Trevon 6 (parte 1)
6. Uiliam (Primeira parte)
Órion
sentia-se estranha, como se estivesse presa dentro de um sonho lúcido, só que
daquele tipo angustiante, que você quer correr, mas não sai do lugar. Em
partes, atribuía a sensação esquisita ao fato de nos últimos dias ter alterado
drasticamente sua rotina, alheia às sirenes que desde sempre ditavam seus dias.
Isso obviamente a afetava, afinal, seus horários eram engessados, praticamente
cronometrados porque “disciplina” era a palavra de ordem em sua vida, graças
à rigidez do CCC. Não bastasse, em sua defesa, qualquer pessoa fica mesmo meio zureta
se passa mais de dois dias dormindo direto, especialmente depois de levar uma
surra de dois robôs, como foi seu caso. O longo cochilo a havia renovado, talvez
de um jeito inédito, mas a um preço altíssimo que agora cobrava juros
exorbitantes.
Mais
estranho do que ter dormido tanto e ter os dois braços imobilizados e caídos o
tempo inteiro em direção ao chão era o fato de estar fugindo da Polícia embaixo
da terra, em algum lugar que desconhecia completamente, sem o apoio de seu
uniforme do Comando, que era quase uma extensão de seu corpo, há muitos anos.
Ainda que beneficiada com a total ausência dos pesos característicos do traje
policial, a falta da indumentária a deixava desconfortavelmente exposta e
vulnerável, e isso fatalmente afetava seu emocional, a esta altura bastante
abalado.
Até aqui,
nada do que havia acontecido tinha sido exatamente planejado, a começar que
antes mesmo de descer para os recônditos de Trevon, Órion já teve sua rota
alterada, ao ser salva e desviada por Eoni e Aness, ainda na calçada da cidade.
Bem ou mal, encontrá-las encurtou o caminho percorrido até Júpiter, mas a
policial ainda sentia literalmente na pele os estragos causados pelo alto preço
pago por esse socorro. A emboscada do CCC ainda reverberava em seu corpo.
Embora
engessados, Órion estava com os dois braços quebrados em diferentes pontos, depois
de ter sido espancada pelos cassetetes da Polícia, o que gerava dores agudas que
se irradiavam dos pulsos até os cotovelos e dali se espalhavam em ondas
dolorosas que latejavam até os ombros que, embora estivessem inteiros, doíam
bastante também. Os pés, por sua vez, ardiam na sola por causa dos pedriscos,
da terra grossa e de tudo quanto é tipo de mineral que ela teve que pisar até
ali, sem a proteção de nenhum solado. Vale dizer que esta era a primeira vez na
vida que Órion andava descalça.
De longe, a
policial facilmente poderia confundida ser com uma habitante qualquer de
Trevon. Pior: assemelhava-se a uma insurgente, exatamente como aquelas que
pertenciam ao bando de Júpiter, que neste momento a encarava diretamente nos
olhos, numa seriedade de gelar o coração.
A rebelde
estava com uma aparência péssima, lamentável, mas ainda assim conseguia estar
linda. E Órion só se permitiu pensar nisso porque sabia que Uiliam não
conseguia mais captar suas ondas cerebrais, o que de certa era forma um alívio,
embora a restrição de contato fosse notadamente um péssimo sinal. A respiração
de Thaian, tão perto de seu rosto, era um claro indício do risco que corria.
Encurralada,
era assim que Órion estava. Acuada, entregue e à mercê de marginais
enfurecidas. Mas a primeira coisa que lhe ocorreu quando viu os óculos serem arrancados
do rosto de Alec e quebrados em mil pedaços, no instante em que o silêncio
dentro de sua cabeça se tornou gritante, foi que não resistiria nem lutaria. Tudo
bem morrer agora, considerando que nos últimos dias havia presenciado situações
suficientes para uma vida inteira, sentia-se satisfeita (e cansada). E não havia
pudor em admitir isso, pois seu íntimo voltou a ser preservado no momento em
que Uiliam foi violentamente tirada de cena.
Uiliam, a
policial alocada no prédio R do Comando. O tal “prédio das aberrações”, segundo
a subversiva do rosto rasgado. Qual seria exatamente o trabalho dela? Estar lá
era por mérito ou por castigo? Sua tarefa com A-348 teria sido de alguma forma uma
provocação da Comandante ou um favor? Porque elas notadamente se conheciam, pareciam
até ter um certo grau de intimidade, o que era raro, se tratando de alguém que
era nada mais, nada menos, que Aira Acachi. A todo-poderosa do Corpo de Comando
e Controle. Alguém que sabia ser gentil, mas igualmente ardilosa e revanchista.
Era tanta
coisa para pensar que a enxurrada mental acabou amenizando o clima pesado que
Órion enfrentava, pela primeira vez realmente sozinha em Trevon, sem apoio
nenhum do CCC a não ser o chip implantado na nuca em seu primeiro mês de vida. Em
algum momento Uiliam desligaria o sinal que o chip emitia ou sua missão teria terminado
no instante em que a conexão entre as duas se perdeu?
– E aí, alguém pretende explicar o
que aconteceu? – Alec questiona. Mesmo abafada pelo som da cachoeira, a
pergunta soou como se ela estivesse ofendida com a cena dos óculos, o que
combinou com seus olhos estreitos devido à visão debilitada.
– Estamos com uma infiltrada –
Thaian declarou, forçando Órion a sentar-se em cima de uma pedra. Só assim
ficaram minimamente na mesma altura.
– Eu não disse isso – Júpiter se
antecipa em responder, embora seu rosto dissesse outra coisa; ela encarava
Órion como se de alguma forma conseguisse ler seus pensamentos, sem o auxílio
de tecnologias. Como se tivesse todo o aparato da Polícia dentro da própria
cabeça – Mas a verdade é que aqueles óculos com certeza estavam grampeados. É
impossível a Polícia nos localizar aqui embaixo, neste ponto de Trevon, se não for
por algo indicando onde estamos.
– Mas... – Thaian grunhiu,
afrouxando um pouco (só um pouco) a força usada para segurar a gola da roupa de
Órion.
O fato é
que enquanto todas se reuniam ao seu redor, a policial em momento algum
apresentou a menor resistência em permanecer sentada. Aquela na verdade era a
posição em que Órion sentia-se mais confortável perto das rebeldes, embora fosse
perceptível que Júpiter também era notadamente mais alta que suas companheiras.
Só que o tamanho dela não parecia chamar tanto a atenção quanto a estatura de
Órion, que além de maior era a mais forte também.
Se
porventura quisesse, teria total condição para empreender alguns minutos de
luta corporal, sozinha contra todas elas, mas Órion manteve-se quieta e respeitosamente
em silêncio.
– Eu preciso que você confie em mim
– foi a resposta de Júpiter para Thaian, dita em voz extremamente baixa, quase
inaudível, mas Órion captou. A subversiva ainda resistia em soltá-la.
– Mas quem garante que ela não é um
robô do CCC? A gente sabe que na Polícia tem muito robô que parece mais gente
do que a gente – Thaian insiste, claramente sem querer ceder em sua decisão de
fazer algo contra Órion – Essa mulher chegou até nós do nada, ninguém a conhece...
os óculos podem perfeitamente ter sido apenas um disfarce e ela ter um GPS
escondido, implantado em algum lugar do corpo.
– Robôs não beijam na boca, gata.
Eu tirei a prova – Júpiter riu, se direcionando também para o bando – Essa
mulher não tem nada na nuca, nenhum chip que possa transmitir sinal de GPS, eu
conferi.
A
afirmação foi feita num tom bastante firme e confiante, tanto que pareceu
agradar todas as rebeldes, exceto Thaian, que ainda mantinha o punho cerrado,
com a roupa de Órion presa por dedos bem firmes. Sua pele exalava um cheiro
cítrico.
– Você não acredita em mim? – os
olhos de Júpiter reluziram as chamas da fogueira, transmitindo quase um lampejo
de confiabilidade. Até Órion, que sabia da verdade, quis acreditar no que ela
dizia.
– Não é isso. É só que você acabou de
chegar, está cansada... E eu teria muita dificuldade em nos perdoar caso mais
para frente descobríssemos que tínhamos uma policial rata traidora entre nós e
não fizemos nada em relação a isso – Thaian rebate, no mesmo instante.
– Reviste-a então, se isso te
deixar mais confortável – Júpiter responde, erguendo os ombros. Parecia
realmente cansada demais e indisposta a entrar em qualquer tipo de atrito ou discussão
– Só não esquece que nós não somos como eles – complementou, olhando para Órion
ao final da frase.
O
comentário certamente lembrou Thaian de agir com bons modos, mas ainda assim a
mulher foi bastante rude ao levantar Órion de cima da pedra em que havia sido
forçada a sentar, instantes atrás. A policial conhecia todas as técnicas de interrogatório
e abordagem, já que este era um dos primeiros ensinamentos repassados aos
cadetes na Academia e, por isso, embora jamais tivesse sido revistada antes, se
preparou para receber alguma ação violenta durante a inspeção.
Em
silêncio, com a cachoeira produzindo um som alto e intermitente, ninguém fez
nada nem interferiu. Todas mantiveram-se quietas, vendo Thaian levantar o
cabelo de Órion para vistoriar sua nuca. Assim como Júpiter, a mulher também
esfregou a ponta dos dedos até machucar, na esperança de sentir alguma
protuberância sob a pele.
Na
ausência de qualquer indício, Thaian puxou uma pedra afiada do cós de sua
roupa e rasgou a tala que mantinha o braço de Órion levemente dobrado, numa
posição que, ao ser alterada, fez irradiar um choque como se diferentes partes
do osso a rasgassem com o atrito.
– Ai não, por favor não faz isso, por
favor... – Órion gemeu, vendo seu braço quebrado e desnudo se revelar com a
chama da fogueira.
Thaian
puxou seu pulso para cima, alheia às suas lamúrias, procurando algo embaixo dos
hematomas que se espalhavam em diferentes tons de roxo até o cotovelo. Órion
reparou que estava com o ombro ralado, provavelmente ferido durante a trilha,
no contato com as rochas pontudas ao longo do caminho estreito feito até ali. Havia
um pouco de sangue seco grudado em cima de seu tríceps, desenhado naquela
penumbra como se fosse o risco de um mapa empoeirado.
O
braço esquerdo doeu menos depois que o gesso foi cortado e arrancado, talvez
porque estivesse menos danificado que o outro, talvez porque o direito ainda
doía bastante, sem a proteção. A dor era tão lancinante que Órion quase torceu
para que Thaian encontrasse logo alguma coisa, qualquer que fosse, só para que
a tortura parasse.
– Amiga, vai devagar – alguém
pediu. Talvez Alec, mas Órion não conseguiu reconhecer apenas pelo tom de voz e
sua vista escurecida de dor a impedia de enxergar muito além do próprio corpo
debilitado.
Thaian
soltou os braços de Órion no ar e deslizou as mãos por suas costelas, usando uma
certa pressão. Aí desceu pela barriga até a cintura e subiu por trás, por
debaixo da roupa, como se procurasse algo escondido entre os ossos de sua
coluna.
Posicionando-se
às suas costas, Thaian apalpou seus seios, empurrando primeiro os indicadores ásperos
pela base. Aí encheu as duas mãos com eles e os levantou de leve, talvez
procurando encontrar alguma diferença no peso. No CCC era comum ver policiais
com próteses feitas de uma tecnologia sintética que turbinava os decotes. A
Comandante Aira tinha alguns mililitros implantados, lindíssima. Mas, para a
sua sorte, Órion jamais havia realizado nenhuma modificação corporal.
Se tivesse
tendência ao misticismo, ela diria que isso se tratava de algum sinal.
Provavelmente nunca sentiu vontade de modificar o corpo porque no fundo sempre
soube que só assim se salvaria, em algum momento no futuro. Se bem que o fato
de não ter se adaptado roboticamente foi justamente o que a levou até seu
possível leito de morte, então este era um assunto que depois precisaria
revisitar, com calma, para chegar a uma conclusão que fizesse um mínimo de sentido.
Todavia,
mesmo sendo natural, diante das rebeldes era visível que a genética de Órion tinha
algo de diferente. Seu corpo, embora marcado era malhado e bem definido,
resultado de uma rotina puxada que ninguém ali jamais experimentaria. Nem mesmo
ela, a esta altura.
Embora
incomodada e sentindo dor, apesar de invasiva a abordagem em nada se
assemelhava a uma ação policial, sempre propositalmente bruta e até mesmo abusiva.
Órion já havia presenciado inúmeras situações que até beiravam o assédio, para
não chamar de crime, com colegas da corporação violentando moradoras de Trevon
de todas as formas, sem nenhuma justificativa.
Por
isso, se manteve copiosamente quieta enquanto a análise ainda acontecia. Mesmo
incomum, a revista conduzida pela rebelde era bastante delicada e até mesmo
respeitosa. Em dado momento, ao rasgar sua calça suja e ensanguentada, sem
dizer nada Thaian lhe mostrou o porquê de sentir tanta dor nas pernas. No
tremular da fogueira, Órion observou variados inchaços e inúmeras marcas em
diferentes tons de roxo, da virilha aos tornozelos, principalmente na região
dos joelhos. As escoriações eram grosseiras e indicavam claramente todos os
níveis da agressão sofrida dias atrás, durante a emboscada envolvendo dois
robôs do CCC. Olhando rápido, as marcas dos golpes até lembravam tatuagens de
mal gosto, tais quais os desenhos feios que Thaian exibia ao longo dos braços.
Na
verdade, enquanto se manteve rendida, sob o foco do grupo de rebeldes, seminua
na frente de pessoas estranhas que desconfiavam exatamente de quem ela era de
fato, Órion constatou que absolutamente todas apresentavam lesões parecidas com
as suas e as de Thaian, causadas por golpes da Polícia e pela própria vida, que
as obrigava a se esconder em lugares inóspitos como aquele, acessível apenas
por rotas que pareciam caminhos estreitos de um formigueiro.
Se
bem que de todos os locais de Trevon, aquele de longe era o mais agradável,
dada sua aparência exuberante e principalmente a abundância de água disponível.
Era a primeira vez na vida que Órion via uma cachoeira, que em realidade ela nem
acreditava ser possível de existir, até se deparar com aquela. Ou acreditava,
mas nunca achou que um dia conheceria alguma de verdade.
A
névoa úmida que vinha da cascata e preenchia o ambiente acariciava seu rosto
ressecado, como um toque de carinho de um mundo há muito tempo esquecido. Um
contraste com a tensão da experiência a que estava sendo submetida naquele
momento.
Em
tempos intensos como estes dos anos 8500, a água, assim como a informação, pesava
mais que muito ouro. Acessar um lençol freático como aquele praticamente equivalia
a explorar uma mina de diamantes. Ou até mais preciosa, considerando que a água
era potável.
Este
detalhe tornava ainda mais urgente seu desligamento do sistema do Comando.
Quando a Polícia a encontrasse seria não apenas o fim de Órion, mas também o daquele
lugar, que passaria a ter outro destino, obviamente com acesso proibido às
pessoas comuns. A Comandante depois provavelmente receberia alguma condecoração
num evento cheio de pompa, pois mais importante do que resgatar uma policial atrapalhada
era encontrar uma riqueza daquela dimensão. No projeto de mundo capitalista, a água
valia mais que vidas.
Por
isso, a ronda realizada pelos agentes do CCC era bastante ostensiva, quase
exagerada, de um jeito que deixava evidente que a Polícia protegia o patrimônio
e não os cidadãos de Trevon. Todos os acessos à rua e, consequentemente aos
prédios do Comando, eram vigilantemente fiscalizados, assim como quaisquer aberturas
que eventualmente pudessem dar passagem a algum corpo d’água. A população
vivia há séculos encurralada numa faixa estreita de terra embaixo da Terra, de
modo que qualquer ato pudesse ser observado em absolutamente todas as horas do
dia, e da noite também, quando as saídas para o mundo externo se interditavam. As
intransigências eram passíveis de punição, inclusive castigos que podiam
culminar em prisão e morte.
Órion
provavelmente morreria ao término desta experiência, só que por outros motivos,
é claro. Talvez nem chegasse muito longe; quem sabe a matariam já nos próximos
minutos, logo que a abordagem terminasse. Embora aquilo tudo não fosse resultar
em nada, considerando que manteve-se a vida inteira “limpa”, a inspeção era o claro
resultado da desconfiança que pairava entre as rebeldes. A começar por Thaian, que
desde o início pareceu ter alguma suspeita a seu respeito, e só isso já parecia
suficiente para darem um fim à sua vida. Ela própria seria a favor de fazerem algo
do tipo, se por acaso presenciasse uma situação parecida, só que do lado de lá.
Era bastante
compreensível o porquê de ninguém em Trevon gostar da Polícia, ainda mais uma
policial como A-348. Disfarçada de civil, Órion era simplesmente a responsável
por colocar o Comando em peso atrás do bando, arriscando até que descobrissem
aquele esconderijo tão valioso – sem falar no plano de Júpiter, que ela infelizmente
ainda desconhecia. Do mesmo modo, era de conhecimento popular que “quem
delata, morre cedo”. É a lei da selva, sabe como é. Ou era uma regra que mantinha
justamente o funcionamento daquela sociedade, isso agora não estava muito claro
para ela.
A
verdade é que Órion não era uma rebelde, embora se dissesse prisioneira do
Comando a vida toda, o que também não era nenhuma mentira. No momento, não
sentia-se pertencente a esfera alguma e essa sensação de estrangeira beirava
quase uma certeza de ser realmente forasteira, considerando que também não se
sentia mais integrante do sistema.
A-348 não
existia mais, desde o início de seu plano, e Órion era apenas o rótulo de uma
grande mentira. A agora ex-policial estava às margens de toda marginalidade,
algo que jamais imaginou ser possível de acontecer ao término de sua história.
Logo ela, que teve um começo tão promissor...
Thaian
parecia prestes a chegar ao fim da abordagem, até porque não havia mais nada
para revistar, quando deu um chute no pé de Órion, a forçando a abrir as pernas,
de um jeito que a fez perder momentaneamente o equilíbrio. Como resultado do
gesto inesperado, Órion escorregou e precisou se escorar na pedra em que antes estava
sentada. Sem pensar, usou o braço direito para se segurar e evitar de cair, por
puro reflexo, por um momento esquecendo-se completamente de suas fraturas. O
choque gerado quando o peso de seu corpo foi transferido para o braço exposto e
quebrado a fez soltar um grito de dor excruciante que ecoou pelas rochas da
caverna úmida.
O som foi
tão alto que se sobressaiu em relação ao barulho de água incessante da
cachoeira e foi diminuindo de intensidade ao tempo em que ela perdia as forças
nas pernas, caindo de joelhos no chão molhado. Imediatamente as lágrimas
brotaram em seus olhos, misturando-se ao suor de seu rosto contorcido de dor.
– Tá bom, já chega, Thaian – Aness
fala, colocando o corpo entre as duas, protegendo Órion, que permaneceu caída –
Não há nada escondido nela, você a revistou inteira, já basta.
– Sim, mas é que eu precisava saber
– Thaian se justifica, quase em tom de desculpa, mas falando com Júpiter.
– Tudo bem – Júpiter responde,
erguendo as mãos. O gesto não foi nada condizente com suas palavras. Foi como
se ela aprovasse tudo aquilo; como se nem se importasse com a dor que Órion agora
sentia.
– Tudo bem, vem cá – Aness também
fala, quase ao mesmo tempo.
Ela a
ajudou a se levantar, tomando cuidado para não machucar mais seus braços já
machucados. Órion ficou em pé devagar, tentando segurar o choro, abraçada ao membro
que agora latejava. Alec rapidamente se aproximou, com os olhos retraídos de
miopia.
– Está tudo bem, sim... – Eoni
também falou, simultaneamente, vindo por trás, do escuro. Ela apoiou primeiro a
mão em seu ombro, parecendo amigável, mas aí subiu os dedos por sua nuca,
segurando seu cabelo de repente, usando de relativa força. Órion sentiu a
cabeça ser puxada para o lado e o hálito da rebelde bem próximo do rosto, com a
respiração provocando um leve ruído em seu ouvido, antes de ela voltar a falar
– ...mas eu juro por tudo o que acredito que se por acaso a gente descobrir que
você é uma agente disfarçada do CCC, eu acabo com você na mesma hora – Eoni complementou.
Embora tenha falado num cochicho e na ponta dos pés, o aviso soou ameaçador.
Não
havia dúvidas de que aquela era uma advertência séria que representava um risco
iminente e real. Todas ali eram uma ameaça, essa é a verdade. Porém, bem ou
mal, Órion ainda estava viva, embora morrendo de dor. E percebia-se viva porque
ainda sentia, contra a sua vontade, algumas lágrimas silenciosas caírem quentes
sobre o peito, que arfava rápido numa respiração pesada e descompassada. Ou
seja, embora estivesse em perigo havia outras urgências para resolver primeiro,
pelo bem de sua sobrevivência.
– Vou providenciar uma nova atadura
com o que temos aqui – Alec anunciou, amparando-a para que pudesse caminhar devagar
até a beira da cachoeira, onde a ajudou a se sentar – Mas antes quero examinar melhor
esses ferimentos. Vou precisar lavar seus braços, tá?
A água que deslizava sobre pedras arredondadas
era límpida, cristalina e muito gelada. Como estavam agora mais perto da
fogueira, embora aquela fosse uma área completamente imersa na mais profunda
escuridão, vários quilômetros debaixo do chão, era possível enxergar o solo uns
dois ou três metros abaixo da vazão.
Alec
começou lavando seu braço esquerdo, talvez por mero acaso, talvez porque tenha
preferido iniciar pelo mais fácil. Suas mãos eram macias, ao contrário das mãos
de Thaian, e em formato de concha levavam uma pequena quantidade de água até o
ombro, deslizando as palmas úmidas em direção ao punho. Depois ela usou um
pedaço de tecido para esfregar os pontos em que a sujeira se confundia com as
cores dos machucados. Órion se esforçou para não demonstrar nada do que sentia,
em consideração à gentileza e habilidade de Alec naquela limpeza, mesmo quando
em dado momento teve o braço todo esticado para a frente, causando muita dor.
Órion
se conteve porque sabia que quando chegasse a vez do outro braço seria ainda
pior, o que foi de fato, mesmo com Alec tomando o máximo de cuidado para não lhe
causar mais nenhum desconforto. Seus dedos firmes, porém delicados, tateavam a
pele como se buscassem as fraturas e Órion se espantou quando notou que a
mulher fazia essa inspeção de olhos fechados. Como se ela fosse capaz de enxergar
através da alma.
Isso a reconfortou
em níveis que Órion não saberia explicar. Provavelmente o contato com a
cachoeira também ajudava a relaxar. Ou a adrenalina, que agora começava a abaixar.
Mergulhada
na dor, Órion considerou que se não fosse o inconveniente de estar toda quebrada,
adoraria poder aproveitar a cachoeira de outra forma, quem sabe até se arriscando
a nadar. A vida naquele ponto de Trevon era diferente de tudo o que poderia
imaginar e, se pudesse, viveria ali para sempre. É muito fácil se acostumar com
o que é bom.
Júpiter
estava sentada a cerca de cinco metros de distância. Ela tinha as costas semiapoiadas
numa pedra alta e as pernas estiradas no caminho da água, o que desviava um
pouco o curso em volta do corpo. Seu semblante estava relaxado, parecia até
feliz, ainda que severamente machucada e visivelmente abatida e cansada. Àquela
distância, dava a impressão de estar até mais contundida que Órion,
especialmente depois que ela puxou a camiseta até a altura dos seios para se
banhar, revelando uma lesão enorme na altura do baço, que se estendia pela
costela num tom meio amarelado.
E
pensar que tudo começou porque em algum momento, dias atrás, Júpiter tirou a
blusa e ficou nua no meio da praça, durante um protesto... Ou melhor, tudo
eclodiu neste ponto da história, porque na verdade começou muito antes, quando
Órion teve acesso às filmagens do protesto do ano anterior. De alguma forma,
Júpiter a seduzia, num efeito quase hipnótico. Inexplicável!
Olhando-a
agora, não restavam dúvidas de que o tratamento que ela havia recebido na
prisão recentemente tinha sido muito pior do que o “acolhimento” oferecido à
Órion pelos robôs do Corpo de Comando, na entrada de Trevon. Inclusive porque
no CCC havia mais gente, que se revezava naquilo que chamavam de
“interrogatório”.
– Vou ali buscar o que você precisa
e providenciar algo contra dor – Alec anunciou, despertando a atenção de Órion
– Já cuido de você e aproveito para cuidar dela também.
A
mulher disse isso e saiu, tropeçando nas próprias pernas logo após se levantar.
Ela foi até onde Júpiter e Thaian estavam e disse algo depois de examiná-la
brevemente. Só então Órion reparou que Alec havia coberto seus braços com um
tipo de argila, que mudava de cor conforme ia secando. Quando voltou a olhar na
direção de Júpiter, Alec não estava mais lá. Nem Thaian.
O
moço com peruca voltou a entrar no foco, no instante em que sentou-se ao lado
de Júpiter e seu corpo imediatamente a escondeu atrás dele. Isso fez com que
os pensamentos de Órion também se desviassem, cogitando para onde Alec poderia ter
ido. Na água havia duas rebeldes, abraçadas numa intimidade quase despudorada, molhadas
até a altura do umbigo, desinibidas com seus corpos desnudos. Pareciam performar
uma dança, mas sem nenhuma música, só a água. Embora fosse uma cena bonita e
agradável de se ver, nenhuma delas era Alec e Órion tinha lá suas prioridades.
Contemplá-las
fez com que ela percebesse que não estava coberta com quase nada de roupa, apenas
com uma camiseta fina de um tecido desgastado, o que a forçou a procurar algo
com que pudesse se vestir. Além de constrangida, seus músculos se avantajavam
em relação à magreza das pessoas à sua volta, chamando atenção. Era preciso
disfarçar seu passado de exímia policial se queria mesmo se vender como mera prisioneira,
mas Órion não encontrou nada com que pudesse tampar suas intimidades.
Por um
momento, ao olhar à sua volta, todos pareceram distraídos, completamente despreocupados
com sua presença, o que a fez considerar a ideia de desbravar o local. A lama rígida
e úmida em seus braços inacreditavelmente tinha amenizado o incômodo da dor e pareceu
propício se aproveitar disso na busca pelo que vestir. Com sorte, ainda encontraria
Alec pelo caminho.
Enquanto
acostumava a vista à escuridão, virando-se de costas para a fogueira, Órion
lembrou-se do beijo de Júpiter. Lembrou de sua boca, de seu gosto, da maciez de
sua língua misturado com o cheiro que vinha dela, de dentro dela. Por que a
havia beijado, afinal?
Tão
estranho quanto o beijo totalmente inesperado foi a reação das demais
subversivas diante da cena. Ou melhor, o que causou surpresa foi a completa ausência
de reação, no caso. Ninguém achou esquisito, assim como também ninguém quis
perguntar o motivo daquilo tudo. De um jeito como se todas soubessem o porquê,
menos Órion.
Tateando
literalmente no escuro, ainda sem saber direito para onde deveria se encaminhar,
pela primeira vez Órion lamentou não poder mais contar com o auxílio de Uiliam
ali embaixo da terra. Embora fosse indubitavelmente prazeroso reservar seus
pensamentos apenas para si mesma, a colega com certeza teria alguma sugestão
para o que poderia ter motivado um beijo de uma rebelde como Júpiter em uma
completa estranha como Órion.
Certamente Uiliam
diria algo mais cabível que as milhares de teorias que Órion havia criado até
aqui. A versão mais aceitável dentre os absurdos cogitados era de que Júpiter se
tratava de algum tipo de robô, um modelo humanoide bastante convincente, ou
então contava com alguma tecnologia embutida, caso fosse humana de verdade (e
parecia ser, dadas suas escoriações). O que quer que fosse, porém, todas as possibilidades
soavam como improváveis, ridículas até.
Pensar em
Uiliam fez Órion refletir novamente sobre o chip em sua nuca, emitindo
continuamente um sinal que em algum momento fatalmente seria captado pelos computadores
e radares do CCC. Quando isso acontecesse, a Polícia a encontraria e tudo
estaria perdido. Seria o fim – a começar pelo seu.
Teria
Uiliam feito um último gesto em solidariedade à investigação e à vida de Órion?
Porque perderem o contato de forma alguma significava dificuldade para ela
acessar o sistema e desligá-la. E Uiliam, mais do que ninguém, sabia perfeitamente
os riscos que a policial corria, sozinha lá embaixo.
Tentando
não se consumir pensando muito nisso, Órion se valeu de sua bússola interna e
caminhou em direção ao ponto que sua intuição indicava que deveria ir, sem
saber ao certo se chegaria de fato a algum lugar. Por não conhecer a geografia
daquele espaço e uma vez que fazia o reconhecimento sem enxergar direito, por
causa da escuridão completa, precisou confiar em seu faro policial, que emitia
sinais de que o caminho era seguir por ali.
Ela se guiou
usando as mãos, se agarrando nas ranhuras e reentrâncias irregulares da rocha
fria que lembrava um paredão alto e desnivelado, que seguia a perder de vista.
Não havia água, exatamente, escorrendo do barranco mais acima, mas ainda assim
tudo parecia encoberto por um tipo de musgo. Ou era mofo, não deu para diferenciar.
O que quer que fosse, tinha uma consistência macia e afundava parte dos dedos
de Órion, conforme ela encostava na pedra que se assemelhava a um muro grande, que
tinha um cheiro forte e úmido.
Cada pequeno movimento era devagar e incerto,
pois Órion não sabia se no passo seguinte toparia com alguma pedra, deslizaria
por algum barranco ou tropeçaria em alguma rugosidade típica daquela caverna. Hora
ou outra sentia uma corrente de ar frio que, quando batia, até doía a pele. Arrepiada
involuntariamente, Órion nem tinha como se aquecer, uma vez que a umidade
deixava sua camiseta pesada e desconfortável. Quase quis voltar para perto da
fogueira, mas a curiosidade em explorar era mais forte que os incômodos físicos
que sentia.
À medida
que vagarosamente progredia, Órion era invadida por uma sensação estranha de
estar sendo observada, mais ou menos como se sentia quando vivia cercada e
fiscalizada 24h por dia pelas milhares de câmeras do Comando. Contudo, embora
confiasse plenamente em seus instintos, optou por descartar a ideia porque, em
meio ao breu implacável, só era capaz de enxergar algo alguém que tivesse uma
lanterna ou poderes de Polícia. Ou, melhor dizendo, quem contasse de alguma
forma com o auxílio da tecnologia do CCC, simplesmente inexistente por ali.
De repente,
um som indistinto ecoou à sua esquerda, gerando dúvida quanto à direção que
seguia. Pareceram vozes, mas Órion não conseguiu identificar porque no mesmo
instante, imediatamente sentindo-se presa em uma armadilha, a policial percebeu
também um movimento vindo por trás dela, o que a fez se virar rapidamente, na
tentativa de proteger a própria retaguarda. Péssimo lugar para ficar sem calça!
Ainda que a
esta altura a fogueira já estivesse um pouco distante, localizada a alguns
metros de onde agora se encontrava, Órion reconheceu na luz fraca o contorno do
corpo de Júpiter, perigosamente próximo ao seu. Por um momento, pareceu ter a
impressão de ver um brilho vindo de seus olhos; como se isso de alguma maneira fosse
possível, considerando que a claridade estava às costas da mulher.
– O que você faz aqui? – Júpiter
perguntou, sua voz seca cortando o silêncio como fio de navalha afiada. Pela maneira
como inquiriu, fez Órion acreditar que ela sabia de tudo, que era realmente capaz
de ler seus pensamentos, sua ficha completa, o que quisesse – Está perdida? – Júpiter
perguntou na sequência, em outro tom, completamente diferente.
Órion
não respondeu nada a princípio, tampouco pensou sobre o que responder. Na
companhia de Uiliam tinha treinado seu raciocínio, se blindando até do que
costuma vir em forma de espasmo cerebral, micropensamentos que são o puro suco
para quem os acessa. Isso soava como pura paranoia, mas seu instinto era realmente
aguçado, bem calibrado, não custava nada segui-lo. E ele lhe dizia para ficar
atenta e vigilante quanto ao que pensava perto de Júpiter.
– Deve ser tudo muito diferente
para você, né? Aqui embaixo as leis são diferentes. Não há sirene que dite o
que devemos ou não fazer – Júpiter fala, parecendo usar de duplo sentido, dando
duas batidinhas na parede de rocha ao lado delas. Com o breve movimento, uma
lâmpada de LED do tamanho de uma unha se acendeu, refletindo em seus olhos
antes de iluminar parte do ambiente à volta delas – Me falaram que você passou vários
anos presa, pavilhão 4, é isso? – ela pergunta, sem dar tempo para Órion
responder – Conheço gente que foi para lá e nunca mais voltou. O que te falaram
quando você saiu?
– Como assim, “o que me falaram”?
Não falaram nada, ué – Órion rebate, de pronto. Quase pôde ouvir Uiliam dentro
de sua cabeça, aplaudindo a resposta.
Afinal, o
que o CCC teria para comunicar a alguém antes de soltá-la, depois de mantê-la
encarcerada por muito tempo? O Comando sabia que havia casos em que liberar
cidadãos comuns da prisão era mais prejudicial do que simplesmente mantê-los
presos, uma vez que a soltura costumava gerar certa desconfiança entre as
pessoas, o que consequentemente enfraquecia qualquer possibilidade de criar
laços com quem era libertado. Para o Corpo de Comando e Controle, qualquer tipo
de isolamento era válido, até (e principalmente) aqueles sem nenhum tipo de
intervenção direta, porque acabavam servindo como uma continuação à punição anteriormente
aplicada.
Mesmo sem
obter uma resposta, Júpiter permaneceu encarando-a, exibindo no rosto uma
expressão de quem não acreditava em nada do que ouvia. Fosse o que Órion dizia
ou pensasse.
– Tá certo, Órion – Júpiter
retrucou, num tom meio debochado, dando ênfase ao seu nome no final da frase.
De novo
pareceu que ela sabia de algo, só que ao contrário de Thaian, que ao se sentir
desconfiada foi lá e a revistou, Júpiter se valia de outro tipo de abordagem: a
ironia. Sim, porque a esta altura Órion já estava convencida de que a rebelde
sabia mesmo de tudo a seu respeito. A incógnita era descobrir por que ela não
havia compartilhado a informação com o bando. Dificilmente seria para poupá-la.
Sem
falar mais nada, Júpiter iniciou uma curta caminhada, iluminando o chão com a
mão levantada, andando num ritmo lento, esperando que ela a acompanhasse. Órion
a seguiu o mais célere possível, o que em verdade representava uma cadência bastante
vagarosa, dada as dificuldades encontradas para se locomover. A duras penas,
descobria o quanto era difícil ser humana comum nos dias atuais.
– Antes de mais nada, preciso dizer
que você está prestes a ver uma coisa impensável de se encontrar aqui – Júpiter
disse, por cima do ombro, parecendo animada – O Comando nem desconfia que nós somos
capazes de ter algo assim – completou, orgulhosa.
Órion
quase abriu a boca para responder, mas se conteve. O que quer que dissesse por
ímpeto poderia de alguma forma comprometê-la e a carapuça do CCC era a última
coisa que pretendia vestir naquele dia. Por isso a seguiu em silêncio, pela
primeira vez observando que a cobertura em cima das pedras tinha uma aparência
bonita, aveludada, combinava com a cor de bolor meio alaranjada, parecendo um
tipo de ferrugem produzida pela natureza.
Poucos
passos adiante, Júpiter demonstrou conhecimento de rota e fez uma curva
acentuada, acessando uma passagem que parecia secreta, pelo fato de estar
camuflada atrás de um bloco enorme de pedra. Se por acaso Órion estivesse
sozinha, provavelmente ela nem veria o caminho estreito por onde entraram, de
cabeça baixa porque o espaço era inclinado e bastante apertado, como um túnel.
As duas caminharam
devagar alguns metros em direção a um pequeno vozerio, vindo de um ponto
iluminado em meio à escuridão logo à frente. Quando chegaram ao destino, depois
de quatro ou cinco minutos, Órion aguardou que sua vista se acostumasse com tudo
o que se deparou antes de elaborar algo que pudesse falar. Ou pensar.
Oculto
sob várias camadas de rochas e detritos, o pequeno refúgio subterrâneo era na verdade
um mega laboratório repleto de tecnologia clandestina. Havia diferentes tipos
de materiais e equipamentos, ligados por muitos fios despencando do teto baixo.
O ambiente era extremamente abafado, impregnado por um odor forte de eletricidade
estática e uma mistura de produtos químicos.
No
centro do laboratório havia duas bancadas compridas, que embora desgastadas de tanto
uso estavam cobertas por uma grossa camada de poeira. Ambas exibiam sobre os
tampos um pequeno caos organizado, composto por instrumentos científicos
contrabandeados e outros adaptados, com peças claramente substituídas em
gambiarras criativas, além de objetos reciclados soldados a materiais criados com
a ajuda de antigas impressoras 3D.
Num
primeiro momento, ver tudo aquilo imediatamente levou Órion a pensar como é que
tinham transportado tanta coisa até ali. O caminho de Trevon até a gruta era escuro
e escorregadio, com desafios que ela, policial com anos de treinamento, teve
dificuldades para superar. Como era possível tamanha façanha? E sem que ninguém
visse!
Em
contraste com diferentes dispositivos de criptografia avançada, diversos computadores
arcaicos e consoles emendados e hackeados exibiam dados e algoritmos em telas
precárias, piscantes, que pareciam transmitir cenas ao vivo de Trevon. Numa
olhada rápida, Órion até se arriscaria dizer que havia imagens também de dentro
dos prédios do Comando, mas não teve certeza porque era muito detalhe para
olhar e aquele, impressionantemente, era dos mais insignificantes.
Num
dos cantos da caverna, Órion reconheceu partes de robôs do CCC desmontados,
inclusive uma insígnia, que dava passagem a muitas das áreas restritas do Corpo
de Comando e Controle, mas que parecia desimportante ali, jogada em meio às
sucatas. Um capacete ao lado, furado no meio do visor por algum tipo de
projétil, evidenciava o poder bélico e de ataque daquelas rebeldes.
No
canto oposto a policial apreciou um grupo de espécies diferentes que, à
primeira vista pareciam seres vivos, mas Órion sentiu-se confusa e de imediato
não soube detectar o que era ao certo. Depois reconheceu que se tratava de uma
planta; puxou da memória quando estudou itens da antiga natureza, na infância, e
com certeza era uma planta. Uma planta de verdade!
Pensar
nisso consequentemente fez Órion se lembrar de Uiliam descrevendo um tal sumo
de alho na sopa oferecida por Alec, logo que acordou ao ser resgatada depois da
emboscada. Nesta trilha, seu raciocínio lógico identificou que aquilo então era
alho. Um pé de alho!
O mato
comprido e verde, brilhando sob a luz de LED, terminava na terra junto de uma
saliência rosada, desenhada em pequenos gomos. Órion teria tocado e cheirado,
se pudesse. Mais: teria colhido um pedaço só para entregar pessoalmente a
Uiliam para ela poder examinar. Seria um bom motivo para justificar o primeiro
contato pessoal entre as duas.
Ao
lado das plantas havia uma bancada colorida no fundo do laboratório com
dispositivos eletrônicos numa ponta e componentes químicos na outra. Era ali
que Alec estava, macetando algo dentro de uma pequena cuia de metal. Ao ver Júpiter
e Órion ali, imediatamente se paralisou e se calou, assim como Minu, que também
demonstrou enorme surpresa por vê-las. A dupla inseparável, Eoni e Aness, que
na claridade tinha o olhar desconfiado, igualmente se atirou numa mudez que nem
de longe transmitia algum tipo de quietude.
– Tudo bem, fui eu que a trouxe
aqui. Achei importante que ela visse – Júpiter comenta, antes que alguém
dissesse algo.
Ou Júpiter era
uma mulher realmente astuta, integralmente conectada a tudo e a todos à sua
volta, ou ela tinha mesmo a capacidade de ler os pensamentos das pessoas, do
jeito que Uiliam fazia, só que sem a necessidade de um dispositivo executando a
conexão entre sua mente e as demais. É só o que explicaria seu comportamento peculiar
e tão cheio de atitude.
Prova disso
é que não contestaram sua decisão. Desde o episódio dos óculos, todas agora pareciam
desconfiar de Órion, cada uma à sua maneira, em diferentes níveis, e ainda que
aquele fosse nitidamente um lugar secreto, ninguém falou absolutamente nada
sobre sua presença ali. Aparentemente só porque Júpiter disse que “tudo bem”.
– Finalmente chegou a hora de
colocarmos em prática a última parte do plano – Júpiter anuncia, triunfante.
– É mesmo? – Eoni pergunta, seus
olhos brilhando de expectativa – Tem certeza? – a jovem questiona na sequência, um pouco
incrédula.
– Absoluta – Júpiter responde, sem
pestanejar. Ela apontou com a cabeça para uma tela pregada na parede antes de
continuar – E precisamos ser rápidas para não corrermos o risco de os robôs nos
acharem.
Alec
não pareceu preocupada com o rumo da conversa e ofereceu à Órion um recipiente desbotado
que continha algo turvo e esbranquiçado, coberto por uma espuma espessa; o
aroma era ácido e combinava com o gosto, bem amargo. Ao ingerir, parte do
líquido denso grudou em sua garganta, a fazendo tossir.
– Isso vai te ajudar com a dor –
ela informou, entregando uma dose similar para Júpiter. Após beber, a mulher também
tossiu – Vou reforçar a sua atadura para que o curativo resista durante a fuga
e você não quebre ainda mais os braços – Alec complementou, ainda notavelmente imperturbada.
Então
fugiriam. O que quer que aquela etapa do plano de Júpiter envolvesse era algo
que seria enfrentado longe dali, distante do laboratório e da cachoeira
incrível que o protegia e o camuflava. E agora que Órion conhecia os dois
ambientes, considerou que seria até lucrativo se a Polícia eventualmente encontrasse
apenas a cascata. Representaria uma enorme perda, é verdade, mas nada comparado
à guerra que se instauraria em Trevon se por acaso o Comando descobrisse aquela
oficina clandestina dotada de uma tecnologia que ela sequer imaginava como
poderia funcionar. Assim como o plano de Júpiter.
Qual seria,
afinal, o objetivo das rebeldes? Ao que visavam e como fariam para conseguir
aquilo que almejavam? Tudo em Trevon era integralmente monitorado, de que forma
elas pretendiam despistar os robôs e todo o sistema do Comando?
– A Dien confirmou que instalou os
sensores ao longo do caminho – Júpiter revela, como se respondesse aos
pensamentos de Órion – Todas as rotas de Trevon estão desde ontem emitindo as
nossas frequências, como se estivéssemos lá e não aqui. Mas é preciso retornar
logo porque se a Polícia encontrar um sensor vai conseguir localizar e anular
todos os demais. E consequentemente nos matar.
A luz
artificial emitida por lâmpadas de LED presas nas paredes e no teto irregular
da gruta lançava sombras dançantes sobre Júpiter enquanto ela falava. Os monitores
holográficos que piscavam e projetavam dados complexos em formatos
tridimensionais também refletiam uma luz azulada sobre seu rosto, criando um
efeito psicodélico. Um belo contraste com o breu que encobria tudo lá fora na
mais profunda escuridão.
Sem
dizer nada, Alec arrastou com o pé uma banqueta para que Órion se sentasse ao
seu lado. O chão do laboratório era praticamente coberto de cabos e tubos que
serpenteavam por baixo das bancadas, conectando uma infinidade de dispositivos
e máquinas estranhas, alimentadas por geradores com longas hélices que não
emitiam nem um único ruído.
Mas Órion
não teve muito tempo para pensar sobre isso porque Alec puxou para perto uma
caixinha que parecia um verdadeiro kit de primeiros socorros. No Ambulatório de
Trevon era comum encontrar alguns daqueles itens, inclusive a gaze que a mulher
endureceu com uma água meio escura, formando ao redor dos braços de Órion uma
tala que parecia gesso, de tão dura. Junto com a lama, já seca em torno da
pele, cada membro passou a pesar quase 2kg a mais depois do reforço no curativo.
– Eu adoraria poder chutar
novamente algumas bundas metálicas – Minu ri, acompanhada por Aness – Mas não
vou dizer que só por isso estou na torcida para encontrarmos algum pelotão na
passagem, pois espero que a volta até Trevon seja tranquila.
– Eu também, mas se eventualmente encontrarmos
algum robô, meu desejo é que você não tente chutá-lo – Alec reclama, demonstrando
atenção à conversa, embora estivesse concentrada no curativo remendado de Órion.
O comentário a fez ganhar um beijinho de Minu.
– Tudo bem, minha querida. É
seguro! E muito, muito divertido. Fala para ela, Aness – Minu ainda ria.
– Sim, robôs são estúpidos – Aness
cospe no chão, com desdém – São espertos só para seguirem determinadas diretrizes
e coordenadas que facilmente podem ser alteradas – ela diz, pegando o que
pareceu ser uma pedra. Porém, ao apertá-la entre os dedos nitidamente o aparato
emitiu um sinal porque no mesmo instante Órion sentiu a nuca latejar e se controlou
para não levar a mão até o local. O dispositivo produzia um pulso
eletromagnético capaz de afetar a rede e o sistema do Comando. Afetava até
Órion, mesmo sem o equipamento da Polícia.
– Dessa última vez que nós atraímos
aqueles dois lá em cima, na armadilha que a gente montou na entrada de Trevon, eu
achei mais fácil controlá-los do que na semana passada, durante o protesto –
Eoni diz, virando-se de costas para as telas amontoadas na parede.
Definitivamente parte delas transmitia imagens de dentro dos prédios oficiais.
– É porque fazer isso a céu aberto
exige um pouco mais. Ambientes pequenos ricocheteiam o sinal, aumentam a
potência – Júpiter sorri. Se realmente acessava os pensamentos de Órion, parecia
satisfeita por estar revelando tudo aquilo, cada detalhe – Mas fazer isso lá em
cima não é nada impossível. Tanto é que no protesto nós fizemos os palhaços
dançarem – ela complementa, gargalhando.
– É uma cena para não esquecer
nunca mais – Minu também dá uma risada alta – E que teria sido melhor se não
fosse por aquela policial, fala aí... – agora ela é quem cospe no chão,
ilustrando todo o desprezo que sentia por A-348 – Aquela humana – Minu
complementa.
– É, mas foi um risco necessário –
Júpiter declara, sem desviar o olhar de Órion. Nem piscou – Já imaginávamos este
desfecho, tudo bem. Foi um preço até que baixo e eu pagaria tudo de novo, com muito
prazer.
A
mulher então levanta a camiseta e revela metade das costas esfoladas, depois
que se virou para trás. Júpiter permitiu que Alec aplicasse uma pomada gosmenta
de aparência duvidosa sem deixar escapar nem mesmo um suspiro mais pesado,
aceitando o cuidado de maneira bastante resignada. Pela aparência, em carne
viva, aquilo parecia doer um bocado.
Considerando
sua fala, ir para a prisão durante o protesto de 05 de maio foi apenas a consequência
de uma ação planejada e prevista, que parecia incluir até mesmo a possibilidade
da presença de Órion numa praça cercada por robôs do Comando. O curioso é que
na ocasião A-348 estava de folga, mas ainda assim Júpiter deu a entender que sabia
que a policial poderia estar presente, de todo jeito. Como?
Da mesma
forma, o ataque do CCC assim que largou o posto, disfarçada de civil, também
parecia esperado e o fato de todas estarem prontas para se defender era a prova
disso. Órion, desavisada, foi a única a sofrer com a emboscada e esse detalhe
igualmente dava mostras de ter sido calculado pelo bando de Júpiter. Como se de
alguma maneira a surra que só ela levou também fizesse parte do plano.
– Você parte quando? – Alec
perguntou, com dois dedos besuntados do creme avermelhado, ao terminar de
cobrir a pele da amiga. Sem cerimônia nenhuma, limpou a mão na barra da
camiseta furada de cor indefinida.
– Agora mesmo – Júpiter volta a
puxar a camiseta, com cuidado, deixando transparecer por milissegundos uma microexpressão
de dor – E vou com ela.
– O quê? – a mulher parou a mão no
ar, incrédula, revelando que seus dedos na verdade estavam manchados e não
sujos.
– Com a Órion? – Eoni perguntou, ao
mesmo tempo que Alec.
– Sim, é melhor que seja assim –
Júpiter acena. Pareceu satisfeita ao ver a expressão de confusão instalada de
repente no rosto de Órion que, ainda assim, permaneceu em completo silêncio. Inclusive
mental – Eu preciso que vocês confiem em mim – ela repete o discurso proferido
com Thaian, minutos atrás.
– A gente confia, é claro, mas é
que pareceu que Cael te acompanharia – Minu retruca – Até porque ele nem está
com os braços quebrados, ele sabe correr...
– Não, Cael fica. Precisamos de
alguém vigiando o laboratório, para o caso de o CCC nos atacar. E vocês
precisam voltar para Trevon. É perigoso ficarem aqui e precisamos manter a base
fortalecida enquanto avançamos. Combinei de me encontrar com Thaian e Giles lá
em cima.
– E você pretende levar o souvenir
do seu Niavva lá para fora? A peruca de Cael? – Aness sorri, embora a pergunta
fosse séria – Ele apreciaria a homenagem! Já pensou? Finalmente concluir o
plano e fechar o círculo junto com o triângulo: Idélia Ostrac, Ptônio Niavva e
a...
– Não, não... Isso vai ficar para outro
momento – Júpiter interrompe, com o sorriso mais bonito registrado até aqui.
Ela dava a impressão de lidar com tudo aquilo como se fosse só um jogo e no
meio disso Órion inacreditavelmente desejou ser seu brinquedo – Até aqui apenas
Giles e eu chegamos até o fim e sei que só conseguimos porque fomos de mãos
vazias. Não dá para carregar nada até lá, gente! O caminho é muito arriscado e
perigoso, tipo um labirinto.
– Mas mesmo assim dá para carregá-la?
– Eoni parecia preocupada com o fato de Júpiter querer levar Órion, para onde
quer que fosse.
– Ela vai, Eoni – Júpiter responde,
séria, deixando claro em seu tom de voz firme que a decisão não era passível de
nenhum tipo de negociação – E vai andando, não pretendo carregar ninguém.
– Tá bom – Eoni levanta a mão, como
se estivesse se rendendo. Ou interrompendo o início de alguma discussão
prematura – Acredito que ela só vai dificultar a sua caminhada, mas confio em
você, Júpiter. E torço para que dê tudo certo, você sabe.
– Eu sei, sim – Júpiter lhe dá um
abraço breve e repete o gesto com as outras três rebeldes – Se cuidem no
caminho, por favor, quero que mandem notícias. Avisem assim que chegarem em
Trevon.
– Toma, isso vai evitar que abusem
de você lá fora, caso deem o azar de esbarrar com alguém do Comando pelo caminho
– Alec entrega uma calça puída à Órion, parecida com a que vestia.
Surpresa
com o gesto, sem perceber, Órion desceu os ombros, como se finalmente se permitisse
abaixar a guarda. Não à toa, sentia-se tensa desde que se viu alvo do enquadro de
Thaian, momentos atrás, mas o gesto de Alec deixou evidente que embora aquelas
rebeldes tivessem motivos para desconfiar dela, ainda assim eram humanas e surpreendentemente
gentis. Por isso, repreendeu o pensamento quando quase considerou que a peça
talvez ficaria pequena demais em seu corpo. Apertada, certamente.
– Nossa, nem sei como te agradecer
– Órion responde, deixando escapar um suspiro sincero. Fugir do Comando seria
muito mais fácil agora, sem que o mundo inteiro embaixo da terra pudesse ver
suas intimidades. Já bastava ter que empreender fuga com os braços engessados, descalça e com Júpiter, que tinha o incrível poder de deixá-la nervosa.
Órion
não entendia o porquê de a rebelde querer levá-la junto, mas num primeiro
momento se prendeu pensando em outra coisa, pois achou curiosa a menção feita
à peruca. Por que o cientista de alguma forma ficaria satisfeito com o fato de
Júpiter levar algo que outrora pertenceu à Uiliam?
Por que raios
de motivo a peruca poderia ser considerada um “souvenir”? Qual seria a ligação
entre Niavva e Uiliam, dois personagens tão distintos?
Ptônio
Niavva e Idélia Ostrac formavam um casal, até onde Órion sabia. “Casal Ostrac e
Niavva”, era como se referiam aos dois nas conversas informais nos corredores
do Comando. Não formais porque os dois eram considerados traidores do sistema e
provavelmente por isso foram mortos. De que maneira Ptônio e Idélia se
interligavam à Uiliam? Qual era mesmo o sobrenome da policial? Essa ligação é
que a teria sentenciado a trabalhar no prédio R?
Distraída
com os pensamentos enquanto vestia a calça que era pelo menos uns dois números
menor que seu corpo, Órion não reparou em qual momento a conversa entre as
subversivas cessou, tampouco quando foi que Júpiter começou a encará-la. Seu
rosto indicava puro deleite, como se tivesse as respostas que Órion ansiava,
mas por prazer (e um pouco de sadismo) fazia questão de não revelar nem uma
pista.
Isso
a levou a pensar que, sabendo quem Órion era de fato, a rebelde provavelmente pretendia
levá-la a tiracolo somente para matá-la e se desfazer de seu corpo pelo caminho.
“Nós não somos como eles”, Júpiter teria dito, minutos atrás. Isso significava
que o grupo não costumava maltratar durante uma abordagem, mas ainda assim matava
igual ao CCC?
Embora
fosse algo provável, ao mesmo tempo não fazia muito sentido. Júpiter era uma
mulher astuta, não precisava se dar ao trabalho de matá-la, muito menos de carregá-la
ao invés de levar alguém do bando se não fosse estimulada por algo maior. De
novo: se ela realmente sabia quem Órion era de verdade, querer levá-la para
finalizar seu plano fazia parte de uma motivação que com certeza justificava uma
decisão tão controversa. Restava saber que motivação seria essa.
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