Trevon 6 (parte 1)


 1. Trevon

2. A-348

3. Órion

4. Novo Mundo

                                                                                                                                               5. Júpiter 

                                                                                                                    6. Uiliam (Primeira parte)

Órion sentia-se estranha, como se estivesse presa dentro de um sonho lúcido, só que daquele tipo angustiante, que você quer correr, mas não sai do lugar. Em partes, atribuía a sensação esquisita ao fato de nos últimos dias ter alterado drasticamente sua rotina, alheia às sirenes que desde sempre ditavam seus dias. Isso obviamente a afetava, afinal, seus horários eram engessados, praticamente crono­metra­dos porque “disciplina” era a palavra de ordem em sua vida, graças à rigidez do CCC. Não bastasse, em sua defesa, qualquer pessoa fica mesmo meio zureta se passa mais de dois dias dormindo direto, especialmente depois de levar uma surra de dois robôs, como foi seu caso. O longo cochilo a havia renovado, talvez de um jeito inédito, mas a um preço altíssimo que agora cobrava juros exorbitantes.

Mais estranho do que ter dormido tanto e ter os dois braços imobilizados e caídos o tempo inteiro em direção ao chão era o fato de estar fugindo da Polícia embaixo da terra, em algum lugar que desconhecia completamente, sem o apoio de seu uniforme do Comando, que era quase uma extensão de seu corpo, há muitos anos. Ainda que beneficiada com a total ausência dos pesos característicos do traje policial, a falta da indumentária a deixava desconfortavel­mente exposta e vulnerável, e isso fatalmente afetava seu emocional, a esta altura bastante abalado.

Até aqui, nada do que havia acontecido tinha sido exatamente planejado, a começar que antes mesmo de descer para os recônditos de Trevon, Órion já teve sua rota alterada, ao ser salva e desviada por Eoni e Aness, ainda na calçada da cidade. Bem ou mal, encontrá-las encurtou o caminho percorrido até Júpiter, mas a policial ainda sentia literalmente na pele os estragos causados pelo alto preço pago por esse socorro. A emboscada do CCC ainda reverberava em seu corpo.

Embora engessados, Órion estava com os dois braços quebrados em diferentes pontos, depois de ter sido espancada pelos cassetetes da Polícia, o que gerava dores agudas que se irradiavam dos pulsos até os cotovelos e dali se espalhavam em ondas dolorosas que latejavam até os ombros que, embora estivessem inteiros, doíam bastante também. Os pés, por sua vez, ardiam na sola por causa dos pedriscos, da terra grossa e de tudo quanto é tipo de mineral que ela teve que pisar até ali, sem a proteção de nenhum solado. Vale dizer que esta era a primeira vez na vida que Órion andava descalça.

De longe, a policial facilmente poderia confundida ser com uma habitante qualquer de Trevon. Pior: assemelhava-se a uma insurgente, exatamente como aquelas que pertenciam ao bando de Júpiter, que neste momento a encarava diretamente nos olhos, numa seriedade de gelar o coração.

A rebelde estava com uma aparência péssima, lamentável, mas ainda assim conseguia estar linda. E Órion só se permitiu pensar nisso porque sabia que Uiliam não conseguia mais captar suas ondas cerebrais, o que de certa era forma um alívio, embora a restrição de contato fosse notadamente um péssimo sinal. A respiração de Thaian, tão perto de seu rosto, era um claro indício do risco que corria.

Encurralada, era assim que Órion estava. Acuada, entregue e à mercê de marginais enfurecidas. Mas a primeira coisa que lhe ocorreu quando viu os óculos serem arrancados do rosto de Alec e quebrados em mil pedaços, no instante em que o silêncio dentro de sua cabeça se tornou gritante, foi que não resistiria nem lutaria. Tudo bem morrer agora, considerando que nos últimos dias havia presenciado situações suficientes para uma vida inteira, sentia-se satisfeita (e cansada). E não havia pudor em admitir isso, pois seu íntimo voltou a ser preservado no momento em que Uiliam foi violentamente tirada de cena.

Uiliam, a policial alocada no prédio R do Comando. O tal “prédio das aberrações”, segundo a subversiva do rosto rasgado. Qual seria exatamente o trabalho dela? Estar lá era por mérito ou por castigo? Sua tarefa com A-348 teria sido de alguma forma uma provocação da Comandante ou um favor? Porque elas notadamente se conheciam, pareciam até ter um certo grau de intimidade, o que era raro, se tratando de alguém que era nada mais, nada menos, que Aira Acachi. A todo-poderosa do Corpo de Comando e Controle. Alguém que sabia ser gentil, mas igualmente ardilosa e revanchista.

Era tanta coisa para pensar que a enxurrada mental acabou amenizando o clima pesado que Órion enfrentava, pela primeira vez realmente sozinha em Trevon, sem apoio nenhum do CCC a não ser o chip implantado na nuca em seu primeiro mês de vida. Em algum momento Uiliam desligaria o sinal que o chip emitia ou sua missão teria terminado no instante em que a conexão entre as duas se perdeu?

– E aí, alguém pretende explicar o que aconteceu? – Alec questiona. Mesmo abafada pelo som da cachoeira, a pergunta soou como se ela estivesse ofendida com a cena dos óculos, o que combinou com seus olhos estreitos devido à visão debilitada.

– Estamos com uma infiltrada – Thaian declarou, forçando Órion a sentar-se em cima de uma pedra. Só assim ficaram minimamente na mesma altura.

– Eu não disse isso – Júpiter se antecipa em responder, embora seu rosto dissesse outra coisa; ela encarava Órion como se de alguma forma conseguisse ler seus pensamentos, sem o auxílio de tecnologias. Como se tivesse todo o aparato da Polícia dentro da própria cabeça – Mas a verdade é que aqueles óculos com certeza estavam grampea­dos. É impossível a Polícia nos localizar aqui embaixo, neste ponto de Trevon, se não for por algo indicando onde estamos.

– Mas... – Thaian grunhiu, afrouxando um pouco (só um pouco) a força usada para segurar a gola da roupa de Órion.

O fato é que enquanto todas se reuniam ao seu redor, a policial em momento algum apresentou a menor resistência em permanecer sentada. Aquela na verdade era a posição em que Órion sentia-se mais confortável perto das rebeldes, embora fosse perceptível que Júpiter também era notadamente mais alta que suas companheiras. Só que o tamanho dela não parecia chamar tanto a atenção quanto a estatura de Órion, que além de maior era a mais forte também.

Se porventura quisesse, teria total condição para empreender alguns minutos de luta corporal, sozinha contra todas elas, mas Órion manteve-se quieta e respeitosamente em silêncio.  

– Eu preciso que você confie em mim – foi a resposta de Júpiter para Thaian, dita em voz extremamente baixa, quase inaudível, mas Órion captou. A subversiva ainda resistia em soltá-la.

– Mas quem garante que ela não é um robô do CCC? A gente sabe que na Polícia tem muito robô que parece mais gente do que a gente – Thaian insiste, claramente sem querer ceder em sua decisão de fazer algo contra Órion – Essa mulher chegou até nós do nada, ninguém a conhece... os óculos podem perfeitamente ter sido apenas um disfarce e ela ter um GPS escondido, implantado em algum lugar do corpo.

– Robôs não beijam na boca, gata. Eu tirei a prova – Júpiter riu, se direcionando também para o bando – Essa mulher não tem nada na nuca, nenhum chip que possa transmitir sinal de GPS, eu conferi.

            A afirmação foi feita num tom bastante firme e confiante, tanto que pareceu agradar todas as rebeldes, exceto Thaian, que ainda mantinha o punho cerrado, com a roupa de Órion presa por dedos bem firmes. Sua pele exalava um cheiro cítrico.

– Você não acredita em mim? – os olhos de Júpiter reluziram as chamas da fogueira, transmitindo quase um lampejo de confiabilidade. Até Órion, que sabia da verdade, quis acreditar no que ela dizia.

– Não é isso. É só que você acabou de chegar, está cansada... E eu teria muita dificuldade em nos perdoar caso mais para frente descobrísse­mos que tínhamos uma policial rata traidora entre nós e não fizemos nada em relação a isso – Thaian rebate, no mesmo instante.

– Reviste-a então, se isso te deixar mais confortável – Júpiter responde, erguendo os ombros. Parecia realmente cansada demais e indisposta a entrar em qualquer tipo de atrito ou discussão – Só não esquece que nós não somos como eles – complementou, olhando para Órion ao final da frase.

            O comentário certamente lembrou Thaian de agir com bons modos, mas ainda assim a mulher foi bastante rude ao levantar Órion de cima da pedra em que havia sido forçada a sentar, instantes atrás. A policial conhecia todas as técnicas de interrogatório e abordagem, já que este era um dos primeiros ensinamentos repassados aos cadetes na Academia e, por isso, embora jamais tivesse sido revistada antes, se preparou para receber alguma ação violenta durante a inspeção.

            Em silêncio, com a cachoeira produzindo um som alto e intermitente, ninguém fez nada nem interferiu. Todas mantiveram-se quietas, vendo Thaian levantar o cabelo de Órion para vistoriar sua nuca. Assim como Júpiter, a mulher também esfregou a ponta dos dedos até machucar, na esperança de sentir alguma protuberância sob a pele.

            Na ausência de qualquer indício, Thaian puxou uma pedra afi­ada do cós de sua roupa e rasgou a tala que mantinha o braço de Órion levemente dobrado, numa posição que, ao ser alterada, fez irradiar um choque como se diferentes partes do osso a rasgassem com o atrito.

– Ai não, por favor não faz isso, por favor... – Órion gemeu, vendo seu braço quebrado e desnudo se revelar com a chama da fogueira.

            Thaian puxou seu pulso para cima, alheia às suas lamúrias, procurando algo embaixo dos hematomas que se espalhavam em diferen­tes tons de roxo até o cotovelo. Órion reparou que estava com o ombro ralado, provavelmente ferido durante a trilha, no contato com as rochas pontudas ao longo do caminho estreito feito até ali. Havia um pouco de sangue seco grudado em cima de seu tríceps, desenhado naquela penumbra como se fosse o risco de um mapa empoeirado.

            O braço esquerdo doeu menos depois que o gesso foi cortado e arrancado, talvez porque estivesse menos danificado que o outro, talvez porque o direito ainda doía bastante, sem a proteção. A dor era tão lancinante que Órion quase torceu para que Thaian encontrasse logo alguma coisa, qualquer que fosse, só para que a tortura parasse.

– Amiga, vai devagar – alguém pediu. Talvez Alec, mas Órion não conseguiu reconhecer apenas pelo tom de voz e sua vista escurecida de dor a impedia de enxergar muito além do próprio corpo debilitado.

            Thaian soltou os braços de Órion no ar e deslizou as mãos por suas costelas, usando uma certa pressão. Aí desceu pela barriga até a cintura e subiu por trás, por debaixo da roupa, como se procurasse algo escondido entre os ossos de sua coluna.

Posicionando-se às suas costas, Thaian apalpou seus seios, em­purrando primeiro os indicadores ásperos pela base. Aí encheu as duas mãos com eles e os levantou de leve, talvez procurando encontrar al­guma diferença no peso. No CCC era comum ver policiais com próteses feitas de uma tecnologia sintética que turbinava os decotes. A Coman­dante Aira tinha alguns mililitros implantados, lindíssima. Mas, para a sua sorte, Órion jamais havia realizado nenhuma modificação corporal.

Se tivesse tendência ao misticismo, ela diria que isso se tratava de algum sinal. Provavelmente nunca sentiu vontade de modificar o corpo por­que no fundo sempre soube que só assim se salvaria, em algum momento no futuro. Se bem que o fato de não ter se adaptado robotica­mente foi justamente o que a levou até seu possível leito de morte, então este era um assunto que depois precisaria revisitar, com calma, para chegar a uma conclusão que fizesse um mínimo de sentido.

            Todavia, mesmo sendo natural, diante das rebeldes era visível que a genética de Órion tinha algo de diferente. Seu corpo, embora mar­cado era malhado e bem definido, resultado de uma rotina puxada que ninguém ali jamais experimentaria. Nem mesmo ela, a esta altura.

            Embora incomodada e sentindo dor, apesar de invasiva a abordagem em nada se assemelhava a uma ação policial, sempre propositalmente bruta e até mesmo abusiva. Órion já havia presenciado inúmeras situações que até beiravam o assédio, para não chamar de crime, com colegas da corporação violentando moradoras de Trevon de todas as formas, sem nenhuma justificativa.

            Por isso, se manteve copiosamente quieta enquanto a análise ainda acontecia. Mesmo incomum, a revista conduzida pela rebelde era bastante delicada e até mesmo respeitosa. Em dado momento, ao rasgar sua calça suja e ensanguentada, sem dizer nada Thaian lhe mostrou o porquê de sentir tanta dor nas pernas. No tremular da fogueira, Órion observou variados inchaços e inúmeras marcas em diferentes tons de roxo, da virilha aos tornozelos, principalmente na região dos joelhos. As escoriações eram grosseiras e indicavam claramente todos os níveis da agressão sofrida dias atrás, durante a emboscada envolvendo dois robôs do CCC. Olhando rápido, as marcas dos golpes até lembravam tatuagens de mal gosto, tais quais os desenhos feios que Thaian exibia ao longo dos braços.

            Na verdade, enquanto se manteve rendida, sob o foco do grupo de rebeldes, seminua na frente de pessoas estranhas que desconfiavam exatamente de quem ela era de fato, Órion constatou que absolutamente todas apresentavam lesões parecidas com as suas e as de Thaian, causadas por golpes da Polícia e pela própria vida, que as obrigava a se esconder em lugares inóspitos como aquele, acessível apenas por rotas que pareciam caminhos estreitos de um formigueiro.  

            Se bem que de todos os locais de Trevon, aquele de longe era o mais agradável, dada sua aparência exuberante e principalmente a abundância de água disponível. Era a primeira vez na vida que Órion via uma cachoeira, que em realidade ela nem acreditava ser possível de existir, até se deparar com aquela. Ou acreditava, mas nunca achou que um dia conheceria alguma de verdade.

            A névoa úmida que vinha da cascata e preenchia o ambiente acariciava seu rosto ressecado, como um toque de carinho de um mundo há muito tempo esquecido. Um contraste com a tensão da experiência a que estava sendo submetida naquele momento.

            Em tempos intensos como estes dos anos 8500, a água, assim como a informação, pesava mais que muito ouro. Acessar um lençol freático como aquele praticamente equivalia a explorar uma mina de diamantes. Ou até mais preciosa, considerando que a água era potável.

            Este detalhe tornava ainda mais urgente seu desligamento do sistema do Comando. Quando a Polícia a encontrasse seria não apenas o fim de Órion, mas também o daquele lugar, que passaria a ter outro destino, obviamente com acesso proibido às pessoas co­muns. A Comandante depois provavelmente receberia alguma conde­cora­ção num evento cheio de pompa, pois mais importante do que res­gatar uma policial atrapalhada era encontrar uma riqueza daquela dimensão. No projeto de mundo capitalista, a água valia mais que vidas.

            Por isso, a ronda realizada pelos agentes do CCC era bastante ostensiva, quase exagerada, de um jeito que deixava evidente que a Polícia protegia o patrimônio e não os cidadãos de Trevon. Todos os acessos à rua e, consequentemente aos prédios do Comando, eram vigilante­mente fiscalizados, assim como quaisquer aberturas que eventual­mente pudessem dar passagem a algum corpo d’água. A população vivia há séculos encurralada numa faixa estreita de terra embaixo da Terra, de modo que qualquer ato pudesse ser observado em absoluta­mente todas as horas do dia, e da noite também, quando as saídas para o mundo externo se interditavam. As intransigên­cias eram passíveis de punição, inclusive castigos que podiam culminar em prisão e morte.

            Órion provavelmente morreria ao término desta experiência, só que por outros motivos, é claro. Talvez nem chegasse muito longe; quem sabe a matariam já nos próximos minutos, logo que a abordagem terminasse. Embora aquilo tudo não fosse resultar em nada, considerando que manteve-se a vida inteira “limpa”, a inspeção era o claro resultado da desconfiança que pairava entre as rebeldes. A começar por Thaian, que desde o início pareceu ter alguma suspeita a seu respeito, e só isso já parecia suficiente para darem um fim à sua vida. Ela própria seria a favor de fazerem algo do tipo, se por acaso presenciasse uma situação parecida, só que do lado de lá.

Era bastante compreensível o porquê de ninguém em Trevon gostar da Polícia, ainda mais uma policial como A-348. Disfarçada de civil, Órion era simplesmente a respon­sável por colocar o Comando em peso atrás do bando, arriscando até que descobrissem aquele esconderijo tão valioso – sem falar no plano de Júpiter, que ela infelizmente ainda desconhecia. Do mesmo modo, era de conheci­mento popular que “quem delata, morre cedo”. É a lei da selva, sabe como é. Ou era uma regra que mantinha justamente o funcionamento daquela sociedade, isso agora não estava muito claro para ela.

            A verdade é que Órion não era uma rebelde, embora se dissesse prisioneira do Comando a vida toda, o que também não era nenhuma mentira. No momento, não sentia-se pertencente a esfera alguma e essa sensação de estrangeira beirava quase uma certeza de ser realmente forasteira, considerando que também não se sentia mais integrante do sistema.

A-348 não existia mais, desde o início de seu plano, e Órion era apenas o rótulo de uma grande mentira. A agora ex-policial estava às margens de toda marginalidade, algo que jamais imaginou ser possível de acontecer ao término de sua história. Logo ela, que teve um começo tão promissor...

Thaian parecia prestes a chegar ao fim da abordagem, até porque não havia mais nada para revistar, quando deu um chute no pé de Órion, a forçando a abrir as pernas, de um jeito que a fez perder momentanea­mente o equilíbrio. Como resultado do gesto inesperado, Órion escorregou e precisou se escorar na pedra em que antes estava sentada. Sem pensar, usou o braço direito para se segurar e evitar de cair, por puro reflexo, por um momento esquecendo-se completamente de suas fraturas. O choque gerado quando o peso de seu corpo foi transferido para o braço exposto e quebrado a fez soltar um grito de dor excruciante que ecoou pelas rochas da caverna úmida.    

O som foi tão alto que se sobressaiu em relação ao barulho de água incessante da cachoeira e foi diminuindo de intensidade ao tempo em que ela perdia as forças nas pernas, caindo de joelhos no chão molhado. Imediatamente as lágrimas brotaram em seus olhos, misturando-se ao suor de seu rosto contorcido de dor.

– Tá bom, já chega, Thaian – Aness fala, colocando o corpo entre as duas, protegendo Órion, que permaneceu caída – Não há nada escondido nela, você a revistou inteira, já basta.

– Sim, mas é que eu precisava saber – Thaian se justifica, quase em tom de desculpa, mas falando com Júpiter.

– Tudo bem – Júpiter responde, erguendo as mãos. O gesto não foi nada condizente com suas palavras. Foi como se ela aprovasse tudo aquilo; como se nem se importasse com a dor que Órion agora sentia.

– Tudo bem, vem cá – Aness também fala, quase ao mesmo tempo.

Ela a ajudou a se levantar, tomando cuidado para não machucar mais seus braços já machucados. Órion ficou em pé devagar, tentando segurar o choro, abraçada ao membro que agora latejava. Alec rapidamente se aproximou, com os olhos retraídos de miopia.

– Está tudo bem, sim... – Eoni também falou, simultaneamente, vindo por trás, do escuro. Ela apoiou primeiro a mão em seu ombro, parecendo amigável, mas aí subiu os dedos por sua nuca, segurando seu cabelo de repente, usando de relativa força. Órion sentiu a cabeça ser puxada para o lado e o hálito da rebelde bem próximo do rosto, com a respiração provocando um leve ruído em seu ouvido, antes de ela voltar a falar – ...mas eu juro por tudo o que acredito que se por acaso a gente descobrir que você é uma agente disfarçada do CCC, eu acabo com você na mesma hora – Eoni complementou. Embora tenha falado num cochicho e na ponta dos pés, o aviso soou ameaçador.

            Não havia dúvidas de que aquela era uma advertência séria que representava um risco iminente e real. Todas ali eram uma ameaça, essa é a verdade. Porém, bem ou mal, Órion ainda estava viva, embora morrendo de dor. E percebia-se viva porque ainda sentia, contra a sua vontade, algumas lágrimas silenciosas caírem quentes sobre o peito, que arfava rápido numa respiração pesada e descompassada. Ou seja, embora estivesse em perigo havia outras urgências para resolver primeiro, pelo bem de sua sobrevivência.

– Vou providenciar uma nova atadura com o que temos aqui – Alec anunciou, amparando-a para que pudesse caminhar devagar até a beira da cachoeira, onde a ajudou a se sentar – Mas antes quero examinar melhor esses ferimentos. Vou precisar lavar seus braços, tá?

             A água que deslizava sobre pedras arredondadas era límpida, cristalina e muito gelada. Como estavam agora mais perto da fogueira, embora aquela fosse uma área completamente imersa na mais profunda escuridão, vários quilômetros debaixo do chão, era possível enxergar o solo uns dois ou três metros abaixo da vazão.

            Alec começou lavando seu braço esquerdo, talvez por mero acaso, talvez porque tenha preferido iniciar pelo mais fácil. Suas mãos eram macias, ao contrário das mãos de Thaian, e em formato de concha levavam uma pequena quantidade de água até o ombro, deslizando as palmas úmidas em direção ao punho. Depois ela usou um pedaço de tecido para esfregar os pontos em que a sujeira se confundia com as cores dos machucados. Órion se esforçou para não demonstrar nada do que sentia, em consideração à gentileza e habili­dade de Alec naquela limpeza, mesmo quando em dado momento teve o braço todo esticado para a frente, causando muita dor.

            Órion se conteve porque sabia que quando chegasse a vez do outro braço seria ainda pior, o que foi de fato, mesmo com Alec tomando o máximo de cuidado para não lhe causar mais nenhum descon­forto. Seus dedos firmes, porém delicados, tateavam a pele como se buscassem as fraturas e Órion se espantou quando notou que a mulher fazia essa inspeção de olhos fechados. Como se ela fosse capaz de enxergar através da alma.

Isso a reconfortou em níveis que Órion não saberia explicar. Prova­vel­mente o contato com a cachoeira também ajudava a relaxar. Ou a adrenalina, que agora começava a abaixar.  

Mergulhada na dor, Órion considerou que se não fosse o inconveniente de estar toda quebrada, adoraria poder aproveitar a cachoeira de outra forma, quem sabe até se arriscando a nadar. A vida naquele ponto de Trevon era diferente de tudo o que poderia imaginar e, se pudesse, viveria ali para sempre. É muito fácil se acostumar com o que é bom.

            Júpiter estava sentada a cerca de cinco metros de distância. Ela tinha as costas semiapoiadas numa pedra alta e as pernas estiradas no caminho da água, o que desviava um pouco o curso em volta do corpo. Seu semblante estava relaxado, parecia até feliz, ainda que severa­mente machucada e visivelmente abatida e cansada. Àquela distância, dava a impressão de estar até mais contun­dida que Órion, especialmente depois que ela puxou a camiseta até a altura dos seios para se banhar, revelando uma lesão enorme na altura do baço, que se estendia pela costela num tom meio amarelado.

            E pensar que tudo começou porque em algum momento, dias atrás, Júpiter tirou a blusa e ficou nua no meio da praça, durante um protesto... Ou melhor, tudo eclodiu neste ponto da história, porque na verdade começou muito antes, quando Órion teve acesso às filmagens do protesto do ano anterior. De alguma forma, Júpiter a seduzia, num efeito quase hipnótico. Inexplicável!  

Olhando-a agora, não restavam dúvidas de que o tratamento que ela havia recebido na prisão recentemente tinha sido muito pior do que o “acolhi­mento” oferecido à Órion pelos robôs do Corpo de Comando, na entrada de Trevon. Inclusive porque no CCC havia mais gente, que se revezava naquilo que chamavam de “interrogatório”.   

– Vou ali buscar o que você precisa e providenciar algo contra dor – Alec anunciou, despertando a atenção de Órion – Já cuido de você e aproveito para cuidar dela também.

            A mulher disse isso e saiu, tropeçando nas próprias pernas logo após se levantar. Ela foi até onde Júpiter e Thaian estavam e disse algo depois de examiná-la brevemente. Só então Órion reparou que Alec havia coberto seus braços com um tipo de argila, que mudava de cor conforme ia secando. Quando voltou a olhar na direção de Júpiter, Alec não estava mais lá. Nem Thaian.

            O moço com peruca voltou a entrar no foco, no instante em que sentou-se ao lado de Júpiter e seu corpo imediata­mente a escondeu atrás dele. Isso fez com que os pensamentos de Órion também se desviassem, cogitando para onde Alec poderia ter ido. Na água havia duas rebeldes, abraçadas numa intimidade quase despudorada, molhadas até a altura do umbigo, desinibidas com seus corpos desnudos. Pareciam performar uma dança, mas sem nenhuma música, só a água. Embora fosse uma cena bonita e agradável de se ver, nenhuma delas era Alec e Órion tinha lá suas prioridades.

Contemplá-las fez com que ela percebesse que não estava coberta com quase nada de roupa, apenas com uma camiseta fina de um tecido desgastado, o que a forçou a procurar algo com que pudesse se vestir. Além de constran­gida, seus músculos se avantajavam em relação à magreza das pessoas à sua volta, chamando atenção. Era preciso disfarçar seu passado de exímia policial se queria mesmo se vender como mera prisioneira, mas Órion não encontrou nada com que pudesse tampar suas intimidades.

Por um momento, ao olhar à sua volta, todos pareceram dis­traí­dos, completamente despreocupados com sua presença, o que a fez considerar a ideia de desbravar o local. A lama rígida e úmida em seus braços inacreditavelmente tinha amenizado o incômodo da dor e pareceu propício se aproveitar disso na busca pelo que vestir. Com sorte, ainda encontraria Alec pelo caminho.

Enquanto acostumava a vista à escuridão, virando-se de costas para a fogueira, Órion lembrou-se do beijo de Júpiter. Lembrou de sua boca, de seu gosto, da maciez de sua língua misturado com o cheiro que vinha dela, de dentro dela. Por que a havia beijado, afinal?

Tão estranho quanto o beijo totalmente inesperado foi a reação das demais subversivas diante da cena. Ou melhor, o que causou surpresa foi a completa ausência de reação, no caso. Ninguém achou esquisito, assim como também ninguém quis perguntar o motivo daquilo tudo. De um jeito como se todas soubessem o porquê, menos Órion.

Tateando literalmente no escuro, ainda sem saber direito para onde deveria se encaminhar, pela primeira vez Órion lamentou não poder mais contar com o auxílio de Uiliam ali embaixo da terra. Embora fosse indubitavelmente prazeroso reservar seus pensamentos apenas para si mesma, a colega com certeza teria alguma sugestão para o que poderia ter motivado um beijo de uma rebelde como Júpiter em uma completa estranha como Órion.  

Certamente Uiliam diria algo mais cabível que as milhares de teorias que Órion havia criado até aqui. A versão mais aceitável dentre os absurdos cogitados era de que Júpiter se tratava de algum tipo de robô, um modelo humanoide bastante convincente, ou então contava com alguma tecnologia embutida, caso fosse humana de verdade (e parecia ser, dadas suas escoriações). O que quer que fosse, porém, todas as possibilidades soavam como improváveis, ridículas até.  

Pensar em Uiliam fez Órion refletir novamente sobre o chip em sua nuca, emitindo continuamente um sinal que em algum momento fatalmente seria captado pelos computadores e radares do CCC. Quando isso acontecesse, a Polícia a encontraria e tudo estaria perdido. Seria o fim – a começar pelo seu.

Teria Uiliam feito um último gesto em solidariedade à investigação e à vida de Órion? Porque perderem o contato de forma alguma significava dificuldade para ela acessar o sistema e desligá-la. E Uiliam, mais do que ninguém, sabia perfeitamente os riscos que a policial corria, sozinha lá embaixo.

Tentando não se consumir pensando muito nisso, Órion se valeu de sua bússola interna e caminhou em direção ao ponto que sua intuição indicava que deveria ir, sem saber ao certo se chegaria de fato a algum lugar. Por não conhecer a geografia daquele espaço e uma vez que fazia o reconheci­mento sem enxergar direito, por causa da escuridão completa, precisou confiar em seu faro policial, que emitia sinais de que o caminho era seguir por ali.

Ela se guiou usando as mãos, se agarrando nas ranhuras e reentrâncias irregula­res da rocha fria que lembrava um paredão alto e desnivelado, que seguia a perder de vista. Não havia água, exatamente, escorrendo do barranco mais acima, mas ainda assim tudo parecia encoberto por um tipo de musgo. Ou era mofo, não deu para diferenciar. O que quer que fosse, tinha uma consistência macia e afundava parte dos dedos de Órion, conforme ela encostava na pedra que se assemelhava a um muro grande, que tinha um cheiro forte e úmido.

 Cada pequeno movimento era devagar e incerto, pois Órion não sabia se no passo seguinte toparia com alguma pedra, deslizaria por algum barranco ou tropeçaria em alguma rugosidade típica daquela caverna. Hora ou outra sentia uma corrente de ar frio que, quando batia, até doía a pele. Arrepiada involuntariamente, Órion nem tinha como se aquecer, uma vez que a umidade deixava sua camiseta pesada e desconfortável. Quase quis voltar para perto da fogueira, mas a curiosi­dade em explorar era mais forte que os incômodos físicos que sentia.  

À medida que vagarosamente progredia, Órion era invadida por uma sensação estranha de estar sendo observada, mais ou menos como se sentia quando vivia cercada e fiscalizada 24h por dia pelas milhares de câmeras do Comando. Contudo, embora confiasse plenamente em seus instintos, optou por descartar a ideia porque, em meio ao breu implacável, só era capaz de enxergar algo alguém que tivesse uma lanterna ou poderes de Polícia. Ou, melhor dizendo, quem contasse de alguma forma com o auxí­lio da tecnologia do CCC, simplesmente inexistente por ali.

De repente, um som indistinto ecoou à sua esquerda, gerando dúvida quanto à direção que seguia. Pareceram vozes, mas Órion não conseguiu identificar porque no mesmo instante, imediatamente sentindo-se presa em uma armadilha, a policial percebeu também um movimento vindo por trás dela, o que a fez se virar rapidamente, na tentativa de proteger a própria retaguarda. Péssimo lugar para ficar sem calça!

Ainda que a esta altura a fogueira já estivesse um pouco distante, localizada a alguns metros de onde agora se encontrava, Órion reconheceu na luz fraca o contorno do corpo de Júpiter, perigosamente próximo ao seu. Por um momento, pareceu ter a impressão de ver um brilho vindo de seus olhos; como se isso de alguma maneira fosse possível, considerando que a claridade estava às costas da mulher.  

– O que você faz aqui? – Júpiter perguntou, sua voz seca cortando o silêncio como fio de navalha afiada. Pela maneira como inquiriu, fez Órion acreditar que ela sabia de tudo, que era realmente capaz de ler seus pensamentos, sua ficha completa, o que quisesse – Está perdida? – Júpiter perguntou na sequência, em outro tom, completamente diferente.

            Órion não respondeu nada a princípio, tampouco pensou sobre o que responder. Na companhia de Uiliam tinha treinado seu raciocínio, se blindando até do que costuma vir em forma de espasmo cerebral, micropensamentos que são o puro suco para quem os acessa. Isso soava como pura paranoia, mas seu instinto era realmente aguçado, bem calibrado, não custava nada segui-lo. E ele lhe dizia para ficar atenta e vigilante quanto ao que pensava perto de Júpiter.

– Deve ser tudo muito diferente para você, né? Aqui embaixo as leis são diferentes. Não há sirene que dite o que devemos ou não fazer – Júpiter fala, parecendo usar de duplo sentido, dando duas batidinhas na parede de rocha ao lado delas. Com o breve movimento, uma lâmpada de LED do tamanho de uma unha se acendeu, refletindo em seus olhos antes de iluminar parte do ambiente à volta delas – Me falaram que você passou vários anos presa, pavilhão 4, é isso? – ela pergunta, sem dar tempo para Órion responder – Conheço gente que foi para lá e nunca mais voltou. O que te falaram quando você saiu?

– Como assim, “o que me falaram”? Não falaram nada, ué – Órion rebate, de pronto. Quase pôde ouvir Uiliam dentro de sua cabeça, aplaudindo a resposta.

Afinal, o que o CCC teria para comunicar a alguém antes de soltá-la, depois de mantê-la encarcerada por muito tempo? O Comando sabia que havia casos em que liberar cidadãos comuns da prisão era mais prejudicial do que simplesmente mantê-los presos, uma vez que a soltura costumava gerar certa desconfiança entre as pessoas, o que consequentemente enfraquecia qualquer possibilidade de criar laços com quem era libertado. Para o Corpo de Comando e Controle, qualquer tipo de isolamento era válido, até (e principal­mente) aqueles sem nenhum tipo de intervenção direta, porque acabavam servindo como uma continuação à punição anteriormente aplicada.   

Mesmo sem obter uma resposta, Júpiter permaneceu encarando-a, exibindo no rosto uma expressão de quem não acreditava em nada do que ouvia. Fosse o que Órion dizia ou pensasse.

– Tá certo, Órion – Júpiter retrucou, num tom meio debochado, dando ênfase ao seu nome no final da frase.

De novo pareceu que ela sabia de algo, só que ao contrário de Thaian, que ao se sentir desconfiada foi lá e a revistou, Júpiter se valia de outro tipo de abordagem: a ironia. Sim, porque a esta altura Órion já estava convencida de que a rebelde sabia mesmo de tudo a seu respeito. A incógnita era descobrir por que ela não havia compartilhado a informação com o bando. Dificilmente seria para poupá-la.

            Sem falar mais nada, Júpiter iniciou uma curta caminhada, iluminando o chão com a mão levantada, andando num ritmo lento, esperando que ela a acompanhasse. Órion a seguiu o mais célere possível, o que em verdade representava uma cadência bastante vagarosa, dada as dificuldades encontradas para se locomover. A duras penas, descobria o quanto era difícil ser humana comum nos dias atuais.

– Antes de mais nada, preciso dizer que você está prestes a ver uma coisa impensável de se encontrar aqui – Júpiter disse, por cima do ombro, parecendo animada – O Comando nem desconfia que nós somos capazes de ter algo assim – completou, orgulhosa. 

            Órion quase abriu a boca para responder, mas se conteve. O que quer que dissesse por ímpeto poderia de alguma forma comprometê-la e a carapuça do CCC era a última coisa que pretendia vestir naquele dia. Por isso a seguiu em silêncio, pela primeira vez observando que a cobertura em cima das pedras tinha uma aparência bonita, aveludada, combinava com a cor de bolor meio alaranjada, parecendo um tipo de ferrugem produzida pela natureza.  

            Poucos passos adiante, Júpiter demonstrou conhecimento de rota e fez uma curva acentuada, acessando uma passagem que parecia secreta, pelo fato de estar camuflada atrás de um bloco enorme de pedra. Se por acaso Órion estivesse sozinha, provavelmente ela nem veria o caminho estreito por onde entraram, de cabeça baixa porque o espaço era inclinado e bastante apertado, como um túnel.  

As duas caminharam devagar alguns metros em direção a um pequeno vozerio, vindo de um ponto iluminado em meio à escuridão logo à frente. Quando chegaram ao destino, depois de quatro ou cinco minutos, Órion aguardou que sua vista se acostumasse com tudo o que se deparou antes de elaborar algo que pudesse falar. Ou pensar.

            Oculto sob várias camadas de rochas e detritos, o pequeno refúgio subterrâneo era na verdade um mega laboratório repleto de tecnologia clandestina. Havia diferentes tipos de materiais e equipamentos, ligados por muitos fios despencando do teto baixo. O ambiente era extremamente abafado, impregnado por um odor forte de eletricidade estática e uma mistura de produtos químicos.

            No centro do laboratório havia duas bancadas compridas, que embora desgastadas de tanto uso estavam cobertas por uma grossa camada de poeira. Ambas exibiam sobre os tampos um pequeno caos organizado, composto por instrumentos científicos contrabandeados e outros adaptados, com peças claramente substituídas em gambiarras criativas, além de objetos reciclados soldados a materiais criados com a ajuda de antigas impressoras 3D.

Num primeiro momento, ver tudo aquilo imediatamente levou Órion a pensar como é que tinham transportado tanta coisa até ali. O caminho de Trevon até a gruta era escuro e escorregadio, com desafios que ela, policial com anos de treinamento, teve dificuldades para superar. Como era possível tamanha façanha? E sem que ninguém visse!

            Em contraste com diferentes dispositivos de criptografia avançada, diversos computadores arcaicos e consoles emendados e hackeados exibiam dados e algoritmos em telas precárias, piscantes, que pareciam transmitir cenas ao vivo de Trevon. Numa olhada rápida, Órion até se arriscaria dizer que havia imagens também de dentro dos prédios do Comando, mas não teve certeza porque era muito detalhe para olhar e aquele, impressionantemente, era dos mais insignificantes.

            Num dos cantos da caverna, Órion reconheceu partes de robôs do CCC desmontados, inclusive uma insígnia, que dava passagem a muitas das áreas restritas do Corpo de Comando e Controle, mas que parecia desimportante ali, jogada em meio às sucatas. Um capacete ao lado, furado no meio do visor por algum tipo de projétil, evidenciava o poder bélico e de ataque daquelas rebeldes.

            No canto oposto a policial apreciou um grupo de espécies diferentes que, à primeira vista pareciam seres vivos, mas Órion sentiu-se confusa e de imediato não soube detectar o que era ao certo. Depois reconheceu que se tratava de uma planta; puxou da memória quando estudou itens da antiga natureza, na infância, e com certeza era uma planta. Uma planta de verdade!

Pensar nisso consequentemente fez Órion se lembrar de Uiliam descrevendo um tal sumo de alho na sopa oferecida por Alec, logo que acordou ao ser resgatada depois da emboscada. Nesta trilha, seu raciocínio lógico identificou que aquilo então era alho. Um pé de alho!

O mato comprido e verde, brilhando sob a luz de LED, terminava na terra junto de uma saliência rosada, desenhada em pequenos gomos. Órion teria tocado e cheirado, se pudesse. Mais: teria colhido um pedaço só para entregar pessoalmente a Uiliam para ela poder examinar. Seria um bom motivo para justificar o primeiro contato pessoal entre as duas.

            Ao lado das plantas havia uma bancada colorida no fundo do laboratório com dispositivos eletrônicos numa ponta e componentes químicos na outra. Era ali que Alec estava, macetando algo dentro de uma pequena cuia de metal. Ao ver Júpiter e Órion ali, imediatamente se paralisou e se calou, assim como Minu, que também demonstrou enorme surpresa por vê-las. A dupla inseparável, Eoni e Aness, que na claridade tinha o olhar desconfiado, igualmente se atirou numa mudez que nem de longe transmitia algum tipo de quietude.  

– Tudo bem, fui eu que a trouxe aqui. Achei importante que ela visse – Júpiter comenta, antes que alguém dissesse algo.

Ou Júpiter era uma mulher realmente astuta, integralmente conectada a tudo e a todos à sua volta, ou ela tinha mesmo a capacidade de ler os pensamentos das pessoas, do jeito que Uiliam fazia, só que sem a necessidade de um dispositivo executando a conexão entre sua mente e as demais. É só o que explicaria seu comportamento peculiar e tão cheio de atitude.

Prova disso é que não contestaram sua decisão. Desde o episódio dos óculos, todas agora pareciam desconfiar de Órion, cada uma à sua maneira, em diferentes níveis, e ainda que aquele fosse nitidamente um lugar secreto, ninguém falou absolutamente nada sobre sua presença ali. Aparentemente só porque Júpiter disse que “tudo bem”.

– Finalmente chegou a hora de colocarmos em prática a última parte do plano – Júpiter anuncia, triunfante.

– É mesmo? – Eoni pergunta, seus olhos brilhando de expectativa – Tem certeza? –  a jovem questiona na sequência, um pouco incrédula.

– Absoluta – Júpiter responde, sem pestanejar. Ela apontou com a cabeça para uma tela pregada na parede antes de continuar – E precisamos ser rápidas para não corrermos o risco de os robôs nos acharem.

            Alec não pareceu preocupada com o rumo da conversa e ofereceu à Órion um recipiente desbotado que continha algo turvo e esbranquiçado, coberto por uma espuma espessa; o aroma era ácido e combinava com o gosto, bem amargo. Ao ingerir, parte do líquido denso grudou em sua garganta, a fazendo tossir.

– Isso vai te ajudar com a dor – ela informou, entregando uma dose similar para Júpiter. Após beber, a mulher também tossiu – Vou reforçar a sua atadura para que o curativo resista durante a fuga e você não quebre ainda mais os braços – Alec complementou, ainda notavelmente imperturbada.

            Então fugiriam. O que quer que aquela etapa do plano de Júpiter envolvesse era algo que seria enfrentado longe dali, distante do laboratório e da cachoeira incrível que o protegia e o camuflava. E agora que Órion conhecia os dois ambientes, considerou que seria até lucrativo se a Polícia eventualmente encontrasse apenas a cascata. Representaria uma enorme perda, é verdade, mas nada comparado à guerra que se instauraria em Trevon se por acaso o Comando descobrisse aquela oficina clandestina dotada de uma tecnologia que ela sequer imaginava como poderia funcionar. Assim como o plano de Júpiter.

Qual seria, afinal, o objetivo das rebeldes? Ao que visavam e como fariam para conseguir aquilo que almejavam? Tudo em Trevon era integralmente monitorado, de que forma elas pretendiam despistar os robôs e todo o sistema do Comando?

– A Dien confirmou que instalou os sensores ao longo do caminho – Júpiter revela, como se respondesse aos pensamentos de Órion – Todas as rotas de Trevon estão desde ontem emitindo as nossas frequências, como se estivéssemos lá e não aqui. Mas é preciso retornar logo porque se a Polícia encontrar um sensor vai conseguir localizar e anular todos os demais. E consequentemente nos matar.

A luz artificial emitida por lâmpadas de LED presas nas paredes e no teto irregular da gruta lançava sombras dançantes sobre Júpiter enquanto ela falava. Os monitores holográficos que piscavam e projetavam dados complexos em formatos tridimensionais também refletiam uma luz azulada sobre seu rosto, criando um efeito psicodélico. Um belo contraste com o breu que encobria tudo lá fora na mais profunda escuridão.

            Sem dizer nada, Alec arrastou com o pé uma banqueta para que Órion se sentasse ao seu lado. O chão do laboratório era praticamente coberto de cabos e tubos que serpenteavam por baixo das bancadas, conectando uma infinidade de dispositivos e máquinas estranhas, alimentadas por geradores com longas hélices que não emitiam nem um único ruído.

Mas Órion não teve muito tempo para pensar sobre isso porque Alec puxou para perto uma caixinha que parecia um verdadeiro kit de primeiros socorros. No Ambulatório de Trevon era comum encontrar alguns daqueles itens, inclusive a gaze que a mulher endureceu com uma água meio escura, formando ao redor dos braços de Órion uma tala que parecia gesso, de tão dura. Junto com a lama, já seca em torno da pele, cada membro passou a pesar quase 2kg a mais depois do reforço no curativo.

– Eu adoraria poder chutar novamente algumas bundas metálicas – Minu ri, acompanhada por Aness – Mas não vou dizer que só por isso estou na torcida para encontrarmos algum pelotão na passagem, pois espero que a volta até Trevon seja tranquila.

– Eu também, mas se eventualmente encontrarmos algum robô, meu desejo é que você não tente chutá-lo – Alec reclama, demonstrando atenção à conversa, embora estivesse concentrada no curativo remendado de Órion. O comentário a fez ganhar um beijinho de Minu.

– Tudo bem, minha querida. É seguro! E muito, muito divertido. Fala para ela, Aness – Minu ainda ria.

– Sim, robôs são estúpidos – Aness cospe no chão, com desdém – São espertos só para seguirem determinadas diretrizes e coordenadas que facilmente podem ser alteradas – ela diz, pegando o que pareceu ser uma pedra. Porém, ao apertá-la entre os dedos nitidamente o aparato emitiu um sinal porque no mesmo instante Órion sentiu a nuca latejar e se controlou para não levar a mão até o local. O dispositivo produzia um pulso eletromagnético capaz de afetar a rede e o sistema do Comando. Afetava até Órion, mesmo sem o equipamento da Polícia.

– Dessa última vez que nós atraímos aqueles dois lá em cima, na armadilha que a gente montou na entrada de Trevon, eu achei mais fácil controlá-los do que na semana passada, durante o protesto – Eoni diz, virando-se de costas para as telas amontoadas na parede. Definitivamente parte delas transmitia imagens de dentro dos prédios oficiais.

– É porque fazer isso a céu aberto exige um pouco mais. Ambientes pequenos ricocheteiam o sinal, aumentam a potência – Júpiter sorri. Se realmente acessava os pensamentos de Órion, parecia satisfeita por estar revelando tudo aquilo, cada detalhe – Mas fazer isso lá em cima não é nada impossível. Tanto é que no protesto nós fizemos os palhaços dançarem – ela complementa, gargalhando.

– É uma cena para não esquecer nunca mais – Minu também dá uma risada alta – E que teria sido melhor se não fosse por aquela policial, fala aí... – agora ela é quem cospe no chão, ilustrando todo o desprezo que sentia por A-348 – Aquela humana – Minu complementa.

– É, mas foi um risco necessário – Júpiter declara, sem desviar o olhar de Órion. Nem piscou – Já imaginávamos este desfecho, tudo bem. Foi um preço até que baixo e eu pagaria tudo de novo, com muito prazer.

            A mulher então levanta a camiseta e revela metade das costas esfoladas, depois que se virou para trás. Júpiter permitiu que Alec aplicasse uma pomada gosmenta de aparência duvidosa sem deixar escapar nem mesmo um suspiro mais pesado, aceitando o cuidado de maneira bastante resignada. Pela aparência, em carne viva, aquilo parecia doer um bocado.

            Considerando sua fala, ir para a prisão durante o protesto de 05 de maio foi apenas a consequência de uma ação planejada e prevista, que parecia incluir até mesmo a possibilidade da presença de Órion numa praça cercada por robôs do Comando. O curioso é que na ocasião A-348 estava de folga, mas ainda assim Júpiter deu a entender que sabia que a policial poderia estar presente, de todo jeito. Como?

Da mesma forma, o ataque do CCC assim que largou o posto, disfarçada de civil, também parecia esperado e o fato de todas estarem prontas para se defender era a prova disso. Órion, desavisada, foi a única a sofrer com a emboscada e esse detalhe igualmente dava mostras de ter sido calculado pelo bando de Júpiter. Como se de alguma maneira a surra que só ela levou também fizesse parte do plano.

– Você parte quando? – Alec perguntou, com dois dedos besuntados do creme avermelhado, ao terminar de cobrir a pele da amiga. Sem cerimônia nenhuma, limpou a mão na barra da camiseta furada de cor indefinida.

– Agora mesmo – Júpiter volta a puxar a camiseta, com cuidado, deixando transparecer por milissegundos uma microexpressão de dor – E vou com ela.

– O quê? – a mulher parou a mão no ar, incrédula, revelando que seus dedos na verdade estavam manchados e não sujos.

– Com a Órion? – Eoni perguntou, ao mesmo tempo que Alec.

– Sim, é melhor que seja assim – Júpiter acena. Pareceu satisfeita ao ver a expressão de confusão instalada de repente no rosto de Órion que, ainda assim, permaneceu em completo silêncio. Inclusive mental – Eu preciso que vocês confiem em mim – ela repete o discurso proferido com Thaian, minutos atrás.

– A gente confia, é claro, mas é que pareceu que Cael te acompanharia – Minu retruca – Até porque ele nem está com os braços quebrados, ele sabe correr...

– Não, Cael fica. Precisamos de alguém vigiando o laboratório, para o caso de o CCC nos atacar. E vocês precisam voltar para Trevon. É perigoso ficarem aqui e precisamos manter a base fortalecida enquanto avançamos. Combinei de me encontrar com Thaian e Giles lá em cima.

– E você pretende levar o souvenir do seu Niavva lá para fora? A peruca de Cael? – Aness sorri, embora a pergunta fosse séria – Ele apreciaria a homenagem! Já pensou? Finalmente concluir o plano e fechar o círculo junto com o triângulo: Idélia Ostrac, Ptônio Niavva e a...

– Não, não... Isso vai ficar para outro momento – Júpiter interrompe, com o sorriso mais bonito registrado até aqui. Ela dava a impressão de lidar com tudo aquilo como se fosse só um jogo e no meio disso Órion inacreditavelmente desejou ser seu brinquedo – Até aqui apenas Giles e eu chegamos até o fim e sei que só conseguimos porque fomos de mãos vazias. Não dá para carregar nada até lá, gente! O caminho é muito arriscado e perigoso, tipo um labirinto.

– Mas mesmo assim dá para carregá-la? – Eoni parecia preocupada com o fato de Júpiter querer levar Órion, para onde quer que fosse.

– Ela vai, Eoni – Júpiter responde, séria, deixando claro em seu tom de voz firme que a decisão não era passível de nenhum tipo de negociação – E vai andando, não pretendo carregar ninguém.

– Tá bom – Eoni levanta a mão, como se estivesse se rendendo. Ou interrompendo o início de alguma discussão prematura – Acredito que ela só vai dificultar a sua caminhada, mas confio em você, Júpiter. E torço para que dê tudo certo, você sabe.

– Eu sei, sim – Júpiter lhe dá um abraço breve e repete o gesto com as outras três rebeldes – Se cuidem no caminho, por favor, quero que mandem notícias. Avisem assim que chegarem em Trevon.

– Toma, isso vai evitar que abusem de você lá fora, caso deem o azar de esbarrar com alguém do Comando pelo caminho – Alec entrega uma calça puída à Órion, parecida com a que vestia.

Surpresa com o gesto, sem perceber, Órion desceu os ombros, como se finalmente se permitisse abaixar a guarda. Não à toa, sentia-se tensa desde que se viu alvo do enquadro de Thaian, momentos atrás, mas o gesto de Alec deixou evidente que embora aquelas rebeldes tivessem motivos para desconfiar dela, ainda assim eram humanas e surpreendentemente gentis. Por isso, repreendeu o pensamento quando quase considerou que a peça talvez ficaria pequena demais em seu corpo. Apertada, certamente.

– Nossa, nem sei como te agradecer – Órion responde, deixando escapar um suspiro sincero. Fugir do Comando seria muito mais fácil agora, sem que o mundo inteiro embaixo da terra pudesse ver suas intimidades. Já bastava ter que empreender fuga com os braços engessados, descalça e com Júpiter, que tinha o incrível poder de deixá-la nervosa.

            Órion não entendia o porquê de a rebelde querer levá-la junto, mas num primeiro momento se prendeu pensando em outra coisa, pois achou curiosa a menção feita à peruca. Por que o cientista de alguma forma ficaria satisfeito com o fato de Júpiter levar algo que outrora pertenceu à Uiliam?

Por que raios de motivo a peruca poderia ser considerada um “souvenir”? Qual seria a ligação entre Niavva e Uiliam, dois personagens tão distintos?  

Ptônio Niavva e Idélia Ostrac formavam um casal, até onde Órion sabia. “Casal Ostrac e Niavva”, era como se referiam aos dois nas conversas informais nos corredores do Comando. Não formais porque os dois eram considerados traidores do sistema e provavelmente por isso foram mortos. De que maneira Ptônio e Idélia se interligavam à Uiliam? Qual era mesmo o sobrenome da policial? Essa ligação é que a teria sentenciado a trabalhar no prédio R?

            Distraída com os pensamentos enquanto vestia a calça que era pelo menos uns dois números menor que seu corpo, Órion não reparou em qual momento a conversa entre as subversivas cessou, tampouco quando foi que Júpiter começou a encará-la. Seu rosto indicava puro deleite, como se tivesse as respostas que Órion ansiava, mas por prazer (e um pouco de sadismo) fazia questão de não revelar nem uma pista.

            Isso a levou a pensar que, sabendo quem Órion era de fato, a rebelde provavelmente pretendia levá-la a tiracolo somente para matá-la e se desfazer de seu corpo pelo caminho. “Nós não somos como eles”, Júpiter teria dito, minutos atrás. Isso significava que o grupo não costumava maltratar durante uma abordagem, mas ainda assim matava igual ao CCC?  

            Embora fosse algo provável, ao mesmo tempo não fazia muito sentido. Júpiter era uma mulher astuta, não precisava se dar ao trabalho de matá-la, muito menos de carregá-la ao invés de levar alguém do bando se não fosse estimulada por algo maior. De novo: se ela realmente sabia quem Órion era de verdade, querer levá-la para finalizar seu plano fazia parte de uma motivação que com certeza justificava uma decisão tão controversa. Restava saber que motivação seria essa. 


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