TPM - Capítulo 10: A exposição
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Tatiana acordou bem antes que o despertador tocasse. Há várias noites não dormia bem, como se a falta de Mariana no meio do colchão a impedisse de descansar, trazendo à tona madrugada adentro questões que ela definitivamente não queria ter que pensar. Ou como se os problemas que faziam Patrícia se revirar o tempo todo na cama também se abatessem sobre ela, impedindo-a de relaxar.
Ao colocar os pés no chão, percebeu-se exausta, vítima de um sono agitado e pouco reparador. O quarto ainda estava escuro e o silêncio da casa amplificava o turbilhão de pensamentos em sua cabeça.
– Quarta-feira vou rumar lá para Campinas, não aguento mais não conseguir dormir... – resmunga, falando sozinha, esfregando os olhos com força.
– Se a Mari estiver por lá, me chama que eu vou com você – Patrícia responde, demonstrando tê-la escutado. Sentou-se na cama e se espreguiçou de maneira ruidosa – Noite difícil?
– Dificílima, sim – Tatiana vira-se para um beijo rápido, de bom dia – Não vejo a hora disso tudo acabar...
– Me diz o que anda te deixando tão preocupada, amor... Eu posso te ajudar.
– Você já tem tanta coisa na cabeça, gata... Deixa para lá, não é nada demais – ela mente, evitando encará-la.
Sem muita coragem para enfrentar o dia, Tatiana deixa a cabeça cair para trás e encara o teto. De relance, lembrou-se do conselho que Elen havia dado na última conversa entre elas: compartilhar com a mulher as questões que a afligiam. Mas Tatiana não achava justo dividir o que a sobrecarregava. Primeiro porque Patrícia era muito ciumenta e falar sobre Elen só traria mais desgaste. Segundo porque sabia que a esposa já tinha muitas preocupações – a fake news, O Bistrô, a distância de Mariana, Vivi Mantovani. Jogar mais peso em cima dela parecia errado e egoísta. Por isso, nem mencionou sobre os problemas que enfrentava na escola e que só pioravam a cada dia, somando-se a todo o resto.
– Sinceramente, acredito que a questão do restaurante já esteja resolvida. Ou pelo menos devidamente encaminhada – Patrícia diz, levantando-se num pulo, alheia aos pensamentos de Tatiana. Abriu a cortina, revelando um céu ainda escuro lá fora e o bairro inteiro mergulhado em sono profundo. Ao descerrar a janela, uma brisa com sereno a tocou e balançou seu cabelo, liberando imediatamente um aroma gostoso de madrugada e xampu, misturado com o cheiro dela – Afinal, tivemos um movimento legal no fim de semana e uma boa divulgação nas redes sociais. Orgânica! E que está rolando até agora – ela pega o celular e vira a tela para comprovar o que dizia.
– Isso é ótimo, meu bem, mas e quanto a todo o resto? Guto? A Vivi...? – Tatiana questiona, abaixando de propósito o tom de voz na última pergunta. Iluminada pelo celular, viu Patrícia erguer os ombros como resposta.
Nem de longe sua intenção era cutucá-la logo cedo com assuntos sensíveis, mas era claro que a fake news do plágio, inventada por um à toa, não se restringia apenas à sua imagem como chef, ou ao restaurante. A questão era feita de muitas camadas, sensíveis e delicadas. Como um bom suflê, centro de todo aquele conflito.
– O Bistrô estando bem, fico bem também – Patrícia responde, segundos depois. Porém, voltou a levantar os ombros no final da frase, demonstrando que o que dizia não era totalmente verdade. Seus olhos brilharam quando acendeu a luz, iluminando o quarto e desnudando parte da mágoa que sentia por causa de tudo aquilo. Com a lâmpada acesa, seu incômodo era bem evidente, com a claridade trazendo à tona o que ela se esforçava para esconder nas sombras.
Tatiana a observa em silêncio, sentindo um nó se formar na garganta. Era raro ver Patrícia tão exposta, mas ainda que estivesse sobrecarregada, com uma montanha de problemas para enfrentar, sabia que podia sempre contar com ela para absolutamente tudo. Porque mesmo cheia de desafios, Patrícia ainda era sua parceira, sua amiga, sua âncora.
– Eu de verdade acho que quando a minha base está ok, pode o mundo cair que todo o resto se ajeita. Se O Bistrô vai bem e nós também, os problemas se resolvem, as coisas se organizam, a vida se endireita – Patrícia volta a falar, fungando, de cabeça baixa – Juro para você que o que mais tem me deixado triste nos últimos dias é que de uns tempos para cá a gente só briga, só discute... Parece que você não confia mais em mim. Faz dias que anda quieta, com um comportamento estranho, não fala comigo direito... E eu te conheço, Tati. Sei quando algo está errado – complementa.
Tatiana sente o coração apertar. Era verdade que tinha se fechado nas últimas semanas, mas não por falta de confiança. Era só... medo. Medo de sobrecarregar, de incomodar, de gerar novas brigas, novos desentendimentos. Mas ao olhar para Patrícia, percebeu que ela não parecia tão preocupada com o restaurante ou com as invenções de Guto Morais, e sim visivelmente aborrecida com a distância que parecia estar se formando entre elas.
– Mas... é que é bobagem, Pati, de verdade – Tatiana resmunga, quase se rendendo.
– Não parece ser bobagem. Já faz duas semanas que você está com o apetite descontrolado, comendo tudo o que não pode. O que está te deixando tão aflita? – Patrícia senta-se ao seu lado na cama e segura sua mão – Primeiro, achei que tinha alguma relação com o seu curso lá de desenho... Depois, imaginei que fosse por causa desse trabalho novo da Mariana... Sei que não tem a ver com a história do plágio porque você desandou antes de isso acontecer.
– Eu não “desandei” – Tatiana retruca, com a voz extremamente baixa, o queixo quase encostando no peito – Só não quis te preocupar com coisas pequenas, já que você já tem tanto assunto sério na cabeça.
– Nada que te afeta é pequeno para mim – Patrícia rebate, mas não diz mais nada. Assim como a mulher, sentia-se cansada e mentalmente esgotada. E com sono. Ainda não eram nem 5h da manhã.
Tatiana suspira, se entregando à vontade de desabafar. Sabia ter plena capacidade de guardar para si seus próprios conflitos e dilemas, mas era Patrícia ali, sua companheira de anos, a mulher que conhecia cada um de seus silêncios e sons.
– A coordenadora pedagógica lá da escola inventou um tal projeto interdisciplinar para “instigar a criatividade dos alunos” – Tatiana então diz, disparando uma metralhadora verbal na sequência – Instigar a criatividade, minha nossa! Como se a criançada já não fosse criativa o suficiente... Aí dona Maristela resolveu que nesta semana, por causa disso, vou ter que dividir a sala de aula com a Rosana. Podia ser com a Gil, que pelo menos é humana, podia ser com a puta que pariu, mas não, quis me enfiar logo no balaio junto com a cobra. Logo a Rosana, que olha para mim como se eu fosse uma aberração só porque não grito com os alunos. Ou porque prefiro elogiar um rabisco no caderno a ficar corrigindo erro de sinal em equação de segundo grau.
– E aí voc...
– Logo ela, que não perde uma chance de me lembrar que “arte não é matéria de verdade” – Tatiana continua, sem dar chance para Patrícia falar – Arte não é matéria de verdade, Rosana? É mesmo? Então explica para mim por que é que a Mona Lisa está até hoje sorrindo para sua cara de paisagem enquanto você fica tentando provar que é a dona da razão! – ela ri, com sarcasmo – Mas é isso, a vida tem dessas. Não quis te aborrecer com meus problemas banais do cotidiano. Me enfiaram num projeto que não pedi, com uma mulher que não aguento e que aparentemente não me suporta, e ainda esperam que eu sorria e acene. Isso tudo enquanto você é inundada com mentiras que colocam O Bistrô em risco, a Mariana morando há vários quilômetros de distância daqui... É demais para mim. Ainda tive que encontrar o Miguel lá no curso, que depois quis saber sobre o meu irmão e ficou falando um monte de groselha, e reencontrei a Elen... sabe? Faz quase 15 dias que estou passando mal por causa de uma coxinha que comi dias atrás! Em resumo, não consigo mais dormir, não tenho mais paz.
– Você encontrou a Elen? – Patrícia pergunta, erguendo as sobrancelhas. Porque, sim, de tudo o que Tatiana disse, foi o que realmente chamou sua atenção – Aquela Elen?
Agora foi a vez de Tatiana levantar os ombros, como se fosse algum tipo de resposta. Não pretendia revelar sobre a professora desse jeito, sem planejar antes a melhor maneira de falar, mas tampouco arrependia-se de ter contado. Era perfeitamente capaz de sim, esconder muitas coisas da esposa, mas isso não quer dizer que ficasse confortável fazendo isso. E sem contar que em algum momento Patrícia acabaria descobrindo sobre Elen. De um jeito ou de outro, ela sempre descobria tudo.
– Hum? – Patrícia insiste, diante do silêncio repentino que preencheu o quarto com uma leve tensão.
– Sim, lá no curso, Pati – Tatiana então responde, evitando encará-la nos olhos – Ela foi quem assumiu a turma depois daquele caso de assédio envolvendo a modelo da primeira aula. Eu nem imaginava, foi uma surpresa para mim. Não te contei logo de cara porque imaginei que você fosse surtar. Já não queria que eu fizesse o curso antes...
– Surpresa boa ou ruim? – Patrícia cruza os braços, mas logo os descruza, como se não quisesse parecer zangada. Porém, não conteve o olhar afiado em sua direção.
– Nem uma coisa nem outra – Tatiana afirma, encolhendo os ombros de novo – Só foi... estranho, não sei. Faz tanto tempo, na última vez que nos falamos eu era outra pessoa.
Patrícia fica quieta, observando-a se levantar e se mover pelo quarto, separando as roupas que usaria naquele dia. Ao contrário de Tatiana, pareceu pensar bem nas palavras antes de dizê-las.
– Você sabe que pode falar comigo sobre qualquer coisa, né? – Patrícia então diz, levantando-se e se aproximando da mulher. Pela primeira vez naquela manhã, seus olhos se encontraram – Mesmo que seja algo que considere banal do seu cotidiano, ou aquilo que você ache que não vou gostar de ouvir.
– Eu sei – Tatiana rebate, com um sorriso cansado. Jogou a roupa na cama e desviou o olhar para o chão, encaixando-se entre suas pernas – É só que... às vezes é difícil colocar tudo em palavras e como se não bastasse a vida ainda vem me atropelando, apresentando novos conflitos, me sufocando... Mas não quero que pense que estou escondendo as coisas de você.
– Eu não penso isso – Patrícia fala, abraçando-a pela cintura com ternura – Mas adoraria que voltasse a compartilhar comigo o que pesa dentro de você. Mesmo que seja relacionado a alguma crush do passado.
– A Elen não é um problema, amor. Juro. E foi bom finalmente te contar sobre isso. Um peso a menos em cima de mim... – ela massageia os ombros, como se o alívio também fosse físico.
– Quanto à Rosana – Patrícia fala, mas espera a mulher voltar a encará-la, antes de continuar – ...sabe que a melhor solução para resolver o problema entre vocês é enfrentá-la, não é? O poder que ela tem é o poder que você dá a ela.
– Eu não d... – Tatiana começa a protestar, mas Patrícia a interrompe com um olhar firme e um toque suave na mão.
– Dá sim, meu amor. Vocês não têm 12 anos, Tati. Ela não é nenhuma valentona do fundão da classe, vocês são mulheres adultas e a questão entre vocês se resolve com uma boa conversa. Ou, se ela não quiser conversar, você então mostra que não é boba. Você é forte, querida. Muito mais do que imagina.
Tatiana olha para Patrícia, sentindo uma mistura de gratidão e inquietação. Sabia que Patrícia tinha razão, mas ainda assim a ideia de confrontar Rosana a deixava um pouco aflita.
– Às vezes, o conflito é necessário – Patrícia complementa, como se pudesse ler suas inseguranças – Mas você não precisa fazer nada sozinha. Eu estou aqui, lembra? E a Mari também. Se precisar, a gente arruma um jeito de te ajudar. Só não deixa ela te intimidar, gata. Você merece respeito.
Sentindo mais um pouco do peso sair de cima de seus ombros, Tatiana finalmente laceia os braços ao redor da esposa, em um abraço apertado, afundando o rosto na curva de seu pescoço cheiroso.
– Grata, Pati – ela murmura, com a voz embargada – Eu não sei o que seria de mim sem você.
– Seria alguém que não fala sobre bullying de professora antes das seis da manhã, com uma ótima ouvinte, nem toma um café da manhã especial preparado por uma chef cinco estrelas, logo na sequência – ela brinca, afrouxando o abraço o suficiente para olhar Tatiana nos olhos – Mas, sério, você é foda, Tati. Mais forte do que pensa. E eu estou aqui para te lembrar disso sempre que precisar.
– Aceito – Tatiana a beija, com amor – Os lembretes e o café da manhã também.
– Hoje vai ser um dia incrível, você vai ver – Patrícia diz, beijando-a mais uma vez – Bom banho, meu bem.
Tatiana fica parada no meio do quarto, vendo Patrícia sair em direção à cozinha, com as palavras da esposa ecoando na mente. Ela olha pela janela e vê o céu começando a clarear, o sol manchando de rosa nuvens que pareciam pintadas à mão. Sabia que todo mundo tinha problemas, compreendia que tudo era passageiro... E, por mais difícil que a vida fosse, ainda assim era uma mulher de muita sorte. Afinal, tinha Patrícia, que mesmo sobrecarregada nunca deixava de apoiá-la, e também Mariana, que mesmo longe continuava a ser parte daquele elo. Seu amor não cabia em uma só pessoa e se multiplicava em duas, gerando o dobro de companheirismo e afeto.
Com um suspiro aliviado, ela busca um canal de notícias no YouTube e se dirige até o banheiro, pronta para encarar o dia e todos os momentos desagradáveis que sabia que teria que vivenciar. Mesmo assim sorriu porque sabia que à noite teria um lar cheio de amor para retornar. Pensar nisso a levou a sentir pena, por alguns segundos, de Rosana Valcourt, Vivi Mantovani, Guto Morais e Simone Albuquerque Peixoto Gama. Eram todos mal amados, por isso causavam tanto.
O sentimento, embora sincero, durou pouco porque toda essa corja vinha fazendo muito mal à sua estabilidade mental e à de suas esposas. E como diria Ralf, “quem tem pena é galinha”, então deixou o assunto para lá. Lembrar-se do irmão fez Tatiana sorrir novamente ao ligar o chuveiro, agora por outros motivos, ainda que igualmente relacionados a amor.
A água quente caiu sobre seu corpo, lavando e levando parte da tensão acumulada, desfazendo os nós de seus ombros e desanuviando a pressão em sua nuca. O vapor logo embaçou as paredes do box, criando uma névoa ao seu redor. Distraída, Tatiana se permitiu alguns segundos de silêncio interior, alheia às notícias que seu celular informava, em cima da pia. Mas foi imediatamente sugada de volta à realidade quando ouviu seu sobrenome ser dito e repetido pela repórter do noticiário. Isso a fez congelar por um instante, com a mão parada no ar, segurando o xampu. Ralf? O que ele tinha aprontado agora?
– Conhecido por suas obras provocativas, Ralf Custódio causou furor ao lançar a exposição interativa intitulada “Cicatrizes Invisíveis”, ontem, no Rio de Janeiro – a jornalista dizia, com sua voz cadenciada – A performance, que já está sendo chamada de “perturbadora” e “necessária”, aborda o bullying através de uma experiência imersiva que simula o ambiente escolar. Visitantes são convidados a interagir com objetos e histórias reais, gerando fortes reações nas redes sociais. Há quem elogie a coragem do artista, enquanto outros criticam a exposição de temas tão sensíveis.
– Longe de ser um conforto, a arte é um confronto – Ralf fala, com a voz calma, mas carregada de convicção – A arte existe para incomodar, para questionar, para fazer as pessoas olharem para o que preferem ignorar. Se a minha exposição é perturbadora, é porque o bullying é perturbador. Se é chocante, é porque a realidade choca. Eu não estou aqui para agradar, como muitos já sabem.
– E por que “Cicatrizes Invisíveis”, Ralf? – a repórter pergunta – De onde veio sua inspiração?
– Infelizmente, sei do que estou falando. Eu e minha irmã sofremos bullying na infância. Ela era a quietinha, a que preferia ficar no cantinho desenhando. Eu era o diferente, o que gostava de coisas que os outros achavam “estranhas”. A gente era alvo fácil. E aquilo nos marcou, sabe? Deixou cicatrizes. Mas a arte foi a válvula de escape para nós, cada um à sua maneira. E foi na arte que encontrei uma voz, onde pude transformar toda aquela dor em algo que faz sentido. E é isso que quero com essa exposição: dar voz a quem sofreu, como eu, como a Tati, e mostrar que a dor não precisa ser silenciada.
– A exposição de Ralf Custódio simula um ambiente escolar, com gravações de relatos reais de bullying, contados pelas próprias vítimas – a repórter volta a falar, com a voz ritmada – Enquanto ouvem, os visitantes veem suas imagens distorcidas em espelhos espalhados pelo espaço, criando uma conexão entre as histórias e suas próprias reflexões. Ao final, são convidados a escrever sobre suas experiências em pedaços de papel, que são triturados e serão transformados em uma escultura, simbolizando as feridas causadas pelo bullying. A exposição “Cicatrizes Invisíveis” fica em cartaz no Rio até o final de maio, com previsão de estreia em São Paulo a partir de junho deste ano.
Tatiana fica alguns segundos parada debaixo do jato forte de água quente, com as palavras de Ralf bailando na mente. “A arte é um confronto”, ele dissera. A frase, tão típica do irmão, parecia ter sido dita especialmente para ela. Quantas vezes já havia se calado diante de Rosana? Quantas outras engoliu as humilhações da colega, incluindo homofobia velada, preferindo evitar conflitos a se impor?
Ao sair do banho, olhou-se no espelho embaçado e reparou que o vapor formava pequenas gotas que escorriam lentamente. Sua imagem estava distorcida, assim como nos espelhos da exposição de Ralf. E, de repente, Tatiana entendeu. O bullying afeta muito mais aqueles que se calam, os que permitem que a crueldade continue. Ralf transformou sua dor em arte, em algo que fazia as pessoas refletirem. E ela? O que havia feito com a sua própria dor?
Tatiana respira fundo, sentindo uma faísca de inspiração acender dentro dela. Era como se algo tivesse se encaixado, com a apresentação de uma peça que faltava no quebra-cabeça de sua cabeça. Talvez Patrícia tivesse razão: agora era mesmo hora de parar de se esconder e finalmente enfrentar Rosana – não com raiva, mas com a mesma intenção e intensidade que Ralf usava em sua arte. Afinal, ela era forte, como a mulher havia dito, mesmo que quase nunca se sentisse assim.
A voz da repórter ainda ecoava no celular, mas Tatiana já não ouvia mais nada. Tudo o que escutava eram seus pensamentos, martelando alto, como cornetas espalhafatosas anunciando o início de uma batalha iminente. Ainda não sabia de que forma exatamente enfrentaria a professora de Matemática, muito menos como ficaria após o inevitável confronto, mas o primeiro passo certamente já havia sido dado. Com o valioso auxílio da esposa e também do irmão, finalmente sentia que estava pronta.
Era estranho, mas pela primeira vez em dias Tatiana sentiu um pouco de alívio. Não porque houvesse alguma certeza de que tudo daria certo, mas pela sensação de que finalmente estava no controle. O peso que carregava nos ombros parecia um pouco mais leve, como se o simples fato de decidir enfrentar Rosana já fosse uma vitória. Além disso, não havia mais segredos a esconder de Patrícia, o amor entre elas parecia mais fortalecido desde a última conversa e mesmo que Rosana quisesse tentar intimidá-la, Tatiana definitivamente não era mais a mesma menina que se escondia nos cantos, desenhando para fugir da realidade. Ela tinha Patrícia e Mariana, tinha Ralf e agora também tinha a si mesma.
Ao sair do banheiro, sentiu o celular vibrar. A tela piscou com uma mensagem de Mariana, curta e direta: “Precisamos conversar”. O coração de Tatiana deu um salto ao ler aquilo. “O que poderia ser tão importante assim?”, perguntou-se, com um frio na barriga. Sentia-se no controle, mas a vida sempre tinha surpresas reservadas para ela. E, com Mariana envolvida, essas surpresas eram sempre... singulares.
Sem pensar duas vezes, Tatiana digitou uma resposta rápida:
“Claro, amor. O que aconteceu? Está tudo bem?”. Enquanto aguardava a resposta, senta-se na cama, segurando o celular com as duas mãos, como se o aparelho fosse uma bomba frágil que pudesse explodir a qualquer momento. Sua mente começou a divagar, criando cenários catastróficos: Mariana tinha perdido o emprego? A chefe controladora a havia assediado? Ou era algo ainda mais sério e inesperado?
Antes que mergulhasse de cabeça no mar de preocupações, o celular vibrou novamente. Em sua nova mensagem, Mariana dizia que o assunto não era algo que pudesse explicar por mensagem. “Podemos nos ver mais tarde? Preciso falar com você pessoalmente”, escreveu.
Tatiana sente o coração acelerar. O tom de Mariana era sério, quase solene, algo que ela não costumava usar. Sem hesitar, respondeu: “Claro. Posso ir te encontrar. Você já voltou de Brasília? A que horas está livre?”. A resposta veio rápida, quase no mesmo segundo: “Acabei de aterrissar em Campinas. Pode ser à noite, depois do trabalho. Dorme comigo hoje?”.
A pergunta foi a chave para desmontar todo tipo de ansiedade que pudesse levá-la a criar cenários horrorosos ao longo do dia. Qualquer que fosse o problema, não era com ela, muito menos entre elas. E a ideia de poder dormir naquela noite, e junto da esposa, soou como uma sinfonia para sua mente cansada.
Ela umedece os lábios involuntariamente ao reler o convite. As palavras, mesmo simples, desencadearam uma enxurrada de lembranças que fizeram seu corpo responder antes mesmo da mente processar. Lembrou-se da primeira vez que Mariana convidou para “dormir” – e como aquilo significou tudo menos descanso. Recordou-se da frieza do chão do apartamento minúsculo onde ela morava, o gosto salgado de sua pele entre seus dentes, os gemidos abafados contra o travesseiro enquanto tentavam não acordar os vizinhos... Várias noites desde então começavam com esse mesmo convite inocente e terminavam com as três exaustas, satisfeitas e suadas de prazer.
Enquanto se vestia para o trabalho, outra lembrança a atingiu, recheada de memórias depravadas: a última vez que estiveram juntas, só as duas, quando Mariana a prensou contra a porta do banheiro dO Bistrô, no meio do expediente de Patrícia, algumas semanas atrás. O perigo de serem descobertas serviu apenas para intensificar o tesão e Tatiana se arrepiou ao se lembrar de como conseguiram ficar quietas, mesmo depois que alguém bateu na porta, perguntando se estava tudo bem.
Gostava desses encontros surpresas e inesperados, que tinham uma pitada bem-vinda de aventura e jovialidade – especialmente assim, em lugares públicos como o restaurante da esposa. Mas Tatiana apreciava mais ainda a privacidade de seu lar, quando então se enrolava em Mariana numa dança sem música que durava horas e horas, num verdadeiro baile em que era a convidada de honra, com muito prazer. Nesses momentos a mulher parecia se esquecer completamente da idade de Tatiana e exigia movimentos de seu corpo que ela própria julgava ser incapaz de conseguir. Por exemplo, quando montava em cima dela e levantava uma de suas pernas até que seu joelho quase encostasse em seu próprio rosto, só para enroscar os pelos pubianos nos seus e encará-la bem de perto, com os olhos brilhando de desejo, murmurando palavras incompreensíveis.
Mariana tinha um cheiro incrível, um gosto melhor ainda e um beijo que disparava contrações involuntárias em pontos sensíveis que a amoleciam, a deixando rendida. Seu corpo se encaixava no dela de um jeito que a fazia acreditar que foram feitas sob medida, especialmente para se pertencerem. Inclusive porque era o tipo de encaixe que não permitia que Patrícia jamais ficasse sobrando, então as três se uniam trepadas em cima da cama (ou no sofá, às vezes no chão), numa harmonia tão prazerosa que, só de lembrar, a região de seu baixo ventre se agitou em um turbilhão estimulante.
“Com certeza eu quero dormir com você hoje, Mari”, Tatiana responde, descendo as escadas.
Inevitavelmente sorrindo com malícia, encontrou Patrícia lá embaixo, na cozinha, apoiada com as costas na pia, envolta em um delicioso aroma de café e ovos mexidos com alecrim. A mulher segurava o celular entre os dedos e tinha uma ruga de preocupação marcando o meio da testa, o que levou o sorriso de Tatiana a se desvanecer ao perceber a expressão tensa da esposa. Sua pele ainda formigava com o calor das memórias recentes, mas agora precisava se afastar do desejo ardente que Mariana havia despertado, rumo à preocupação visível que tomava conta da outra esposa.
– Que foi, amor? – Tatiana pergunta, ao vê-la – A Mari te mandou mensagem?
– Mandou, sim – Patrícia responde, sem desgrudar os olhos da tela.
– E está tudo bem? – Tatiana insiste. Seria possível que a mesma mensagem despertasse sentimentos tão antagônicos?
– Sim, sim. Quanto a isso, sim. Gosto da ideia de dormirmos juntas... e vai ser bom a gente conversar um pouco. As questões do dia a dia têm nos afastado demais – Patrícia finalmente a encara por cima do celular, mas manteve no rosto a expressão de desassossego – Você chegou a ver as notícias?
– Por alto, uhum – Tatiana serve-se de um gole curto de café, o suficiente para despertá-la e não provocar nenhuma desavença com a mulher, que era fiscal de sua dieta restritiva – Descobri que o meu irmão está no Brasil, com uma exposição que vem para São Paulo no meio do ano.
– Legal, Tati... Você viu a última do Guto? – Patrícia questiona, quase atirando o celular dentro da pia, com raiva.
– Ai, não... O que foi que ele falou de você desta vez?
– De mim, nada, mas expôs aquela atriz, Karla Moreno, sabe? Parece ela fez um aborto no fim de semana e ele entrou com o celular escondido dentro do hospital ontem, gravando tudo. Tem noção? Fez com ela o mesmo que fez comigo, só que pior.
– Putz – Tatiana resmunga, desanimada, sentando-se ao seu lado, na banqueta alta em frente à mesa. Quase ficou aliviada pelo fato de a mulher finalmente ter saído da mira do jornalista, mas se solidarizou de imediato com a atriz, que era conhecida por atuar em novelas desde criança.
– Eu sabia que uma hora ou outra ele ia acabar me esquecendo, mas não imaginei que seria com algo tão pior – Patrícia suspira, passando a mão no rosto – Alguém precisa parar esse homem, Tati... ele não pode continuar fazendo isso com as pessoas, expondo as mulheres desse jeito, em troca de like.
– O duro é que ele tem bastante audiência, né? Infelizmente, tem muita gente que gosta de ver esse tipo de conteúdo invasivo e sensacionalista.
– Ah, mas ninguém tem o direito de expor os outros assim, não. Olha... te juro que eu seria capaz de marcar um encontro com a Vivi e fazer uma live com ela, só para destronar esse bosta desse fofoqueiro sem vergonha.
Surpresa com a revelação, Tatiana levanta as sobrancelhas, mas não diz nada. De tantas possibilidades que pensou para de alguma forma frear Guto Morais – um processo judicial, exposição na mídia ou até mesmo um soco no meio da fuça –, uma live com Patrícia e Vivi Mantovani passou bem longe de seu radar. Mas logo percebeu que a ideia não era totalmente ruim. Primeiro, pelo que aquilo representava. Segundo porque, com seu exército de seguidores, a chef do YouTube poderia ser uma boa aliada. Inesperada, porém eficiente.
– Você acha que sou boba por querer encontrá-la? – Patrícia questiona, com a voz bem baixa, sem revelar o que a pergunta realmente significava.
– Jamais, amor – Tatiana responde, demonstrando ter entendido a verdadeira intenção por trás da ideia – Acho que você, sim, é forte. E também muito corajosa, Pati – ela puxa o queixo de Patrícia, para que a mulher a encare – Tenho muito orgulho de você.
– Não é sobre coragem, Tati. É só... Será que ela sabe quem eu sou? – a pergunta soou quase infantil e Patrícia deixou o olhar cair em direção à xícara com café frio – Me pergunto às vezes se ela reconheceria meu rosto na rua.
Em silêncio, Tatiana aperta a mão da esposa por um segundo a mais que o necessário, numa tentativa de trazê-la de volta à superfície de si mesma. Como Patrícia permaneceu de cabeça baixa, puxou seu rosto até que seus narizes quase se encostassem.
– Você mesma me disse agora há pouco que as pessoas só têm o poder que nós damos a elas – Tatiana a lembra, com convicção – Nem mais nem menos, Patrícia.
– Mas e se a gente entrega esse poder a alguém sem querer? – ela pergunta, inconscientemente levando os dedos até uma cicatriz no cotovelo esquerdo, marca de uma queda na cozinha aos sete anos de idade, quando começou a cozinhar para sobreviver.
Tatiana não precisou olhar para saber qual cicatriz ela tocava. Beijou a junta de seus dedos, depois a palma de sua mão e depositou um beijo no pulso onde o relógio marcava o tempo que não serviu para curar certas dores.
– Aí a gente pega de volta. Do jeitinho que você fez nos últimos dias com O Bistrô, depois da fake news. Exatamente como vou fazer daqui a pouco com a Rosana. Como fazemos sempre com nossas vidas. Você não está sozinha, meu amor.
– Não estou. Tenho um ótimo time comigo – Patrícia a beija, enternecida.
O beijo tinha gosto de café amargo e companheirismo. Quando se separaram, Patrícia esfregou o nariz na bochecha de Tatiana – gesto que costumava fazer após as reconciliações. O relógio grande na parede marcava 6h28.
– Você tem mesmo um time muito bom – Tatiana concorda, brincando com o botão da camisa do pijama dela – Sua esposa logo cedo já me fez sentir coisas...
– A Mariana é uma safada... gostosa demais – Patrícia diz, o tom de voz mudando ao se referir à mulher – Não sei se vou ter cabeça para fazer algo mais tarde, mas eu sempre falo isso e no final vocês me convencem. Com relativa facilidade, devo dizer.
– Sim. Ótimo time, ótimo – Tatiana ri com malícia, tomando o último gole de café – Agora preciso ir porque uma batalha na escola me aguarda.
– Boa sorte, Tati. Tenho certeza de que vai se sair muito bem. Me mande mensagem se precisar. Vou ficar com o celular por perto.
– Tudo bem, amor. Pode trabalhar tranquila, vai dar tudo certo – Tatiana dá um selinho nela e levanta-se – Eu amo você.
– Te amo também – Patrícia diz, mandando um beijo no ar.
Tatiana dirigiu por ruas que pareceram se encher conforme avançava, rumo ao trabalho. Deixou o celular preso no painel do carro, reproduzindo as notícias das primeiras horas do dia, mas sem ouvir exatamente o que estava sendo falado. Sentia-se dispersa e todo seu foco permaneceu no trânsito engarrafado, típico de uma segunda-feira de manhã. Desviou os olhos dos motoristas e motoqueiros à frente apenas quando uma mensagem de Mariana piscou no meio da tela, com uma foto que ela teve que baixar para ver melhor. Só a miniatura da imagem já atiçou seus melhores pensamentos e reacendeu seu corpo, como se fosse uma preparação para o encontro daquela noite.
“Não lavei roupa nos últimos dias e só sobrou lingerie de safadeza, acredita?”, era a legenda. Na foto, Mariana aparecia em frente ao espelho de corpo inteiro do hotel em que estava hospedada em Campinas, iluminada pela luz dourada de algum abajur. Usava apenas um sutiã preto de renda bem fina que Tatiana conhecia bem, com detalhes minúsculos entre os seios. O tecido transparente deixava destacado o mamilo endurecido e Tatiana não soube dizer se era do frio do ar-condicionado. Mas o que realmente a fez morder o lábio foi o detalhe que só ela notaria: a alça levemente desajustada no ombro direito. Exatamente como ficava depois que Tatiana o tirava às pressas.
A mensagem seguinte chegou antes que pudesse responder, em forma de áudio. “A Pati me disse que você vai enfrentar a bruxa hoje. Estou torcendo, gatinha. Se precisar de inspiração para ser má, posso tirar mais fotos”, Mariana propõe, com uma risadinha safada captada antes que a mensagem terminasse.
Quando parou no pátio na escola, Tatiana ainda sorria. Nem percebeu que pegou a última vaga debaixo da sombra da árvore, tampouco notou Rosana manobrando o carro logo em seguida, estacionando debaixo do sol. Mariana tinha esse dom: amenizava qualquer situação das maneiras mais inesperadas e estimulantes possíveis. A imagem dela seminua em frente ao espelho ficaria marcada em sua retina visual até o final do dia, com certeza.
– Ora, bom dia para você também – Rosana diz, continuando alguma discussão que começou primeiro na cabeça dela.
– Bom dia – Tatiana responde, em tom de pergunta. Ao virar-se para trás, avista Rosana, um pouco esbaforida. Antes que voltasse a abrir a boca, se lembrou de Patrícia, depois de Mariana apenas de sutiã e então pensou em Patrícia de novo, dizendo “o poder é seu”, num tom de “a arte é puro confronto” – Ah, é você? – ela pergunta, como se só então a reconhecesse – Sim, bom dia para você também – repete, imitando a voz esganiçada da colega.
Tatiana firma o olhar em Rosana por alguns segundos, com a sincera impressão de que a professora de Matemática parecia menor do que na semana anterior. Mais inofensiva, também, com aparência desarrumada, mesmo sendo ainda tão cedo, antes de 7h20 da manhã. A camisa, meio amassada pelo cinto de segurança, deixava à mostra a alça esgarçada de seu sutiã e Tatiana não conteve o pensamento involuntário: Rosana jamais ficaria bem usando renda.
– Oi, prô! Estava esperando você chegar – um aluno fala, assim que avista Tatiana. Notavelmente fingiu não notar a presença de Rosana, que deu um suspiro ruidoso ao passar por eles e saiu batendo o pé em direção à sala dos professores.
– Bom dia, Davi – Tatiana o cumprimenta, abaixando-se para ficar na altura do menino. Imaginou que ele mostraria algum dos desenhos que gostava de fazer próximo à espiral dos cadernos, mas ao encará-lo de perto, algo imediatamente chamou sua atenção – O que é isso? – ela aponta para uma caixinha presa numa espécie de suspensório, em frente ao peito dele. Parecia uma câmera pequenininha.
– Estou filmando, professora Tati. Que nem você sugeriu – Davi responde, em tom confessional.
– Eu... sugeri? – Tatiana cerra os olhos, na inútil tentativa de se lembrar de ter dito algo do tipo.
– Sim, quando perguntei sobre arte contemporânea, lembra? “Arte contemporânea é sobre capturar a verdade, nua e crua” – ele repete o tom de voz de Tatiana – Estou registrando uma semana da minha vida na escola como forma de arte. Contemporânea – Davi complementa.
Tatiana engole em seco. “Puta merda”, pensa. Ela realmente havia dito aquilo, mas em nenhum momento imaginou que resultaria nesse tipo de arte.
– E você... – Tatiana tosse, porque sua voz falha – Já filmou muita aula...? – pergunta, tentando parecer casual.
– Todas da semana passada, sim. Dá para fazer uma arte à parte só com os bullyings da professora Rosana.
Silêncio. Outra tosse. Tatiana tem a impressão de que o zumbido do ar-condicionado parece aumentar. Ela olha em direção à sala dos professores e vê Rosana bebendo café num copo mole de plástico com uma expressão de quem mastigava pedra ou arame farpado.
– Davi... – Tatiana abaixa a voz, tossindo mais uma vez – Você sabe que isso pode ser considerado... arte polêmica, né?
– Claro que sim, prô... – o menino sorri, exibindo um dente faltando – “Polêmica” vai ser o nome do meu documentário. Eu ouvi o seu irmão dizer numa entrevista que arte é confronto. Arte contemporânea também é confronto, né?
Tatiana o encara, incapaz de responder. Sem querer, imaginou a manchete: “professora é demitida após viralizar vídeo dela gritando com aluno autista”. Isso a levou a sorrir, mas imediatamente se criticou por ter sorrido.
Quis dizer que sim, que a arte de Davi era contemporânea, genial e brilhante, que Rosana desde já era refém de suas próprias ações, que Ralf teria muito orgulho de seu pequeno pupilo. Mas lembrou-se que estava sendo gravada, então se aprumou. Não podia esquecer que era a adulta responsável naquela relação.
A câmera de Davi piscava uma luzinha vermelha, como um olho testemunhando seu silêncio. Ela sentia o peso da frase, “arte é confronto”, ecoando na voz do irmão e nas aulas que havia dado, debatendo e discutindo com os alunos sobre arte, manifestação e sobrevivência num mundo que preferia ignorá-los. Agora, um menino de dez anos levava tudo isso ao pé da letra.
– Davi... — ela fala, mas sua voz falha novamente. O que dizer? “Apaga isso”? “Me mostra os vídeos”? “Rosana vai te expulsar se descobrir”? Nenhuma das opções parecia certa – Você já... editou algum trecho? – ela praticamente sussurra, ignorando a luz piscando no peito do menino.
– Claro que não, prô. Só nomeei os vídeos – ele ri, como se a resposta fosse óbvia, ou como se a professora o estivesse testando – Depois que conversamos, eu vi no TikTok que arte contemporânea não edita, só se mostra. Que nem quando você mostrou aquela tela branca e disse que era uma arte que falava de solidão.
Tatiana sente um calafrio. “Fodeu”. Ela realmente tinha usado aquela analogia, numa referência ao artista francês Yves Klein. Rosana não tinha chance contra a arte de Davi.
– Acha que as pessoas vão gostar da minha arte, professora? – Davi pergunta. Embora estivesse alheio às preocupações de Tatiana, apertou um botão na câmera que interrompeu a luz vermelha – A sua opinião importa para mim.
– Eu... – Tatiana olha para a câmera, depois para ele. De relance, lembrou-se de Mariana de sutiã preto, da alça desajustada sobre o ombro e dela dizendo: “se precisar de inspiração para ser má...”. Pensou também em Patrícia, de sua perspicácia afiada como faca sempre que tinha que enfrentar críticos gastronômicos e de sua incontestável coragem e astúcia ao arregaçar as mangas e querer enfrentar Vivi de frente – Davi... Você tem noção do que pode acontecer se por acaso algum desses vídeos vazar?
— Acho que a diretora chama a professora Rosana para conversar – Davi pisca, pensativo – E ela para de gritar com o artista – ele encara Tatiana, ficando sério de repente – Ou... vai brigar comigo?
– Eu não sei, isso pode acontecer – ela responde, sem mentir – Mas... – Tatiana encolhe os ombros – ...também pode ser que nunca mais grite com ninguém.
– Então vale a pena tentar – Davi sorri, exibindo sua janelinha – Acha que as pessoas vão gostar da minha arte, professora? – ele repete a pergunta, religando a pequena câmera em frente ao peito.
Tatiana abre a boca, ainda sem saber ao certo o que dizer. No mesmo instante, o sinal tocou, anunciando o início das aulas. Davi ameaçou se virar em direção à sala, deixando transparecer no semblante uma certa hesitação, o que a levou a responder antes que o menino se afastasse.
– As pessoas vão ver a sua arte contemporânea, Davi – ela fala, vendo um sorriso tímido iluminar o olhar do pequeno artista – Vão amar, alguns vão odiar, vai ter quem diga que não é arte... Mas vão olhar.
Foi exatamente isso o que ela disse, ao mencionar Yves Klein, meses atrás. A aula na ocasião era sobre cores primárias e secundárias, mas Davi quis saber o que era arte. E arte contemporânea.
– Vão olhar que nem você me olha, né, prô? – Davi sorri, tampando os ouvidos com as mãos ao ouvir o segundo sinal, como sempre fazia diante de barulhos altos.
Tatiana sorri também, em concordância. Internamente sabia que para um documentário nos moldes como Davi planejava, era preciso a autorização expressa de Rosana, mas pensando pela perspectiva de uma denúncia, sua arte era absolutamente perfeita.
Antes de entrar na sala de aula que compartilharia naquela manhã com a professora de Matemática, ela sente o celular vibrar. De relance, vê nas notificações uma mensagem de Patrícia no grupo do WhatsApp. A mulher trazia atualizações sobre caso envolvendo Karla Moreno, a atriz exposta por Guto Morais.
“Acabou de sair na internet a informação de que a Karlinha foi estuprada pelo produtor do último filme que ela participou... Dá para acreditar? O desgraçado do Guto ainda vazou sobre o aborto!”, a esposa diz, na primeira mensagem. “Mari, por acaso você não tem alguma amiga que consiga hackear esse vagabundo?”, ela questiona, no segundo zap.
“Essa menina tem um fã-clube forte, amor. Já tem um monte de gente invadindo as contas dele”, Mariana informa, com um emoji dando risada. Abaixo de sua mensagem havia dois links e Tatiana clicou no primeiro, enviado por Patrícia. A notícia era ilustrada por uma foto da atriz, caracterizada como sua última personagem na TV, e no destaque da matéria havia uma miniatura do vídeo compartilhado por Guto, com Karla bastante zangada ao perceber que estava sendo gravada dentro do hospital. Em letras garrafais, a manchete dizia: “Atriz revela estupro após vídeo vazar: ‘o aborto foi minha única escolha’”. Antes de guardar o celular no bolso da calça e entrar na sala de aula, Tatiana engoliu seco ao ver que Vivi Mantovani tinha curtido a notícia.
Mas nem conseguiu pensar direito no assunto porque Rosana passou por ela como se fosse um trovão e entrou na sala de informática com uma postura apressada e ao mesmo tempo autoritária. Não teve nem tempo de clicar no segundo link, enviado por Mariana, então só mais tarde Tatiana saberia que o tal produtor havia pagado R$ 50 mil para que Guto intimidasse Karla em seu momento mais vulnerável.
Na primeira das cinco aulas que dividiria com Rosana naquela semana, Tatiana abordaria, junto com a professora de Matemática, como grafiteiros usam formas geométricas para a arte que produzem. A proposta era relativamente simples: os alunos do quinto ano teriam que desenhar um esboço de grafite no papel (usando régua, compasso e lápis), na sequência fotografar os desenhos com a câmera da escola (uma máquina digital velha, que ficava guardada na sala de Artes) e por fim transferir as fotos para os computadores da sala de informática (modelos Windows 7, super lentos, usados para trabalhos simples). Ou seja, nada poderia dar errado, exceto tudo.
Ao entrar na sala, Tatiana estranhou ao encontrar os alunos quietos, em silêncio. Em geral, sempre que levava alguma turma para a sala de informática o que mais se via era algazarra e bagunça de todos os tipos, já que os alunos apreciavam a mudança de cenário e especialmente a conivência da professora de Artes em relação às artes deles. Ela levou um tempo até lembrar de que aquela seria uma aula compartilhada simplesmente com a professora mais brava e chata da escola inteira, que aterrorizava a todos de todas as formas.
A aula começou relativamente tranquila. Rosana passou as instruções para os alunos – como deveriam ser os desenhos, quais instrumentos deveriam utilizar – enquanto Tatiana verificava as condições da câmera fotográfica. A primeira tarefa era desenhar um círculo no meio do caderno.
– Tem certeza de que isso é um círculo? – Rosana pergunta a uma aluna, quebrando o silêncio tão logo os estudantes começaram a desenhar – Até uma criança de três anos faria melhor, sinceramente... Professora Tatiana, a senhora pode por favor fazer um círculo na lousa para que essas criaturas se lembrem como é o formato desta forma geométrica tão simples?
Antes que Tatiana pudesse sequer responder algo, a menina ameaçou começar a chorar, sendo imediatamente repreendida pela outra professora.
– Pare já de frescura – Rosana ordena, um decibel mais alto, com a voz retumbando até o fundo da sala – Estamos em aula, não em terapia. Tente de novo. Use o compasso desta vez.
Parada no fundo da sala, sem saber se deveria desenhar um círculo ou não, Tatiana sentiu a cabeça latejar quando a voz de Rosana cortou o silêncio novamente, sendo desagradável mais uma vez.
– Davi, por favor, o que é essa aberração, me explica? Parece que você desenhou com os olhos fechados! – Rosana diz, com a maldade escorrendo pelas palavras bem pronunciadas.
Davi encolhe os ombros, os dedos apertando o compasso até as pontas ficarem brancas. Tatiana vê o menino começar a balançar para frente e para trás, e antes que pudesse intervir, Rosana puxa a folha com um puxão brusco, arrancando também os desenhos feitos próximo à espiral do caderno.
– Isso aqui vai para o lixo. Como todas as tentativas medíocres, que sirva de alerta, turma.
Foi neste momento que Tatiana agiu, sem pensar muito no que faria, ou como. Com passos firmes, pegou o giz da mesa e se postou diante da lousa, numa postura confiante e também desafiadora.
– Na verdade, Rosana... – ela fala, sua voz ecoando na sala, despertando a atenção dos alunos – Não existe lixeira para a arte.
Com o giz branco, começou a desenhar. Mas longe de fazer um círculo perfeito, o que ela rabiscou, com força, foi um círculo dentro do outro, formando uma espiral enorme que crescia como uma serpente, engolindo todo o espaço da lousa.
– Círculos perfeitos são para máquinas. Humanos fazem... isso – Tatiana completa, desenhando um último círculo que ultrapassou as bordas da lousa, riscando parte da parede encardida.
– Você está sabotando a minha aula – Rosana diz, entredentes, num tom de voz quase inaudível.
– Não, não – Tatiana devolve o giz sobre a mesa, atirando-o – Estou dando aula, Rosana. De arte.
O silêncio na sala ficou repentinamente tão denso que foi possível ouvir o ruído do giz branco rolando sobre a mesa até parar. Rosana a encarava com incredulidade, os olhos saltando entre a espiral rebelde na lousa e os alunos, que começaram a cochichar entre si. Davi, ainda segurando o compasso com força, permaneceu em silêncio, possivelmente mais em choque que a professora de Matemática, que nem de longe esperava aquele tipo de reação. A pequena luz vermelha no peito do menino piscava continuadamente, como um sinal de alerta.
– Você vai limpar essa... coisa. Agora mesmo – Rosana resmunga, ainda com os dentes cerrados, parecendo vibrar de raiva.
Tatiana cruza os braços, sentindo o peso de 36 pares de olhos queimando em suas costas. A espiral na lousa parecia pulsar, viva. Tal qual ela própria.
– Não é uma “coisa”, Rosana. É o Enzo – ela aponta para o aluno sentado na primeira carteira – É a Alice – Tatiana continua, indicando a menina que enxugava as lágrimas na manga da camiseta do uniforme – É o Davi – complementa, com seu olhar encontrando com o do menino que filmava tudo – Como eu gosto de ensinar aos meus alunos, arte é gente. E gente não se apaga. Nem se joga no lixo.
Irritada por ser confrontada, e na frente da turma, num acesso de raiva Rosana pega o apagador e o esfrega violentamente contra a lousa. O giz branco resistiu o máximo que pôde, deixando apenas as marcas da espiral desenhada. O pó branco subiu no ar parecendo a fumaça de um sinalizador de torcida organizada em dia de confronto.
– Esta aula acabou – Rosana rosna, raivosa.
– Não, longe disso – Tatiana rebate, pegando outro giz da caixa – A aula está apenas começando.
Voltando-se à lousa, Tatiana fez uma nova espiral, ainda maior que a anterior. O desenho ultrapassou os limites da lousa e invadiu a parede até quase a porta. Seus dedos tremiam levemente, mas seu traço saiu firme.
– Agora, terminem de desenhar – ela orienta, enfática.
O silêncio na sala de aula martelava alto em seus ouvidos, como se fosse marreta, intercalado apenas pelas batidas rápidas de seu coração acelerado, que parecia gritar “você é louca, você é louca, você é louca”. Tatiana manteve os olhos na turma que, apesar de surpresa com o pequeno embate entre as professoras, seguiu seu comando sem contestar e começou a desenhar círculos, quadrados e até espirais, iguais às suas. Ela evitou ao máximo qualquer contato visual com Rosana, que respirava de maneira ruidosa, enfurecida, parecendo um dragão.
– Você vai se arrepender disso, Tatiana – Rosana fala, baixo o suficiente para que mais ninguém pudesse ouvir. Zangada, atirou o apagador sobre a mesa e sentou-se numa carteira no canto da classe. Com os braços cruzados, toda emburrada, ficou igual uma aluna mimada do Ensino Fundamental.
Tatiana manteve-se absolutamente impassível. Seu estômago retorcia-se como as espirais desenhadas na lousa e o sabor metálico de sangue logo impregnou sua boca – tinha mordido o lábio sem perceber. Suas mãos, ainda sujas de giz branco, tremiam com a emoção do momento, mas ela imediatamente tratou de disfarçar, para que ninguém pudesse reparar.
Em silêncio, desenhou na lousa um círculo quase perfeito e outras formas geométricas que pudessem auxiliar os alunos na atividade. Só o fez porque, de costas, ninguém conseguiria ver seu olho tremendo, devido ao nervosismo.
Ao voltar a fitar a turma segundos depois, com todos quietos e compenetrados na lição desempenhada, Tatiana nota Davi a encarando, com a câmera ainda piscando. Ele viu. Não a professora de Artes afrontosa e inabalável, mas a mulher que resistia por trás dela – a que neste momento respirava fundo pelo nariz, contando mentalmente até dez, com a pálpebra tremendo de estresse. A pessoa que, por um segundo, pensou em pegar o apagador e desistir de tudo, só para se poupar de mais desgaste e novos embates.
Mas então Alice levantou a mão, oferecendo a ela seu sol deformado como se fosse um troféu. Aí Tatiana lembrou-se de porquê ter começado tudo aquilo. Do motivo pelo qual não saiu correndo dali, embora seu corpo inteiro quisesse fugir; ao contrário, permaneceu parada, firme, com os pés bem presos no chão.
– Muito bem, agora vamos começar fotografar os desenhos. Quem quer começar? – Tatiana pergunta, satisfeita ao ver três alunos se prontificarem – Ótimo, você quer tirar a foto? – a professora sorri, quando uma menina chega correndo até ela. Assim como os colegas, não parecia se importar com a presença de Rosana, digitando furiosamente algo no celular (talvez uma mensagem para a diretora?).
Tatiana aguardou que cada um dos alunos trouxesse seus desenhos para fotografar. No final, ficou tão entretida e envolvida com a tarefa que mal se lembrava da pequena discussão envolvendo a professora de Matemática ou dos demais problemas que existiam fora daquela sala de aula. O último a se encaminhar até a frente da sala foi Davi, que preencheu uma folha inteira com círculos de todos os tipos. Alguns se sobrepunham, outros tremulavam nas bordas, não se fechavam, mas havia algo deliberado naquela imperfeição. Como se o traço torto fosse totalmente intencional.
Davi segurava a folha com cuidado, tratando o desenho como uma obra de arte delicada. Ao encará-la, piscou três vezes seguidas, resetando a vista – ou tentando capturar completamente o ambiente e o momento associado a ele.
– Prô... – o menino sussurra, enquanto a câmera da escola, manuseada por uma colega, focava em seu desenho em cima da mesa – Posso fotografar a lousa também? – Davi aponta para o próprio peito, indicando sua máquina fotográfica.
– Claro – Tatiana responde, vendo-o desprender a pequena câmera – Tudo é arte, Davi – ela complementa, ouvindo o clique da foto sendo registrada. Ao abaixar a mão, seus dedos não estavam mais marcados pelo compasso, mas pelo peso daquele momento capturado.
Rosana, ainda sentada no canto com os braços cruzados, ergueu o olhar quando ouviu o som do obturador. Seu rosto contraiu-se num misto de desdém e desconforto, ciente de que a imagem não era apenas da lousa, mas de toda a cena que havia se desenrolado: as espirais desenhadas (e uma delas apagada), o pó de giz no chão, sua própria figura encolhida na carteira, parecendo uma menina intimidada.
Tatiana observa Davi conferir a foto no visor minúsculo, parecendo satisfeito com o resultado. Seus olhos piscam de novo, três vezes rápidas, antes que um quase sorriso surgisse em seu rosto. Só então ele entendeu o que Tatiana quis dizer com “tudo é arte”.
Naquele instante, o computador principal da sala emitiu um bipe agudo. Alguém havia ligado o PC e já começava a transferir os arquivos da máquina digital. A luz do projetor piscou uma vez na lousa, depois duas, dando a impressão de anunciar o show que estava por vir.
Quando os desenhos começaram a ser exibidos na lousa – que ainda tinha vestígios de uma espiral recém-apagada e outra sequência de círculos maior ainda, que atingia até as paredes – Tatiana quase viu o lampejo surgir no olhar de Davi, que brilhava, refletindo a luz do projetor. Só não reparou totalmente em suas feições porque sua atenção focou-se em seus movimentos: ele ameaçou prender a câmera de volta, mas desistiu da ideia rapidamente, logo em seguida.
– Como é mesmo que transfere os arquivos? – Davi pergunta, imediatamente recebendo instruções de um colega de sala, um palmo maior que ele.
– Davi, é para copiar só as fotos de hoje, tá? – Tatiana diz, ao mesmo tempo em que uma pasta recheada de arquivos se destacou no meio da lousa.
O menino assente, piscando devagar. Distraída por apenas um segundo, vendo que havia desenhos sem nome, Tatiana não notou o mouse clicar em “Selecionar Todos” em vez de “Selecionar Novos”. Também não viu quando a barra de progresso começou a subir, projetada na lousa.
A atenção de Tatiana só voltou para o conteúdo exibido ao ouvir um som de alerta, acompanhado de uma mensagem que informava: “Transferência concluída para: PASTA_COMPARTILHADA”. Antes que esboçasse qualquer reação, o aluno que havia auxiliado Davi já abria um arquivo intitulado “ROSANA_GRITANDO.mp4”.
O vídeo começou a rodar sem que Tatiana pudesse impedir. A voz estridente de Rosana ecoou de repente na sala, amplificada pelas caixinhas de som do computador:
– Escuta aqui... cadê o seu cérebro, hein? Por acaso você deixou em casa? Eu não acabei de ensinar isso aqui?
A câmera de Davi enquadrava Rosana em pé em frente à lousa, com os dedos sujos de giz, junto de um aluno que permaneceu o tempo todo de cabeça baixa. A professora estava com as mãos na cintura, numa postura ameaçadora e, quando voltou a falar, usou um tom ainda mais alto que o anterior.
– Vai, vai sentar antes que eu perca completamente a minha paciência com você – Rosana grita, distorcendo o áudio do computador – Será possível que vou ter que chamar alguém da Educação Infantil para resolver uma conta tão fácil?
A professora foi gravada numa cena que agora era exibida toda tremida, provavelmente porque o cinegrafista oculto se assustou com todos aqueles gritos matinais. Com a mudança de foco, o que se via projetado agora era a mão de Davi, contraída em volta do lápis. Logo abaixo dava para ver seu caderno aberto, com desenhos contornando a espiral e uma equação feita e refeita várias vezes, ainda com vestígios de borracha. O relógio na parede da sala marcava 7h53 – ou seja, apenas 23 minutos após o início daquela aula.
Tatiana buscou por Rosana na sala, mas antes que pudesse ver sua reação, reparou que diversos alunos já apontavam os celulares em direção à lousa. Em poucos instantes, seu aparelho dentro do bolso da calça começou a vibrar. Sim, porque os estudantes já estavam compartilhando o material nos grupos de WhatsApp da escola.
Primeiramente, Rosana não fez nada. Só ficou paralisada diante da própria imagem ampliada na lousa, com a voz distorcida pelos alto-falantes ruins do computador da escola. Seu rosto, sempre tão rígido e cruel, estava contraído numa mistura de pânico e choque. Ela parecia claramente enfrentar dificuldades para assimilar o que realmente estava acontecendo.
– Desligue isso agora mesmo! – Rosana então ordena, mas sua voz não soou a mesma autoridade de antes. Saiu frágil, como se algo tivesse se quebrado dentro dela.
Ninguém se moveu diante da fala. Os alunos nitidamente já não tinham mais medo dela. Agora, seus olhares eram visivelmente de desprezo em relação à professora. Alguns sorriram, outros permaneceram filmando, indiferentes ao que ela dizia.
O segundo vídeo conseguia ser ainda mais comprometedor que o primeiro. No registro, Rosana foi flagrada arrancando vários trabalhos de Artes expostos no corredor da escola, rasgando alguns desenhos e jogando café em outros, atirando tudo dentro da lixeira. “Isso não é arte, é lixo”, a professora disse. “Essa molecada vai aprender o que é disciplina na marra”, complementou, parecendo vilã de filme de criança.
Quando o segundo vídeo terminou, a sala se afundou num silêncio absoluto, por um instante que pareceu uma eternidade – aquele tipo de silêncio que só existe quando a ruína de alguém é tão evidente que nada é capaz de preenchê-lo. Ouvia-se na sala apenas o zumbido constante do projetor cortando o ar e a respiração pesada de Rosana. Ruidosa novamente, mas agora por outros motivos, muito mais graves do que quando Tatiana só desenhou círculos formando uma espiral.
Ninguém disse nada nem se mexeu. Apenas Davi se moveu. Com a mesma calma ao desenhar círculos imperfeitos, o menino pressionou play no vídeo novamente. E aí Rosana voltou a repetir, num looping, sua própria condenação: “isso não é arte, é lixo! Isso não é arte, é lixo! Isso não é...”.
Petrificada como uma estátua, Rosana apenas encarou sua imagem projetada, com as espirais de Tatiana visíveis no fundo da lousa e o eco de sua própria voz transformando-se numa exposição que tinha contornos de prisão. As notificações em diversos celulares eram a prova de que seu julgamento não ficaria restrito apenas ao ambiente escolar. Ao contrário, ao ser compartilhado no Youtube, com a #chegadebullying, o vídeo da professora gritando ganhou outra dimensão. Nos primeiros minutos, já contabilizava 2.300 visualizações.
Tatiana tomou a iniciativa de conter o dano, ainda que soubesse que o estrago já estava feito. Mas por não fazer o tipo vingativa e sabendo que ainda era a adulta naquela sala de aula, desligou o projetor sem dizer nada. Não se opôs também quando Davi retirou o cartão de memória e o guardou no bolso, enfiando dentro da mochila a câmera que não voltou a acoplar em frente ao peito.
O silêncio foi cortado quando a porta se abriu de repente. Maristela, a coordenadora pedagógica, apareceu acompanhada de Eunice. A diretora da escola estava munida de um tablet que atualizava a cada segundo o número de views no vídeo. Já eram 3.100 cliques.
Seus olhos escanearam a classe, observando os alunos ainda com celulares em punho, Rosana paralisada diante da lousa rabiscada e por fim Tatiana, numa postura segura, com as mãos ainda sujas de giz, mas agora firmes, sem tremer.
– Professora Tatiana – Eunice a cumprimenta com um aceno quase imperceptível de aprovação, ao ver o projetor desligado – A sua atitude foi... apropriada – o olhar dela então volta-se para Rosana – Você. Minha sala, agora.
Antes de sair, Maristela deu uma piscadinha para Tatiana.
– Me procure no final da aula. Precisamos conversar sobre... adequações curriculares – ela diz, movimentando levemente o tablet que também portava e que igualmente atualizava o número de visualizações: 4.300, 4.450, 4.602...
– Claro, pode deixar – Tatiana responde, com a voz tranquila.
Durante todo o dia, a espiral desafiadora de Tatiana permaneceu desenhada em sua mente, como um lembrete especial de todo o enfrentamento que havia ocorrido na escola. Ela não apenas se impôs contra a sua agressora, como também tinha assistido à queda de Rosana de camarote, numa exposição inimaginável. Extasiada, só desviou o foco do pensamento no final do dia, quando encontrou Patrícia perto da hora do jantar. Por volta das 19h, O Bistrô estava lotado, com uma fila de espera que avançava pela calçada.
Ela ainda sentia o calor da adrenalina pulsando nas veias quando cruzou a porta giratória do restaurante, acenando para Zezé. Entre o burburinho dos clientes e o delicioso aroma das refeições sendo preparadas, Patrícia a avistou e abandonou rapidamente uma conversa com o barman. Ela parecia cansada, mas sorriu ao vê-la.
A chef não era do tipo que larga o trabalho, muitas vezes cumpriu expediente mesmo quando estava doente, mas deixou tudo para trás assim que viu Tatiana. Estava feliz pelas ações da esposa, seu enfrentamento de mais cedo e a repercussão do vídeo de Davi nas redes sociais – a #chegadebulliyng estava nos Trending topics do Twitter até agora.
No caminho até Campinas, dirigindo o carro da mulher, Tatiana contou cada detalhe de sua aula compartilhada, todos os pormenores que conseguiu se lembrar. Quando estavam chegando, Patrícia leu a mensagem que Mariana enviou no grupo, dizendo ter saído do hotel.
– Talvez por isso a proposta de a gente se ver. As coisas que ela comprou para o apartamento foram entregues hoje – Patrícia sugere, inserindo o novo endereço no GPS do celular.
O prédio cheirava a tinta fresca e chão encerado. a noite estava abafada e enquanto aguardavam o interfone ser atendido, as duas reconheceram uma figura familiar, enorme, alongando-se na calçada.
– Olha ali a... – Tatiana comenta, mas não termina a frase. Assim como ela, Patrícia também reconheceu Laura, a psicóloga esquisita que gostava de plantar bananeira.
Ao contrário de Mariana, que das últimas vezes que viu a colega de trabalho não teve a garantia de tê-la visto de fato, Tatiana e Patrícia tiveram certeza cristalina de que era ela. Laura alongava-se na calçada com a elasticidade desconcertante de quem desafia as leis da gravidade por puro hobby. Seu moletom rosa-choque brilhava sob a luz do poste amarelo e quando virou e as viu, não pareceu surpresa – apenas ergueu as sobrancelhas, num ar de “finalmente”.
– Ah, as esposas da Mari! – ela diz, com a voz ecoando pela rua erma, aproximando-se com seus tênis neon – Coincidência, né? Moramos justamente no mesmo prédio... – Laura libera a entrada das duas – Vão lá, a Mariana está esperando por vocês.
– Você sabia que elas seriam vizinhas? – Patrícia indaga, assim que a porta do elevador se fecha e as duas ficam sozinhas.
– Não... nem imaginava – Tatiana responde, vendo a mulher apertar o botão de novo como se aquilo fosse agilizar a subida.
Quando o elevador parou no 9º andar, Mariana apareceu parada no corredor, assim que a porta se abriu. Ofereceu às esposas um sorriso cansado, antes de abraçá-las, saltando de um colo para o outro.
– Que bom que estão aqui – ela as beija, demoradamente – Como conseguiram entrar? O interfone do prédio está com problema, eu ia descer para abrir para vocês.
– Sua vizinha fez a gentileza de liberar a nossa entrada – Patrícia diz, trancando a porta na sequência, como se passasse algum tipo de recado com aquilo – Ela gosta de alongamentos criativos, né?
– Ah, sim... Pois é, a Laura mora aqui. Soube disso quando os móveis chegaram. Embora ela tenha dito que já tinha mencionado...
– Sei. Era sobre isso que você queria conversar? – Patrícia questiona, visivelmente enciumada.
– A Laura é uma aliada, amor – Mariana responde, olhando para Patrícia, embora falasse com as duas – E essa proximidade vai ser boa porque quero que ela ajude com o meu plano. Eu preciso expor a minha chefe... Sinto muito dizer, amores, mas a Simone me assediou.
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