TPM - Capítulo 9: A chefe
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Quando deixou o banheiro do aeroporto, onde se escondeu para ter um mínimo de privacidade nos breves minutos de conversa com Patrícia, Mariana não avistou Simone. Àquela hora o Aeroporto Presidente Juscelino Kubitschek estava parcialmente vazio, como era esperado, uma vez que a população de Brasília é praticamente flutuante e às sextas-feiras vossas excelências já retornaram aos seus devidos currais eleitorais. Por isso, o Plano Piloto parecia mais um lugar fantasma que um local de poder.
Imaginou que a empresária talvez tivesse ido atrás dela, já que desde antes de embarcarem a mulher apresentava um comportamento atípico, não permitindo que se afastasse nem mesmo por um segundo, como se a vigiasse ou simplesmente não quisesse ficar sozinha. Muito antes da decolagem, Mariana já vinha tentando entender o porquê daquela viagem tão urgente e inesperada, justamente no dia em que Simone pareceu estranhamente agir por impulso – primeiro indo até seu quarto no hotel, anunciando que naquela noite elas teriam que viajar, juntas, depois dando em cima dela, como se Mariana fosse um objeto. Agora, a quilômetros de casa e sem avistar quase nenhuma alma, os motivos tornavam-se ainda mais escusos. Talvez Patrícia e Tatiana tivessem razão e Simone estava mesmo envolvida em algum esquema ilegal. Restava agora saber qual seria seu papel no que quer que a empresária estivesse metida.
Ao desligar o telefone, Mariana olhou brevemente à sua volta, sentindo-se um tanto ansiosa. Por alguns rápidos segundos, refletiu sobre tudo o que estava acontecendo ao mesmo tempo, em forma de avalanche. Estava numa viagem forçada junto de uma pessoa que havia dado em cima dela naquela manhã, sem que as esposas soubessem, Patrícia liderava os trending topics da noite, acusada de plagiar uma celebridade da internet e Tatiana apresentava-se estranhamente ausente desde o começo da tarde – nem a ligação no próprio telefone quis atender, sem falar nas mensagens que Mariana havia enviado mais cedo para ela e que permaneciam sem resposta.
Sentindo-se sozinha e relativamente à vontade na capital federal, Mariana aproveitou a privacidade daquela solidão para checar as mensagens recebidas durante o pouso, enquanto seu celular permaneceu desligado. As dezenas de novos recados somavam-se às notificações de suas redes sociais, em completa ebulição desde o ocorrido envolvendo a esposa e o jornalista fofoqueiro charlatão, a esta altura já considerado persona non grata no mundo sapatão. Gente que ela nem se lembrava mais entrava em contato, a maioria prestando algum tipo de solidariedade.
A primeira mensagem que decidiu ver foi de Carmen, que havia enviado uma foto, minutos atrás. Antes mesmo de baixar a imagem, Mariana reconheceu o salão dO Bistrô e isso a fez sorrir sem perceber. Quando ainda estava em Campinas, pediu socorro para a amiga, sem saber exatamente como a mascote de uma marca de café poderia ajudá-la. Mas contou com sua astúcia e sua rede de contatos.
Na foto, Carmen estava acompanhada por um grupo de mulheres que Mariana não conhecia e no fundo identificou a silhueta de Tatiana e Patrícia, como se o ângulo da foto fosse proposital e quisesse mostrá-las. Porém, mesmo ampliando a imagem e empurrando os óculos o mais perto possível dos olhos, não conseguiu se certificar de que eram realmente elas. Caso fossem, Patrícia estava agora lindamente vestida de azul e não mais de branco, como havia se eternizado naquele vídeo viral.
As outras mensagens que leu eram de apoio, parecidas com as anteriores, recebidas enquanto ainda estava no ar. Tinha uma da Fê Braga, outra da Má Velázquez, uma de alguém cujo contato estava salvo como Dri Costela e mais uma de uma tal de “Lili que chora à toa”. Esta última se diferenciava porque na mensagem ela compartilhava sua localização. Assim como Carmen, e diversas outras lésbicas, conforme constatou ao clicar nas publicações mais recentes que marcavam O Bistrô, Lili emocionada também estava lá. Era parte de uma grande e valiosa rede de apoio que Mariana se orgulhava de participar.
Antes que sequer pudesse clicar no balão de notificação do Instagram, com pouco mais de uma centena de coraçõezinhos e solicitações de novos seguidores, Mariana foi atraída pelo vídeo que apareceu no feed e que inevitavelmente chamou sua atenção. Tratava-se de uma edição mal feita de um corte de Vivi Mantovani em um de seus programas de culinária do YouTube, mas com a cabeça de Patrícia colada no lugar da dela – um vídeo totalmente amador, como se tivesse sido feito às pressas, no Paint. Enquanto o corpo de Vivi se movimentava com naturalidade, o rosto de Patrícia permanecia imóvel, retorcido em uma expressão de irritação, capturada exatamente no instante em que ela havia percebido que estava sendo filmada e partiu para cima de Guto Morais. As sobrancelhas arqueadas e seu semblante rígido transmitiam uma intensidade que, na montagem, beirava o cômico, mas Mariana não achou a menor graça em ver sua mulher sendo ridicularizada por estranhos na internet.
A montagem era maldosa em muitos sentidos, inclusive porque usava como trilha sonora a parte instrumental da música Cais, que Vivi Mantovani havia cantarolado em um vídeo sem sentido, postado minutos atrás. Mesmo editada, parecendo tocar de trás para frente e num ritmo acelerado e arranhado, Mariana reconheceu a música – e a provocação de quem a escolheu na edição. Ela ainda não tinha entendido o porquê da escolha feita pela chef do YouTube, já que parecia uma espécie de recado, e desde então Milton Nascimento cantarolava sem parar dentro de sua cabeça.
Zangada, desligou o aparelho num gesto brusco e apenas quando puxou a bombinha de asma do bolso da calça é que avistou Simone sentada perto dali, tomando tranquilamente uma xícara de chá. Parecia despreocupada, diferente de como se apresentara durante o voo, o tempo todo nervosa, mexendo no próprio celular. Agora, visivelmente mais calma, a encarava a distância com um sorrisinho irritante enfeitando o rosto maquiado, levando Mariana a acreditar que talvez a mulher só tivesse medo de voar.
Embora estivesse preocupada com Tatiana e absolutamente envolvida com os problemas de Patrícia, que a afetavam também, e não apenas o WhatsApp e suas redes sociais, ver Simone sorrindo casualmente como se estivesse muito confortável por estar ali, numa cidade fantasma em plena sexta-feira à noite, deixou Mariana ainda mais contrariada por ter sido obrigada a se deslocar até Brasília. Caso estivesse em São Paulo, com certeza seria muito mais útil do que ali, servindo de enfeite para uma riquinha mimada. Porque foi assim que se sentiu: totalmente dispensável, desde o começo daquela viagem esquisita.
– Problemas no paraíso? – Simone pergunta, num tom irônico, vendo-a se aproximar, sem especificar ao que se referia num primeiro momento. Mas antes mesmo que Mariana abrisse a boca para responder, a mulher continuou, num tom envenenado – Vi o vídeo envolvendo uma das suas esposas. Patrícia... Figueiredo, né? Que barra, tomara que esse escândalo não interfira nos negócios – ela diz, como se intencionasse falar exatamente o contrário, num falso tipo de empatia. Pareceu sorrir ao se esconder atrás da xícara, tomando um gole curto de sua bebida quente.
Mariana respira fundo, sentindo o ar gelado do spray aliviar a pressão da asma no peito, mas não sua irritabilidade. Esforçou-se para ignorar o assunto e principalmente Simone, que não demonstrava nenhuma pressa em terminar de beber seu chá, como se estivessem ali a passeio. A empresária continuou falando, claramente querendo tornar a situação ainda mais desagradável.
– Confesso... – Simone diz, inclinando a cabeça e fechando um pouco os olhos, de maneira teatral – ...que esse vídeo explosivo da sua esposa me deixou curiosa, não vou mentir – ela dá uma risadinha.
– Se está querendo dizer algo, sugiro que vá direto ao ponto – Mariana rebate, ao vê-la se calar de repente. Cruzou os braços como a esposa sempre fazia quando se preparava para algum tipo de debate. Ou combate.
– Só estou dizendo que ninguém vira alvo desse tipo de coisa à toa. A sua esposa... bom, ela certamente deve ter acumulado desafetos pelo caminho. Algo totalmente normal no mundo dos negócios, eu sei bem. Mas vídeos assim... – Simone faz um gesto vago com a mão, como se jogasse algo no ar – Não sei, geralmente são combustíveis para fogueiras que já estavam acesas.
– O que está insinuando? O que você sabe sobre isso? – Mariana pergunta, zangada.
– Apenas o que todo mundo sabe – a mulher ergue os ombros, fingindo desinteresse – Que ela supostamente copiou uma receita de alguém – Simone levanta-se num impulso, deixando a xícara pela metade – Quer dizer, “copiou de alguém”, não! A acusação é que ela supostamente plagiou aquela influenciadora, com milhares de seguidores, como é mesmo o nome dela? Vivi... Mantovani? É. Vivi Mantovani, a chef mais famosa do YouTube.
Mariana sente o coração acelerar ao dar um passo na direção de Simone, embora soubesse que sua agressividade era mais impulsiva do que ameaçadora. Até porque ela nunca seria capaz de reproduzir a intensidade de Patrícia no momento em que a esposa partiu para cima de Guto, movida por uma mistura de indignação e raiva. Mas foi assim que tudo passou a fazer mais sentido.
Naquele instante, compreendeu os motivos que a fizeram atacar o jornalista, parecendo uma fera ferida. Ser acusada de plágio já era um constrangimento sem fim para uma chef renomada como ela e a fake news ainda ficou insuportavelmente pior quando Vivi foi arrastada para o meio da história.
Agora, mais do que nunca, sabia que a explosão de Patrícia não era só raiva – era autopreservação também. Uma reação ao ser atacada no que tinha de mais essencial: sua intimidade e reputação. E, ao mesmo tempo, compreendia também o que a esposa jamais admitiria em público: a presença de Vivi naquilo tudo era um lembrete de uma relação difícil que a mulher preferia manter no passado.
– “Supostamente” é uma palavra e tanto, não acha? – Mariana retruca, mantendo o tom firme enquanto acompanha Simone, em direção à saída do aeroporto. A empresária caminhava com passos elegantes, empurrando uma mala preta discreta de rodinhas.
– Ora, sabe como as pessoas são – Simone desconversa, dissimulada. Lançou um olhar breve para trás e o sorriso desagradável em seu rosto demonstrou que ela achou graça do comentário – ...não precisam de muito para transformar uma história assim em um escândalo. Especialmente quando envolve alguém tão... como posso dizer? Relevante no mundo da gastronomia – ela complementa, sem especificar se estava se referindo à Patrícia ou à Vivi.
– Estranho como você parece se divertir com isso – Mariana rebate, assim que alcançam a calçada. O clima na capital federal era quente e melancólico, nublado, sem nenhuma estrela no céu. Um vento estranho soprou e as envolveu assim que chegaram lá fora, mas em vez de aliviar, trouxe apenas mais sensação de abafamento. Com dificuldade, Mariana sentiu o ar da noite pesar nos pulmões e espirrou duas vezes.
– Jamais, de forma alguma! – Simone responde, se fazendo de ofendida – Estou apenas sendo realista. Sua esposa pode até estar certa, talvez tenha mesmo criado a tal receita, vai saber. Ainda assim, quem se importa? As pessoas adoram inventar vilões para as histórias, admita. E no momento, hum... ela não aparenta estar desempenhando exatamente o papel de mocinha.
– Bom, sinceramente eu não acho que viemos até tão longe para debatermos esse tipo de assunto – Mariana responde, tão seca quanto o ar do cerrado – Até porque você é uma mulher muito ocupada e não tem tempo para fofocas, certo?
– Ah, não me entenda mal, por favor – Simone fala, vendo algo brevemente no celular – Só acho curioso como essas coisas acontecem e rapidamente viralizam, criando milhares de teorias. E você, o que acha? Acredita mesmo que não foi plágio?
Mariana crava o olhar em Simone, um pouco desacreditada. Sorrindo, a empresária movimentou sua bagagem até o porta-malas de um carro elegante que estacionou em frente às duas, silenciosamente. Um chofer usando terno, gravata e chapéu as cumprimentou com um sorriso discreto, e abriu a porta para que embarcassem, sem dizer nada.
– Eu acho, Simone... – Mariana finalmente diz, prendendo o cinto de segurança, no banco de trás. Se certificou de falar com o tom mais firme possível – ...que não vou alimentar a sua curiosidade mal-intencionada.
– Tudo bem, ei, não se zangue tanto – Simone rebate, num tom de voz que revelou que ela sorria no escuro – Toda na defensiva, que gracinha... Não precisa ficar assim, relaxa. Só acho importante dizer que tudo isso não é apenas sobre receitas, sabe? É sobre narrativas, como sempre acontece, com todos os escândalos. Quem controla a narrativa, controla a História.
Mariana desvia o olhar para a janela, no desejo de fugir daquela conversa, tão desagradável. A cidade passava lá fora como um borrão escuro, salpicado pelas luzes dos postes, únicas testemunhas do diálogo, além do motorista, que seguia em silêncio. Respirando fundo, controlou ao máximo o impulso de responder à provocação com algum xingamento. Teve vontade de revidar com um palavrão!
– Desde quando controlar a narrativa é mais importante que contar a verdade? – Mariana então questiona, entredentes, mantendo os olhos na paisagem fora da janela. Sua voz saiu baixa, mas cheia de convicção.
Simone dá uma risada curta, virando-se para ela, demonstrando que ainda estava se divertindo com a discussão.
– “Contar a verdade”? Ah, Mariana, você realmente acredita que alguém se importa com a verdade? As pessoas só querem é saber da exposição, do espetáculo. E, no momento, parece que a sua Patrícia está bem no centro do picadeiro.
– Provavelmente porque muita gente simplesmente não se importa com a diferença entre holofotes e incêndios – Mariana rebate, voltando-se para Simone, encarando-a nos olhos – E, honestamente, você também parece ser do tipo que prefere ver o circo pegar fogo a ajudar a apagar as chamas.
A empresária arqueia uma sobrancelha, visivelmente surpresa com o ataque, mas não desfaz o sorriso insistente.
– Eu admiro a sua lealdade, de verdade. Inevitavelmente me pergunto se também age assim com a sua outra mulher, a defendendo de tudo e de todos – ela diz, cruzando as pernas elegantemente no banco de couro, que rangeu com o movimento – Em todo caso, só espero que nada disso te atinja. Às vezes, quem mais queremos proteger é justamente quem nos coloca em risco – Simone complementa, enigmática, verificando mais uma vez o celular, que vibrava sem parar.
Por algum motivo, a mulher pareceu falar dela mesma, ou talvez fosse realmente um conselho que Simone definitivamente não soube dar. Suas palavras eram muito bem colocadas, mas havia algo de venenoso por trás de sua voz aveludada.
– Se você me trouxe até Brasília para tentar me dar algum tipo de lição, está perdendo tempo – Mariana responde, cruzando os braços, irritada – A Patrícia não precisa da minha proteção assim como a Tatiana não precisa da minha defesa, ao contrário do que imagina. Tampouco me preocupo que essa fake news ridícula possa me afetar de algum jeito. Você não sabe nada sobre nós para fazer qualquer tipo de suposição. Nada – repetiu, séria – E, sinceramente, estou começando a achar que você deveria ter vindo sozinha para esta viagem.
Simone ergue os olhos, claramente surpresa pelas palavras. Por um instante, sua expressão pareceu vacilar, como se Mariana finalmente tivesse atravessado sua armadura de falsa cordialidade, revelando algo humano por trás da máscara. Mas logo o sorriso retornou, ainda que mais contido e discreto, refletido nos faróis dos outros carros e pelo celular, que voltou a acender e vibrar em suas mãos.
– Talvez você esteja certa – ela diz, com voz mais baixa, quase murmurando – Digo, com relação ao fato de eu não saber muito sobre vocês, mas não quanto à sua presença aqui. Dentro de 45 minutos terei um jantar de negócios importante e preciso de você junto, comigo. Qual o problema nisso?
– Não vim fazer o papel da sua assistente, Simone. Eu não sou a Isadora. Muito menos me desloquei até aqui para ter que ouvir seus supostos conselhos, achismos e teorias, que não me interessam em absolutamente nada. Se você acredita que está me fazendo um favor, engana-se e muito.
– De modo algum, favor nenhum – Simone apoia o celular no colo e cruza os braços também – Isso está previsto em contrato, faz parte do seu trabalho, como disse mais cedo. É seu dever me acompanhar. Em outras palavras, eu mando e você obedece. Simples assim.
– Sério mesmo? Muito curioso ouvir isso, para dizer o mínimo, depois do que aconteceu lá no hotel. Querer vir agora com esse papo de ser minha chefe soa apenas como abuso de poder.
– Não sei do que está falando. Você assinou o contrato há uma semana sabendo exatamente no que estava se metendo. Talvez o seu problema não seja a minha autoridade, mas sim a sua dificuldade em lidar com ela.
– Uau! – Mariana exclama, com sarcasmo – É impressionante o seu esforço para se desviar de qualquer coisa que ameace a sua tal narrativa. Bem que você falou que isso era mais importante que a verdade.
– Não estou desviando de nada, realmente não sei do que está falando. Mas gostaria de te lembrar que trabalho é trabalho. Se não gosta de obedecer ordens, deveria ter considerado isso antes de aceitar o emprego.
– Deveria mesmo... – Mariana retruca, rendida. Aspirou o remédio de asma porque sentiu que regular a própria respiração era o máximo de controle que tinha naquele momento.
– Fique à vontade para pensar o que quiser agora – Simone dá de ombros, como se a conversa já não a interessasse mais – Só não se esqueça de que somos uma equipe e você está na TechFuture para somar, não para me questionar.
– Você realmente acredita que eu vou aceitar os seus caprichos em silêncio? Eu sei que não sou apenas uma ferramenta de trabalho para você.
– Aí é que se engana. Nada disso é pessoal, minha cara – Simone rebate, com uma calma irritante – São apenas negócios. É assim que as coisas funcionam no meu mundo.
– Não sei se quero me submeter a esse tipo de dinâmica – Mariana resmunga, com a voz extremamente baixa – Não me encaixo nesse seu mundo.
– Eu não estou te pedindo nada, apenas para que cumpra a sua função – ela encosta o celular no ouvido para escutar um áudio que acabara de chegar, como se Mariana não fosse mais parte da conversa ou não tivesse mais tanta importância. Só depois de alguns segundos é que voltou a falar, arrotando arrogância – Claro que isso não te impede de querer me desafiar, mas de antemão aviso que esta não é uma escolha inteligente.
Mariana vira os olhos no escuro, zangada, irritada e cansada. Manteve-se em silêncio, com os braços cruzados e a mandíbula tensa, sentindo a frustração misturar-se com a rinite, que a fez espirrar assim que o carro parou e elas desembarcaram.
O hotel escolhido por Simone ficava às margens do Lago Paranoá e combinava design contemporâneo com elementos da arquitetura modernista de Brasília, todo revestido de vidros espelhados. A fachada tinha linhas retas e formas geométricas, típicas do estilo da cidade. A entrada principal contava com um hall amplo e luxuoso, e a iluminação suave realçava os detalhes arquitetônicos, conferindo ao local uma aparência muito sofisticada. Chiquérrimo, fez Mariana se perguntar qual seria o valor da diária durante o check-in.
– Nos encontramos em 20 minutos aqui no saguão? – Simone pergunta, ao entrarem no elevador, num tom ridiculamente amigável, totalmente falso, como se o atrito da conversa anterior dentro do carro não tivesse existido.
Sua voz era suave, mas carregava a firmeza de quem sabia que jamais seria contrariada. Entregou à Mariana o cartão magnético que servia como chave junto de um sorriso encenado, destacado pela luz do elevador espelhado. A pergunta não deixava espaço para nenhum tipo de negociação; era evidente que não passava de mera formalidade.
Mariana segurou o cartão por reflexo, sentindo o toque de Simone, breve e calculado, na palma de sua mão. O contato, mesmo fugaz, pareceu deixar uma marca invisível em sua pele, um recado implícito de quem estava no comando.
– Em... 20? – ela confirma, espremendo os olhos atrás das lentes dos óculos. A pergunta soou hesitante, com sua mente calculando o pouco tempo que teria para tomar banho e se arrumar. Nem Tatiana, sempre muito prática, costumava se aprontar tão rápido assim.
– Sim, nossos convidados chegarão em meia hora e não quero que eles estejam no restaurante antes de nós. Já deixei a nossa mesa reservada – Simone fala, com a tranquilidade de quem já havia decidido tudo, revelando que a reunião seria ali mesmo, no próprio hotel – Tomaremos um aperitivo enquanto os aguardamos, você e eu – ela complementa, sorrindo para um casal no elevador, como se exibisse um cartão de visita invisível, antes de descer no 17º andar – Esteja pronta.
Mariana suspira assim que a mulher se afasta. Observando sua imagem refletida na porta do elevador fechada, viu seu semblante tenso e cansado, e a camisa amassada após um dia inteiro de trabalho e um voo de quase 2h. O gesto automático e distraído de checar a bombinha de asma no bolso da calça foi apenas um sinal de que aquela noite não seria nada fácil.
O peso do contrato tornou-se imediatamente gigante, do tamanho de uma corrente invisível. Não era apenas a obrigação profissional num momento inoportuno, mas principalmente a presença sufocante de Simone, que conseguia transformar um trabalho interessante num verdadeiro castigo.
A memória do dia em que assinou o documento voltou como um soco na boca do estômago. “Espero que possamos construir um significativo progresso com esta parceria”, Simone disse, num tom inofensivo que na ocasião Mariana interpretou como mera formalidade. Agora, porém, as mesmas palavras revelavam um excesso de segurança que não foi captado anteriormente.
Enquanto o elevador subia, inevitavelmente outra recordação voltou a ecoar em sua mente, ainda pior que a primeira: “deixa ela saber que são duas esposas...”, Carmen havia dito, com uma risadinha maldosa, quando Mariana anunciou que tinha chegado à etapa final do processo seletivo da TechFuture, mesmo encontrando-se pessoalmente com a empresária uma única vez. Ainda que tenha reforçado que sua vida pessoal não entrou em pauta com Simone, que tudo tinha sido estritamente profissional, a implicância da amiga continuou a reverberar de um jeito estranho, gerando um desconforto incômodo, como se ela tivesse deixado escapar uma parte importante daquela conversa.
Na ocasião, Carmen parecia convencida de que o sucesso de Mariana se devia menos à sua competência e mais à sua “lábia irresistível” com as mulheres. A insinuação, que Mariana ignorou solenemente por considerá-la ofensiva, agora ganhava um contorno diferente. Por que não rebateu aquilo na hora? E como ignorou um alerta tão óbvio? Simone era ex dela, afinal, e Carmen conhecia Mariana muito bem. Reconhecer que a amiga tinha razão, que sua contratação talvez tivesse mais a ver com o interesse de Simone do que com sua capacidade profissional, fez tudo parecer pior. Sentiu-se ao mesmo tempo usada e desvalorizada.
O pior era saber que isso não era nenhuma novidade. Pelo contrário, já que por algum motivo ela parecia atrair situações deste tipo. Quando era solteira, acontecia com frequência, provavelmente porque vivia na noite, mas mesmo casada, trancada dentro de casa, as investidas não diminuíram. Na verdade, muitas vezes até se intensificavam quando algumas mulheres viam a aliança dourada em seu dedo, fazendo o adorno parecer um tipo de isca.
Mas agora a situação era diferente. Porque uma coisa era receber cantadas de desconhecidas; outra, completamente diferente, era ter que aceitar Simone ultrapassando seus limites, numa dinâmica tóxica de poder. Se ela ao menos tivesse uma forma de provar o assédio... Mas como faria isso? Era a sua palavra contra a dela, uma empresária poderosa.
Cinicamente, Simone fingiu não saber do que Mariana estava falando, quando ela mencionou sobre o ocorrido mais cedo, em seu quarto de hotel. Mas sim, aconteceu, a mulher propôs que ela traísse não apenas uma, mas duas esposas. “Ninguém precisa saber”, Simone ainda disse, sem um pingo de constrangimento, como se não fosse nada demais. Como se de fato não se importasse mesmo com a verdade.
E a grande questão é que por mais que agora quisesse muito largar o emprego, Mariana entendia que isso era praticamente impossível, mesmo com uma cláusula do contrato podendo ser usada a seu favor, garantindo a rescisão sem pagamento de multa. O problema é que ela sabia que o preço dessa escolha não se limitava apenas à questão legal. Havia uma complicação real que era o risco de não encontrar novos clientes no mercado depois, considerando que Simone faria o possível para difamá-la, caso pedisse demissão só para escapar dela. Mariana tinha que considerar que qualquer desacordo seria pago na forma de portas fechadas, possivelmente para sempre. Este era o verdadeiro poder de Simone Albuquerque Peixoto Gama: sua influência, pronta para ser disparada contra ela.
Ao descer no 23º andar, Mariana encontrou um corredor comprido e perfumado fora do elevador, com um cheiro inconfundível de ostentação. O local era muito mais imponente que o hotel de Bruna, que já era luxuosíssimo. Distraída, lembrou-se de uma viagem de ano novo feita com as esposas e o gato, quando se hospedaram em um hotel de campo, um lugar bem mais simples que aquele. O conforto da memória, com todas as suas imperfeições, parecia agora mais reconfortante que o ambiente brilhante ao seu redor.
Pensar em Percival fez o coração de Mariana ficar pequenininho de saudade. Caminhando até o quarto, se perguntou se por acaso o gato também sentiria sua falta. Desejou que sim, mas logo se arrependeu do pensamento, pois não queria impor nenhum tipo de sofrimento a quem tanto amava. Além disso, sabia que ninguém sentia-se só na agradável companhia de Patrícia e Tatiana.
Desalentada, ao abrir a porta do quarto 2311, Mariana foi imediatamente atraída pela belíssima vista do Lago Paranoá, brilhante, emoldurado por grandes janelas de vidro, que iam do chão até quase até o teto. O céu lá fora estava escuro e as nuvens pareciam flutuar sobre a água, refletindo a luz das bordas da paisagem, enfeitadas de palmeiras e outras árvores tropicais.
Com a testa apoiada na janela, Mariana contempla o cenário, fantasiando como seria se hospedar em um lugar tão bonito com as esposas e as imaginou passeando em volta do Lago, como se não tivessem problemas, nenhuma das três. De repente, enquanto admirava o belíssimo horizonte, o reflexo do vidro bateu nos óculos e por um brevíssimo momento ela teve a certeza de reconhecer Laura andando lá fora. A visão persistiu por um segundo, no máximo, porque ao voltar a se focar o que Mariana viu foram apenas os contornos da paisagem, retorcidos pelas luzes. A psicóloga, se é que estava mesmo lá, se misturou rapidamente entre as árvores antes de desaparecer.
– Gente, como assim? – Mariana exclama, confusa, esfregando os olhos.
A imagem pareceu clara como o dia, embora engolfada nas sombras da noite, especialmente porque Laura era uma mulher enorme e não era muito fácil que passasse despercebida, mesmo no escuro. Engolindo em seco, Mariana sentiu o coração acelerar. Olhou novamente para o local onde pareceu tê-la visto, focando na mesma área, mas o vidro refletia apenas o céu nublado e a paisagem ao longe. Nada mais.
Ela puxa o celular, mas um segundo depois desiste e volta a enfiá-lo no bolso da calça, contrariada. Pensou em mandar uma mensagem para Laura, mas o que falaria, exatamente? “Oi, acabei de te ver lá fora, por acaso você é uma espiã?” foi o que pensou em escrever, porque só isso faria sentido, mas a ideia era tão absurda quanto aceitar que a mulher simplesmente estivesse por ali. As chances de a psicóloga também estar em Brasília naquela noite (e naquele hotel!) eram mínimas, para não dizer nulas.
Afastando-se da janela, Mariana atira os óculos em cima da cama king size e esfrega os olhos com mais força desta vez, buscando afastar a sensação de paranoia. “Talvez tenha sido só a luz... ou o reflexo. Ou eu que estou cansada e vendo coisas”, pensou, na tentativa sincera de se convencer. Só não largou tudo e desceu correndo para procurar Laura no saguão do hotel porque tinha pouco tempo para se arrumar. Dezesseis ridículos minutos, para ser exata – e ela sabia que Simone não toleraria atrasos.
A possibilidade de perder a hora para o evento de trabalho a fez se apressar descalça até o espaçoso banheiro, já que a última coisa que queria era se desentender e se desagastar ainda mais com a chata da chefe. O pouco tempo, porém, não a impediu de enviar para Tatiana uma foto sua despida diante do enorme espelho, bem provocativa, com a legenda: “esse lugar é incrível, olha que espelho bonito”, junto de um emoji com língua de fora. Ao abrir o chuveiro, desfez o sorriso porque não conseguiu evitar a preocupação: será que aquela mensagem também ficaria sem resposta?
Tatiana não era como Patrícia, vivia com o celular a tiracolo e raramente a deixava sem resposta. Quando acontecia de deixá-la no vácuo era devido a questões meramente técnicas, tipo ficar sem bateria, por exemplo, ou como na vez em que foi assaltada e levaram seu aparelho embora, perto do Natal. Longe de ser insensível, Mariana compreendia que no momento a situação em casa era delicada e a esposa provavelmente estava ocupada consolando Patrícia no restaurante, mas enquanto se lavava com pressa sentindo o jato forte da ducha morna massagear as costas, considerou que Tatiana pudesse, talvez, quem sabe, estar fugindo dela por algum motivo. Teria a ver com o tal encontro com o ex-namoradinho ou seria por algo relacionado ao curso de desenho, que ela inclusive havia faltado?
Puxando na memória, recordou-se que a última vez que se falaram foi um pouco antes de a esposa se encontrar com Miguel. Na mensagem, breve, Tatiana escreveu que estava saindo da escola e que mais tarde se falariam, antes da aula. Depois disso, no entanto, não disse mais nada nem respondeu quando Mariana perguntou se tudo tinha corrido bem. Ou seja, o que quer que aconteceu foi durante o café ou logo após isso. Algo possivelmente sério porque a impediu até de atender sua ligação, quando Mariana insistiu no contato, assim que desembarcou em Brasília.
Em meio às milhares de suposições que encharcaram sua cabeça de maneira instantânea, apegou-se inicialmente a três: Miguel fez algo, outra pessoa fez algo ou Tatiana fez algo. Talvez pudesse ter sido vítima de uma dor de barriga forte, ou um surto de estresse, ou uma crise de ansiedade, que sempre a faziam se recolher por algumas horas.
Esfregando os braços com uma força exagerada, tentou afastar o pensamento enevoado. Era ridículo se preocupar com pressupostos, sabia. Primeiro porque se fosse algo realmente sério a própria mulher teria falado, ou Patrícia, segundo que havia outros assuntos para se ocupar. Problemas reais.
– Preciso parar de pensar nisso – Mariana fala, com a voz ecoando nas paredes do banheiro de piso frio revestido de mármore claro. Focou-se na água que escorria pelos pés, na tentativa de se ancorar e retomar o autocontrole.
Mesmo assim, a inquietação persistiu por mais alguns segundos, alimentada pelo silêncio externo, pelo autoboicote e pelo excesso de ruído em sua mente. Tatiana faltou ao curso, o que não era comum; Mariana sabia que a mulher levava essas aulas a sério, ela e Patrícia tinham até discutido por causa disso, mais de uma vez. E refletir a respeito fez com que um novo pensamento atravessasse seu raciocínio como um raio: e se Tatiana tivesse faltado no curso porque algo lá a incomodava? Ou alguém? O que poderia ser mais desconfortável do que desenhar o ex completamente nu? Quem era mesmo que tinha assumido as aulas depois do caso de assédio envolvendo o professor e a modelo da primeira aula?
Mariana sacode a cabeça, contrariada, afastando o turbilhão de pensamentos mais uma vez. “Bobagem, a Tatiana só foi apoiar a Patrícia, totalmente normal, olha tudo o que está acontecendo”, pensou, terminando de se enxaguar. “Fica suave, gata. A Tati vai responder. Ela sempre responde”, murmurou, como se a afirmação pudesse transformar aquilo numa verdade absoluta.
Embora o barulho do chuveiro abafasse os sons à sua volta, Mariana desligou a água às pressas ao ouvir o telefone vibrar em cima da pia. Com o cabelo pingando, se enrolou na toalha felpuda e secou a mão antes de pegar o celular. Porém, em meio às centenas de novas notificações, não encontrou nenhuma mensagem de Tatiana piscando na tela.
As mensagens, em sua maioria, eram de antigos contatinhos, que enviavam figurinhas de incentivo e frases otimistas de apoio. Havia também um áudio de Nicole perguntando assuntos de trabalho e um e-mail de Matilde, dando satisfação sobre um projeto que no momento Mariana não tinha cabeça para pensar.
Ela desliga o aparelho e suspira, aborrecida com sua incapacidade de arrancar uma mensagem de Tatiana apenas com a força do pensamento. Espirrando, esfregou o rosto com a toalha enquanto a mente dava cambalhotas, envolta em mil e uma preocupações. Com passos hesitantes, foi até a mala no quarto, abrindo-a mais por reflexo do que por vontade.
Frustrada, jogou o telefone em cima da cama antes de se arrumar, buscando se concentrar novamente no trabalho. Ainda não sabia quem ou o que envolvia a tal reunião de logo mais, aparentemente marcada às pressas. Afinal, caso fosse um encontro previamente planejado ela teria sido avisada com antecedência sobre a necessidade da viagem, certo? Ou não?
Por mais de uma vez ao longo da semana pareceu que Simone queria apenas evitar que ela voltasse para casa e comunicar em cima da hora sobre um evento que duraria o final de semana todo pareceu apenas mais um de seus muitos caprichos. Ou era isso ou tratava-se realmente de uma reunião de emergência. Qualquer que fosse o motivo, Mariana descobriria dentro de três minutos.
Simone estava literalmente de olho nela, o que a fez optar por um traje sóbrio para aquela noite. Vestiu primeiro uma calça de alfaiataria preta, depois uma camisa social de manga comprida, da mesma cor. O visual monocromático foi complementado com sapatos Oxford pretos bem engraxados e um relógio discreto no pulso direito. Para um toque extra de estilo, acrescentou suspensórios finos de couro, ajustados sobre os ombros antes de sair. Não perdeu tempo com maquiagem e penteou o cabelo molhado com as mãos.
Enquanto aguardava o elevador, se observou por um instante. Seu reflexo na porta dourada mostrava uma mulher decidida, impecável, mas por dentro ainda havia uma pontada de inquietação que transparecia em seu semblante. “Foco no trabalho, garota” resmungou para si mesma, verificando o celular mais uma vez. Tatiana ainda não havia respondido.
Ao chegar no saguão, Mariana logo avistou Simone, sentada elegantemente no bar, na entrada do restaurante. Ela empunhava uma taça de drinque em uma das mãos e um charuto apagado na outra. Parecia poderosa a distância, absolutamente segura, acostumada a ser paparicada e ter todos os seus pedidos prontamente atendidos, por quem quer que fosse, onde quer que estivesse.
Ela ergueu os olhos assim que percebeu Mariana se aproximando e um sorriso que beirava a provocação se formou em seus lábios perfeitamente pintados de vermelho. O batom combinava com os detalhes de seus brincos, pequenos e discretos, e com o floreado do lenço que trazia perto do peito, único adorno da vestimenta elegante e formal. Sua aparência deixava claro que ela não precisava de excessos para ser notada.
Ao ficarem cara a cara, Simone prendeu o charuto apagado entre os dedos com um gesto calculado, quase teatral, e indicou com a cabeça a cadeira ao seu lado. Pareceu sinceramente satisfeita por vê-la ali, ainda que não fizesse o tipo que precisasse de companhia para se sentir validada.
– Finalmente. Achei que fosse me deixar aqui sozinha para enfrentar os tubarões – Simone comenta, num tom de boa noite carregado da tensão passivo-agressiva que ela dominava tão bem.
A mulher não se preocupou em nomear os tubarões em questão, mas naquele momento nem precisou. Sua postura exalava uma autoconfiança como se estivesse prestes a nadar entre eles sabendo que os deixaria à deriva em suas próprias águas. Como se fosse um tipo de sereia perigosa que encanta mesmo sem precisar cantar, dotada de uma inteligência hipnotizante.
Dentro de instantes Mariana descobriria que os convidados daquela noite eram grandes, mas Simone sabia ser ainda maior – por isso a escolha por aquele local, tão imponente. O requintado restaurante não era apenas um espaço luxuoso, mas também um território que transmitia poder e prestígio.
O hotel falava antes mesmo que ela precisasse abrir a boca, comunicando sua habilidade e o privilégio de poder circular entre os membros da elite, hospedando-se em espaços reservados para poucos. Escolher um lugar assim servia para impressionar os convidados e também para influenciá-los. Com a estratégia certa, servia até mesmo para dominá-los.
Simone sabia que a imponência daquele restaurante, com garçons impecavelmente bem treinados e uma carta de vinhos que custava mais que o salário anual de muita gente, criava uma atmosfera que estimulava a submissão ao seu poder, implícito em meio a tanta ostentação e riqueza. Não se tratava de uma escolha por acaso, já que o cenário servia para a dominação psicológica.
O charuto apagado entre seus dedos servia como uma declaração, uma verdadeira afronta à masculinidade. Um símbolo de poder que a mulher subvertia com a naturalidade de quem sabe exatamente onde pisa (ou em quem pisa, a depender do caso). O gesto de mantê-lo à mão, mesmo sem acendê-lo, transmitia uma mensagem silenciosa, um tipo de aviso para qualquer um que ousasse subestimá-la.
Parecia, também, que ela já estava pronta para comemorar a vitória daquela reunião. Muito mais que mero acessório, o charuto era uma demonstração de que Simone nitidamente ia além de simplesmente jogar em campos dominados por homens; ela os dominava.
Mariana hesitou antes de sentar, sentindo o olhar avaliador da empresária passar por ela de cima a baixo, analisando-a. Simone se deteve em seu cabelo despenteado e cruzou as pernas devagar, cerrando os olhos ao final da inspeção. O corte bem feito de seu terninho cinza-escuro revelava uma confiança que beirava a arrogância e ao se mover ela deixou à mostra um sapato scarpin de bico fino que combinava perfeitamente com seu traje formal e ao mesmo tempo muito elegante. Pareceu ter contado com minutos extras para se arrumar, como se até o tempo de alguma maneira fosse seu súdito e pudesse favorecê-la. Estava simplesmente belíssima.
– O quê? Cheguei um minuto adiantada – Mariana rebate, consultando o relógio antes de se render e sentar ao lado dela. Quis dizer muito mais coisa, mas se conteve e apoiou seu celular sobre o balcão, junto da bombinha de asma e um caderninho de notas com capa de couro marrom, desgastada pelo tempo. Fez um gesto para o barman e pediu um drinque igual ao de Simone, sem nem saber o que a mulher estava bebendo.
Simone arqueia uma sobrancelha, mas não diz nada de imediato. Apenas a observou com um brilho divertido nos olhos enquanto o barman preparava o coquetel, com uma dose generosa de gelo. Quando o copo foi colocado diante de Mariana alguns segundos depois, a empresária inclinou levemente a cabeça, como se aguardasse que ela dissesse algo.
– Não sabia que gostava de Negroni – a mulher então comenta, diante do silêncio, levando o próprio copo aos lábios. Sua voz soou amigável e casual, mas havia algo no tom que parecia querer testá-la. Ou provocá-la.
Mariana levanta os ombros, tentando parecer indiferente e sem deixar transparecer que aquela não era nem de longe sua bebida favorita; jamais seria sua escolha – naquela ou em qualquer outra ocasião. Pacientemente, girou a taça antes de provar e não demonstrou incômodo com o gosto forte e amargo do drinque que amarrou sua boca.
– Eu gosto de muita coisa que você desconhece. Além disso... – ela beberica mais um golinho, curto – Achei que poderia ser interessante descobrir o que te agrada... o que te embriaga – Mariana responde, estalando a língua antes de apoiar o copo de volta no balcão, com um movimento controlado.
De propósito, não quis encará-la enquanto falava, mas ainda assim percebeu Simone se inclinando ligeiramente em sua direção. Pareceu uma predadora aproximando-se sorrateiramente da presa diante de um ataque.
– Engraçadinha – a empresária retruca, baixinho, com um sorriso quase imperceptível, brincando com o charuto entre os dedos, como se quisesse chamar a atenção para as suas mãos. Manteve os olhos fixos em Mariana, parecendo avaliar algo muito além daquela conversa superficial ou como se tentasse identificar o que não havia sido dito – Bom saber que esteja disposta a me agradar. Você costuma ser sempre tão... flexível?
Mariana sente o desconforto se aproximando, com a frase dita como se fosse de cunho sexual. Ao invés de responder, puxou a bombinha de asma e aspirou o remédio, se concentrando em controlar a própria postura, tentando ao máximo evitar que a empresária percebesse qualquer sinal de desconforto ou insegurança. Em silêncio, calmamente tomou mais um gole de seu drinque, como se estivesse plena e no total controle da situação. Não soube o que dizer, já que a última coisa que queria era dar a entender que havia entre as duas algum tipo de cumplicidade ou intimidade.
O silêncio desconfortável se estendeu por um momento, com a tensão pairando no ar. Simone, percebendo que sua provocação não tinha surtido o efeito desejado, abaixou a taça com um sorriso forçado e continuou a falar.
– Bem, só espero que essa flexibilidade toda possa ser útil quando estivermos lidando com os nossos convidados desta noite. Não podemos desperdiçar tamanho talento.
Mariana quis perguntar quem eram as pessoas com quem Simone se encontraria, que tipo de encontro era aquele e por que uma reunião de negócios aconteceria em um lugar tão informal quanto um restaurante de um hotel luxuoso, em plena sexta-feira à noite e numa cidade como Brasília. Porém, enquanto as perguntas se formavam em sua mente, percebeu que, em meio às inúmeras notificações que faziam a tela de seu celular piscar sem parar em cima do balcão do bar, apareceu aquela que ela mais queria. Tatiana finalmente havia respondido sua mensagem.
“O espelho é lindo e você é muito gostosa”, a mulher escreveu. “Desculpa a demora, tive uma crise mais cedo e O Bistrô está uma loucura, como deve imaginar. Queria muito estar aí com você, gatinha”, Tatiana disse, finalizando a mensagem com um coração azul, como sempre fazia – e Patrícia copiava.
O mundo era um lugar muitas vezes horrível, as pessoas realmente eram cruéis e adoravam um espetáculo, pouco se importando com a verdade, Mariana trabalhava para uma mulher controladora, tóxica e opressora, além de assediadora, mas tudo ficou mais leve no instante em que não se sentiu mais tão só. No momento em que percebeu que suas preocupações mais recentes não passavam de tolice disfarçada de insegurança, todo o cenário se transformou e ela ficou mais até forte.
Isso a fez engolir os questionamentos com mais um gole da bebida azeda, sentindo o gin rasgar a garganta, misturado com vermute tinto e Campari gelado. Quaisquer que fossem suas dúvidas, em todo caso, logo seriam todas devidamente sanadas.
– Doutora Simone Albuquerque, com licença – um garçom fala, de maneira educada e polida, ao se aproximar devagar. Parecia um modelo de catálogo de roupa, com quase dois metros de altura e o queixo protuberante – A sua mesa está pronta, gostaria de me acompanhar?
Simone acena de maneira quase imperceptível para o funcionário e apoia a taça cheia sobre o balcão, antes de se levantar. Pareceu ser um hábito não terminar de consumir o que bebia. Sem questionar, Mariana a copia e também larga o drinque para trás, levando com ela apenas seus pertences.
O celular em sua mão vibrou sete vezes do bar até os fundos do restaurante, mas nenhuma notificação importava mais. Quem ela mais queria que entrasse em contato já tinha feito isso e saber que Tatiana estava bem era tão importante quanto constatar que tudo entre elas estava bem também.
Embora se considerasse desapegada, em sua opinião Tatiana sabia ser muito mais. Isso não colocava a relação necessariamente em risco, mas era um lembrete de que ninguém pertencia a ninguém. “Hoje estamos bem, mas amanhã quem sabe?”, a mulher comentou, certa vez. “Por sorte, ninguém morre de divórcio”, complementou. Desde então, Mariana passou a ter medo de perder o que tinha com a esposa, que só era do jeito que era porque Patrícia estava no meio da equação. Até entrar para um trisal, antes de se casar com aquelas mulheres, Mariana acreditava estar fadada a ser sozinha na vida. Mas tudo mudou ao conhecê-las e agora sentia-se confortável com seu estado civil. Tinha receio de que as coisas de repente mudassem.
O restaurante era feito de vidro, assim como o restante do hotel, e a paisagem do lado externo se misturava de maneira graciosa com a decoração iluminada do interior, fina e requintada, destacada por grandes lustres de cristal espalhados pelo teto escuro. As mesas estavam todas vazias e mesmo assim o garçom as conduziu para a parte mais reservada do salão, no fundo, como se privacidade fosse um desejo de Simone, parte de seu pedido para aquela noite.
A empresária caminhou com uma classe e elegância imperturbáveis, deslizando graciosamente enquanto avançava como se cada passo fosse dado unicamente no intuito de demonstrar seu poder e controle, inclusive sobre o ambiente. Mariana a seguiu em completo silêncio, observando a maneira como a mulher se movia com confiança, sem sequer olhar para trás. O tempo todo demonstrou estar ciente de que ela a acompanhava, de maneira quase adestrada, domesticada, como se fosse sua cachorrinha. Isso a irritou, mas não a impediu de continuar andando.
Quando chegaram à mesa, a última próxima à janela, o garçom puxou a cadeira estofada para Simone, que se sentou de um jeito afetado, com um excesso da fineza que fazia questão de transparecer em seus gestos. Após se acomodar, fez um aceno discreto com a mão para que Mariana se sentasse na cadeira à sua frente.
Sem que Simone dissesse absolutamente nada, o garçom retornou segundos depois, todo prestativo em seu uniforme engomado, e colocou à frente dela outro drinque, idêntico ao anterior, junto de um cinzeiro de vidro. Ele pareceu adivinhar o que a empresária queria ou apenas deixou claro que Simone era uma cliente especial, com um gosto particular para bebidas. Provavelmente a segunda opção, já que em silêncio o garçom a liberou para fumar no local, mesmo sendo proibido por lei federal.
– Bom, para esta noite eu tenho uma missão especial para você – Simone fala, quando voltam a ficar a sós. Ela a encarou com um olhar divertido, como se pudesse prever a reação de Mariana – O assessor de um dos deputados que participará da reunião está do nosso lado. Ele vai trazer uma pasta de documentos que eu preciso que você leve até um lugar seguro, longe daqui. Não confio na segurança do hotel e são papéis muito importantes, perdê-los está totalmente fora de cogitação. Fui clara?
Mariana quis dizer que sim, porque as instruções eram relativamente simples: deveria pegar os documentos de um local e levar para outro. Mesmo assim tinha tantas dúvidas! Então os tubarões eram políticos? Quem estava envolvido nisso? Havia lados, como numa batalha? Quem eram os inimigos? O assessor em questão era um traidor ou o deputado que ele representava também era aliado? Simone a levou até Brasília apenas para servir de babá de documento? O que havia nesses papéis? Será que a mulher realmente considerava isso uma “missão especial”? Estaria correndo algum risco ao se deslocar carregando os documentos?
– Sim, claríssima – Mariana responde, engolindo momentaneamente suas perguntas. Observou o garçom se aproximar novamente todo servil, só para acender o charuto da madame. Voltou a falar depois que ele se afastou, mais uma vez em completo silêncio como se fosse invisível – Posso perguntar quem são esses deputados? Ou o que são esses documentos, tão importantes?
– Quanto menos você souber, melhor será. Acredite – Simone responde, com o rosto enevoado. A fumaça do charuto criou à sua volta uma espécie de redoma que mantinha Mariana afastada também fisicamente – Eu confio em você para que o sigilo sobre este assunto seja mantido.
Mariana segura um suspiro impaciente. Como ela divulgaria algo que desconhecia? A resposta de Simone parecia ensaiada para mantê-la no escuro, mas potente o suficiente para deixar claro que ela não perdoaria nenhum tipo de falha.
– E quanto ao lugar? Para onde devo levar esses papéis? – Mariana pergunta, tentando ser prática.
– Vou te passar o endereço quando a pasta estiver em suas mãos, dentro de... meio minuto – ela consulta as horas no relógio de pulso, demonstrando ter controle sobre tudo – É melhor você ir até lá de táxi, vai ser mais rápido... – Simone faz uma pausa, saboreando o charuto antes de completar a frase – ...e sem dúvida será mais seguro do que ir de Uber.
Seguro para quem? Mariana quis saber, mas achou melhor não perguntar porque tudo indicava que Simone se referia a ela.
– Tá, e esse assessor? Eu só… pego os documentos e saio? O que devo dizer, caso ele pergunte algo? – ela então questiona, vendo Simone dar uma risada seca, como se a pergunta fosse ingênua demais para o momento.
– Ele sabe o que fazer, Mariana. Vai te entregar os papéis e só. Não precisa conversar nem perguntar nada. O Pablo é um muito discreto, até poderia pedir para que ele mesmo levasse até lá, mas não quero que fique com essa responsabilidade.
– Claro – Mariana resmunga. Ela que fosse até sabe-se lá onde numa cidade que mal conhecia.
Simone estava estrategicamente sentada de frente para o salão e viu primeiro quando Pablo chegou. Mariana soube que ele havia chegado porque seguiu o olhar da empresária.
O assessor devia ter por volta de 40 anos, era baixinho, estava de terno sem gravata, tinha um cheiro forte de nicotina e cumprimentou Simone apenas com um olhar breve, meio acanhado. No mesmo instante que Mariana pegou o envelope pardo bem lacrado de suas mãos, sentiu o celular vibrar dentro do bolso, com o endereço enviado por Simone via WhatsApp. O prédio comercial para onde deveria ir ficava na Asa Norte, bem distante de onde ela se encontrava no momento.
Tão rápido quanto chegou, Pablo saiu, sem dizer nem uma única palavra. Mas Mariana não o acompanhou porque ao se virar em sua direção e ameaçar ir junto com ele, teve a sensação de ver Laura. Mais uma vez. Só que agora de maneira muito mais nítida.
Confusa, Mariana pisca, tentando se convencer de que estava vendo coisas que não existiam, de novo. Mas agora, ao olhar novamente, a figura não desapareceu de imediato. Era ela, sem sombra de dúvida, embora a psicóloga parecesse diferente, quase disfarçada, usando o uniforme do restaurante, se fazendo de garçonete.
– O que está esperando? – Simone pergunta, num tom impaciente, ao vê-la parada, sem se mexer. Pareceu incomodada não apenas com o fato de Mariana ainda estar ali, parecendo uma estátua, mas também com a possibilidade de ela esbarrar com algum de seus convidados, prestes a chegarem.
– Nada, já estou indo – Mariana responde, olhando rápido para a empresária, que apagou o charuto num gesto firme, um tanto irritado. Ao voltar o foco para onde pareceu ter visto Laura, a mulher já não estava mais lá.
Será que deveria alertar Simone sobre a presença de Laura? Mas e se estivesse enganada? Que provas tinha de que a mulher estava realmente lá? Sem dizer nada, Mariana se afasta e deixa o restaurante com a cabeça tumultuada por milhares de pensamentos. Sem dúvida havia algo acontecendo e Laura certamente era parte daquilo. Ela só não sabia ainda de qual “lado” a psicóloga estava.
Mariana não sabia o que havia entre Laura e a situação envolvendo Simone, mas sua presença não podia ser ignorada de forma alguma. Por isso, sua missão deixou de ser simplesmente uma inocente guarda de documentos e se transformou em algo muito maior. O problema é que sua intuição lhe dizia que a resposta estava ali, no hotel e na tal reunião que infelizmente não iria acompanhar.
Ela atravessou o saguão com passos firmes e decididos, e ao chegar lá fora espirrou assim que saiu do ar-condicionado. Dali conseguia ver parte do salão em que Simone se encontrava, embora não pudesse vê-la diretamente. Mas Mariana notou quando um grupo de políticos se dirigiu junto até onde a empresária estava sentada e reconheceu alguns dos parlamentares. Um deles era o líder da bancada evangélica no Congresso e recentemente havia sido apontado como participante de um esquema de corrupção envolvendo dinheiro público, do chamado “orçamento secreto”. Seu rosto estampou todos os jornais por vários dias, era impossível não reconhecê-lo.
Junto dele estava um deputado polêmico que sempre era notícia devido a declarações machistas e homofóbicas, e outro que defendia abertamente a liberação das armas, inclusive para menores de idade. Ou seja, representavam o puro suco do que havia de pior no parlamento – sem contar nos outros, que Mariana não reconheceu.
Qual seria a ligação de Simone com aqueles homens? Será que ela fazia parte de algum escândalo e por isso não quis que Mariana participasse da reunião? Por acaso Laura saberia com quem ou o que Simone estava envolvida? E, mais importante: o que continha naqueles documentos?
Com o envelope preso firmemente nas mãos, Mariana embarcou no táxi, acionado por um funcionário prestativo do hotel. O carro tinha cheiro de chulé e o motorista ouvia uma pregação em que o pastor tentava expulsar o diabo de algum lugar ou de alguém, não ficou claro. Ele abaixou o volume ao ouvir o suspiro pesado de Mariana, que se frustrou ao perceber como a noite conseguia ficar cada vez pior.
Ela tinha motivos particulares para não gostar de pessoas envolvidas com religião, já que nasceu numa família de Testemunhas de Jeová. Durante muitos anos de sua vida, antes que conquistasse a própria independência, sentiu na pele a intolerância provocada por gente que se diz de bem. Sua infância e a adolescência foram marcadas por restrições que, na época, pareciam incontestáveis. Tudo era proibido: festas de aniversário, datas comemorativas, amizades com colegas da escola que não frequentavam o Salão... O peso do “nós contra eles” a isolava do resto do mundo. E, ao deixar a religião e a casa dos pais, e ser oficialmente desassociada, sofrendo uma espécie de exílio social, viu criar-se um abismo que até hoje a separava da família. Seus pais passaram a tratá-la como se ela nem existisse mais.
Agora, toda vez que ouvia discursos religiosos, principalmente aqueles que justificavam algum tipo de preconceito ou intolerância, Mariana sentia uma mistura de raiva e desprezo. E era exatamente isso que cozinhava dentro dela depois que viu quem eram os tubarões com quem Simone nadava.
– Achei até que era brincadeira, quando ligaram lá no ponto de táxi pedindo um carro – o motorista fala, trazendo-a de volta ao presente, olhando para ela pelo espelho retrovisor. Ele era careca no topo da cabeça, mas compensava a falta de cabelo com uma barba bem espessa que tampava parte de sua gravata.
– Brincadeira? Como assim? – Mariana pergunta, desviando os olhos da janela diante do comentário. Estava cabreira e tudo na cidade começou a parecer muito suspeito de uma hora para outra.
– Ah, sei lá, dona... Brasília vira quase um deserto quando chega sexta-feira. Fica fácil saber quem está circulando, ainda mais perto desses hotéis maiores, de gente... graúda – ele faz um gesto com a mão, se referindo a dinheiro, e dá uma risada curta, tentando ser amigável – Imaginei que hoje já nem houvesse mais hóspedes. Ainda mais querendo ir para a Asa Norte, um lugar tão, sei lá, vazio nesse horário.
Mariana aperta os lábios e desvia o olhar para a janela de novo, tentando disfarçar o incômodo. Como assim, era fácil saber quem está circulando? Por acaso ele sabia mais do que parecia? Ou só estava puxando papo e comentando o óbvio?
Em uma fração de segundos, se arrependeu de ter passado o endereço de seu destino para o funcionário do hotel, quando pediu um táxi. Sentiu-se muito amadora por isso! Caso sua vida fosse uma história de terror ela com certeza seria aquele tipo de personagem que desaparece logo no começo, vítima de suas próprias decisões equivocadas (para não chamar de burras).
– Pois é, hoje está bem tranquilo mesmo – Mariana responde, de forma breve, esperando que o assunto acabasse ali. Sem perceber, ajustou o envelope no colo, como se os documentos pudessem blindá-la de qualquer ameaça.
– A senhora trabalha no Congresso, é? – o motorista indaga, olhando mais uma vez para ela pelo retrovisor.
– Não, eu... estou só de passagem.
– Ah, sim, imaginei – o motorista rebate, voltando a atenção para o trânsito – Porque, olha, a imprensa está toda de olho no que esse pessoal anda aprontando, eles saem daqui juntinhos, costumam ir embora já na quinta-feira. E é uma notícia pior que a outra, né? – ele diz, emendando os assuntos, sem que Mariana interagisse – É corrupção, é uma brigaiada danada... É bom que pelo menos a internet distrai a gente. Você viu a história lá daquele influencer envolvido em suborno e falsificação? Não? Aquele tal de Rodolfo Lemos, participou ano passado do Big Brother, sabe? Um com a cara redonda, enfim. Jogaram na internet umas imagens captadas sem que ele soubesse que estava sendo gravado, num quarto de hotel, e ninguém imaginava que o sujeito burlasse o sistema. Deu um burburinho danado no fim de semana, até abafou o caso daquela chef bonitona, qual o nome dela? Vivi... Vivi alguma coisa.
– Mantovani – Mariana fala.
– Isso, essa daí. A história tinha morrido, aí vem a “chef do copia e cola” e reacende o caso, partindo para cima do Guto Morais, umas horas atrás. A mulher quis bater nele, vê se pode – o motorista ri até tossir – Eu já transportei esse jornalista uma vez, o cara é desse tamaninho – ele faz um gesto como se Guto não passasse da cintura – O pessoal já estava focado em outro assunto, mas a “mulher do suflê” quis voltar o foco para ela mais uma vez – o homem ri de novo, gostosamente – Eu me divirto porque me distrai, é tipo acompanhar uma novela, só que dos dias atuais e com personagens reais.
– Mas você acha mesmo que ela copiou a tal receita? – Mariana pergunta, se fazendo totalmente de desentendida, só para ver até onde ia a comoção das pessoas com relação ao assunto – Essa, que você chama de...
– “Rainha do plágio gourmet” – o taxista ri, interrompendo-a – A tal “receita polêmica”, veja só, é um simples suflê de batata, mas elas conseguiram transformar tudo num enorme espetáculo.
– “Elas”? Achei que o tal do Guto é que tinha inventado essa história toda.
– Não, o Guto só divulgou. As protagonistas são as cozinheiras – o motorista olha pra ela por cima do ombro, como se Mariana tivesse falado a coisa mais absurda possível.
– Ah, sim – Mariana pigarreia, ainda se fingindo de boba – Mas o que ela ganharia com isso, seu...?
– Edmilson.
– Seu Edmilson. O que você acha que a tal da Patrícia ganharia copiando a receita de outra pessoa? – Mariana insiste, toda polida.
– Ah, audiência, talvez? Não sei, ibope? Chame do que quiser, hoje em dia as pessoas estão tão carentes que até inventam mentira, só para aparecer, ganhar status, ter mais seguidores, um palco para chamar a atenção das pessoas. Eu acho que pode até ser estratégia de marketing. Sabe? Ela pode ter inventado tudo isso só para ganhar clientes para o restaurante dela. Ouvi dizer que o lugar é horrível.
Mariana se cala, aborrecida, constatando que Simone infelizmente tinha razão. No geral, as pessoas estavam pouco se lixando para a verdade. O que elas queriam mesmo era acompanhar os escândalos como se fosse um tipo atravessado de reality show, um mero entretenimento que elegia pessoas do mundo real a protagonistas de histórias que as distraíam de suas vidas cheias de problemas e questões mal resolvidas.
Pensar na chefe quase desencadeou novamente todos os pensamentos relacionados à Simone, e à Laura, mas Mariana conseguiu barrá-los por um momento porque sua prioridade mental era a esposa e os problemas que a mulher enfrentava. Assim como o taxista, muitas outras pessoas se divertiam com os dilemas que pesavam sobre Patrícia neste instante e que estavam longe de se encerrar. A acusação ridícula de plágio lançava dúvidas sobre sua integridade e o negócio que ela havia construído e alimentado ao longo dos últimos anos. Tudo por causa da droga de um suflê, seu Edmilson, sim! Uma receita simples que Patrícia aprendeu com a avó materna quando era criança e que agora trazia o passado de volta de uma forma absurda, via fake news.
O envelope em seu colo a fez se lembrar que havia outros problemas que também mereciam sua atenção. Simone não apenas a impediu de voltar para casa naquela sexta como também a havia mandado para bem longe de onde estava hospedada, tramando junto de políticos safados num restaurante de luxo. Esses sim mereciam ser acompanhados de perto pela população!
A raiva acompanhou Mariana até seu destino, e depois de volta até o hotel, algum tempo mais tarde. E o sentimento ficou ainda maior depois que ela descobriu, junto com os demais brasileiros, pela internet, qual era o esquema de Simone e o que realmente havia nos documentos que transportou naquela noite.
No caso, não havia nada. Simone a fez atravessar a cidade com papéis em branco no único intuito de testar sua lealdade e afastá-la de onde ela estava, nadando com tubarões e sendo filmada sem perceber.
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