Trevon 4
4. Novo Mundo
A parte
funda de Trevon era preenchida pelo completo escuro e por um som intermitente que
os nativos chamavam de “silêncio”. Era um ruído constante que afirmavam ser o resultado
do movimento da Terra, um barulho gerado pelo deslocamento do globo no meio do espaço,
rasgando o universo. Os mais românticos, por seu turno, diziam se tratar de uma
espécie de batimento cardíaco, impulsionado por um planeta que permanecia vivo.
Diferentemente
de qualquer outro ruído, inclusive eletrônico, aquele era paradoxal porque
parecia que quanto mais se ouvia, menos se escutava. Em outras palavras, era como
se depois de um tempo registrando aquilo o cérebro simplesmente bloqueasse. Mesmo
assim, foi o primeiro som que Órion registrou quando acordou, sentindo-se desnorteada,
e foi nisso que se agarrou para se manter desperta.
Num
primeiro momento não soube precisar em que parte de Trevon se encontrava exatamente,
muito menos quantas horas havia passado desacordada após a emboscada do CCC. Pensar
nisso doeu porque a forçou a se recordar das agressões recebidas sem motivo,
num espancamento que durou vários minutos e que terminou com ela desmaiada.
Órion desconhecia
qualquer tipo de treinamento do Comando que orientasse a Polícia a realizar abordagens
desta forma, com ataques surpresas que visavam a golpear principalmente a
cabeça do inquirido. Isso sem falar na covardia de se atacar pessoas que eram
simplesmente incapazes de enxergar no escuro enquanto os robôs, ao contrário,
não apenas viam tudo com seus poderosos sensores infravermelhos como também contavam
com tecnologias potentes que tornavam condutas como aquela abusivas e até mesmo
letais. Ela sentia que poderia ter morrido, caso eles não tivessem corrido.
Pensando
agora, o que a salvou foi uma boa pitada de sorte e um milagre que até aqui Órion
ainda era incapaz de compreender, devido a uma completa falta de parâmetro.
Nunca tinha ouvido falar em policiais que fugiam e ignorava também a existência
de rebeldes com sagacidade suficiente para afugentar robôs. Mas sua curiosidade
maior girava em torno de descobrir o que é que usavam contra as máquinas. Ela
desconhecia qualquer tipo de vulnerabilidade nos dispositivos do CCC,
teoricamente invioláveis.
Lembrou-se então
do som que o grupo produziu antes de atacar, no instante em que surgiu das
sombras e salvou sua vida, a livrando da Polícia. Soou como se fosse um
cântico, um grito de guerra enfeitiçado que ecoou entre as rochas daquela
gruta, chicoteando pelas ruas mais rasas de Trevon. Havia poder naquilo! E o
rugido produzido em sintonia com palmas foi eficiente para escorraçar dois
robôs abusivos. De que maneira ela ainda não sabia.
Órion nunca
tinha estudado nada que apontasse a mais remota possibilidade de algo assim ser
possível de existir ou acontecer, e o desconhecido tinha o poder de deixá-la completamente
fascinada. Por isso, se esforçou para sair da síncope que a mantinha num estado
de inconsciência e letargia forçada.
Com a
cabeça agitada, permeada de pensamentos que não se explicavam, Órion acordou em
etapas, grogue e confusa, sem nenhum senso de direção e a menor noção de
horário. E para conseguir despertar de verdade ela acordou e apagou tantas
vezes que nem conseguiu contar quantas, mas foram muitas até ter condições de sustentar
um estado mínimo de atenção.
– Uiliam? –
ela chama mentalmente, mas não recebe nenhuma resposta. Tudo o que ouviu foi o
“silêncio” e, mais ao fundo, algumas vozes desconexas.
A impressão
que tinha é que estava amarrada. Sentia os dois braços pesados, contidos de um
jeito como se estivesse presa, mas não quis se certificar, pois se mexer
poderia chamar a atenção de alguém. Finalmente de volta ao comando de sua
mente, considerou que era melhor primeiro estudar o ambiente antes de tentar alguma
movimentação. Foi então que percebeu que seus olhos estavam tampados por uma
espécie de venda que tinha um cheiro agradável, mas não conseguiu identificar
que aroma era aquele, especificamente.
Ao sentir
uma pontada na lateral da barriga, Órion constatou que não tinha a menor ideia
de como havia ficado após a ação policial e imaginou um escâner passando por
todo o corpo, na tentativa de identificar qual era a situação de seu estado
físico. Começou pela sola dos pés, que apesar de machucadas, pareciam estar apenas
com feridas leves, provocadas pela falta do costume de andar descalça. Avaliou
que, embora bastante sensíveis, não se tratava de nada que a impediria de
correr, caso fosse preciso. Com um micro movimento, muito sutil, percebeu que
seus calcanhares encontravam-se livres de amarras, o que era um ótimo sinal.
Ainda
assim, mesmo que não estivesse com os tornozelos presos de nenhum jeito, o
gesto foi suficiente para indicar diversas lesões, principalmente na perna
direita, que impossibilitavam qualquer plano de fuga. Não parecia ter nenhum
osso quebrado, mas eram contusões graves mesmo assim. Como estava impedida de enxergar,
Órion imaginou hematomas em cima dos pontos sensíveis, depois que contraiu os
músculos das pernas para ressaltar onde a dor pulsava mais, como se mapeasse e
destacasse com um X a parte mais crítica. Na mesma hora veio a memória dos
cassetetes dos robôs batendo com força contra partes duras de seu corpo, por
exemplo, os ossos dos joelhos, e ela quase gemeu porque se lembrar do som
daquilo foi muito desagradável.
Igualmente
aborrecedor foi se recordar do barulho de seus antebraços se quebrando. E ela se
lembrou na verdade da sequência de sons: primeiro o vento sendo cortado pelo
cassetete e depois o zunido da mão mecânica avançando rapidamente em sua
direção, finalizando com um ruído seco, naquele tom de osso oco. Achou terrível
fraturar um membro assim, tão perto do ouvido! Seus braços estavam sobre a
cabeça porque nesse momento Órion protegeu o crânio de não se rachar. Por
sorte, seu instinto de preservação a alertou de que colar os braços depois poderia
ser mais fácil.
Ao examinar
o tronco, ainda como se um aparelho estivesse escaneando seus órgãos, Órion
constatou que havia algo de errado dentro dela. Concentrou-se na tentativa de
apontar o local exato do incômodo e ficou na dúvida se o problema seria com um
dos rins ou com o fígado. Talvez apalpando fosse mais fácil para detectar e ela
certamente faria isso na primeira oportunidade que tivesse. Antes de examinar o
restante do corpo, porém, torceu para que não fosse nada sério ou grave o
suficiente para no longo prazo impedi-la de levar sua investigação adiante. Ela
já estava lá embaixo, afinal! Viva!
Órion não observou
nenhum tipo de dor nos braços, em partes porque foi incapaz de percebê-los. Parecia
que ou não existiam mais ou algo os encobria, ao mesmo tempo que os deixava
pesados, para não dizer “inexistentes”. Não sentia a própria pele. Ou melhor,
talvez até sentisse, só que quente e abafada, como se estivesse trajando o
uniforme da corporação ou algo grosso o suficiente para impedir que até mesmo o
vento fosse capaz de tocá-la. Temeu estar virando um robô, nunca quis braços
mecânicos, afinal. Aí decidiu contrair os músculos, com cautela, e na mesma hora
diferentes partes de ambos os membros doeram, o que a fez perceber que o corpo
estava inteiro, não havia nenhum implante, mas a constatação foi também um
choque, que irradiou mais no braço direito do que no esquerdo.
Suas mãos
estavam aparentemente soltas, mas ela as sentia contidas mesmo assim – tanto
que nem se mexeram, mesmo quando a policial as forçou para cima e depois tentou
movê-las para os lados. Inclusive, foi nesta tentativa de se mexer que Órion percebeu
as palmas suadas, do jeito que ficavam quando sentia-se nervosa. Ou seja, seu
físico estava abalado e seu emocional também apresentava-se totalmente em
frangalhos.
– Uiliam! –
Órion chamou de novo, mas agora de um jeito como se estivesse gritando o nome
da policial em pensamento, num quase desespero mental.
Embora inicialmente
nem tivesse cogitado a possibilidade de descer acompanhada, desde que Uiliam tinha
se disposto a ajudá-la na missão, Órion não havia pensado em quais seriam suas
ações diante de uma eventual falta desse apoio; a colega era seu elo com o
sistema da Polícia, afinal. Então, reuniu o máximo de energia para elaborar uma
lista com as alternativas que tinha, considerando que estava debilitada, fraca,
faminta e machucada. Frustrada, admitiu que não havia muitas opções. Em
realidade, não conseguiu pensar em solução alguma porque se viu completamente rendida
embaixo da terra. Estava perdida, sozinha e abandonada à sua própria sorte.
Depois do
incidente caótico envolvendo os robôs do CCC no escuro, Órion não tinha nenhuma
recordação de como havia saído da armadilha, muito menos sabia de que maneira tinha
deixado aquele lugar. Ela não se lembrava qual havia sido de fato o desfecho do
ataque e muito menos em que momento Uiliam e ela teriam se separado depois de
toda aquela confusão. A mulher não havia registrado na memória nem mesmo se
chegou a reaver os óculos em algum momento depois de descer por aquela escada
clandestina, acompanhada por duas completas desconhecidas.
Eoni e
Aness. Esses foram os nomes informados por Uiliam e se resumiam às únicas
pistas que a policial tinha sobre as civis que tampouco sabia onde é que se
encontravam neste momento. Além dessa informação, tinha decorado o timbre de
suas vozes, que Órion fez questão de guardar na cabeça, que agora doía diante
do arrependimento de não ter solicitado a ficha corrida de cada uma delas
quando teve a chance. Temia não ter a oportunidade de fazer isso em algum
momento a partir de agora.
Órion recordou-se
de Uiliam alertando que as duas estavam sendo seguidas e aí se perguntou se a
colega por acaso saberia de onde elas vinham e o porquê da perseguição, o que
teria provocado a caçada. Acreditou que não poderia ser nada grave porque, caso
fosse, Uiliam teria impedido que ela aceitasse àquela ajuda. Não teria?
Como era
adepta de teorias das mais conspiratórias possíveis, sentiu-se sabotada e por
um momento Órion chegou a pensar, sem discernimento nenhum, se as mulheres teriam
algo a ver com aquela emboscada, mas logo descartou a ideia, por soar absurda
demais. O CCC era conhecido por dominar as pessoas e por isso dificilmente
algum humano aceitaria colaborar com o Comando desse jeito – a não ser que
fossem integrantes do sistema, mas quanto a estes Órion tinha um pouco de
dúvida em relação à “humanidade” de cada um. Era uma linha muito tênue que
separava homens de máquinas e ela mesma ainda não tinha conseguido definir com
exatidão onde acabava um e começava o outro. Honestamente, nos últimos anos
parecia que era a única pessoa de verdade na Polícia, em partes por causa disso.
Chamou Uiliam
mais uma vez, agora já sem muita esperança de obter algum retorno. Na ausência novamente
de uma resposta, Órion apurou os ouvidos para a conversa que ocorria perto
dali. Pelos ecos que as vozes emitiam, ela estava dentro de uma caverna.
– ... na
próxima eu vou arrancar a cabeça de uma mula e trazer como prêmio, foda-se –
alguém disse – Vou pendurar ali naquela parede, como se fosse um troféu.
– Vai nada!
Imagina que você escolhe bem a parte que tem o GPS, sem saber – uma pessoa
respondeu. Ninguém parecia se importar com Órion deitada logo ali – Aí você
traz a porra do CCC todo para cá! Já pensou, que desastre?
– Gente,
ninguém vai trazer cabeça de mula nenhuma! – outra voz disse.
– E um dedo?
Posso arrancar só um dedinho? – a primeira voz perguntou, mas logo o
questionamento foi abafado por várias risadas. Aparentemente não se tratava de
uma dúvida séria.
– E essa
daí? – uma mulher então perguntou. Era uma voz diferente, imponente, e antes de
terminar de indagar o grupo todo já estava em silêncio, prestando atenção ao
que ela dizia. Era óbvio que se referia à Órion, que controlou a respiração
para que achassem que permanecia dormindo – O que nós vamos fazer com ela?
– Uiliam? –
Órion chamou novamente, com um fio de voz mental – Cadê você?
– Nós temos
que esperar a Júpiter voltar para decidirmos juntas o que vamos fazer – foi a
primeira resposta. Era a voz de Eoni.
– Ainda bem
que a ideia de trazê-la aqui para baixo foi sua! – Aness rebateu. Seu timbre ficou
registrado na mente de Órion.
– Claro, deveria
deixar a mulher ser alvejada lá no meio da rua? Permitir que uma guerra começasse
de novo? – Eoni retrucou, irritada – Isso colocaria tudo a perder. E eu não teria
coragem de largá-la depois para morrer sozinha naquele beco.
– Nós temos
que considerar que a Júpiter pode não voltar – a voz imponente alertou, gerando
imediatamente uma onda zangada de protestos – Gente! Pessoal, ei! É uma
possibilidade real, se liga! Desde quando o CCC interroga alguém por mais de um
dia? Todo mundo já foi liberado, vamos acordar!
O
burburinho que se instaurou entre o grupo, que tinha vozes predominantemente
femininas, foi bem parecido com o tumulto que imediatamente se criou na cabeça
de Órion. As chances de Júpiter já estar morta eram grandes e tão reais que até
seu próprio bando cogitava a possibilidade de ela não voltar mais. Era um
péssimo sinal o fato de todos os manifestantes de 05 de maio já estarem
liberados, exceto ela. Várias pessoas desapareciam por muito menos.
– Tudo bem,
Thaian – Eoni então disse, silenciando a turma novamente – Mas vamos esperar o
fim do prazo de todo jeito. Me recuso a declarar algo assim de alguém que pode perfeitamente
voltar. Você conhece a Júpiter, qual é!
– É
verdade, a Júpiter é foda – alguém concordou.
– Aposto que
ela volta – outra pessoa complementou.
– Isso, vamos
esperar até amanhã, são só algumas horas, afinal – a pessoa que queria arrancar
uma cabeça reforçou – Se duvidar essa daí nem acorda até lá.
Era
domingo, então. Órion tinha passado dois dias inteiros desacordada. Dois dias e
meio, a depender de que horas fossem agora. Pensar nisso a deixou mais nervosa do
que escutar à discussão entre as marginais e desta vez ela não conseguiu
controlar a respiração. Na verdade, foi muito pior porque Órion teve uma crise
de ansiedade que espremeu seus pulmões, arrancando até o último suspiro.
– Olha aí! Só
porque eu falei ela acordou!
– Uiliam! –
Órion gritou, mas seus ouvidos registraram só um chiado que nem de longe
lembrava uma palavra. Sentiu-se afundando na esteira, derretendo no próprio
desespero.
– Mulher! –
Eoni a chamou, com o rosto muito perto do seu.
Ela tirou a
venda que protegia os olhos de Órion, fazendo com que uma claridade repentina
banhasse suas pupilas sensíveis. Foram necessários alguns segundos até a vista
se acostumar com a luz e focar em alguma coisa, mais ainda porque a policial
lutava para respirar.
O teto da
caverna era todo de pedra e parecia úmido, com pedriscos que brilhavam ao
refletir a fonte de luz que impedia que a escuridão dominasse o local. O ar era
fresco por causa disso e provavelmente havia perto dali alguma fonte de água,
talvez um poço ou até mesmo algum acesso ao lençol freático.
Os olhos de
Eoni eram únicos no mundo, tinham um brilho que, naquele sufoco, quase pareceu
especial. Com a vista escurecendo por conta da asfixia, Órion constatou que seria
capaz de reconhecer até no mais escuro dos breus a responsável por salvar sua
vida na calçada, dias atrás.
– Respira,
ó! – Eoni estala os dedos duas vezes e assopra o alto de sua cabeça – Será que isso
é efeito do cânhamo? – complementou.
– Aqui, toma
água – uma baixinha disse.
A mulher
entregou para Eoni um copo cheio quase até a boca e Órion percebeu todo o
ângulo da gruta mudar quando a colocaram sentada, empurrando suas costas até
que ficasse ereta. Ela nem teve tempo de pensar em como protestaria contra a
ideia, considerando que não conseguia nem respirar, que dirá beber algo, porque
não precisou se recusar: o líquido foi jogado em seu rosto, sem cerimônia
nenhuma, e ninguém pareceu se importar com aquele desperdício.
– Respira,
vai – Eoni insiste, voltando a assoprar o topo de sua cabeça. Aparentemente a
solução era essa.
– Uiliam,
socorro... – Órion voltou a chamá-la em pensamento, como se estivesse afundando
e a policial fosse a boia que a impediria de se afogar.
Como das
outras vezes, Uiliam não respondeu, mas por algum motivo, invocar seu nome e
pensar nas orquídeas que ela havia escolhido para usar como cabelo serviu para acalmá-la.
Órion a imaginou materializada ali, seu holograma sentado junto com ela na
esteira, ambas cercadas por pessoas estranhas que só Uiliam conseguia indicar o
grau de periculosidade.
Com a mente
vagando, se lembrou de seu olhar compassivo, na hora em que ela deixou o
dormitório na manhã daquela fatídica sexta-feira – não como a encarava no dia
anterior, quando se conheceram, na sala da comandante, porque naquele momento
ainda não eram amigas.
Ainda que
jamais tivessem se visto pessoalmente, Uiliam já era uma figura que inspirava
confiança e até serenidade. E foi assim que, devagarinho, a policial foi sentindo
a respiração se regularizar gradualmente, até voltar à normalidade, depois de
alguns minutos.
“Cânhamo,
anotar”, Órion pensou, como se desse o comando ao sistema embutido em seu
capacete. Se por acaso estivesse com a indumentária, todos os resultados
referentes ao termo estariam agora listados em ordem alfabética, junto de links
contendo fotos, vídeos e todo o material disponível sobre o tema, projetados à
sua frente como se fizessem parte do cenário. Aquele parecia ser o nome de algum
remédio, mas podia ser absolutamente qualquer coisa. A única certeza que tinha
é que jamais havia escutado tal palavra.
– Pronto. Sente-se
melhor? – Eoni pergunta, com um sorriso que era ao mesmo tempo amigável e de
alívio. Combinava com seus olhos, que não pareciam representar nenhum tipo de
perigo.
– Acho que
sim, valeu – Órion responde. Sua voz saiu bem fraca, como se tivesse passado as
últimas horas dormindo sem parar, sem abrir a boca para falar um “a”.
– Eu me
chamo Eoni. E você? Qual o seu nome? – ela pergunta, já estendendo a mão em
direção à sua, convencida de que Órion retribuiria o gesto. Pessoas sabiam ser esquisitas!
Órion
percebeu que várias mulheres logo se aglomeraram à sua volta, curiosas. Não
parecia ser comum receberem a visita de uma estranha e ela imediatamente se
lembrou da história registrada em sua ficha falsa: para todos os efeitos, havia
passado os últimos anos enjaulada, sendo torturada pelo sistema, desprovida de
liberdade e impedida de qualquer tipo de convívio social. Embora fosse mentira,
era triste como ao mesmo tempo aquilo também era verdadeiro!
Um pouco sem
graça, baixou os olhos para o colo, para a roupa molhada que deixava seu peito
gelado, e foi então que viu que estava com os dois braços engessados, dos
punhos até quase os cotovelos. Quem quer que fossem aquelas pessoas, não só
haviam salvado sua vida duas vezes como também tinham cuidado de seus ferimentos
nas últimas horas, despreocupadas com quem ela era, de fato.
Sem querer,
Órion se viu pensando que nunca tinha imaginado que pessoas comuns saberiam ser
tão empáticas e gentis desse jeito, e refletir sobre isso a deixou constrangida.
Inevitavelmente considerou que era fundamental colocar esse detalhe no
relatório que de alguma maneira enviaria à comandante, como combinado. O CCC
precisava saber do grau de humanidade das pessoas!
– Meu nome
é Órion – ela finalmente responde, porque na ficção se chamava assim também.
Tentou apertar a mão esticada quase em cima da sua, mas só relou com a ponta
dos dedos, que era o máximo de força que ela tinha na mão direita – Muito prazer,
Eoni. Agradeço por ter me salvado. Por acaso você anotou a placa da nave que me
atropelou na descida até aqui?
A pergunta
foi totalmente inesperada e fez todas as mulheres rirem. Quer dizer, todas menos
uma, que permaneceu afastada, a encarando com desconfiança.
– Ai,
colega, antes tivesse sido uma nave a te fazer isso, viu... – alguém disse, se
aproximando – Tudo bom?, me chamo Aness. Seja bem-vinda a Trevon, Órion – ela afaga
seus dedos também, como se a cumprimentasse com um aperto de mãos – Infelizmente
nós fomos vítimas de uma emboscada do Comando.
– Pior é
que foi puro azar! Afinal, a gente conseguiu dar balão naquelas mulas duas noites
inteirinhas. Não, foram mais que duas, né? – Eoni comenta.
– Foram, a
gente saiu no comecinho das Horas Mais Úteis de terça-feira, não foi? – Aness
pergunta, em tom de resposta, fazendo uma conta rápida nos dedos – Isso mesmo, nós
conseguimos despistar os robôs idiotas por bem mais que 50 horas dessa vez.
– Pois é,
mas aí logo na descida, vrau – Eoni bate os dedos de uma das mãos contra
a palma da outra – ...as mulas nos pegaram. Essas máquinas sabem ser ardilosas!
– É, mas a
gente arrasou de qualquer jeito. Estamos conseguindo cada vez mais tempo – Aness
toca na mão da amiga, num cumprimento ensaiado, comemorando o feito.
– Sim, logo
será uma semana inteira dando pinote! – Eoni ri.
Órion sorri
para elas e não diz nada porque eram muitas informações para processar ao mesmo
tempo. As mulheres tinham passado mais de duas noites se esquivando de
policiais, como assim? “Horas Mais Úteis”? Então quer dizer que as pessoas tinham
o hábito de sair quando era proibido? Como era possível “dar balão” em potentes
sistemas de geolocalização? Como é que se engana um GPS? Será que por acaso
alguém do Comando saberia dessas coisas?
– E qual é a
sua história, Órion? – uma baixinha então pergunta, se destacando entre as
rebeldes. Pela voz, ela é quem queria arrancar a cabeça de um robô e depois pendurar
como prêmio. Sua coragem não era proporcional à sua estatura – Oi, tudo bem? Me
chamo Minu – ela faz um gesto com a mão, cumprimentando a distância.
– Bom... – a
policial murmura.
Todos os
olhos estavam voltados em sua direção e ela sentia a garganta seca, embora
estivesse com a roupa molhada. Órion ficou nervosa também, afinal era a
primeira vez que recebia tanta atenção desse jeito.
– Ei, Órion?
– a voz de Uiliam ecoou dentro de sua cabeça – Policial, consegue me ouvir?
– Sim! –
Órion pensa e sem perceber pigarreia, aliviada por escutar a voz da colega – Eu
passei minha vida toda praticamente lá em cima, o CCC me prendeu muitos anos
atrás – ela responde – Uiliam! – complementou, em pensamento.
– Ah,
finalmente – Uiliam rebateu na mesma hora. Se estivesse projetada, talvez seu
holograma teria deixado os ombros caírem, daquele jeito que acontece quando o
alívio provoca um relaxamento espontâneo – Que bom ver que está a salvo, A-348!
– Boa, boa –
alguém cumprimenta, a voz chegando antes de sua imagem, ricocheteando nas
paredes da gruta – Salve, salve, galera, estou de volta!
– E aí,
gatona, foi tudo bem? – Thaian pergunta, com sua voz imponente também ressoando
por todo o recinto, parecendo preencher cada espaço. Deixou o canto onde estava
imediatamente, logo que viu a mulher chegar, num claro e evidente interesse –
Desceu tranquila, como é que foi, algum problema?
– De boa, tudo
certo, dentro dos conformes. Ah, vejo que a nossa convidada acordou! Que bom –
a mulher emenda, animada ao vê-la desperta – Olá, bem-vinda, sou Alec. Órion,
né? – ela pergunta e a cumprimenta, antes que a policial sequer dissesse algum
coisa – Prazer, muito prazer!
– Não me
pergunte – Uiliam fala, antes que Órion questionasse como a mulher poderia
saber seu nome.
– Oi, prazer,
Alec – Órion responde, a vendo sentar-se ao seu lado, em cima da esteira em que
esteve deitada pelos últimos dias. Embora todas estivessem relativamente
próximas, ela foi a que se aproximou mais, suas pernas quase se encostaram de
tão perto.
– Bom, seus
olhos estão muito bem, cicatrizaram bem – ela a encarava de perto, como se a estivesse
examinando. Usava os óculos entregues pela comandante Aira e Órion se perguntou
como Uiliam a estaria vendo, daquele ângulo – Com licença, me permite? – Alec
pergunta e levanta um pouco sua camiseta molhada, antes que Órion respondesse –
Bom, está tudo bem por aqui também – ela comenta, apalpando gentilmente a
região acima do rim – Você reagiu bem à medicação, muito bem – ela completa,
como se fosse uma médica avaliando uma paciente.
– Ela é um tipo
de cuidadora – Uiliam diz, lendo o pensamento de Órion – Uma espécie de “curandeira”,
não existe um termo que especifique exatamente. Me levou para passeios
incríveis por Trevon.
– Espero
que tenha gravado tudo – Órion rebate, sentindo os polegares de Alec puxarem a
parte de baixo de seus olhos.
– O Comando
anda inovando nas técnicas de interrogatório – Alec comentou, preocupada – É a
primeira vez que vejo focarem tanto nos olhos, não há o menor sentido nisso...
– Eu... –
Órion resmunga e tenta levar uma das mãos até o rosto. Não conseguiu porque
sentia-se fraca e porque o gesso pesava os dois braços em direção ao chão. Mas
ver em detalhes o rosto da mulher sentada ao seu lado era um sinal de que as
feridas provocadas pela maçaneta estavam mesmo cicatrizando.
– Marcas
arroxeadas bem destacadas em volta dos olhos, em três tons, ferimentos leves em
cima do nariz e na testa – Uiliam diz, repassando a situação atual de seu rosto
– Há uma série de lesões com protuberâncias entre médias e grandes, decorrentes
de cassetete e...
– Tudo bem,
Uiliam – Órion interrompe. Quis levantar a mão para fazê-la parar de falar, mas
novamente não teve forças para mover o braço do lugar.
–
Inclusive, aqui está – Alec tira os óculos e entrega para Órion – Usei enquanto
estava por aqui se recuperando. Agradeço muito o empréstimo.
– Ah,
claro... – Órion responde, observando-a espremer os olhos para encará-la. Imaginou
que se estivesse com o capacete da Polícia, saberia qual era o problema que
afetava a vista da mulher.
– Miopia –
Uiliam respondeu, lendo seus pensamentos.
– Vou ver
se tem algo para comer, você deve estar faminta – Alec diz, como se também
pudesse ler a mente de Órion. Ou ela só escutou seu estômago roncando pela enésima
vez.
– Eu
pediria para você checar antes o que pretendem me dar como alimento, mas estou
com tanta fome que sinto que seria capaz de comer absolutamente qualquer coisa –
Órion comenta, com todos os pensamentos secundários acompanhando o que era “falado”.
– Acha que alguém
aqui pretende te envenenar? – Uiliam soou um pouco reticente.
– Não sei...
eu não conheço ninguém, desconheço as intenções por trás das ações dessas
pessoas...
– Sei... –
Uiliam rebate, tendo acesso às memórias recentes da policial, conforme as cenas
eram lembradas.
No caso, as
recordações eram todas positivas e não havia nenhuma que indicasse que em algum
momento ela estivesse correndo algum tipo de risco. Seu último pensamento envolveu
os cumprimentos utilizados pelas rebeldes, com algumas fazendo questão do
contato físico, mas a lembrança foi logo interrompida.
– Não
encontrei nada nas proximidades que indique perigo de envenenamento ou
intoxicação. Pode comer tranquila – Uiliam afirma.
– Que bom,
é tão prático tê-la aqui embaixo – Órion responde, sincera. Para não parecer
boba, não quis pensar que tinha até pedido por socorro, antes de reaver os
óculos.
– Acredito
que posso ser mais útil para a sua investigação – a policial rebate,
surpreendendo a colega, que ergueu uma sobrancelha – Se eu continuar
acompanhando Alec, consigo registrar informações que, daqui, você não terá
condições de fazer.
– Mas aí eu
ficaria sozinha, no escuro! – o pensamento de Órion pareceu indignado, ofendido
com certeza. Ela claramente não se referia à falta de luz.
– Não
haverá perigo se você permanecer aqui – o comentário pareceu absurdo e Uiliam a
viu soltar o ar com força, impaciente – O CCC desconhece esse lugar.
– Mesmo
assim, a ideia nunca foi essa – Órion reclamou.
– Olhe, preparei
isso para você – Alec aproxima-se novamente, segurando uma cumbuca.
A mulher sentou-se
ao seu lado mais uma vez, no mesmo lugar em que estava antes, só que agora ainda
mais perto. Ela firmou a tigela morna entre as mãos de Órion, apoiadas nas
pernas, e sem dizer nada começou a levar colheradas cheias de um caldo grosso
até sua boca. O alimento era um tipo de sopa pastosa, com um leve gosto de
milho. Era bom! Serviu para acalmar um pouco os ânimos de Órion.
– Água,
milho transgênico, sumo de alho – Uiliam descreve os ingredientes da comida – “Sumo
de alho”? – ela então repete, como se confirmasse o que estava analisando –
Onde elas arranjariam algo assim para cozinhar?
– Você teve
alguma notícia da Ju por esses dias? – Eoni pergunta, sentando-se perto delas.
O questionamento foi diretamente feito para Alec, mas ela também olhou para
Órion.
– Não,
amiga – Alec responde, cabisbaixa. Sua mão estremeceu rapidamente antes de
alimentar Órion com mais uma colherada – Ouvi só relatos de quem foi preso junto
com ela... me disseram que a viram viva, embora bastante machucada. Todos
ficaram muito debilitados, na verdade... Mas a Júpiter é guerreira, ela aguenta
o baque – a mulher complementa, como se falasse só, servindo Órion mais uma
vez.
– A Thaian
disse que nós temos que considerar a possibilidade de ela não voltar mais, mas eu
me recuso a pensar nisso – Eoni cruza os braços sobre o peito, fazendo um biquinho
com a boca.
A gruta
onde estavam era iluminada por algo que não crepitava e nem tinha cheiro, contudo,
clareava bem. Eoni era uma mulher bela, de olhar penetrante e lábios carnudos.
Tinha a cabeça raspada e um farto decote em formato de V.
Órion
jamais havia visto uma fenda na roupa tão bonita como aquela! Na verdade, pela
primeira vez tinha a oportunidade de observar tão de perto um corpo feminino
que não fosse o seu próprio corpo, uma vez que no CCC o que menos havia era
gente parecendo gente. Sentiu-se seduzida!
Com um
interesse quase científico, mas num exame breve, analisou aquela parte do corpo
de Eoni e achou que decotes combinavam bem com colos de mulher. Ficou curiosa
para ver onde aquela linha desenhada pela junção dos seios terminaria,
contornando com o olhar o formato do que pareciam dois frutos prontos para
serem colhidos. Absorta em sua análise, pulou os olhos para o peito de Alec,
que infelizmente vestia uma blusa que não tinha abertura na frente.
– Aqui –
Alec chama, vendo que Órion havia se distraído. Levou mais uma colher cheia de
caldo até sua boca, parecendo não reparar na investigação analítica que ocorria
bem ao seu lado – A Thaian só está preocupada com a Júpiter, você sabe como ela
é – completa, desta vez para a amiga.
– Sim, eu
sei, compreendo inteiramente, mas em último caso voto por irmos lá resgatá-la.
Mesmo que sem vida, Alec – Eoni fala, terminativa, parecendo decidida e segura
de suas palavras – O plano é dela, afinal.
– O que
acha de nos preocupamos somente quando for a hora? Hum, que tal? – Alec propõe
e recebe apenas um suspiro conformado como resposta.
Não era
preciso ser especialista em comportamento para constatar que Alec desempenhava
um papel importante de liderança junto daquele bando. Mais do que isso: era a
apaziguadora também, que igualmente curava os corações por ser curandeira e
curadora. Para sua própria sorte, o CCC jamais se interessou por seus feitos e a
via apenas como se ela fosse uma cidadã comum de Trevon, o que de certa forma
ajudava a preservar sua vida. Uma vez que caísse nos domínios do Comando, seu
altruísmo com certeza seria estudado e destrinchado até que a virassem do
avesso. Literalmente.
Órion se
manteve em silêncio enquanto comia, satisfeita por ter alguém para ajudá-la a
se alimentar, considerando que sozinha não conseguiria comer. Ficou quieta não só
por estar muito faminta, mas também porque se manteve atenta ao relato que
Uiliam lhe repassava ao pé do ouvido.
– De alguma
forma, os cidadãos de Trevon são organizados – a policial comenta, dentro de
sua cabeça – Eles são estruturados em grupos, que incluem até os que trabalham lá
em cima, nas indústrias, e cada um parece ter uma função específica, embora não
se trate de uma configuração hierárquica de nenhum tipo. Digo, ninguém manda,
mas todos colaboram de algum jeito. Ou pelo menos não identifiquei nenhuma
liderança, exatamente, não da forma que se conhece. Parece absurdo, mas é como se
fizessem parte de uma comunidade secreta, ou algo similar. Nunca vi nada igual.
Tampouco consegui chegar a um consenso porque as conversas que acompanhei
pareceram codificadas... Usaram termos que desconheço e que por ora ainda não
sei o que querem dizer. Mas estou atrás, quando souber eu te informo.
– O quê? As
pessoas se comunicaram por gírias, se valeram de códigos ou coisas do gênero?
Não entendi – Órion rebate, um pouco perplexa. Não imaginou que poderia haver
algo no mundo que simplesmente não pudesse ser respondido pelos super computadores
do CCC. Achou que era impossível um dia simplesmente receber como resposta um
“não sei”.
– Não são
“códigos”, exatamente... – mais uma vez a voz de Uiliam pareceu vacilar – Mas
foram conversas veladas, indiretas de alguma forma, truncadas, sabe? Me chamaram
a atenção dois termos que foram ditos sempre aos cochichos: “identidade” e
“autonomia”. Por isso mencionei a ideia de parecer secreto: percebi uma sombra
em cima dos diálogos, como se algo precisasse permanecer oculto. Porém, não é nada
que o Comando tenha conhecimento, tanto que ainda não localizei nenhum registro
em relação a isso.
– Sinal de
que ninguém conversa sobre esse assunto na frente das máquinas ou em lugares
públicos, por receio de ter alguma escuta – Órion considera, primeiro pensando
sozinha – É um indício de que ninguém desconfia também de que os óculos sejam grampeados.
Isso é bom – ela complementa, se dirigindo à Uiliam.
– Mas em
nenhum momento isso...
– Onde nós
estamos? – Órion interrompe, sorrindo com os olhos ao receber mais uma
colherada das mãos de Alec. Ela não pareceu dar importância ao comentário que
Uiliam pretendia fazer. Ao menos não pensou nada a respeito.
A policial
não insistiu porque já tinha percebido que Órion era adepta de teorias
conspiratórias e a maioria se resumia a pura paranoia sem sentido nenhum. Por
exemplo, não havia o menor risco de alguém desconfiar da tecnologia daquele antigo
aparato disfarçado de óculos!
– Estamos
no que costumam chamar de “assentamento”. É uma área clandestina, localizada nas
bordas de Trevon, bem no limite da cidade. Aqui é conhecido como Novo Mundo. Gráfico
nenhum do CCC jamais contemplou nada que fique perto dessa região. É até
difícil especificar um ponto exato no mapa porque além de tudo estamos vários
quilômetros para baixo da terra, muito ao norte do prédio do Comando Central.
– E
“cânhamo”? O que significa essa palavra? – Órion quer saber e sua dúvida parece
causar espanto, porque Uiliam demorou um pouco para responder.
– É uma...
planta... – ela diz, com um pouco de hesitação – Não sei como isso pode ser
possível – Uiliam então complementa, lendo os pensamentos da colega, que se lembrou
do momento exato em que a palavra foi destacada, minutos atrás – “Arbusto de
dois a três metros que fornece folhas, frutos... boas fibras, tem ótimo caule...”
– a policial parecia estar lendo algum artigo, pulando trechos que pareciam
desimportantes – “Conhecido também como bangue, beque, cânave, daga, diamba,
liamba...” – ela recita, em ordem alfabética, ritmada – “...maconha e
marijuana” – finaliza, ainda usando um tom descrente.
– Só
conheço uma palavra dentre todos esses termos – Órion sorri mais uma vez para
Alec, que agora raspava o fundo da cumbuca com pedaços generosos de pão. Nunca
tinha se saciado desse jeito, tão gostosamente. Sentia-se satisfeita de um
jeito inédito – Não sabia que existiam plantas em Trevon. Fosse Cannabis sativa
ou qualquer outra espécie.
– Pois é –
Uiliam respondeu reflexiva – Nem eu...
– Acha que
é possível que eu tenha tido alguma reação alérgica a cânhamo? – Órion então pergunta,
só que em voz alta.
– Ah, então
é por isso que a sua camiseta está molhada? – Alec pareceu sorrir, mas seus
lábios mantiveram-se sérios – Acho que não, meu bem. Acredito que você só teve
um episódio de pânico ou algo similar. Talvez uma crise de ansiedade, que
infelizmente é comum por aqui. Provavelmente você só acordou confusa e os seus
pensamentos é que geraram o mal-estar. Sua cabeça te pregou uma peça, só isso.
A água que jogaram em você foi porque minhas amigas acreditam que isso cura
qualquer problema – agora ela sorri.
– Você se
sente melhor? – Uiliam pergunta.
– E aí, se
sente melhor? – Minu indaga, ao mesmo tempo, ao se aproximar delas. Apoiou os
dedos no ombro de Alec e manteve a mão parada ali. A breve troca de olhares
entre ela e Eoni transbordou cumplicidade e camaradagem.
– Me sinto
muito melhor, a impressão que tenho é que meu mau humor sempre foi fome – Órion
responde, ainda que a pergunta não tivesse sido essa. Ainda assim, foi uma das frases
mais sinceras que já disse em toda a vida.
– É, esse
nosso sistema é muito cruel, Órion. Nos priva das mínimas coisas... Primeiro nos
tiram a dignidade logo que nascemos, depois os alimentos ao longo da vida e por
fim abalam completamente a nossa sanidade, por meio de uma verdadeira guerra mental,
uma pressão psicológica que nunca tem fim – Alec comenta, meditativa – Mas você
sabe bem disso, é claro.
– Eu sei? –
Órion retrucou, mas esqueceu de verbalizar.
– Digo, pelo
fato de ter passado a vida toda presa nas garras do CCC – Alec se antecipa em
completar, lhe servindo o último pedaço de pão embebido na sopa, sorrindo na
sequência para Minu. Pareceu que ela também podia ler seus pensamentos, assim
como Uiliam.
– Hum,
então é daí que ela extrai o óleo – Uiliam ainda estava lendo algo relacionado à
maconha e manteve-se distraída com relação à conversa entre as mulheres – Mas onde
será que essa gente esconde tudo isso? Eu adoraria ver uma plantação de
verdade! Você acha que plantam tudo dentro de alguma estufa? Ora, claro que é –
ela discutia sozinha – Sem sol, tem que ter uma luz artificial, senão...
– Uiliam, absolutamente
nada disso pode estar no relatório – Órion interrompe e imediatamente o monólogo
produzido pela policial se cessa – Por favor? Ao menos por enquanto! Eu quero decidir
com calma o que fazer com todas essas informações. Isso tudo é muito mais do
que acreditei descobrir aqui embaixo.
– Claro...
Claro, policial, como quiser – Uiliam emenda, vendo mais uma vez Órion se
lamentar rapidamente por não conseguir ler seus pensamentos, assim como ela era
capaz de fazer.
– Você
pode, por favor, começar informando à comandante sobre os ocorridos na descida –
Órion pede, em tom amigável – Vamos repassar todos os detalhes no relatório,
inclusive a identificação daqueles robôs. Precisa constar no documento também que
o meu silêncio até aqui foi somente por conta do estado que eles me deixaram. A
comandante Aira precisa saber que eu quase morri.
– Pode deixar
– Uiliam responde, no mesmo instante em que Alec se levanta, afastando-se
alguns passos, após falar algo que ela não registrou. O movimento não foi
acompanhado por Eoni e Minu, que permaneceram sentadas ao lado de Órion.
– Quero que
relate também que se por acaso eu demorar a entrar em contato novamente é
meramente por questões de... – Órion se cala, aceitando o líquido que Alec lhe
oferecia, ao retornar, dentro de um copo de metal. Parecia suco.
– De? –
Uiliam insiste, porque a policial ficou quieta.
– Eu ia
dizer que é porque estaria sem os óculos, longe de você, sem nenhum acesso com
a Central, impossibilitada de contato, mas acho que ainda está cedo para entrar
nesses detalhes. Por enquanto – Órion então responde.
– Claro,
como quiser – Uiliam retruca. O comentário significava que Órion estava
disposta a acatar sua sugestão. Ao menos parecia considerar a possibilidade de
deixar os óculos com Alec.
– Considerando
as conversas que você ouviu esses dois dias... acha que ela sempre volta? Para
esse bando? – Órion pergunta, se referindo à Alec. Seus pensamentos mostraram
que sua preocupação era ficar ali sem contato nenhum com o sistema da Polícia, considerado
de extrema importância para o sucesso da missão.
– Sim, sempre
volta – Uiliam confirma, no mesmo instante em que Minu se levanta e puxa Alec
pela mão.
– Talvez
estejamos diante de uma situação jamais vista, algo que ninguém nunca estudou
antes, ao menos não na História recente... No começo cheguei a acreditar que isso
aqui era só uma investigação policial como qualquer outra, mas trata-se na
verdade de um verdadeiro experimento social, antropológico – Órion pensa, sem
deixar claro num primeiro momento se estava se comunicando com Uiliam ou apenas
refletindo sobre o assunto.
O
pensamento imediatamente criou algumas imagens mentais instantâneas que
vislumbravam um tipo de “novo mundo”, povoado somente por pessoas evoluídas. Enquanto
discorria, Órion manteve os olhos focados em Alec e Minu. As duas falavam sobre
algo, baixinho, e a distância pareciam um casal de namoradas, apaixonadas,
trocando confidências e juras de amor.
Ao menos foi
assim que Órion interpretou, porque na verdade a conversa das duas girava em
torno da próxima etapa de um plano que estava em ação, e sendo bem executado.
Mas Uiliam preferiu não interromper o fluxo de pensamentos da colega, absorta
com o que sua mente produzia.
– O Comando
propaga aos quatro cantos que as pessoas são desprovidas de qualquer tipo de inteligência
emocional, mas pelo jeito não é bem assim. Isso explicaria a capacidade de elas
se organizarem, como você relatou.
Uiliam não
diz nada e acompanha o olhar da policial, que agora observava o cenário à sua
volta. Aquela gruta era apenas um pequeno fragmento de tudo o que havia visto e
registrado nos últimos dias, na companhia de Alec, no sentido de organização
social. Realmente as pessoas não eram como o CCC as pintava, mas falar isso
talvez não fosse exatamente de muita serventia para Órion. Não neste momento. E
não se Uiliam pretendia que ao final de tudo a mulher retornasse ao posto de
trabalho, conforme combinado com sua comandante.
Além disso,
a policial sabia perfeitamente que era impossível permanecer em Trevon depois
que o Comando decidia simplesmente acabar com algum trabalho em curso, qualquer
que fosse o estágio da investigação ou a expectativa de resultado. Isso tinha
acontecido na época em que Uiliam trabalhou como infiltrada e em algum momento fatalmente
aconteceria com Órion também, era inevitável.
Então, considerou
que era justo permitir que ela vivesse cada etapa daquela experiência de um
jeito como se aquilo tudo não fosse acabar antes da hora, provavelmente quando
certas verdades viessem à tona. Já que, mais dia, menos dia, tudo voltaria ao
normal, que Órion pudesse aproveitar bem aquele momento, então. Provavelmente
seria sua única chance de experimentar uma vida humana, de verdade.
Uiliam
compreendia, e muito bem, que ser foragida da Polícia, diferentemente de ser
uma homiziada comum, era impossível quando se tinha um chip implantado na nuca,
praticamente desde o dia do nascimento. Isso tornava Órion um verdadeiro alvo
ambulante, especialmente quando estava lá fora, visível para os sensores do
CCC, mas considerou que ainda era cedo para falarem disso, uma vez que a
policial não manifestava interesse em se debandar. Ainda.
A observou
sentada numa esteira bastante usada, puída nas pontas, com o rosto todo
machucado e os dois braços engessados. Órion era muito corajosa e parte de seu
destemor podia ser visto na aparente tranquilidade que sua figura exalava. De
acordo com o que Uiliam via pelo raio X, os braços da policial estavam
quebrados em várias partes, sendo que o direito era o mais crítico, com oito
pontos diferentes de fratura. Aquilo certamente causava uma dor alucinante, mas
ela transmitia zero de dor.
– Ei – Órion
chama, alheia às reflexões de Uiliam a seu respeito – Alec? – complementa,
tirando os óculos sem pensar em nada – Olha, quero que fique com isso – ela diz,
assim que a mulher se aproxima.
– Uau,
sério? – Alec sorri, surpresa com o gesto – Ah, que ótimo, agradeço muito – ela
repõe os óculos, que automaticamente tiveram as lentes ajustadas para corrigir
seu problema de visão – Tem certeza?
– Sim,
absoluta – Órion sorri também, porque não conseguiu controlar – Vai ser muito
mais útil para você do que para mim. Não vai? – a pergunta foi mental.
– Com
certeza, sim – Uiliam responde – Ativei o sistema de localização em tempo real
e já tracei o mapa de todos os lugares que ela visitou nos últimos dias. Inseri
os dados no seu relatório.
– Deixa as
coordenadas de local de fora. Só por enquanto, por favor – Órion pede.
Não parecia
justo informar ao CCC pontos estratégicos de Trevon, não enquanto permanecesse
lá embaixo, considerando que a Polícia poderia deliberadamente usar essas
informações só para capturá-las, inclusive como se Órion fosse apenas mais uma
rebelde. Talvez os robôs se valessem até de um método mais agressivo que o
utilizado na emboscada anterior, o que representava um risco altíssimo e
colocava em xeque sua integridade física. Longe de querer ser isca de qualquer
tipo de armadilha, o que a policial idealizava era algo mais relacionado a
heroísmo e até mesmo patriotismo, embora de um jeito um pouco distorcido, por
ter sido a vida toda corrompida pelo sistema, sendo obrigada a acreditar em
conceitos totalmente deturpados.
Uma vez que
ninguém do alto escalão parecia saber sobre a existência de curandeirismos em
Trevon, revelar algo assim já valia todo o esforço de descer. Mesmo que ao
término da investigação Órion não conseguisse provar nenhuma de suas
desconfianças com relação à Júpiter, só aquilo já era suficiente para agradar o
Comando. E muito!
Porém,
pensar sobre o assunto estimulou um breve lampejo de vacilo travestido de
dúvida. Sem querer, Órion se perguntou até que ponto seria íntegro revelar o
esquema de pessoas que tinham salvado sua vida mais de uma vez. Será que para
contentar o Comando valia uma traição assim?
– Você pode
informar no seu primeiro relatório apenas sobre a armadilha em que foi pega durante
a descida – Uiliam comenta, percebendo o rumo que o raciocínio de Órion seguia –
Assim não foge da verdade e cumpre com a sua obrigação de informar os fatos.
Órion não
responde nada, mas balança a cabeça como se Uiliam estivesse projetada ali com
ela, sentada na ponta da esteira. A ideia era boa, ainda que de nenhuma forma
anulasse sua preocupação, e a policial sabia perfeitamente que em algum momento
voltaria a esbarrar nessa questão. Não apenas isso, como tinha total consciência
também de que, quando chegasse a hora, teria que tomar uma decisão muito
difícil.
Foi então
que Uiliam compreendeu o que estava acontecendo. Órion já estava rendida ao
charme libertador das rebeldes e, em seu íntimo, já até considerava os agentes
da lei como se fossem uma espécie de algoz malvado, mesmo que ainda não admitisse
isso nem para si mesma.
Uiliam não
tinha como recriminá-la, considerando o estado que o CCC a deixou após a tocaia
na escada. Não bastasse, o zelo que as mulheres dispensavam a uma completa
estranha era mesmo passível de conquistar qualquer pessoa. Quem é que não gosta
de ser cuidada, afinal?
Mesmo
assim, admitiu que era obrigada a seguir com sua parte no plano, ainda que
Órion simplesmente decidisse mudar de ideia no meio do caminho. Não revelaria,
por enquanto, nada daquilo que a colega pediu para que ficasse de fora do
relatório, mas Uiliam permaneceria filmando, gravando e armazenando tudo mesmo
assim, pois este era seu dever de policial.
Além disso,
independentemente das decisões conscientes de Órion, muita coisa poderia
acontecer com a policial ao longo da missão, o que não necessariamente
significava que Uiliam também estivesse em perigo. Ou seja, mesmo que
eventualmente a primeira não retornasse à base, por qualquer motivo que fosse,
a segunda jamais deixou seu posto. Era seu dever continuar trabalhando,
portanto.
Claro que nada
disso de nenhuma forma significava que ela torcia para que algo de ruim
acontecesse com Órion, ou com a missão. Mas considerou que era importante estar
preparada para qualquer tipo de revés que essa história eventualmente pudesse
tomar, no meio do caminho. Em especial porque, assim como Órion, Uiliam
reconhecia o potencial de todas as informações que estavam sendo coletadas em
Trevon. Se a policial por acaso não pudesse divulgar as descobertas para o CCC,
ela certamente o faria.
– A sirene
vai tocar, são 5h30 – Órion anuncia, completamente alheia aos pensamentos de
Uiliam, mais uma vez.
Antes mesmo
que terminasse a frase o som da sirene chegou até onde estavam, embora um pouco
fraco. O volume baixo indicava a distância a que se encontravam da Central e
comprovava as informações repassadas anteriormente por Uiliam. Era realmente
muito difícil, quiçá impossível, apontar no mapa em que lugar se encontravam
neste momento, por estarem muito longe do último ponto que o CCC tinha catalogado
em seu sistema, que já era consideravelmente longínquo da base da Polícia.
– Agora é só
controlar a ansiedade e esperar... Essa próxima hora vai ser de pura
expectativa – Órion comenta, com os olhos brilhando, pensando animada na
soltura de Júpiter, programada para esta manhã.
Pelas
expressões que Órion observou no rosto das pessoas reunidas daquela gruta, a
inquietação e o anseio eram sentimentos compartilhados por absolutamente todas
ali presentes. Seria uma longa espera até finalmente saberem o que teria
acontecido com Júpiter durante o período em que esteve presa pelo CCC e sua
soltura certamente traria novas informações para o quadro mental que ia se
formando na cabeça de Órion.
De fundo, enquanto aguardava, Uiliam se distraiu ouvindo os pensamentos agitados da policial e um som intermitente de água corrente, que por algum motivo os nativos de Trevon chamavam de “silêncio”.
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