto de alguma forma pudesse dissipar toda a confusão em sua mente – Você viu a maneira como ele chegou? Parecia estar falando com alguém, como se estivesse num show, num programa de auditório. Já veio me provocando logo de cara... sabia exatamente o que queria e eu fiz exatamente o que ele esperava.
– É um abusado... Um asqueroso, nojento – Zezé resmunga, solidária. Cruzou os braços e fez uma careta como complemento à sua fala.
– Ele invadiu o meu espaço, me expôs e achou graça disso... – Patrícia continua, cabisbaixa – Ainda não tive coragem para ver, mas não vai ser nenhuma surpresa descobrir que ele estava transmitindo uma live enquanto falávamos. Me exibiu sem a minha permissão, provavelmente já imaginando que eu ficaria zangada quando percebesse.
– Sim, ele com certeza fez isso mesmo. Não foi assim com o Furioso? Aquele jogador de futebol? Aquele, Pati, que se envolveu naquela polêmica com esse tal de Guto Morais, uns meses atrás – Zezé comenta, complementando a frase conforme as expressões que a chef fazia – A gente foi amadora, tinha que ter previsto que ele faria algo do tipo novamente, já que da outra vez deu tão certo. Foi desse jeito que esse patife ficou famoso na internet, afinal...
Patrícia passa a mão pelo cabelo, frustrada. O gesto a faz refletir que jamais apresentava-se assim em seu ambiente de trabalho e sem querer se perguntou se deveria ter mantido a proteção na cabeça durante a conversa com o jornalista. Será que pareceria mais profissional assim? Mas será também que por acaso isso a impediria de ter feito o que fez? Provavelmente não, então desviou o assunto porque percebeu que o cabelo solto definitivamente era o menor de seus problemas naquele momento.
– Ele mencionou algo? – os olhos de Zezé a mantinham sob a plena mira de sua atenção – Qual prato ele disse que você copiou?
Patrícia respira fundo, desalentada, incapaz de responder de imediato. Sentiu no mesmo instante a raiva fervilhar dentro dela, ao fazer uma pequena retrospectiva dos últimos dias. Maldito suflê fora de hora!
– O que foi? – Patrícia então pergunta, ao invés de responder, vendo Zezé contrair os lábios de um jeito engraçado depois de ver algo no celular. O aparelho já havia apitado de maneira estridente antes, mas a mulher ignorara. Na segunda vez, porém, não resistiu e foi ver do que se tratava.
– Não é nada, é só... – a gerente responde e entrega o aparelho em sua mão – ...uma bobagem que mandaram no grupo do zap, não dê importância.
– Nossa, mas... – Patrícia resmunga, vendo o meme compartilhado entre os funcionários dO Bistrô, no grupo cujo nome era “Panela depressão”. Era um frame rápido do vídeo em que ela partia para cima de Guto, mas editado de um jeito que no final a chef se transformava em uma onça – ...já fizeram até gif?
– Gente, não inventa moda! – Zezé diz, séria, gravando um áudio para enviar no grupo – Não quero saber de gracinha desse tipo por aqui. Acabou, hein? – ela apaga a figurinha que alguém já havia feito a partir do gif e joga o celular na mesa – Precisamos de uma estratégia para nos defender. A Tati vem hoje para cá?
– Não, hoje a Tatiana tem aquela droga de curso – Patrícia responde, zangada.
Embora a fala tenha soado aborrecida, ela logo se contém. Não era justo direcionar sua frustração para a mulher, ainda que a mera lembrança a fez se lembrar que tudo havia começado com isso, com o curso, com Tatiana insistindo para estar numa sala de aula desenhando gente pelada. Foi a decisão dela que levou Patrícia a recriar a receita antiga e inseri-la no cardápio, fora de hora.
Além de tudo, pensar em Tatiana a fez se lembrar que a esposa estava neste momento de fuxico com o ex-namorado, tomando um café que a faria passar mal depois. Que hora para isso acontecer!
– Tá, em primeiro lugar o que a gente precisa fazer é descobrir qual é a acusação, de fato. Não dá para continuarmos no escuro – Zezé rebate, indiferente à informação – Por isso perguntei sobre o que o jornalista falou. Sabe? Antes de você atacá-lo.
– Zezé... – Patrícia balança a cabeça em negativa, mas não diz nada para se defender. Analisando suas memórias, pela forma que aconteceu, parecia mesmo que ela o havia atacado, como se fosse realmente uma onça.
– Sim, mas tudo bem – Zezé retruca, como se pudesse acessar seus pensamentos – Eu teria ido para cima dele muito antes. Ou melhor, nem o teria recebido, para começo de conversa.
Sim, só ela acreditou que aquilo seria uma boa ideia. Dali quase pôde ouvir Tatiana dizer “eu avisei”. Se bem que a mulher era sempre pacífica, dificilmente falaria algo que de alguma forma pudesse piorar ainda mais a situação (e um comentário do tipo só serviria para isso). Foi assim que Patrícia se encorajou a mandar uma mensagem para as esposas: pareceu certo compartilhar que havia colocado tudo a perder com o fofoqueiro.
Só não levantou-se imediatamente para ir em busca do celular, trancado lá em cima, no escritório, porque sentiu-se incapaz de fazer isso no momento. Suas pernas pesavam toneladas.
– É, talvez... – Zezé resmunga, parecendo preocupada, com o queixo apoiado no peito e a voz quase inaudível. Seus olhos estavam grudados no celular e ela mal piscou – ...talvez seja melhor você não acessar a internet por agora – ela encara a mulher, deixando os ombros caírem em direção ao chão, parecendo rendida – O maldito estava mesmo fazendo uma transmissão ao vivo, tinha um suposto cliente sentado bem ali, dando suporte do salão – a gerente indica com a cabeça a mesa em que o “penetra de horário” havia sentado, à direita de onde estavam – Ele te filmou de dois ângulos diferentes e jogou na rede, te expôs em tempo real.
– Ah, que ótimo, provavelmente pareci mesmo uma onça feroz atacando um pobre rapaz indefeso – Patrícia retruca, sarcástica, ganhando estímulo para enfim se levantar. Sentia a cabeça gigante, inflada como um balão – Eu preciso... – ela indica com o dedo em direção à escada, perto da entrada do restaurante – ...vou dar um pulinho ali no escritório, preciso...
Patrícia acena com a cabeça e sai, sem terminar de falar. Com destreza, caminhou apressada por entre as mesas enfileiradas, milimetricamente organizadas, exibindo suas toalhas bordadas que, no conjunto, pareciam formar uma mandala. O salão, que normalmente pulsava de energia e movimento, agora estava mergulhado em um silêncio denso, interrompido apenas pelo som das lâmpadas baixas que zumbiam suavemente no teto alto. O ar, sempre impregnado pelos aromas de pratos cuidadosamente preparados logo ali, na cozinha, agora parecia pesado, dando a impressão de que o ambiente também sentia a tensão que vibrava em seu peito.
As paredes dO Bistrô, acostumadas a se encherem com os murmúrios abafados dos clientes e o som ritmado dos talheres arranhando os pratos, agora refletiam apenas os ecos dos passos rápidos de Patrícia. Aquele horário ainda era cedo para movimentos, mas para a chef pareceu apenas refletir o vazio que sentia diante do temor de ser abandonada por todos.
– Cara, esse é o melhor gif que já vi este ano – Pedro comenta, com a voz abafada pela própria risada. Mesmo a distância, Patrícia soube qual era o assunto que o garçom falava – Isso aqui merecia viralizar mesmo, é muito bom!
– É maravilhoso, sim. Cara, esse restaurante é de longe o melhor lugar que já trabalhei! Aqui acontece cada situação... – Andreia rebate, rindo também – Mas, olha, quero deixar claro que estou com a chef nessa história, hein! Sujeito abusado, vem filmar aqui sem permissão? Acha que sapatão é bagunça? Está maluco?
– Sim, com certeza, tio. Ainda mais fazer isso com alguém como a Pati, né? A mulher rala para caramba, trabalha aqui de manhã até de noite, todo dia, e o cara vem com esse papo mole de copiar receita? Até parece que ela precisa disso...
– Por que você acha que a chef Vivi inventaria essa história de plágio? Porque o Guto insinuou isso no fim da live dele, né? Que ela é quem teria... – Andreia se cala ao ver Patrícia por perto. Tentando disfarçar, a garçonete tossiu, alinhando os pratos que distribuía sobre a mesa – Ai, será que ela escutou? – a garçonete questiona, olhando de canto, assim que a chef se afasta.
– Não, acho que não – Pedro responde, rindo de novo, sendo ouvido também.
Patrícia não interrompe o ritmo dos passos, nem mesmo após ouvir aquele nome, dito daquela forma, jogado ao vento como se não fosse nada demais. Talvez por isso, o recebeu como se fosse um soco no meio estômago, junto da incômoda sensação de ter sido arrancada de um pesadelo e transportada para uma realidade ainda pior, muito mais difícil.
Vivi Mantovani. A chef de cozinha famosa do YouTube. Um nome que durante anos Patrícia fez questão de se afastar o máximo possível, agora invocado em meio àquela confusão, piorando ainda mais o que já era suficientemente ruim. Temendo ser alcançada pelos olhares curiosos dos funcionários, subiu a escada sem olhar para trás.
Ao entrar no escritório, Patrícia tranca a porta e praticamente se atira na cadeira de couro, sem forças para nenhum outro tipo de reação. Não moveu-se nem para pegar o celular em cima da mesa, que piscava com notificações que não paravam de chegar. O nome de Vivi reverberava em sua mente, como um eco chato e grudento, causando uma leve dor de cabeça. Por que ela?
Ainda que a luz no teto estivesse acesa, todas as cinco lâmpadas do lustre que lembrava um castiçal, sentiu o ambiente escurecer e se apertar, como se o local, normalmente seu refúgio, se encolhesse ao seu redor. Sabia que precisava organizar os pensamentos e necessitava urgentemente se recompor, mas o mundo parecia ter entornado no instante em que aquele nome foi pronunciado.
Patrícia fecha os olhos e se esforça para deixar a respiração num ritmo mais calmo. Entre as batidas desesperadas de seu coração, imagens antigas começaram a brotar atrás das pálpebras, sem a sua permissão, trazendo à tona lembranças que ela fazia questão de manter bem guardadas. Quase inacessíveis, por serem muito sensíveis.
Ela então se viu, com seus nove anos, sentada em um banquinho na cozinha minúscula da casa onde morava com o pai. O aroma da mistura começava a preencher o ambiente – uma combinação simples feita de farinha de trigo, margarina, açúcar e chocolate em pó, que na época Patrícia associava a um tipo estranho de conforto. Ainda assim, o vazio nunca deixava de estar lá, pairando entre os azulejos gastos e o piso frio da cozinha.
O espaço era meticulosamente organizado. As colheres de pau repousavam em uma caneca grande de chopp sem uma única mancha e as panelas de alumínio, ainda que gastas pelo tempo, brilhavam com o esforço de quem as areava de maneira quase obsessiva. O armário de madeira rangia ao ser aberto, revelando prateleiras alinhadas com pacotes de mantimentos, fechados com pregadores e dispostos em fileiras perfeitas. O pai insistia na ordem, mesmo em um espaço tão pequeno, como se isso pudesse compensar o que faltava na vida deles.
Na lembrança, suas mãos miúdas seguravam uma tigela pesada, apoiada nas pernas, e ela mexia a mistura com cuidado, obedecendo ao ritmo ensinado anteriormente. “Sempre no mesmo sentido, Patrícia. Senão a massa desanda e a culpa vai ser sua”, a avó dizia, em tom rígido. Naquela época, Patrícia não entendia o que a fazia ser tão severa. Às vezes, achava que Amélia simplesmente não gostava dela, mas em outras se perguntava se não seria apenas sua maneira de demonstrar que se importava.
Talvez, ao seu modo, Amélia estivesse tentando prepará-la para sobreviver, por isso a ensinou a cozinhar, mas certamente não o fez porque queria e sim porque sentia que este era o seu dever. A avó parecia cumprir o papel de cuidadora mais por uma obrigação moral do que por um impulso de amor ou carinho, mas na ocasião Patrícia ainda não conseguia colocar as coisas nesses termos. Para a menina, o motivo de tudo aquilo era um grande mistério, um buraco em sua história que ela não entendia e não sabia como preencher.
Ainda assim, era notável que havia algo na cozinha que a fazia se sentir segura, como se ao cortar os ingredientes ou mexer nas panelas pudesse de alguma forma preencher o vazio que salpicava as paredes de sua casa. Quando estava ali sua mente simplesmente se aquietava, transformando a simplicidade do ato de cozinhar numa preciosa maneira de resgatar um pouco de paz em meio ao caos em que ela vivia.
O cheiro de bolo assando preencheu sua memória e ela se viu naquele dia olhando cheia de esperança para a entrada da cozinha, na expectativa de que a porta se abrisse de repente e trouxesse de volta quem tinha ido embora. Mas quando abriu, quem entrou foi o pai, cansado, carregando algumas sacolas de supermercado. “Não adianta ficar aí esperando”, ele disse, com a voz resignada, parecendo cruel. Não era exatamente uma maldade do tipo intencional, como se quisesse feri-la, mas sim a frieza de quem claramente já tinha desistido de tentar consertar a própria vida. Doía, de qualquer modo.
O pai não se aproximou para consolá-la nem tentou explicar o porquê de a vida ser tão injusta. Tampouco pareceu se lembrar que dia era aquele, como se fosse só mais uma data qualquer no calendário. Cássio seguiu em silêncio para a cozinha com seus passos pesados, esvaziando as sacolas sobre a pia com gestos mecânicos. A ausência de um abraço, de um “tudo vai melhorar”, reforçava que, no mundo dele, nada ficaria bem. Era preciso apenas aceitar o destino e seguir, cumprir o dever sem reclamar, sem esperar nada em troca. “Engole o choro”, ele dizia, como se este fosse o único caminho.
Patrícia fingiu não se importar, mas sentiu as lágrimas quentes correndo antes de perceber que estava chorando. Mesmo nova, desde cedo era obrigada a lidar com questões muito complexas, difíceis até para adultos. Olhou mais uma vez para a porta da cozinha, ainda na esperança de que alguém entrasse fazendo uma surpresa, chegando de repente como se fosse um presente. Mas ninguém veio. O silêncio da casa parecia mais alto naquele dia, mais vazio e mais sentido. Cabisbaixa, continuou mexendo a massa e observou em silêncio o pai guardar as compras com seu perfeccionismo exagerado, como era de costume.
“Tudo em seu lugar, cada coisa em sua ordem”, o pai falou, organizando os pacotes das compras dentro dos armários desbotados. A frase não era apenas um hábito de Cássio; era quase um mantra. Uma regra silenciosa que governava a casa, onde qualquer desvio era imediatamente corrigido, fosse por um olhar de reprovação ou um gesto de repreensão. Não havia espaço para deslizes. Cada mínima imperfeição era como uma mancha que não podia ser ignorada e que exigia rápida reparação. E, quando isso acontecia, o silêncio pesado que se seguia era mais insuportável do que uma bronca ou algum castigo que pudesse acometê-la; era mais inclemente que qualquer grito ou reprimenda. Nessas horas, o ar em volta ficava até mais denso, num tipo de sufocamento emocional preenchido apenas pela ausência de palavras e carregado de condenação.
Por causa dos caprichos e das regras do pai, a toalha da mesa precisava estar alinhada exatamente com as bordas, as cadeiras empurradas contra a mesa na mesma distância, as xícaras viradas para o mesmo lado na prateleira e os talheres sempre na mesma direção dentro da gaveta. Patrícia cresceu sabendo que, se algo estivesse fora de lugar, alguém – quase sempre ela – deveria corrigir.
A casa inteira seguia um tipo de protocolo invisível e tudo precisava estar sempre em seu devido lugar, como peças de um quebra-cabeça definidas por algum maníaco. No sofá da sala, as almofadas ficavam dispostas de forma idêntica, nenhuma um centímetro sequer fora do lugar. No banheiro, os frascos de xampu alinhavam-se como soldados, cada um na posição exata que o pai havia determinado. Na cozinha, que ele só passou a frequentar depois de assumir a criação da filha, essa meticulosidade era ainda mais intensa: as facas tinham um lugar exato no suporte, organizadas por tamanho, sempre limpas e afiadas. As especiarias ficavam em potes etiquetados com a mesma caligrafia firme, alinhadas em ordem alfabética. Cássio não tolerava bagunça, nem mesmo o tipo de caos criativo que algumas pessoas achavam natural em um ambiente como aquele. Para o pai de Patrícia, cozinhar era uma tarefa séria, quase militar.
“Se você pretende executar alguma tarefa, qualquer uma, tem que ser da maneira certa. Se for para fazer de qualquer jeito, é melhor nem começar”, ele dizia, com a voz grave retumbando como um trovão. “Nunca se esqueça, Patrícia: ‘o ótimo é inimigo do bom’”, o pai reforçava, em qualquer ocasião.
Toda essa exigência fez com que ela aprendesse cedo a buscar a perfeição, não porque a desejasse, mas porque precisava dela. Era a única forma de evitar críticas e alcançar uma aprovação que vinha mais em gestos do que em palavras – tanto do pai quanto da avó. Quando Cássio ou Amélia a observavam e davam um aceno breve, quase imperceptível, a simples movimentação de cabeça parecia reequilibrar o universo, retirando parte do peso sobre seus ombros.
Era irônico que o que ela mais criticava no pai tenha se tornado parte de sua própria essência depois de adulta. Diariamente Patrícia almejava o perfeccionismo nos pratos que saíam de sua cozinha e cada elemento precisava estar sempre no lugar exato: o molho servido na quantidade certa, o corte da carne impecável, a decoração projetada como uma obra de arte. Qualquer erro, por menor que fosse, destacava-se como uma falha gritante e imperdoável.
De certa forma, o reconhecimento dos outros era a chama que a mantinha acesa nO Bistrô, mas Patrícia sabia que sempre era possível receber alguma reprovação. E a ideia de ela ou o seu restaurante serem vistos como imperfeitos lhe causava um terror profundo, maior do que qualquer crítica direta. Em partes porque se exigia mais do que os outros faziam em relação a ela.
O problema é que o desejo incessante pela perfeição consumia suas horas e drenava sua energia. Patrícia frequentemente se pegava revivendo à noite cenas do dia de trabalho, buscando identificar detalhes que poderia ter feito diferente, enquanto o sono escapava conforme as horas avançavam. Por causa disso, seu pesadelo era dormir mal e há meses não registrava nenhum tipo de sonho.
Sem dúvida, todo esse esforço fazia dela uma chef respeitada e prestigiada atualmente, mas por outro lado a deixava completamente desgastada. Especialmente agora, que parecia prestes a ver todo o seu trabalho, executado com dedicação e afinco durante anos, simplesmente desmoronar. Assim como aconteceu com o bolo de suas lembranças infantis, que se despedaçou, ficando apenas o gosto do fracasso e a frustração de algo que nunca seria reconstruído.
Naquele dia, seu aniversário de nove anos que nunca foi realmente celebrado, a dor da ausência da mãe se misturou com a esperança desesperada de que a perfeição fosse suficiente para preencher o vazio dentro do peito. Seu nome jamais seria pronunciado naquele contexto, ou em qualquer outro, e sua falta se infiltraria a partir dali em cada receita que Patrícia agora preparava na cozinha dO Bistrô.
A questão é que assim como ocorreu com aquele bolo, o esforço sincero em agradar e ser perfeita parecia ser constantemente afetado por ameaças externas que Patrícia simplesmente não tinha como controlar (como era o caso da fake news agora, por exemplo). O bolo, na ocasião, não cresceu como deveria, por razões que jamais compreenderia; ao contrário disso, afundou no meio, ficou torto e solou. Apesar de todo o seu cuidado, nunca foi servido e ela assistiu, impotente, seu pai jogar tudo no lixo com um gesto frio. Naquele instante Patrícia aprendeu, de maneira dolorosa e definitiva, que o mundo realmente não perdoava nenhum tipo de falha.
Agora, tantos anos depois daquele fatídico evento, praticamente a mesma sensação de frustração e impotência tomava conta dela, de forma avassaladora. A simples menção ao nome de Vivi Mantovani, feita pela garçonete, trouxe à tona a memória do bolo arruinado – junto do gesto de aprovação e das felicitações que ela jamais recebeu.
“Então foi a Vivi Mantovani quem inventou essa história ridícula de plágio?”, Patrícia se questiona, esticando-se lentamente em direção ao celular, movendo o braço. O gesto foi mais uma espécie de reação para afastar a dor que latejava em seu peito do que curiosidade em finalmente ver o vídeo gravado por Guto Morais. “Mas por quê?”, ela insiste, sem muita esperança de encontrar alguma resposta que fizesse sentido.
Infelizmente, porém, foi obrigada a admitir que embora fosse uma situação lamentável, ainda assim fazia sentido. Afinal, o suflê de batata era justamente o alvo de toda aquela mentira. Mas, mesmo assim, uma história dessas partir justamente de alguém como Vivi era inacreditável e revoltante. E o pior de tudo é que mesmo empenhada e minimamente confiante com o trabalho que desempenhava há anos, praticamente sem descanso, Patrícia agora via sua carreira ameaçada por uma calúnia absurda, espalhada por um fofoqueiro sem caráter e vinda de onde ela menos esperava.
Com os dedos um pouco trêmulos e a respiração entrecortada, Patrícia desbloqueia o celular e seus olhos imediatamente se fixam na foto usada como tela de fundo. Antes mesmo de sequer analisar as notificações das redes sociais, já sentia o peso do que iria encontrar, o que a fez respirar fundo e se focar na imagem, como se o registro fosse algum tipo de boia ou tábua de salvação. Na foto, tirada alguns meses atrás, ela e as esposas sorriam despreocupadamente, com o salão dO Bistrô servindo de cenário para emoldurá-las. Na ocasião, na rotina delas não havia espaço para falarem sobre fake news, mudança de endereço ou curso de desenho de modelo vivo. O mundo era calmo e tranquilo, e as três compartilhavam uma felicidade simples, sem imaginar o quão frágil ela era.
Cada mensagem e cada pop-up que pipocaram na tela do aparelho enquanto admirava a fotografia serviram apenas para amplificar a angústia que ela já sentia. Foi então que as palavras que Andreia não disse voltaram a martelar em sua mente: “Vivi inventou isso de plágio”. Com essa informação, tudo se conectava e da pior maneira, fazendo o coração de Patrícia se comprimir, como se ela ainda fosse pequena. Sentia-se minúscula.
Relutante, mas ciente de que não podia se dar ao luxo de ignorar o conteúdo, ela clica no link do vídeo que já era viral, encaminhado por Mariana no grupo das TPM. A live começava já com a gravação em primeira pessoa, com o jornalista ajeitando a câmera dentro do casaco, ajustando o microfone para captar suas palavras. A imagem do celular não mostrava seu rosto e focava na movimentação de suas mãos e na forma como ele pareceu se preparar para começar a transmissão. Havia um cuidado excessivo e um ritmo quase forçado em seus gestos, enquanto Guto se posicionava para que a transmissão ao vivo começasse antes mesmo que ele adentrasse no restaurante, mas já mostrando a fachada dO Bistrô como uma prévia do que viria pela frente. “Ama-dos, vejam só onde eu esto-ou”, ele falou, com a voz melosa, passando pela porta giratória.
Patrícia observa a si mesma na tela do celular e a primeira coisa que chama sua atenção é o fato de estar de cabelo solto, informal demais para o seu gosto. Nem pôde ouvir o que estava sendo dito porque seus julgamentos internos berraram, mais ainda depois que viu uma mancha próxima à gola de seu uniforme, que parecia amassado perto da cintura. A sujeira era pequenininha, é verdade, mas parecia do tamanho de uma bandeira naquela gravação.
Quando finalmente se focou no que era falado, sua atenção voltou-se para a própria voz: estranha demais, mais aguda do que imaginava, como se não fosse realmente dela. Parecia à beira de um ataque nervoso. As pausas entre as palavras, que em sua memória eram ponderadas, soavam intermináveis, quase enfadonhas, como se ela estivesse insegura sobre o que dizia. Se não fosse um registro ao vivo, diria que o vídeo fora até editado para parecer pior.
O ângulo também não ajudava: seu rosto parecia inchado e desproporcional ao corpo, com lábios pálidos demais e olheiras que destacavam o cansaço acumulado. Seu sorriso, que ela imaginou ser simpático, parecia na verdade forçado, quase uma careta. Para piorar, ficou o tempo inteiro meio curvada, com os ombros tensos e quase colados às orelhas, transmitindo uma rigidez que ela detestou.
Na segunda vez que assistiu ao vídeo, Patrícia reparou como seu sorriso esmorecia conforme os segundos passavam. Suas expressões e palavras, capturadas de forma tão crua, revelavam algo que ela não se lembrava: um tom mais agressivo do que firme e controlado, como tinha imaginado. Era impossível não reparar nos absurdos. Em resumo, tudo no vídeo parecia gritar descontrole, como se sua imagem diante da câmera fosse simplesmente de outra pessoa, alguém visivelmente descontrolada. Uma versão horrorosa de si mesma que ela não pretendia, em hipótese alguma, mostrar para o mundo. A raiva estampada em seu rosto desde os primeiros segundos da live parecia mais desconfortável do que justificável, mas todos esses detalhes ela não percebeu enquanto a conversa transcorria.
O tom de provocação de Guto, suas interrupções constantes e as perguntas que pareciam mais acusações do que investigações também ficaram evidentes. Ainda assim, a cada pergunta ela até tentou sorrir, com alguma dificuldade, mas isso só fez com que parecesse mais nervosa do que realmente estava. Ao ver isso, Patrícia se deu conta de que a tentativa de controlar a situação havia falhado antes mesmo que percebesse. Guto a atraiu para uma armadilha que ela não tinha como escapar e ainda fez suas falas soarem inseguras, com sua postura sendo retratada como se ela fosse apenas instável e arrogante.
A cena em que Patrícia tenta se defender sobre o suflê foi capturada e transmitida de forma ridícula. O momento, quando ela revela que a receita era originalmente de sua avó, uma lembrança afetiva de sua infância, foi invertido e distorcido por Guto, que a interrompe e faz graça. Como ela não quis entrar em uma discussão mais séria, acabou sendo retratada como alguém que apenas se apoiava em histórias emotivas para justificar um possível plágio.
O ápice acontece quando Patrícia se dá conta de que está sendo filmada. Tomada de raiva e parecendo um animal selvagem, a mulher explode, avançando para cima de Guto como se fosse uma onça. No vídeo, a chef se levanta e tenta pegar o celular do jornalista, sem perceber que o “penetra de horário” registrava a ação por outro ângulo (no canto da tela, a prévia do vídeo aparecia destacada para quem quisesse assistir).
Patrícia se vê, com a raiva estampada no rosto, movida por um misto de ira e indignação, que só serviu para aumentar o tom de seu descontrole inicial. Ela mesma, em sua mente, ainda não entendia bem o que havia acontecido, já que não era de reações extremadas, mas o olhar de Guto depois que o celular mudou de ângulo, atônito e ao mesmo tempo exultante, dizia tudo. Sua atitude violenta era exatamente o que ele queria e ela se entregou de bandeja para o show dele.
“A gente sabe que o toque final é que conta, né?”, Guto diz, antes de encerrar a transmissão, repetindo o jargão de Vivi Mantovani.
Naquele instante, Patrícia percebeu que a narrativa que o jornalista havia criado não tinha nada a ver com a verdade, mas sim com uma manipulação disfarçada de realidade, um recorte mentiroso que almejava apenas o engajamento nas redes, já inflamadas com o assunto, que dominava as discussões. A raiva que ela sentia e que antes parecia justa e espontânea, agora transparecia apenas como uma reação meramente exagerada e fora de tom, pronta para ser julgada pelo mundo. E era exatamente isso o que estava acontecendo neste momento.
Nos comentários do vídeo, os seguidores de Guto escreveram coisas como “que vergonha alheia! Profissionalismo zero!”, e “parece que o tempero especial dO Bistrô é a arrogância da chef”, e “a raiva dela me deixou com medo! Que papelão!”, e também “essa mulher só provou que é culpada. Quem não deve, não teme!” – este inclusive era o que tinha mais curtidas. Patrícia não leu nenhuma mensagem de apoio, só porque os moderadores da página apagavam esse tipo de manifestação, mas ela não cogitou a possibilidade. Apenas se afundou ainda mais na cadeira, sentindo-se derrotada.
Incapaz, porém, de desviar a atenção daquilo, resolveu conferir como estavam suas redes sociais. Ao entrar no Instagram, viu que o ícone de coração no canto superior estava bombando, com centenas de curtidas, comentários e marcações que nem mesmo em um ano ela conseguiria ver tudo. Mas algumas notificações chamaram sua atenção instantaneamente, como mensagens de estranhos que diziam “pediu para ser cancelada...”, e “exagerou, foi longe demais...”, e “o que aconteceu com você???”. Havia também um número considerável de solicitações de novos seguidores, mas a maioria com nomes que pareciam de perfis falsos ou apenas curiosos interessados no escândalo. Antes de mudar para a conta do restaurante, Patrícia viu também um enorme número de marcações em stories e publicações de terceiros, acompanhadas de mensagens como “mulher faz barraco ao vivo!” e “chef surta no meio da live”.
O perfil dO Bistrô também havia ganhado centenas de novos seguidores, mas num volume menor que de sua conta pessoal. Esses usuários em sua maioria marcavam as páginas de fofocas nos comentários das fotos do restaurante, escrevendo coisas como “já viu o show que a chef deu?”, e “novo episódio da série: ‘como destruir uma reputação em poucos minutos’. Corre aqui para ver”, entre outros, que seguiam a mesma linha, carregada de deboche. Havia um único que fazia referência à chef do YouTube, mas sem citá-la nominalmente.
Nas fotos antigas, os comentários giravam entre “esse prato é ótimo, pena que a chef agora é mais conhecida pela treta do que pelo tempero”, e “essa daí precisa é de terapia, não de um restaurante”, além de “pelo visto, quem diz que sabe cozinhar não sabe se comportar”. Outros faziam ameaças como “nunca mais piso aí”, e “quem é que tem apetite para comer num lugar assim?”, e “com certeza perdeu muitos clientes com essa atitude”. Também comentavam absurdos como “quis dar palco para maluco? Bem feito!”, comprovando que a crítica não se limitava apenas à cozinha; era claramente um ataque pessoal, diretamente contra ela.
Patrícia fez questão de apagar um comentário que considerou maldoso e particularmente ofensivo, postado por alguém que não conhecia (um sujeito de barba e óculos escuros com foto tirada dentro de um carro), que questionava se O Bistrô também servia comida ou apenas drama. No final ele ainda mandou um “cresça”, junto de vários emojis chorando de rir. Mas Patrícia nem considerou deletar todos os demais comentários porque lhe pareceu que investiria o resto da vida fazendo isso – e ainda por cima correndo o risco de ser rapidamente vencida pela enxurrada de críticas, que não cessava. Pelo contrário, parecia que a cada minuto mais e mais notificações piscavam na tela de seu celular.
Aí nem perdeu tempo vendo o que falavam no Twitter, a rede mais tóxica, que já tinha a #barracogourmet no topo dos trending topics. Preferiu se poupar de ver mais este linchamento virtual.
Desalentada, voltou à janela da conversa do WhatsApp e, sem pensar muito, escreveu uma mensagem simples, porém honesta, no grupo das TPM. Dizia: “Perdi a linha com o jornalista fofoqueiro. Acabei com tudo”. Enviou sem nem ler. Evitou falar tudo o que tinha vontade para não chorar. Estava em horário de expediente, afinal, e não tinha o costume de se mostrar abalada, ainda que se sentisse completamente derrubada.
Com um suspiro pesado, largou o celular sobre a mesa, o som do aparelho batendo na madeira como se fosse um peso a mais em sua mente. Antes que as imagens voltassem a bailar em sua cabeça, levantou-se e caminhou até a janela do escritório, que dava para o estacionamento do restaurante, ainda vazio. Sabia que a falta de carros representava uma completa ausência de clientes no salão, mas ainda assim preferiu descer a permanecer lidando com o vazio ali em cima.
Lá embaixo, não demorou muito para constatar que não havia clientes nO Bistrô, nem um mísero movimento. A mesa de reservas estava vazia e as cadeiras encontravam-se todas em seus devidos lugares, apenas aguardando, na expectativa de serem ocupadas. Patrícia teve a impressão de que a noite parecia já saber que não seria como as outras e o som de seus passos ecoando no piso foi desolador.
– Acha que já era? Será que ninguém vai vir? – ela pergunta, ao ver Zezé parada perto da porta, assistindo um vídeo no celular, o som alto escapando por um dos fones, preso no bolso do uniforme. A gerente se assustou ao ouvi-la e, quando a encarou por cima da tela, parecia preocupada com muita coisa, mas não exatamente com essa possibilidade.
– Bobagem, é claro que virão. Só está muito cedo, Pati. Ninguém janta uma hora dessas – Zezé consulta as horas no relógio de pulso, talvez para se convencer do que dizia. Manteve uma ruga de preocupação marcando o meio da testa – Eu sei que a repercussão foi grande e que isso te preocupa, mas nem todo mundo vive na internet. Confia – complementa, voltando os olhos para a tela.
Patrícia ergue os ombros em sinal de resposta e atravessa o salão em direção ao bar em silêncio, passando por entre as mesas alinhadas milimetricamente sem esbarrar em nenhuma e sem dar atenção a isso – aos detalhes e caprichos dO Bistrô que eram famosos assim como o tempero de sua comida e a simpatia de seus funcionários. Estava tão atribulada que naquele momento esqueceu-se completamente do porquê de ser considerada uma das melhores do ramo, convencida de que o mundo era dos haters.
Só não sentiu-se totalmente sozinha porque há anos praticava o hábito de cultivar a própria companhia, desde que havia percebido que era preciso se bastar. Daquele momento em diante, não houve mais espaço para a solidão. Também porque há mais de uma década era casada com Tatiana, sua parceira nos melhores (e piores) momentos da vida.
– Você veio – ela diz, vendo a esposa chegar segundos depois de sentir seu perfume, abrindo os braços para acolhê-la e também ser acolhida.
A aparência de Tatiana era simplesmente lastimável. Seus olhos estavam fundos, carregados de aflição, mas mesmo assim ela sorriu, logo que a viu. Parecia recém-saída de uma crise de ansiedade. Ou da boca de um boi. Seu cabelo estava despenteado, sua roupa amassada e seus ombros curvados como se carregassem um peso invisível, do tamanho do mundo. Patrícia sentiu uma pontada de preocupação ao ver seu estado; Tatiana parecia mais debilitada do que apenas vítima de outro episódio gastrointestinal.
– É claro que vim – Tatiana a abraça, alheia aos julgamentos, afagando seu cabelo, que permanecia solto – Jamais te deixaria sozinha num momento como este, Pati – ela a beija e logo volta a abraçá-la, de maneira amorosa, aconchegando a cabeça de Patrícia em seu peito. Seu hálito era doce e tinha gosto de café – Como você está?
– Agora estou melhor, vendo você aqui. Que surpresa boa, Tati! Achei que teria aula...
– Tenho, mas li sua mensagem no grupo e fiquei preocupada. Não pensei nem duas vezes, corri imediatamente para cá – Tatiana a abraça mais forte, encaixando-se entre suas pernas, sem revelar o que a desistência realmente significava – Sinto muito por não estar aqui na hora que tudo isso aconteceu.
– Tudo bem, você nem queria que eu o recebesse. Ainda insistiu, disse várias vezes que era uma péssima ideia, a gente até brigou... mais de uma vez – Patrícia dá uma fungada, chateada, com o rosto enfiado no pescoço dela – É bom que eu aprendo. Bem feito para mim, como falaram na internet.
– Não, amor. Não seja rude com você assim, ei – Tatiana afasta-se alguns centímetros e a faz olhar para ela – Tudo bem acreditar que os problemas podem se resolver na base do diálogo, meu bem! Não há problema nisso, de verdade. O fato é só que nem todos são passíveis de resoluções desse tipo e é preciso diferenciar um caso do outro – ela volta a abraçá-la, na tentativa de confortá-la – Esse jornalista é claramente perigoso, ardiloso e peçonhento. Dá para ver na cara dele.
– O canalha enfiou a Vivi nessa fake news de plágio, Tati. Você acredita? – Patrícia praticamente cochicha, mas Tatiana a escuta límpida e claramente. A informação inclusive faz com que ela saia do abraço e a encare com um olhar perplexo. Quase em choque – Ou melhor, o Guto não “enfiou” ninguém em nada, só a trouxe à baila. Com essa história toda. Ou ela é que o trouxe, não sei.
– Quem? A Vivi Mant...? – Tatiana não completa a pergunta porque Patrícia acena com a cabeça, de maneira afirmativa, com o semblante triste. Isso a levou a permanecer alguns segundos boquiaberta, com as sobrancelhas arqueadas, processando a informação, antes de ter condições de continuar a falar – Ué, mas como assim, por q...? – ela novamente não termina a própria frase e leva a mão à testa assim que constata o que aquilo realmente queria dizer – Ah, não acredito! Então o suflê de batata é o suposto plágio, copiado da Vivi, ainda por cima? Putz, que merda, Pati.
– É – Patrícia não diz mais nada. Sentia-se incapaz de elaborar qualquer complemento, pois não parecia existir nada que pudesse ser dito diante daquilo. Teria gritado, se fosse aceitável fazer isso no ambiente em que se encontravam. Ou em qualquer outro.
– Ele falou o nome dela na live? – a voz de Tatiana soou grave e séria. Piscou devagar, como se de alguma forma ainda lutasse para assentar a informação – Eu assisti os vídeos no caminho para cá, estava dirigindo, mas me mantive atenta, prestando atenção... Não escutei falar sobre ela...
– Ele não falou... não diretamente. Mas citou o bordão dela, antes de encerrar a transmissão. Não é difícil associar, né?
– Nossa, mas por que será que ela invent...? Justo agora? Quer dizer, para quê? Que maldade, o que ganha com isso?
– Engajamento, né. Like, audiência, sei lá como eles chamam. Aparentemente isso alimenta o ego de muita gente por aí – Patrícia resmunga, fungando – E o pior é que não é exatamente nenhuma surpresa constatar que ela também se nutra desta maneira. Sendo quem é...
– Ah, meu amor... Poxa vida, Pati, sinto muito por isso, querida. Nem imagino como esteja se sentindo. Vem cá – Tatiana a abraça, um pouco mais apertado que o abraço anterior e deposita um beijo no topo de sua cabeça.
– Tudo bem, só não acho justo que agora O Bistrô vá à falência por causa disso. Por causa dela, Tatiana – Patrícia reclama, com a voz arrastada devido ao choro que não conseguiu controlar – Eu trabalho tanto, sabe, aí ela aparece de repente vinda sei lá de onde, do quinto dos infernos, e coloca em risco o meu restaurante? É justo isso?
– Mas isso não vai acontecer, gata! – Tatiana afirma, encarando-a nos olhos, com uma energia completamente diferente de quando havia chegado – Te garanto, Patrícia! Não é nenhuma Vivi e nem nenhum Guto que vão te derrubar, não. Pode ter certeza. Se isso é uma guerra, nós também temos as nossas armas.
Tatiana saca o celular de dentro do bolso da calça e senta-se na banqueta ao lado da mulher. Com dois toques na tela, iniciou uma ligação, sem dizer nada. Roeu a ponta da unha do mindinho enquanto não era atendida, o que só ocorreu depois do terceiro toque.
– Oi, amor. Onde você está? Hum, sei. Uhum. Sim, queria sua ajuda nisso, por isso te liguei. Ah, não sei, Mari, você é cheia dos contatos, dá seus pulos, minha linda. Eu sei que está a caminho de Brasília, mas você me atendeu, não foi? Então, gatinha. Aproveita que ainda tem sinal. Ah, isso eu já não sei, conto com a sua criatividade. Tá. Também te amo. Tá bom, outro. Tchau, boa viagem, avisa quando pousar – ela desliga e apoia o celular no balcão lustroso do bar, com a tela virada para baixo – A Mari te mandou um beijo. Disse que o avião dela está prestes a decolar.
– E essa chefe dela, hein? – Patrícia rebate, no mesmo instante – Queria tanto saber qual é a dela...
– Ai, mas uma coisa de cada vez, né, Pati? Por favor – Tatiana suspira, porque embora soubesse que não tinha como lidar com mais de um drama ao mesmo tempo, aquilo era algo que nitidamente a fazia pensar também – Você acha boa ideia trabalhar hoje? Não prefere ir para casa, descansar?
– Não, vou trabalhar, eu... – Patrícia prende o cabelo num rabo de cavalo, num gesto automático, como se preparando para aquilo, lembrando rapidamente do vídeo gravado mais cedo por Guto. Isso a fez levar a mão inconscientemente em direção ao ponto que acreditou ter uma mancha em seu uniforme. Precisava urgentemente trocar de roupa para então se focar no que era importante – ...acho melhor me ocupar na cozinha, até mesmo para não surtar. Isto é, se tiver algum cliente hoje, né.
– Claro que vai ter. O Bistrô vai lotar, não te avisaram? Acho inclusive que já tem até gente chegando – Tatiana faz um gesto em direção ao burburinho que vinha do salão. Ao se levantar para conferir, espantou-se – Acho que você vai gostar disso, vem cá ver.
Patrícia caminha até ela parecendo incrédula, incapaz de acreditar que algo extraordinário pudesse acontecer no fim daquele agitado dia. Mas o sorriso de Tatiana ao apontar para o salão pareceu sincero demais e a fez querer averiguar do que se tratava. Quando viu as primeiras clientes entrando, encabeçando uma longa fila restaurante afora, piscou duas vezes, lentamente, como se precisasse ter certeza de que aquilo era real.
As primeiras a entrar foram três mulheres, jovens, com roupas casuais, mas claramente pensadas para uma ocasião especial. Elas riam e cochichavam entre si, animadas, e uma delas parecia filmar com o celular enquanto atravessavam o salão. Assim que uma garçonete se aproximou para atendê-las, outra mulher entrou logo atrás, acompanhada por mais três amigas. Uma delas olhou para o ambiente como quem procurasse algo – ou alguém – e sorriu com os olhos ao reconhecer lá no fundo as silhuetas de Patrícia e Tatiana.
A chef deu dois passos para dentro do salão, os olhos fixos na movimentação, vendo que mais gente começava a chegar. Outra mesa foi ocupada em questão de segundos e logo o som dos passos e vozes abafadas começou a preencher o espaço antes vazio. O ritmo acelerado do restaurante indicava que a noite prometia ser bastante movimentada, com uma clientela ansiosa e cheia de expectativas.
A vibração do ambiente se alterava a cada novo grupo que entrava nO Bistrô, direcionado até a mesa por um dos garçons ou pela gerente do restaurante. As conversas animadas ecoavam no espaço, criando uma mistura de tons e risadas que davam ao salão uma inesperada sensação de aconchego.
De onde estavam, Patrícia e Tatiana acompanharam um casal entrar, de mãos dadas, conversando baixinho e olhando ao redor com curiosidade. Um dos homens parou por um instante perto da entrada, logo após a porta giratória, examinando o ambiente, antes de sussurrar algo ao namorado e caminhar em direção a uma mesa próxima à janela. Pareciam animados por estarem ali.
Atrás deles, um grupo de cinco ou seis pessoas, misturando idades e estilos, entrou de forma mais descontraída, rindo e falando alto, sendo filmado pelo menor deles. Um homem de barba bem cuidada liderava a turma, segurando o cardápio exposto na entrada, dizendo em tom animado: “é aqui mesmo, galere! Vamos comer na toca da onça!”. O grupo claramente estava ali para mais que uma simples refeição; eles queriam uma experiência gastronômica, algo a ser lembrado. E postado também, é claro.
Patrícia deu a mão para a mulher, ainda processando toda aquela súbita movimentação, quando dois casais de lésbicas entraram praticamente ao mesmo tempo, dividindo olhares com Zezé. A gerente se esforçava da melhor maneira para organizar o intenso fluxo de clientes, junto dos garçons, que também iam e vinham anotando os pedidos nos tablets, sugeridos por Mariana como substituição aos bloquinhos de papel.
– Vocês precisam que junte quantas mesas? – a gerente pergunta, apressando-se para reconfigurar o layout do salão, acomodando primeiro um casal e depois o outro, em uma mesa próxima.
Enquanto isso, uma mulher com um vestido elegante e salto alto entrou sozinha, segurando um celular na mão e olhando atentamente para a tela, sem piscar. Ela fez uma pausa, examinando o salão como se quisesse confirmar o lugar, antes de ir diretamente em direção ao bar e pedir uma taça de vinho rosé. Manteve o celular transmitindo ao vivo, conversando com pessoas que interagiam com ela através do aparelho.
– É isso mesmo, meus seguimores. Estou falando diretamente do lugar mais falado da semana! Vou mostrar para vocês cada detalhe dO Bistrô e, logicamente, experimentar o tal prato que colocou a chef no olho do furacão. Suflê de batata? Espero que seja bom para causar tanto frisson. Mas antes, é claro, quero apreciar e dividir com vocês sobre a espetacular carta de vinhos que a casa oferece. Comecei com este rosé porque um clássico nunca sai de moda, né, meus amores?
Perto da entrada, outro grupo demonstrava entusiasmo com o lugar. As quatro jovens pareciam mais interessadas em registrar o restaurante do que em comer qualquer coisa – incluindo o suflê. Uma delas segurava uma câmera e começou a disparar cliques em direção às luminárias do teto tão logo adentraram.
– Nossa, que lugar in-crí-vel! E que vibe maravilhosa, super chique! Só eu amei? – uma delas comenta, chamando as demais para uma foto na frente das prateleiras de vinho. E outra, antes de se acomodarem em volta da mesa, ato registrado com mais uma fotografia.
– Tudo perfeito, sim – a amiga responde, após sorrir para a foto – No vídeo, aqui parecia ser bem menor! Que bom que a gente veio, meninas, foi uma ótima ideia.
Na sequência, Patrícia e Tatiana observam um rapaz todo iluminado entrar no restaurante, atraindo imediatamente a atenção de todos no salão. À sua volta havia três pessoas com luminárias altas e fortes que o enchiam de uma luz artificial enquanto ele falava sem parar, caminhando em direção a uma das poucas mesas que ainda não estava ocupada.
– Então é isso aí, família. Por tudo o que contei até aqui, decidi vir pessoalmente conferir o famoso suflê de batata dO Bistrô, que dominou a internet na tarde de hoje, e ver se vale mesmo todo esse hype. Mas principalmente, galera, a nossa meta nesta noite é fazer contato com a chef Patrícia e ouvir o lado dela nessa história. Afinal, fizemos isso com o Furioso, tá ligado, quando ele foi vítima do inconsequente do Guto, e agora decidimos dar espaço para todos que eventualmente se sintam prejudicados por esse sujeito raso e de má índole que se diz jornalista, demorô, família? Vem comigo.
– Você sabe quem é? – Patrícia pergunta, cochichando, vendo os iluminadores cercarem o moço de cabelo colorido, que não parava de falar e gesticular.
– Não faço a menor ideia de quem seja – Tatiana cochicha também – Mas pelo visto, quer falar com você.
– Oi, boa noite, tudo bem? Posso conversar um minutinho com vocês? – uma mulher pergunta, parando de repente ao lado delas. Era baixinha, usava óculos e cabelo curto, raspado nas laterais. Vestia uma calça larga de moletom preta, uma camiseta branca sem estampa e um all star desbotado, furado no lado. Carregava dois telefones na mão. Patrícia e Tatiana demoraram alguns segundos até reconhecê-la – Eu me chamo Carmen, sou amiga da Mari. Prazer em conhecê-las!
– Olá, tudo bem? Bem-vinda aO Bistrô – Patrícia diz, recebendo um abraço rápido como cumprimento. A mulher tinha cheiro de sabonete de bebê e vodca, e ficou na ponta do pé para abraçá-la.
– Oi, Cacá! Prazer, a Mari falou muito bem de você – Tatiana a cumprimenta com um beijinho no rosto – Acredito que você tenha relação com tudo isso, né? – ela aponta para o salão lotado de pessoas que nunca haviam ido ao restaurante, quase todas munidas de aparelhos celulares que estavam com as câmeras ligadas – Nem sei como agradecer.
– Imagina, eu só falei com alguns amigos, tuitei e o resto aconteceu – Carmen sorri, minimizando sua participação – Bom, queria dizer que vocês podem contar comigo – ela olha diretamente para Patrícia – Infelizmente, nos dias de hoje qualquer pessoa se diz jornalista e muita gente gosta de dar palco para maluco, daí... a cena se completa. Caminhamos para o buraco.
– Você... – Patrícia pigarreia. Um minuto atrás estava chorando e seu corpo ainda não parecia ter entendido que a situação havia mudado, favoravelmente – ...é jornalista também?
– Não, eu sou... – Carmen sorri novamente, como se quisesse dar outro tipo de resposta – ...sou só programadora. Mas sei fazer algumas coisas, enfim... – ela abaixa o tom de voz antes de continuar – Só queria falar que caso queiram se vingar... do Guto ou de quem quer que tenha inventado toda essa história... podem contar comigo.
– “Se vingar”? – Tatiana quis confirmar se tinha entendido certo – Mas o que isso...
– Agradeço, Cacá – Patrícia diz, interrompendo-a de propósito – Inclusive pela movimentação que você fez, agradeço mesmo. Estou muito feliz em ver O Bistrô cheio depois de um dia tão difícil, não achei que seria possível. Honestamente, para mim este é o melhor tipo de vingança que existe. Contra quem quer que seja.
– Claro, claro, com certeza. Sigo às ordens – Carmen acena com a cabeça, discretamente – Senhoras... – ela se afasta e senta-se em uma das mesas que Zezé havia reunido, junto de um grupo de mais ou menos dez mulheres.
– Que tipo de vingança você acha que ela estava falando? – Tatiana pergunta, curiosa, tão logo voltam a ficar sozinhas.
– Tenho até medo de saber – Patrícia suspira, vendo o celular de Tatiana piscar na mão dela – A Mariana está te ligando.
– Atende, é com você que ela quer falar – a mulher responde, entregando o aparelho já desbloqueado.
– Oi, amor – Patrícia atende a ligação, recuando um passo para não ficar tão visível no salão – Já pousou? Está tudo bem, fez uma boa viagem?
– Oi, Pati! Oi, minha vida, que delícia ouvir sua voz, como você está? Que bom que a Tati está aí, torci para que ela não fosse ao curso. Acabei de chegar, estou tão triste por não estar com você... Me desculpa, acho que nunca vou me perdoar por isso, nunca!
– Tudo bem, querida. Você precisa trabalhar, eu entendo. A sua viagem surgiu de última hora, essas coisas acontecem.
– Ah, mas que momento mais... errado para tudo isso – Mariana reclama, parecendo se afastar de onde estava para poder ter mais privacidade e conversar melhor – Eu vim no voo assistindo os vídeos, a repercussão toda... estou com tanta raiva desse cara, amor! Tanta! E com muita raiva também daquela vagab... – ela solta um suspiro pesado, ruidoso, se interrompendo. Pareceu considerar que não era apropriado desabafar tudo o que pensava – Nem imagino como esteja se sentindo, Pati. Sinto muito por não estar aí com você, amor.
– Grata, querida. Seu apoio é importante para mim – Patrícia responde, apertando gentilmente a mão de Tatiana, demonstrando que a fala se estendia para ela também – Em todo caso, o restaurante está cheio, em breve as avaliações positivas pulverizam as redes e todo mundo esquece essa história.
– Me preocupo com você, Pati – a voz de Mariana soou triste e ao mesmo tempo sincera.
– Eu vou ficar bem, meu amor. Sempre fico! Resisti até aqui, não foi?
– Foi, mas mesmo assim a vida continua te batendo... – Mariana resmunga. Parecia estar chorando – É tão injusto! Eu negativei todos os vídeos da Vivi Mantovani no YouTube, denunciei todos os posts dela do Instagram, mas parece pouco. Queria bater nela até a minha revolta passar, só por ela ter inventado essa história idiota de plágio... ou bater no Guto, por ele ter repercutido essa mentira da pior maneira.
– Ninguém vai bater em ninguém, amor – Patrícia retruca, mas sorri. Achou o comentário de Mariana fofo – A gente não tem que se misturar com essas pessoas, é só. De alguma forma, cada um colhe o que planta, então não cabe a nós semear agressão ou violência. Essa gente que se lasque sozinha.
– Mas eu tenho a impressão de que isso não acontece na vida real, Pati – Mariana funga do outro lado da linha, confirmando que estava mesmo chorando – Tudo o que vejo é só injustiça sendo cometida contra quem não merece... como você. Sabe? Depois de tudo o que já passou...
– Muitas vezes, o mundo é mesmo um lugar horrível – Patrícia afirma, com a voz carregada de franqueza. Mas aí olhou novamente para o salão lotado e sorriu – A minha sorte é que eu sou mais forte do que eles imaginam, Mari. E tenho comigo as melhores aliadas – ela sorri para Tatiana, que retribui o gesto.
– Você é foda, amor! – Mariana rebate, parando de chorar – É sensacional, uma mulher incrível! Eu sou sua fã!
Patrícia sorri, sentindo o amor preencher e aquecer seu coração ao ouvir as palavras de Mariana. Ela sabia que, apesar de tudo, havia quem valorizasse o que fazia, quem ela era de verdade. Mesmo que o mundo fosse desafiador e cheio de gente esquisita, ainda havia pessoas como Mariana e Tatiana que a apoiavam e a amavam. E que compravam suas brigas como se fossem as delas, sem pestanejar, apenas para poupá-la. Por amor.
– Eu te amo, Mari – Patrícia diz, com a voz cheia de carinho – Já estou com saudade, volta logo.
– Te amo também, meu bem. Em breve estaremos juntas. Vamos fazer uma “quarta do trisal” na próxima semana – Mariana sugere, com o som ambiente aumentando de volume junto de suas palavras. Pareceu que ela estava escondida no banheiro do aeroporto até aquele momento, só para conversarem.
– Tá bom, gatinha, a gente combina – Patrícia fala, acenando para uma cliente que sorriu para ela – Se cuida aí, bom trabalho e vai mandando notícias. Fica de olho nessa sua chefe, hein? Essa mulher é esquisita.
– Pode deixar, linda. Se cuide também. Manda um beijo para a Tati e diz que a acho uma grande gostosa.
– Tá, gata. Um beijo, tchau – Patrícia desliga e entrega o celular para Tatiana – A Mari mandou um beijo, acabou de pousar.
– Ela falou que queria bater no Guto? – Tatiana pergunta, rindo antes de ouvir a resposta.
– Sim, na Vivi também – Patrícia sorri e balança a cabeça, considerando brevemente quão absurdo seria se algo do tipo acontecesse. E o quanto apreciaria assistir.
– Esses dias ela sugeriu de bater na Rosana, na saída da aula, que nem os alunos fazem – Tatiana revela, alheia aos pensamentos da mulher – É engraçado porque ela nunca bateu em ninguém! Nem é do tipo que briga, não gosta nem de discussão, se diz praticante da comunicação não violenta...
– É, a Mariana é realmente uma pessoa muito peculiar – Patrícia ajeita a postura antes de continuar – Grata por todo o apoio, meu amor. Não sei o que seria de mim sem você.
– Sempre estarei do seu lado, Pati. Não importa o que aconteça – Tatiana afirma, dando um selinho na mulher – Agora vai lá que a cozinha te chama e todas essas pessoas querem ver o seu show de verdade. Mostra para eles como o seu suflê é muito melhor do que qualquer outro.
– Amo você – Patrícia diz – Fico feliz que tenha escolhido ficar comigo em vez de ir para a aula.
– Você sempre vai ser a minha escolha, Pati. Te amo também.
Patrícia manda um beijinho no ar para a esposa, cúmplice, antes de se afastar. Precisava trocar de roupa para ter um mínimo de paz e poder trabalhar, embora já estivesse convencida de que seu uniforme nem estava sujo. Para não ter contratempos, evitou atravessar o salão e subiu até o escritório pelo outro lado, passando pela cozinha.
A caminho da escada privativa, sentiu o calor das panelas e o movimento frenético dos cozinheiros, que nem a viram passar, ocupados com a entrega dos primeiros pedidos. O cheiro dos pratos preparados era reconfortante e servia para ancorá-la, assim como Tatiana e Mariana a mantinham com os pés bem firmes no chão, mesmo diante de alguma intempérie. Inclusive, era nas tempestades que a relação delas se mostrava à prova de ataques, como se fosse um abrigo seguro, tal qual era O Bistrô. Os traumas e as ausências do passado de Patrícia pareciam pequenos perto da grandiosidade de tudo o que ela construiu depois de adulta e que ia muito além do seu negócio ou de seu casamento. Mas que inevitavelmente passava pelo que o restaurante representava em sua vida e o amor que nutria pelas duas mulheres.
Ao chegar de volta ao escritório, Patrícia fecha a porta atrás de si e se permite um momento de silêncio. O telefone ainda vibrava insistentemente em cima da mesa, mas o ignorou num primeiro instante, temendo o que as notificações iriam lhe mostrar.
Ela dirigiu-se de maneira determinada até o armário alto de metal, no canto esquerdo, e tirou de lá de dentro um dólmã limpo, azul-escuro, que Patrícia fez questão de checar se estava realmente limpo antes de vestir. De sutiã, fez uma inspeção na parte de cima do uniforme, deixando à mostra, próximo à renda delicada da lingerie, acima do seio esquerdo, perto do coração, sua única tatuagem, com os dizeres “Eu sou”.
A frase não servia apenas como uma recordação de quem ela era naquele momento, ou no instante em que tatuou, no dia do seu aniversário de 18 anos, mas especialmente saudava e fazia referência a todas as suas versões anteriores, incluindo aquelas que não conseguiu ser. Era também um eterno lembrete de todas as mulheres que ainda poderia vir a ser, como uma inscrição nas páginas em branco de um livro que Patrícia também era a autora, junto da personagem principal.
As palavras, em letras de forma frágeis e fracas como se tivessem sido tatuadas com lápis e fossem sair já no próximo banho, eram um tipo de alerta marcado na pele que a lembrava que ela não estava presa a um único papel, a um único destino, sendo vítima de um mundo intolerante. As decisões que tomava, os caminhos que escolhia, tudo representava uma nova página em sua vida e ela tinha o poder de redigir o que viria a seguir.
Patrícia trocou de roupa sem dispensar nenhum tipo de atenção para a tatuagem, que quase sempre nem lembrava que tinha; já fazia parte de seu corpo, como as pintas, as manchas e cada uma das cicatrizes. O contato do tecido macio com a pele arrepiada foi bem-vindo e ela esfregou os braços depois de vestida para poder se aquecer do vento gelado do ar-condicionado e também para tirar as marcas de dobra. Assim como o anterior, o novo uniforme também tinha o logo bonito dO Bistrô estampado no peito e nesta cor a marca se destacava ainda mais, com o bordado em dourado contrastando com o azul da peça e os botões brancos que desciam pelo tronco.
Antes de descer e reassumir seu posto na cozinha, tomou o cuidado de guardar a aliança no bolso da roupa que agora vestia, como sempre fazia, de modo que o anel parecesse uma espécie de amuleto, marcando na frente do uniforme. Movida por uma curiosidade até ali inédita, apagou a luz, só que ao invés de sair ela sentou em sua cadeira confortável de encosto alto, como se estivesse escondida ou minimamente camuflada, e pegou o celular sobre a mesa. Quis ver se Vivi havia se manifestado sobre o ocorrido (tinha certeza que sim).
Primeiro, entrou no perfil de Guto Morais no Instagram e logo reparou que ele era do tipo que repostava tuíte em outra rede social. No caso, o jornalista compartilhou um print em que ele garantia ter novidades sobre o caso, que em breve seriam compartilhadas. Mas o que chamou mesmo a atenção de Patrícia foi que o primeiro comentário, em destaque, era de Rosana Valcourt, a colega de Tatiana, que implicava com ela no trabalho. Abusada, a mulher a chamava de “chef do copia e cola”, repetindo o que muitos diziam, mas que pareceu uma grande audácia ainda assim! Só não a xingou porque não estava mais na quinta série, mas teve vontade.
No perfil de Vivi, o que Patrícia mais viu foi gente curiosa, instigando a chef de todas as formas a revelar sua ligação com o possível plágio revelado pelo jornalista. Mas junto de vídeos antigos com cortes de seu programa no YouTube, o que havia de mais recente era uma gravação aparentemente caseira da mulher preparando um café sobre uma bancada de granito, sem legendas ou explicações, focada em suas mãos. Pareceu a princípio se tratar de algum tipo de deboche, de escárnio, postado por alguém que nem se importava com o que estava acontecendo fora de sua bolha, além de sua vidinha pacata.
Somente quando ligou o áudio e assistiu ao vídeo pela segunda vez é que Patrícia percebeu que Vivi cantarolava algo no fundo, enquanto coava o café. “Para quem quer se soltar... invento o cais... e sei a vez de me lançar...”.
A música era um tipo de recado. Mas só Patrícia entendeu.
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