Trevon 3
3. Órion
Órion acordou
antes de a sirene tocar, como acontecia todos os dias. Particularmente parecia
que ela possuía algum tipo de despertador interno que indicava a hora exata do
apito, porque sempre um alarme pessoal soava antes, com coisa de um ou dois
segundos de antecedência. Só que desta vez ela precisou de um momento para poder
se localizar no tempo e no espaço. Enquanto focava a vista no teto de seu
dormitório, ficou em dúvida se seria dia ou noite e se ateve ao som para
reconhecer que eram cinco e meia da tarde. Fim das Horas Úteis em Trevon e ela ali
deitada.
Assim que a
sirene cessou, Órion fez uma breve retrospectiva daquela manhã, antes de se
levantar. Precisou organizar seus pensamentos porque ainda não parecia verdade
que tinha conseguido a aprovação da comandante para se dedicar a uma
investigação que, sem dúvida, seria infinitamente mais interessante que o
trabalho que tinha feito ao longo de todos os últimos anos. Se lembrou primeiro
do protesto logo cedo, depois de Júpiter, na sequência lembrou-se de Júpiter
machucada na sala de interrogatório do CCC, e aí pensou em Aira, o que a levou
a pensar em Uiliam. Com preguiça, aproveitando o fim de sua folga, ficou uns
instantes deitada de lado, olhando para os óculos em cima da mesa, a alguns passos
dali, exatamente como os havia deixado, e desejou poder ver a mulher da mesma
forma que podia ser vista por ela. Parecia justo!
– Olá,
policial! Boa tarde, seja bem-vinda de volta – Uiliam a cumprimenta, sua voz
grave ecoando dentro da cabeça, causando um leve sobressalto em Órion – Não
acredito que me ver projetada te ajudaria em sua missão; ao contrário, tenho
certeza de que isso só atrapalharia. Inclusive, estou pronta para vermos todos
os seus planos. Me avise quando quiser fazer isso.
– Olá, policial
Boa tarde, seja bem-vinda de volta você também – Órion rebate, no mesmo tom da
colega – Eu não pedi para te ver projetada! Você não pode interpretar meus
pensamentos dessa forma, Uiliam, isso é muito errado! Eu nem estava falando com
você! – ela se defende e emenda um bocejo, ruidoso, sentando-se na cama – Deixa
só eu acordar melhor que começamos o trabalho sim, com prazer. Você está sem
sono? Pretendo analisar alguns dados madrugada adentro, se não se importa.
Sem esperar
uma resposta, Órion se levantou com um impulso, o que fez a luz do teto acender.
Enrolou a coberta que tinha usado durante o cochilo dentro do colchão, que foi dobrado
também. Se espreguiçou erguendo os braços e caminhou até o lavatório coçando a
cabeça, distraída. Estava com o cabelo bagunçado e o pijama (uma antiga calça
de uniforme, já puída) apresentava-se amassado e torto, dando a impressão de
que suas pernas eram trançadas. Em silêncio, lavou o rosto com o restante da
água deixada no banho, mais cedo.
– Alguém
sabe que você usa água de beber para se lavar? – Uiliam pergunta, vendo a
policial sentar-se à mesa. Antes ela puxou da despensa uma tigela com sucrilhos
de milho, que comeu seco.
– Por quê? Por
acaso pretende me denunciar por isso? – Órion provoca, de boca cheia. Achava
importante estabelecer algumas regras entre as duas. Não queria comprometer sua
investigação com chatices vindas de policiais que nem tinham interesse naquilo.
– Não, me desculpe,
só achei curioso. Não é algo comum, por isso perguntei – a mulher responde,
parecendo sincera.
– Tudo bem,
não me oponho a conversarmos amenidades, Uiliam – Órion afirma, também demonstrando
dizer a verdade. Sem querer, a fala se emendou com o pensamento de instantes
atrás.
– Você
realmente acha isso importante? – Uiliam questiona e sua projeção surge quase
no mesmo instante, sem que esperasse por uma resposta. Estava idêntica à aparição
na sala da comandante, mas parecia um pouco maior. Ao olhar para Órion,
levantou um dos ombros – Tudo bem, não me oponho enquanto falamos amenidades.
– Acho
ótimo, grata – Órion diz, sorrindo, empurrando um banco com o pé, observando a
mulher alta, de relance – Vou me sentir menos maluca se não parecer que estou conversando
sozinha.
– Aos olhos
dos outros você é maluca. Digo, porque mesmo projetada para você, as outras
pessoas não me veem, apenas policiais conseguem – Uiliam a lembra, se sentando,
embora não precisasse. Enquanto falava, apontou para a nuca, por onde os
sistemas eram pareados. Ainda tinha o cabelo cacheado de flores e parecia
mastigar um chiclete, meio debochada – Por isso nossas conversas ocorrem no
campo mental. Mas você sabe disso, é claro.
– Sim, eu
sei disso, é claro – Órion repete, se servindo de mais uma porção de cereais –
A comandante estava certa, seu cabelo é mesmo muito bonito!
– Não serão
essas “amenidades” que nós vamos conversar, mocinha – Uiliam rebate, séria, mas
pareceu sorrir, acompanhando os pensamentos da policial. A viu encher a mão com
mais alguns flocos de milho e enfiar na boca mais uma vez – Está ansiosa?
– Não serão
essas “amenidades” que conversaremos também, mocinha – Órion sorri e dá uma
piscadinha – Mas te falo sobre me lavar com água, já que quer saber. E, não,
ninguém sabe que não bebo toda a minha cota. É proibido usar água para se lavar
– ela responde, destemida, mas mordeu o lábio no final, apreensiva, porque
sabia o quão errado aquilo era. Desperdiçar água era falta grave em Trevon.
– Eu sei –
Uiliam responde e sorri quando os olhos de Órion se encontram com os seus – Não
vou te denunciar, pode ficar tranquila. Perguntei porque sempre tive o costume
de fazer o mesmo, só por isso – foi a vez de ela dar uma piscadinha, cúmplice.
Órion
balança a cabeça, se perguntando se deveria acreditar ou não naquele relato.
Cerrou os olhos encarando a mulher, projetada ao seu lado, parecendo tão real
quanto sua tigela de cereal. Todavia, não disse nada e comeu o resto do
alimento, virando a cumbuca na boca para não desperdiçar nenhuma migalha.
– Estou te
falando a verdade, mas você não precisa acreditar em mim se não quiser – Uiliam
afirma, desta vez sorrindo mais abertamente, lendo os pensamentos da policial
com muita facilidade – A propósito, tem de tudo lá onde fico alocada, incluindo
robôs, que são maioria, mas mesmo na Ala 3 do prédio R há humanos trabalhando também
– ela então complementa, em referência ao comentário feito mais cedo – Mas isso
você também não precisa acreditar se não quiser.
– Eu
acredito, não acho que esteja mentindo – Órion responde, sincera. Levantou os
ombros, freando os pensamentos que queriam vir associados àquele assunto – Não
sou de andar muito pelos prédios do Comando – disse, em tom de desculpa.
– Sei. Por
algum motivo especial?
– Sim e
você sabe disso – ela rebate, empurrando o pote de cereal para o canto da
parede. Se a comandante havia encaminhado um arquivo com tudo sobre sua
investigação, com certeza o pacote incluía informações a seu respeito.
– Eu sei...?
– Uiliam insiste, diante do silêncio que durou alguns vários segundos. Ela
sabia que a policial não se afastava do local onde trabalhava, na Expedição,
mas queria que lhe contasse o porquê.
– Você tem
acesso à minha ficha, ué. Por que está me perguntando? É só ver que meu posto
de trabalho é bem afastado, não tenho motivos para ir até outros locais, só
isso.
– Tá, tudo
bem, achei que nós estivéssemos conversando! – Uiliam afirma, vendo a mulher se
levantar de repente e caminhar até um armarinho pequeno, encostado no outro,
maior, onde guardava o uniforme.
Ela sabia
que esta era só uma parte do motivo que a levava a ficar enfurnada no prédio C.
A outra, que era informado logo no começo de sua ficha, era devido à
resistência de Órion em adaptar seu corpo para outros trabalhos. Essa objeção
não era bem vista pelo comando do CCC, que a punia, restringindo seu acesso a
ambientes exclusivos da Polícia, numa tentativa de fazê-la mudar de ideia.
– Estávamos
conversando, mas agora acabou o recreio – Órion informa, apoiando uma caixa na
mesa. O aparelho se revelou ser um projetor e uma tela foi mostrada assim que
ela apertou um botão na lateral. Voltou a se sentar quando um mapa subterrâneo
de Trevon foi exibido na parede branca – Meu objetivo é chegar a essa área. É
onde fica o dormitório da manifestante, objeto da minha investigação – ela diz,
apontando para um ponto no mapa, mais ou menos cinco níveis abaixo de onde
estavam agora.
– Posso te
perguntar quais são os seus propósitos com tudo isso? – Uiliam pergunta. Ainda
estava sendo projetada ao seu lado e quando Órion olhou para seu holograma ela não
pareceu estar fazendo qualquer tipo de julgamento, ao querer saber aquilo.
– Fazer meu
trabalho? – Órion questiona, em tom de resposta – Se você leu o memorando da
comandante Aira, viu que no protesto passado de 05 de maio os drones do Comando
foram todos desviados.
– Sim, isso
eu vi. Mas não encontrei nenhuma ligação entre esse fato específico com essa
mulher em questão – Uiliam fala, apontando com o olhar para Júpiter, exibida
agora na projeção contra a parede. Na falta de uma resposta, ficou um tempo
olhando para a policial, aguardando pacientemente.
– Isso eu ainda
não sei – Órion diz, sendo bem sincera. Levantou os ombros, como se aquilo
fosse só um mero detalhe – Mas tem. Por isso quero investigar e você vai me
ajudar a descobrir que ligação é essa.
– Tudo bem,
policial. Então deixa eu te mostrar isso aqui, que acho que você precisa ver –
ela diz e a imagem que saía do projetor mudou, assim que Uiliam acessou o
sistema – Revendo as cenas do protesto de hoje cedo, reparei que você salvou
esse vídeo – Júpiter voltou a aparecer na tela, mas na versão de dois anos
atrás, quando os manifestantes foram enquadrados pelos policiais do Comando
durante o protesto – Puxei as imagens do quadrante inteiro, de todas as câmeras
de segurança, e editei para você.
De repente
um filminho começou a ser transmitido. Editado com primor, costurando várias
cenas, o vídeo era num giro completo em volta de Júpiter. Órion viu a mulher,
parada no meio da praça, envolta em várias fumaças, algumas inclusive alaranjadas,
das bombas de efeito moral, que tinham essa cor. Ela começou a sorrir no
instante em que a tela se dividiu em dois.
Mais cedo,
quando viu a cena antiga, o sorriso da manifestante chamou a atenção de Órion
porque pareceu que Júpiter tinha visto alguém no meio da balbúrdia. Sua mente
analítica imediatamente a fez acreditar que viria dali a ligação entre a mulher
e o desvio dos drones no ano passado, ou a relação que supostamente existia entre
ela e os robôs dançarinos do protesto deste ano.
Porém, agora,
vendo a tela dividida, Órion finalmente constatava o que havia provocado o sorriso
de Júpiter dois anos atrás: um gato. Um gato em Trevon!
À
princípio, não soube o que fazer com a informação e de imediato pensou nas
horas que economizou deixando de ir atrás de fatos que, na verdade, nem eram
úteis – e ela jamais editaria um vídeo daquele jeito! Sem querer, pensou no
trabalho que teria dado para fazer aquele filminho. Depois, pensou em como era
curioso Júpiter ceder tão fácil a um bichano, e aí finalmente pensou no gato,
especificamente. Há quanto tempo não via um animal como aquele? Aí voltou a
pensar no trabalho de Uiliam editando tudo aquilo para ela, quando olhou para a
colega e ergueu uma das sobrancelhas, parecendo só então se lembrar que a outra
podia ler cada pensamento que assaltava sua cabeça.
– Desculpe,
queria que isso te ajudasse – Uiliam diz.
– Ajudou...
É uma coisa a menos para eu ir atrás – Órion fala, soltando um suspiro pesado,
frustrada. Aí seu rosto se iluminou um pouco e ela falou ao mesmo tempo em que
o pensamento se formou em sua mente – Mas pode ser que esta seja uma informação
valiosa, sim. O que vem depois disso?
– O que vem
depois que ela vê o gato? – a mulher pergunta e a cena volta a rodar
normalmente, sem as edições.
– Aí –
Órion alerta e a imagem é pausada na parede. Voltou a olhar para Uiliam quando
Júpiter, abaixada próximo ao chão, guardava o gatinho dentro do casaco – Precisamos
saber onde está esse gato. Se por acaso ele vivesse em algum dormitório,
registrado como propriedade dela, todos saberiam da existência desse bicho.
Quantos gatos existem atualmente em Trevon?
– Não há
essa informação, o último dado é de quase dez anos atrás – Uiliam responde,
depois de alguns instantes, fazendo uma pesquisa rápida – Você acha que ela
fica em outro lugar, é isso? Mas onde seria?
– Não sei,
mas descobrir parece um bom começo para investigarmos. Você passou a tarde toda
trabalhando na edição desse vídeo?
– Sim,
gostou? – Uiliam dá um quase sorriso – Achei que fazendo isso te ajudaria. Agora
você fica livre para poder trabalhar na sua investigação de verdade.
– Ajudou
bastante, eu gostei muito. Grata – Órion sorri para ela – Me ajuda a descobrir
onde essa mulher se esconde?
– Claro, no
que for possível!
A policial
se levantou e tirou do armário uma calça sarja esverdeada e uma camiseta azul. Colocou
as peças dobradas em cima da mesa, na frente de onde Uiliam permanecia sentada.
Aí cruzou os braços, reflexiva, pensando no que colocaria nos pés, ao mesmo
tempo em que esquematizava na cabeça tudo o que ainda teria que fazer até que a
sirene das cinco e meia da manhã tocasse. Pretendia descer às ruas fundas de
Trevon logo no começo das Horas Úteis.
– Desce
descalça, policial. Qualquer sapato pode levantar desconfiança. Lá embaixo você
dá um jeito de se calçar – Uiliam recomenda e vê a mulher observar os próprios
pés, um pouco desolada – É provisório, Órion – ela complementa e o fato de
chamá-la pelo nome faz com que a outra olhe em sua direção.
– Eu tenho
um pouco de agonia em ficar descalça... – Órion resmunga, levantando um dos pés
para olhar o solado, quase rosa – Mas você tem razão. Qualquer detalhe conta.
– Sim, e também
por isso eu sugiro que você fique aqui, em vez de ficar aqui – o mapa
subterrâneo de Trevon voltou a ser ilustrado na tela projetada contra a parede
– Gera menos suspeita, esta é uma área mais deserta.
– Mas... –
Órion resmunga, porém não diz mais nada. Outra vez a policial tinha razão.
– Veja, você
pode sair por aqui – Uiliam indica um dos portões laterais da Central do
Comando – A gente cria uma ficha falsa, alega que você foi capturada pelo CCC
alguns anos atrás, sei lá. Podemos inventar que você estava presa na Central. E
aí tudo casa: essa versão de prisão, sua roupa e a ficha falsa. Sim, e isso
também, o fato de você estar descalça – complementa, ouvindo o que Órion
pensava – Acho curioso que sua vida estará literalmente em risco e a sua
preocupação se resume a não sujar os pés!
– Mas eu não
estou nem um pouco preocupada com a minha vida!
– Pois é, mas
já os pés... – Uiliam insiste, divertida.
– Claro,
são os únicos pés que eu tenho! – Órion sorri, passando a mão na testa, de uma
maneira um pouco ansiosa. Não estava calor, mas se viu suando – Temos um certo
tempo para nos ambientarmos, até que a subversiva seja solta da prisão.
Precisamos ganhar a confiança de alguém próximo dela, mas vamos descer
literalmente no escuro.
– Sim...
Ainda bem que você não está preocupada com a sua integridade física, né –
Uiliam volta a provocar, apenas para descontrair – Pretende descer quando?
– Você consegue
providenciar um dormitório e a nova ficha até quando? – Órion rebate, voltando
a sentar.
– Já
consegui. O local é esse aqui, que acabei de te mostrar, e a ficha está pronta,
caso seja preciso. Não que alguém lá embaixo vá te pedir esse tipo de coisa,
mas caso você seja parada em alguma abordagem, ao menos não levanta a suspeita
de ninguém. Mas acho que nem é preciso falar que o ideal é você não ser
enquadrada em nenhum momento enquanto estiver por lá. Não quero dizer “fuja da
polícia”, mas fuja.
– E você...
– Coloquei
o seu nome verdadeiro na ficha falsa, pois é assim que você se chama – Uiliam
se antecipa, antes que a mulher perguntasse, porque era nisso que ela estava
pensando – Só me preocupa um pouco esse seu rostinho, tão bonitinho... não
parece que você estava sendo interrogada por um dos nossos.
– Sim,
mas... – Órion leva a mão ao rosto, automaticamente.
– Eu daria
um jeito, se pudesse – Uiliam a interrompe de novo.
– Tipo me
bater? Não sei se aceitaria sua oferta... – Órion responde, reparando que era disso
que a colega falava.
– Seria uma
forma de eu te ajudar! – Uiliam sorri, apesar de estar falando sério.
Órion a
encara, considerando que a possibilidade não era das melhores, mas pelo menos
já a conhecia; talvez até aceitaria. Ter que pedir para a comandante lhe dar uns
sopapos seria algo ainda mais constrangedor. Suspirou, pensando que era uma
pena o fato de Uiliam ser um holograma. Muito bem feito, mas não ao ponto de algo
assim.
– Você pode
enfiar a cara na maçaneta – Uiliam sugere, acompanhando os pensamentos de Órion.
Ergueu uma das mãos para cima, com a palma estendida, apontando para a porta ao
lado delas.
– Ih, o que
foi? Ficou preocupada com a possibilidade de me machucar, é isso? – Órion
provoca, dando um sorriso de canto – Não precisa ter dó de mim não, Uiliam! Eu
sou forte! – ela faz um gesto com a mão fechada no ar, como se pretendesse
socar algum inimigo invisível.
– Jamais,
policial! Sua força é perceptível, não duvido de nada vindo de você. Só fiquei
pensando em como vai fazer depois para sair andando por aí, pelos corredores do
Corpo de Comando e Controle, com a cara toda arrebentada... mas em último caso,
sai de capacete.
– Sim,
também pensei isso – Órion rebate, olhando para a maçaneta. Mordeu a boca
enquanto cogitava aquilo e rapidamente calculava a distância que teria que
tomar para conseguir um hematoma minimamente convincente. Não era do tipo que
sofria por antecedência, mas sofreu.
– Podemos repassar todos os pontos da
investigação antes de você fazer isso – Uiliam interveio, percebendo a
resistência se formar como se fosse uma névoa em volta da policial.
– Claro, é
uma ótima ideia – Órion voltou a sentar, parecendo se acalmar diante da sugestão
de adiar em algumas horas aquela parte específica do plano.
E ela conseguiu
se focar no trabalho durante toda a madrugada, revendo com Uiliam os detalhes
que envolviam sua descida, inclusive no sentido de combinarem sinais e palavras
supostamente aleatórias que deveriam ser usadas em momentos de tensão, caso
houvesse algum. Por sugestão própria, Uiliam ficou responsável por elaborar os
relatórios que Órion teria que enviar para a comandante, a respeito da evolução
de sua apuração lá embaixo. Os documentos seriam antes ditados mentalmente por
Órion.
Juntas, as
policiais estudaram os mapas de Trevon, inclusive os não oficiais, que a
Inteligência do CCC elaborava praticamente todos os dias na tentativa de não
perder o controle do progresso da cidade – nem mesmo o clandestino (e especialmente
este). As duas reviraram também todo o acervo da Polícia atrás de imagens que
envolvessem Júpiter ou alguém de seu bando, de preferência em atitudes
suspeitas, por exemplo, segurando um gato. Sim, porque definitivamente a mulher
não andava só. Porém, nada de anormal foi encontrado.
Ao término
da madrugada, Órion sentia-se preparada para descer e isso em grande parte se
devia ao apoio de Uiliam, que era muito perspicaz e bastante observadora. Ainda
que Órion não tivesse perguntado nada a respeito, até para não constrangê-la, foi
inevitável não pensar no que a teria levado até o prédio R, tão distante das
atividades policiais de verdade. Uiliam, muito discreta, fingiu não ouvir
aquele raciocínio.
– Bom, acho
que é chegada a hora – Órion anuncia, já perto do começo do dia. Faltavam
poucos minutos para a sirene das cinco e meia tocar, mas ela não precisava ver
as horas para saber disso – Foi muito bom te ver e tal, mas... – ela se afasta
alguns passos, dá uma corridinha curta em direção à porta e se joga contra a
maçaneta redonda e metálica. Com o baque, caiu dura no chão, levando as mãos até
o rosto, gemendo baixinho.
– Devo
admitir que você é mesmo muito corajosa. Isso certamente deveria estar na sua
ficha, dona A-348! Muito bem, vai lá, só mais uns três ou quatro desses e você
estará pronta para a sua missão – Uiliam comenta, com ar divertido, apesar de estar
falando sério. O rosto de Órion já começava a ficar avermelhado e ela não disse
mais nada até que a policial parasse de se lançar contra a porta dura, o que
demorou ainda alguns minutos.
Então,
quando o som seco da cabeça de Órion se chocando contra a porta finalmente foi
substituído por apenas uma lamúria sentida e sincera de dor, Uiliam se
convenceu de que a policial era realmente muito mais determinada do que tinha
pensado, a princípio. A observou tirar friamente a blusa para estancar os
ferimentos ao redor dos olhos e um fiozinho de sangue que escorria do
supercílio pingou no peito, descendo para a barriga, quando ela voltou a se sentar
ao seu lado.
– Fico
achando que é injusto você saber o que eu penso, mas eu não ter como saber o
contrário – Órion diz, quebrando o silêncio. O comentário foi tão inesperado
que fez Uiliam rir.
– Estava
pensando que talvez entenda o porquê de a Aira gostar tanto de você – a
policial revela, observando a imediata reação da mulher ao seu lado, diante da
resposta. Órion levantou um pouco a camiseta de cima dos olhos, apenas o
suficiente para encará-la e ver se a outra falava sério.
– A
comandante só gosta de mim porque me pareço com a antiga parceira dela, que
morreu em serviço, muitos anos atrás – ela retruca, num tom um pouco ofendido –
Ou seja, ela gosta de mim por causa de outra pessoa, que eu mesma nem conheci.
Não se engane quanto a esta missão, Uiliam. Não consegui a autorização para
descer por ser uma “exímia policial”.
– Ué e foi
por quê? – Uiliam pergunta, fingindo não reparar no tom usado por Órion,
repetindo o adjetivo escolhido pela comandante para se referir a ela mais cedo.
– Sei lá, talvez
para se livrar de mim, eu acho. Ela mesma disse que não sabia o que fazer
comigo... sumir por um tempo vai ser bom para todo mundo.
– Não acho
que este seria um motivo forte o suficiente para a sua comandante te mandar em
direção à morte. Não, quer dizer... Tudo bem, ei, tudo bem! – Uiliam se apressa
em dizer, ao ver a cara de ofendida que Órion fez, ao ouvir seu comentário –
Não vamos acreditar que isso vai acontecer! Me expressei mal, desculpa! O que
eu quis dizer foi que...
– Eu
entendi – Órion interrompe, se levantando. O movimento fez uma gotinha de
sangue pingar em cima da mesa e teria sujado a mão de Uiliam se ela realmente
estivesse ali. Ao sentir-se tonta com o gesto, porém, sentou-se mais uma vez –
Assim que eu melhorar, saímos. Acredito que o ideal seja subir de uniforme até
o térreo, para não chamar a atenção de ninguém. Tiro a farda naquele vestiário do
final do corredor e saio por onde você sugeriu. Enquanto isso, veja se consegue
descobrir algo lá de baixo, por favor. Vai que estão programando algum motim por
causa de tudo o que rolou ontem e eu não sei... Já pensou? Descer e ser
recepcionada assim?
Órion permaneceu
alguns minutos quieta, com a cabeça um pouco baixa, apoiada na camiseta suja.
Seu peito subia e descia num ritmo rápido, a barriga se mexendo na mesma
velocidade, acelerada, e só quando a respiração se tranquilizou é que ela voltou
a se mexer. Ao abaixar a roupa do rosto, seus olhos se revelaram bem inchados e
vermelhos. Sua aparência era terrível, mas ainda parecia estar melhor que as
pessoas interrogadas pelo Comando.
– Mesmo que
não esteja perfeito, não quero me machucar mais – Órion resmunga, como se
pudesse ouvir o que Uiliam pensava. Por um momento, pareceu apenas uma menina
chorosa, mas rapidamente se recompôs e voltou a falar, depois de um pigarro,
com a voz mais firme – Faz de conta que usaram outra técnica de tortura comigo.
Isso aqui está doendo muito!
– Sim,
imagino que esteja mesmo. Tudo bem, você está uma lástima de qualquer jeito,
seu rosto está todo arrebentado. Ninguém pode dizer que não está machucada –
Uiliam responde, vendo a face da mulher se desconfigurar mais a cada instante,
com os inchaços transformando um pouco suas feições.
– Espero
que valha a pena... – ela diz, como se falasse sozinha.
Órion pegou
a camiseta dobrada de cima da mesa e a vestiu devagar, passando lentamente a
peça pela cabeça, com nítida dificuldade. Gemeu baixinho quando a gola enroscou
no nariz, bastante machucado, antes de finalmente descer a peça em direção ao
pescoço. Ao ajustar na cintura, estranhando uma vestimenta tão larga e tão
diferente de seus trajes cotidianos, sempre incrivelmente justos, passou a mão
por cima dos seios, soltos ali debaixo, o que também era bastante incomum.
Geralmente ela só ficava assim para dormir, mas sabia que nenhuma mulher comum usava
sutiã em Trevon, por se tratar de uma peça exclusiva para uso do Comando, embora
produzida por quem vivia lá embaixo. O contato com o tecido, mesmo rápido, fez
seus mamilos se enrijecerem, se destacando sob a roupa azul desbotada.
– Tudo bem,
isso não será novidade para ninguém, relaxa – Uiliam garantiu, ao ouvir os
pensamentos preocupados de Órion e o suspiro alto ela que soltou entre os
dentes – Não se perca nesses detalhes, menina. Foco!
Órion
concorda com a cabeça, pensando sem querer se Uiliam por acaso saberia que Aira
costumava chamá-la assim, nos raros momentos em que a comandante se permitia
ser gentil com ela. Depois, imediatamente torceu para que aquele pensamento de
alguma forma não fosse interceptado pela colega. Não era hora para
sentimentalismos, afinal.
– Lá
embaixo é outro mundo para mim – Órion comenta, por um instante se esquecendo
das reações naturais de seu corpo. Ao sentar-se, seus seios já estavam voltando
ao normal. Ou melhor, ao menos pareceu que sim, pois ela enxergava só com o
olho esquerdo parcialmente aberto porque o direito já nem abria mais – Mas
sempre me flagro pensando que deve ser muito mais difícil ser mulher aqui em
cima. Digo, pertencer ao CCC.
– Não
discordo de você – Uiliam responde, se ajeitando na cadeira como se fosse uma
pessoa de verdade sentada ali, se acomodando para um momento de intimidade e
confidências com uma amiga – Eu trabalhei um tempo infiltrada. Foram alguns
anos – ela revela, como se acessasse lembranças de outra vida – Lá embaixo é
realmente outro mundo e aqui em cima é de fato mais duro para nós... mas lá é
uma realidade difícil ainda assim, até doída! É uma vida bem sofrida. Você
precisa estar preparada para o que pode vir a enfrentar.
– Me
preparo a vida toda, Uiliam. E está na hora do Comando reconhecer de verdade o
meu valor. Eu não tenho nenhum implante.
– Eu sei.
– Sou a
única do CCC assim.
– Sei também.
Isso está na sua ficha! – Uiliam se adianta em dizer, quando Órion ergue a
cabeça para encará-la – Posso perguntar por quê? – ela vê a policial levantar
os ombros.
– Nunca
quis, sei lá – Órion responde, percebendo que aquilo não soava convincente nem
para ela – Foram as duas únicas decisões que eu pude ter na vida: os implantes
e escolher um parceiro. Duas coisas, só – ela repete, levantando dois dedos no
ar – “Não consegui” é uma resposta aceitável?
– Acho que
sim – Uiliam fala, se compadecendo da mulher.
Órion se levantou
novamente e, com os olhos praticamente fechados, tirou a calça e a calcinha,
vestindo na sequência a calça sarja que estava separada sobre a mesa. Fez um
movimento sutil com o quadril, se acostumando com a vestimenta grossa e com o
fato de não estar usando mais nada por baixo da peça.
– Qual é o
seu? Implante – Órion então pergunta.
– “O corpo
inteiro” é uma resposta aceitável? – ela ri, mas só porque aquilo era verdade –
Fiz muitas modificações ao longo da vida: nas pernas, nos olhos, mexi nos dois braços...
Alterei meus ombros, as omoplatas, até as plantas dos pés...
– Na dúvida
sobre o que fazer...
– Sim, mais
ou menos isso. Acabei fazendo de tudo. Ou quase tudo.
– Tá, mas e
hoje...? – Órion insiste, só porque sentia a mulher se esquivando na resposta.
– Hoje é
quase isso que você vê – Uiliam volta a sorrir – Exceto pelo cabelo, claro.
Ainda não inventaram moda que me acompanhe.
Órion
balança a cabeça, mas ainda que não pensasse nada e tivesse no rosto uma
expressão de sofrimento e não de descrença, não parecia acreditar no que ouvia.
Mas não disse nada porque, pelo menos, ouvir aquilo a ajudou a se distrair da
dor, que vinha em duros golpes latejantes, irradiando para a cabeça toda.
– Por que
saiu de lá, Uiliam? Do serviço que você fazia lá embaixo como infiltrada? –
Órion pergunta e, num primeiro momento, recebe como resposta alguns segundos de
silêncio.
– A vida
mudou, sei lá – Uiliam finalmente fala, mas pela primeira vez sua voz grave
pareceu um pouco incerta – Eu engravidei.
– Ah! –
Órion responde, como se só suspirasse.
– Não é
isso que está pensando.
– Eu
literalmente não estou pensando nada! – Órion rebate e sorri, porque Uiliam
sabia que era verdade – Mas isso faz parte dos motivos de eu achar tão difícil a
vida de uma mulher! E acredito que era ainda mais complicado no passado, quando
vocês eram obrigadas a se reproduzir pelo menos uma vez na vida.
– É,
finalmente isso mudou!
– Fico
pensando em quantas lésbicas se foderam com essa imposição absurda de
reprodução forçada... Ainda bem que pelo menos nisso nós conseguimos avançar.
Nós, sociedade. Eu não teria peito de encarar uma briga dessas.
Uiliam não
diz nada porque, como vinha ocorrendo com frequência, Órion a surpreende com o
comentário. Reconheceu que Aira tinha razão e não estava sendo apenas puxa-saco,
como lhe pareceu, quando afirmou que a policial era sagaz.
– O que
você acha que mudou? – Órion questiona.
– A
quantidade de policiais atingiu o limite mínimo estabelecido pelo CCC. Aí é
possível que uma entre três mulheres tenha a opção de não se reproduzir –
Uiliam responde, sem pestanejar.
– Não, isso
é o que eles dizem. Eu perguntei o que você acha – Órion insiste
e suspira, um pouco impaciente, quando a outra fica quieta – Eu acredito que
tem a ver com os robôs – ela então responde, diante do silêncio da colega que a
encarou, curiosa – Não sei, acho que, de alguma forma, os policiais que morrem
são revividos em corpos de metal.
– Uau! É uma
suposição e tanto...
– Os
humanos se procriarem menos acelera esse processo de substituição, que é executado
pelas máquinas, mas orquestrado por alguém – Órion continua, compartilhando com
Uiliam apenas uma de suas várias teorias conspiratórias.
– Pensar
assim é o que faz o Comando pegar no seu pé?
– Eu sou
uma clara ameaça para eles! – Órion afirma, triunfante. A fala contrastava um
pouco com a aparência de seu rosto machucado – Você acha que pegam no meu pé?
– Bom... na
sua ficha consta que você é proibida de circular em vários prédios oficiais do
CCC. Incluindo os anexos, que em geral são liberados.
– De novo,
você está dando importância para o que eles dizem... A alegação oficial é a de
que não tenho gabarito para entrar nesses locais e durante anos me pressionaram
justamente com isso para acelerar a minha decisão quanto ao implante. Sei lá, sempre
achei tão esquisita essa insistência toda...
– Hum, deixa
ver se eu entendi... A sua teoria é a de que o CCC de alguma maneira te força a
virar “um deles”, antes que aconteça essa “dominação total”, orquestrada pelas
máquinas, mas comandada por alguém – Uiliam pareceu sorrir ao dizer aquilo –
Quem?
– Isso eu
não sei. E enquanto não sei o que tem nesses lugares minha cabeça cria mil e um
cenários, me julgue. Inclusive penso nas possibilidades mais absurdas e elas é que
fundamentam as minhas desconfianças.
– No caso,
que os robôs...
– ... estão
substituindo os humanos no Comando, sim – Órion completa.
– E o seu
preconceito com a robótica começou quando, exatamente?
– O quê? Você
está falando sério? – Órion retruca, um pouco ofendida.
– Ué... –
Uiliam vê a mulher se levantar, arrastando a cadeira no chão, provocando um som
seco – A tecnologia é o futuro, policial. Não dá para escaparmos disso.
– Isso é papo
de negacionista, me desculpe – Órion se vira e caminha até o armário. Abriu as
portas com certa impaciência, pegou as peças do uniforme e começou a se vestir.
Só então pensou que deveria ter feito tudo isso antes de se machucar ao ponto
de quase não conseguir enxergar e aí foi muito fácil se penitenciar, como era
de costume.
– Seja
gentil com você, Órion. Ei – Uiliam a chama e aguarda que ela olhe em sua
direção. Determinados pensamentos pareciam ganhar forma, de acordo com a
intensidade que Órion aplicava – Não estamos com pressa, ainda temos dois dias
até a rebelde ser solta.
– Dois? Tudo
isso? Tem certeza?
– Sim, é o
que aparece no sistema. A data de soltura dela está marcada para segunda-feira
de manhã.
– Dois dias
é muito tempo... Três, contando com hoje. Em geral averiguações como a dela são
mais rápidas. Espero que não a matem antes de eu investigá-la! – Órion pareceu
preocupada com a informação – Já pensou? Chego lá e não tem nem o corpo...
– É, mas
ela está viva. Ainda – Uiliam faz uma pausa, breve – Aparentemente essa tal de
Júpiter se dá bem com todo mundo, então não vai ser difícil encontrar alguém
que a conheça.
– Sério? É tão
popular assim? Mas esse protesto que ela organiza é sempre tão vazio... Ontem
mesmo foram presos só 75 manifestantes.
– É, mas isso
pode ser por outros motivos – Uiliam ressalta. Muita gente tinha medo de sair
às ruas, afinal – Ainda assim, analisei tudo o que encontrei sobre ela lá
embaixo, cada pessoa com quem teve contato nos últimos dois anos e não vi nada de
suspeito, em nenhuma das imagens. Nada que tenha relevância, eu digo.
– Agradeço muito
a sua ajuda, de verdade – Órion dá um meio sorriso e volta a se vestir. Sua
cabeça estava povoada com milhares de pensamentos e Uiliam não disse nada
porque não quis interferir em seu fluxo metal.
A principal
preocupação da policial, naquele momento, era conseguir sair da área vigiada
pelo Comando. No caso, a primeira parte da missão era deixar o prédio dos
dormitórios sem ser notada por ninguém, o que era bastante difícil. Havia o
risco de ser interceptada antes de chegar às ruas e se isso acontecesse ela
seria levada de verdade para interrogatório, onde a machucariam muito mais do
que a maçaneta de uma porta.
Antes de
vestir o capacete, sempre a última peça do traje, Órion deu uma rápida olhada à
sua volta, como que se despedindo brevemente daquele espaço, que serviu como seu
lar por tanto tempo, durante tantos anos. Não tinha ideia se conseguiria voltar
ao final de sua investigação e precisava ser muito realista quanto a isso. Quando
a sirene tocou, a policial colocou os óculos, o capacete e viu Uiliam acenar
com a cabeça, antes de sua projeção desaparecer.
– Peraí – ela
alertou, quando Órion colocou a mão na maçaneta respingada de sangue – Pronto,
agora pode ir.
Embora
trajada igual a um robô, Órion sabia que era possível que a reconhecessem no
sistema como sendo humana, mas ainda assim saiu do dormitório com o capacete, parecendo
apenas mais uma máquina, no intuito de esconder os hematomas que ela própria havia
provocado em seu rosto. A etiqueta do Corpo de Comando dizia que em ambientes
internos como aquele não se deveria usar capacete, mas paciência. Deixou as
formalidades de lado pelo bem de seu plano e, principalmente, de sua vida. Por
isso, tentou ser rápida no trajeto entre o dormitório e o vestiário que havia
perto da saída lá em cima.
Mesmo sem
conseguir enxergar um palmo diante do nariz, optou por subir pelas escadas para
evitar de encontrar com alguém no elevador. O tempo todo contou com o auxílio
de Uiliam, que pelo sistema tinha condições de indicar os melhores caminhos,
com menos obstáculos, até a saída. Em outras palavras, ela serviu como os olhos
de Órion, que estava impedida de ver qualquer uma das informações que o visor
de seu capacete projetava.
Foram
momentos de pura tensão, mas não porque elas estivessem preocupadas com o
perigo envolvido e sim porque se tratava da primeira etapa do plano. Afinal, a
dupla ainda estava ajustando a sincronia que precisaria ter quando estivesse lá
embaixo e a subida até a rua serviu como um bom teste para isso. Com astúcia, as
policiais tiveram êxito na empreitada e conseguiram chegar até o vestiário pretendido,
no final do corredor.
Lá dentro, Órion
se desmontou sem pressa e guardou o uniforme em um dos armários que tinha no
local, trancando na sequência. Antes de sair do vestiário, já vestida como se
fosse apenas uma mulher comum, jogou a chave fora, no lixo a vácuo. Sem querer,
imediatamente pensou que tinha acabado de descartar a única chance que poderia
trazê-la de volta à vida como A-348.
– Quando
chegar o momento você atravessa essa ponte – Uiliam recomenda, parafraseando um
ditado muito antigo. Sua voz ecoou dentro da cabeça de Órion, que estava mais preocupada
em sair dali.
Ela só não
correu para não chamar a atenção de ninguém, mas sua vontade foi essa. Sentiu-se
muito estranha por estar num prédio oficial parecendo só uma civil, mas em
instante algum Órion ficou com medo. Na verdade, jamais havia se sentido tão
viva e tão cheia de coragem, seu corpo inteiro vibrava com a emoção gerada pela
adrenalina e por estar sem o peso do uniforme. A leveza era estimulada por
vários motivos e conseguir sair do prédio sem ser notada foi mais um deles. Primeira etapa concluída com
sucesso!
Porém, o alívio
por chegar na calçada foi logo substituído pela imediata agonia de ter que
pisar naquele chão descalça. Órion mancou por causa disso e seu caminhar trôpego
combinou com seu rosto todo machucado.
– Não,
espera, não vai por aí, não – Uiliam a alerta, vendo o caminho que ela escolhia
– Desce na outra rua, Órion. Está cheio de guarda do Comando ali na esquina.
– É horrível
não conseguir enxergar... – Órion reclama mentalmente, sem especificar a qual
tipo de visão se referia. Sem o capacete da Polícia ela só conseguia ver aquilo
que estava diante de seus olhos, tão restritos, mas no momento nem assim era
possível enxergar alguma coisa, considerando os machucados em seu rosto.
Caminhou
alguns metros com visível dificuldade, sem pensar em mais nada a não ser chegar
na próxima entrada que levava ao submundo de Trevon. Foi se escorando no muro
para poder se guiar, mas apoiou-se principalmente nas coordenadas que Uiliam
repassava.
– Psiu, ei –
alguém a chama – Ô maluca, sai daí – uma mulher insiste, puxando Órion pelo
braço, escondendo-a num beco.
– Eu não
achei que ela representasse algum perigo, desculpe! – Uiliam se justifica,
antes que Órion reclamasse do fato de a colega não ter alertado quanto a
possibilidade de aquilo acontecer.
– Toda
estropiada, pobrezinha, olha só isso – a mulher diz e só então Órion reparou
que havia outra pessoa ali junto dela, com o rosto igualmente coberto – Toma,
coloca isso aqui – ela continua, enrolando um pano malcheiroso em volta de sua
cabeça – Não deixa eles te verem assim, o Comando adora bater em quem já
apanhou – ela revela e, sem dizer mais nada, guarda os óculos de Órion no bolso
da camisa – Lá embaixo eu te devolvo. Agora não vai ser muito útil, de qualquer
jeito – complementa, cochichando, e se cala quando uma dupla de robôs passa
perto delas.
– Vai,
liberou – a segunda mulher diz e Órion sente novamente a mão da primeira em seu
braço, agora a conduzindo num ritmo rápido, na mesma direção em que caminhava
anteriormente. Seus pés doíam com os pedriscos do chão, mas compreendeu que
ficar parada poderia machucá-la de formas muito piores.
– O nome
dela é Eoni – Uiliam informa, ainda perto o suficiente para estabelecer uma
comunicação – A outra se chama Aness. As duas são rebeldes com fichas que apresentam
poucas infrações, todas leves, a maioria são só contravenções por vadiagem –
ela complementa, repassando as informações conforme lia no sistema.
– Para onde
estão me levando? – Órion pergunta, sem muitas condições de recusar àquela
ajuda. Ao passar por uma entrada clandestina o escuro imediatamente impediu que
ela enxergasse o pouco que ainda conseguia ver.
– Lá para
baixo, com certeza. Mas elas estão sendo seguidas, toma cuidado – Uiliam
responde, assim que as três mulheres entram num acesso estreito, que as levou até
uma espécie de escada – São 400 andares. Presta atenção nessa descida. Uma
queda pode ser fatal.
– Vem,
moça. Segura firme, essa escada é mais lisa no começo – Eoni fala, a conduzindo
com a mão em sua cintura, ajudando-a a se virar para poder descer.
Aquela era
uma descida diferente para Órion, acostumada aos elevadores bem iluminados do
Comando, que em pouquíssimos segundos desciam andares inteiros sem emitir
nenhum som. A escada que agora usava era claramente improvisada, pregada na
encosta de uma rocha que sustentava vários corredores que se estendiam a perder
de vista – ou ela é que não via o fim por causa dos olhos feridos e devido à
escuridão completa. Os ferros em que se segurava eram roliços e extremamente
escorregadios (nas mãos e especialmente para os pés) e Órion ficou grata por
estar descalça porque assim conseguia prender os dedos suados em cada barra que
servia de degrau.
Realmente
os primeiros minutos foram os mais preocupantes e exigiram maior atenção porque
era preciso tatear para conseguir descer poucos metros, mas logo Órion se
ajustou aos movimentos necessários e ganhou confiança, ainda que não pudesse
enxergar absolutamente nada. Ouvia Eoni bem acima e, logo abaixo, era possível
escutar a respiração pesada de Aness, descendo na mesma velocidade que ela.
E tudo ia
bem até que de repente Órion se viu obrigada a seguir um plano B, quando do
nada surgiram dois robôs que cercaram as três mulheres em apenas um segundo. No
escuro e com os olhos machucados, não conseguiu ver de onde os policiais
surgiram, mas compreendeu que a tecnologia deles as tornava presas muito
fáceis.
De repente,
diversos e doloridos golpes passaram a acertar todo o seu corpo, aplicados de várias
direções, o que a forçou a sair da escada e se escorar no que pareceu ser uma
espécie de gruta. Além de seus próprios lamentos de dor, escutava apenas os
estampidos dos cassetetes açoitando sua pele como se fossem pedaços raivosos de
pau. Quase todos miravam sua cabeça, o que a fez se proteger com os braços, que
se quebraram.
Lá no
fundo, bem lá no fundo, ouvia às instruções de Uiliam, que tentava a todo custo
ajudá-la a se desvencilhar das pancadas, porém em vão. Tudo acontecia tão
rápido e Órion se via tão acuada que em dado momento só lhe restou torcer para
que tudo acabasse de uma vez e ela morresse logo. Sua investigação seria
concluída e arquivada desta maneira: prematuramente, antes mesmo de começar.
Só que aí,
no meio da confusão gerada por aquela luta literalmente desumana e absurdamente
desigual, Órion nem viu de onde saiu um grupo de rebeldes que
inacreditavelmente colocou os policiais para correr. Jamais havia ouvido nenhum
relato do tipo, mas nem teve tempo de pensar no ineditismo daquilo porque,
desavisada, foi a que mais se machucou naquela emboscada.
Órion era
“café com leite” na arte de apanhar do CCC e foi resgatada por pessoas que não
fazia ideia de quem eram. Foi assim que chegou à verdadeira Trevon muito mais contundida
do que antes de descer.
– Bom,
agora ninguém pode alegar que o Comando não te deu um trato – Uiliam diz, mas
Órion registra só uma parte do comentário. Sentindo-se triturada por dentro,
nem percebeu em que momento perdeu a consciência e desmaiou.
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