O quadro (conto)
Essa é a nona história da terceira temporada da Novelinha <3 A penúltima!
Se ainda não leu a oitava, "O almoço", clique aqui.
O silêncio muitas vezes sabe ser subjetivo e, paradoxalmente, sabe ser ensurdecedor também. É capaz de surgir ainda que estejamos num ambiente barulhento, como o salão de um restaurante badalado, em pleno horário de almoço, por exemplo. Neste caso, há o trincolejar de talheres de inox arranhando o fundo dos pratos de porcelana, e copos de vidro que se esbarram hora ou outra contra a louça, causando um choque descoordenado, mas constante, além do vozerio oriundo de conversas distintas, paralelas e simultâneas, entremeadas por uma sílaba ou outra às vezes dita um pouco mais alta, ou ainda uma risada, uma tosse, um pigarro. No caso do restaurante O Bistrô há também a música ambiente que se mistura aos diálogos, inclusive aqueles discretos que ocorrem entre os funcionários, sempre tão gentis e sorridentes, trajando seus uniformes bonitos.
Mas por longos e demorados segundos tudo repentinamente se
calou, silenciando absolutamente todo o barulho externo, dando destaque ao som que
vinha de dentro de Mayara. Ou sua agitação é que foi tamanha, a ponto de calar
todo o resto, ressaltando os soluços de sua alma como se fossem verdadeiros estrondos.
Seu coração, aos pulos e aos prantos, estava comprimido, apertado e doído, e embora
batendo rápido gritava a plenos pulmões em seus ouvidos, num pedido de socorro
que apenas ela era capaz de escutar, mas que ainda assim era incapaz, porém, de
se socorrer.
Levou um tempo até retomar a consciência de onde estava e
de quem era, naquele ponto específico de sua história, e foi assim que o som de
seu arredor voltou a invadi-la – de certa forma, voltou a preenchê-la, ainda
que Mayara se sentisse desamparada e vazia. Reconheceu o que estava acontecendo,
ciente de que vivia o que depois se transformaria numa memória dolorosa. Se sua
vida fosse um livro, este capítulo com certeza se chamaria “O almoço”. Ou “O
fora”. Ou “O dia em que tudo deu errado antes mesmo de dar certo”.
De todos os desfechos para aquele almoço especial, planejado
durante dias e que nem teve a oportunidade de degustar, a mensagem de Taís era
a última coisa que esperava ter que digerir. Até receber um fora via WhatsApp,
o pior cenário que sua mente tinha criado era a possibilidade de levar um bolo,
afinal a namorada priorizava o trabalho mesmo em dias de folga, isso não era
segredo para ninguém. Tanto é que até o último minuto Mayara ficou esperando receber
um áudio, ou uma ligação, para saber que em cima da hora a socorrista teve que
trabalhar. Aí ouviria sobre algum colega que Taís sempre chamava pelo nome,
embora Mayara não conhecesse absolutamente ninguém do trabalho dela.
Ou então ela nem diria nada! Só não apareceria, foda-se,
vida que segue. Taís era do tipo que realmente só entrava em contato quando
dava, ou nem isso; só mandava mensagem quando queria. Nesse período em que
estavam namorando teve muita pausa e horário de almoço que ela não se deu nem ao
trabalho de avisar que estava viva – e tudo bem! Mayara dizia que tudo bem,
ainda que Taís não acreditasse em sua palavra nessas horas. Provavelmente,
Mayara não acreditava também, mas o que se fala em casos assim? Como que se
cobra algo de uma mulher que trabalha numa ambulância em uma cidade como São
Paulo?
Ela não cobrava, jamais. Nem atenção, nem mensagem, ligação,
nada. Não cobrava nem mesmo a presença dela naquele que seria o almoço de
noivado das duas. Mayara entendia perfeitamente as prioridades de Taís porque também
trabalhava bastante, em horários que até se desencontravam com os da namorada,
madrugada adentro. Então, o que menos queria era mulher carente no pé, cobrando
o que quer que fosse. Por isso, não tinha esse perfil também, o que a fez
engolir muitas frases que terminaram por não serem ditas graças ao seu bom
senso.
Sim, porque Taís conseguia ser mil vezes pior do que ela,
praticamente vivia só em função do trabalho, não se desligava nunca. Mayara não
gostava de termos estrangeiros, mas workaholic talvez fosse um bom
conceito para defini-la. Taís era viciada. Uma adicta, que só se satisfazia com
a adrenalina da profissão.
Tudo bem que “trabalho enobrece”, como as pessoas gostam
de dizer, mas o fato é que ela não era provida da menor noção de limites, de
verdade. Prova disso é que Taís não gostava de fazer planos para férias, nem se
programava para nenhum tipo de passeio, nada de lazer, em nenhuma época do ano,
porque vivia em estado de alerta, sob a possibilidade de ter que trabalhar de
repente, até mesmo de madrugada. A qualquer momento seu celular sempre podia
tocar. Uma tensão danada!
Nas folgas, quando podiam fazer algo, estavam as duas
sempre cansadas, principalmente ela, que operava em escalas absurdas de 12
horas por 36, em regime constante de plantão. E Taís trabalhava em dois
empregos, fazia altos cambalachos para conciliar as duas agendas. Quando raramente
dormiam juntas, Mayara se via obrigada a passar parte da noite em claro porque a
mulher era inquieta e tinha muitos pesadelos, acordava assustada toda hora,
terrível.
Mas Mayara relevava tudo isso, suportava, até, porque
gostava dela. Tirando o vício em viver socada dentro de uma ambulância cortando
a cidade para lá e para cá, Taís era uma boa pessoa, tinha um bom coração. Então,
na balança, o trabalho dela não pesava quase nada. De todas as pessoas com quem
tinha se envolvido, ela era de longe a que menos cobrava algo, era a menos
ciumenta também, então o namoro entre as duas era bastante calmo, tranquilo, sem
brigas. Morno. A palavra é essa, mas Mayara ainda não estava pronta para admiti-la.
Por ora, procurava de alguma forma fazer o sangue voltar
a correr normalmente pelo corpo, já que ele dava mostras de se concentrar na
região do peito e do pescoço, imobilizando todo o resto. Suas pernas pareciam
impossibilitadas de correr em direção à porta giratória dO Bistrô, como era sua
vontade, assim como suas mãos, paralisadas, não puxavam de volta o celular. O
aparelho, em cima da mesa, com sua tela brilhante e espalhafatosa exibia a
mensagem curta de Taís para uma garçonete que Mayara conhecia só de vista.
“O problema não é você, sou eu”, dizia a mensagem,
assinada com o nome dela seguido de um ponto. Taís terminou o namoro por
mensagem de texto, com uma desculpa clichê e um ponto final. Que audácia!
Agora o sangue de Mayara ferveu foi de raiva e não mais
de surpresa. Ficou então aliviada com o fato de a mulher não ter se dado ao
trabalho de ir lá falar esse tipo de coisa na cara dela. Não que fosse causar
algum barraco, detestava esse tipo de cena, ainda mais em público, mas também
não sabia como seria sua reação. Talvez chorasse, e isso conseguia ser ainda
mais humilhante, então continuou acreditando que desse jeito foi melhor, ainda que
fosse a pior maneira.
Para a sua sorte, Andreia foi discreta e logo se afastou,
voltando para perto da gerente, que a aguardava. As duas pareciam estar no meio
de alguma conversa bem séria, em tom extremamente baixo, que só era
interrompida diante do chamado de algum cliente. Inevitavelmente Mayara pensou
que não tinha o menor controle sobre o que a garçonete ia pensar a respeito do
ocorrido – como jamais teve, sejamos sinceras. Ela é que foi emocionada, expôs
para uma estranha seus planos de pedir Taís em casamento e, depois, talvez por
causa do choque, acabou mostrando a mensagem do fora que levou. A gente se
expõe demais nos momentos de vulnerabilidade...
Mas
em vez de se culpar e se punir por isso, Mayara ponderou que a garçonete
provavelmente já tinha visto muita coisa naquele que era seu ambiente de
trabalho, então o fora era só mais uma história que logo seria substituída por
outra, mais interessante. Ela própria vivenciava altos babados dentro do carro
durante o expediente, imagina o que não acontece num restaurante como aquele. Um
restaurante sapatão, diga-se de passagem!
Distraída,
analisou que até ali contabilizava várias corridas que tinham como destino O
Bistrô, só porque a chef era lésbica, segundo as conversas que ouvia nos
trajetos. O que não faltava era fanfic envolvendo Patrícia, que era
bastante cobiçada por sapas de diferentes brejos. Aí rolava sempre uma
expectativa em ver a chef,
mesmo que só de passagem, desfilando pelo salão do restaurante em seu uniforme
elegante. Era raro, mas acontecia, para deleite de clientes sempre satisfeitas.
Então, ainda que Andreia a julgasse, o que sinceramente
não parecia ser o caso, logo outra coisa já ocuparia a cabeça da garçonete. Esse
pensamento de certa forma a acalmou momentaneamente, porque conseguiu tirar o
foco de seus dramas ao se centrar em outras pessoas. Foi nesse instante que
Mayara viu Mariana entrar no restaurante e caminhar por entre as mesas em
direção à cozinha, com os olhos cerrados, sem óculos, sendo solenemente
ignorada pela gerente e a garçonete simpática. As duas pareceram até parar de
falar quando a viram, retomando a conversa depois que ela passou.
Algumas noites atrás, Mayara recordou, Mariana a chamou
da casa de uma amiga, pedindo para levá-la até o restaurante. Na ocasião, antes
de desembarcar, Mariana (brisada) disse que se sentia sempre analisada quando
estava nO Bistrô. A reação da garçonete e da gerente quando a viram, porém,
pareceu contraditória com aquele desabafo.
Sem querer, provavelmente porque estava de guarda baixa,
Mayara se lembrou que seu pai sempre a punia com o silêncio, a ignorando por
completo quando porventura cometia uma travessura na infância. Pior do que
apanhar ou ficar de castigo é ser ignorada assim, mas isso ela só conseguiu
compreender depois de adulta, quando constatou o quão tóxico seu pai conseguia
ser.
Mayara balança a cabeça, como se o movimento fosse capaz
de desanuviar seus pensamentos, os forçando a mudar de direção. Voltou o foco
para Mariana, que assim como ela também fora criada em um lar religioso e bitolado.
Ela usou essa palavra. Mariana parecia muito segura de si, aparentemente tinha
superado os traumas.
Sem perceber, Mayara começou a se perguntar como é que Mariana
fazia para que seu casamento com Patrícia e Tatiana desse certo. Afinal, sabia o
quanto era desafiador manter um relacionamento com uma mulher; com duas significava
literalmente o dobro de trabalho. O triplo, sabendo que uma delas era alguém
como Patrícia.
Como é que Mariana administrava o ciúmes, ciente de que a
esposa era 10/10? Não, mais: como é que Tatiana gerenciava tudo isso,
considerando que Mariana, por sua vez, era cheia de contatinho? Haja equilíbrio
para não surtar!
Os questionamentos tinham certa pertinência porque dias
atrás Mayara tinha visto, durante o baile da Rubi, uma certa agitação
envolvendo o trisal e a bartender do restaurante, que aparentemente beijou a
chef na hora do apagão. Bom, pelo menos foi isso que pareceu ter acontecido!
Estava bem perto das duas na hora do blecaute, pois Taís e ela, fantasiadas de
casal, tentavam atravessar o mar de gente que as separava do bar. No meio do
caminho, quando a luz acabou, decidiram ir ao banheiro e por isso não viram o
desfecho (mas deu tempo de ouvir Mariana e Tatiana bem zangadas).
Só agora, pensando em tudo isso, é que Mayara se lembrou de
depois ter visto no banheiro as colegas de Ritinha, a tal de Preta e a Miriá. A
amante da esposa de Bruna estava chorando e sendo consolada pela amiga, mas na
hora isso acabou não sendo registrado como deveria porque era tanta coisa
acontecendo ao mesmo tempo...
Vale lembrar que até poucas horas antes os planos de
Mayara envolviam trabalhar até umas três da manhã, mas tudo mudou quando
Mariana macetou a traseira de Mafalda, seu carro, enquanto ela estava parada no
semáforo, antes que sequer fizesse a primeira corrida da noite. Como
consequência do acidente a namorada se animou com a repentina ideia de ir a um
baile a fantasia em que não conheciam absolutamente ninguém, inclusive uma das
anfitriãs, que era a desatenta do trânsito.
Taís tinha esse poder, conseguia ouvir apenas o que a
interessava. Tanto é que fez só um exame visual rápido para constatar que Mayara
estava bem, pois só o que parecia importá-la era a possibilidade de irem à
festa de aniversário da Agência Rubi nO Bistrô. Ainda teve a pachorra de dizer
que a batida podia ser uma espécie de sinal para trabalharem menos e se
divertirem mais. Ai de Mayara se falasse algo assim, em situação contrária.
Taís ficaria ofendidíssima!
O lugar era incrível, a festa estava cheia de gente
bonita e bacana, comida e bebida servidas na faixa, mas logo que
chegaram já deram de cara com Ritinha, que estava claramente alcoolizada, mas
deu para ver o quanto ficou constrangida por vê-la ali, com Taís. Aí a luz
acabou e a festa virou uma algazarra... Na hora já deu enxaqueca. Honestamente
ela nem queria estar ali, seu primeiro pensamento foi inclusive aproveitar o
momento para irem embora, mas Taís insistia em pelo menos tomarem um drinque. Mesmo
no escuro (e foi o que fizeram).
Mayara sempre cedia para poupá-las de atrito, tentava
sempre valorizar o pouco tempo que tinham no melhor convívio possível, e isso
nem era algo passível de depois pensar a respeito. Por algum motivo, namorar
com Taís era assim, envolvia certas atitudes que, no fundo, nem faziam muito
sentido. Agora, depois do fora, Mayara certamente dedicaria horas analisando o
assunto.
O fato é que, no fim, aquela cena do baile alugou um
apartamento na cabeça dela por dias, porque até então Mayara não tinha refletido
sobre a possibilidade de as TPM terem um relacionamento aberto, muito menos havia
pensado em como elas faziam para evitar que a questão do ciúmes as contaminasse,
caso fosse um casamento fechado. Teriam um contrato? Porque esses detalhes
certamente precisam ser combinados antes, um por um!
Ainda com os cotovelos apoiados sobre o tampo da mesa, na
mesma posição em que estivera pelos últimos minutos, congelada numa pose de frustração
e decepção, e reflexão, Mayara só parou de pensar no trisal porque viu dona
Sabrina adentrar no salão. Essa aí entendia bem de contratos! Quer dizer, de
primeira, Mayara achou que fosse ela, mas logo percebeu que aquela na verdade era
a gêmea de Sabrina, idêntica à irmã, mas muito diferente também porque se
vestia de outra forma, tinha trejeitos discrepantes e até andava de outro
jeito.
Não seria nenhuma surpresa, Mayara ponderou, descobrir um
dia que Giovana nem gosta das mesmas coisas que Sabrina. Por mais que
tivessem escolhido a mesma profissão, parecia que despir a mente das pessoas
era a única similaridade entre elas nesse sentido. Ou faltava à irmã de Sabrina
a postura que a Dona possuía, austera, dominadora. Sem perceber, os pensamentos
de Mayara desaguaram em uma possível sessão com Sabrina. De terapia!
A distância, Mayara observou Giovana parar de repente
para cumprimentar Bruna, ótima cliente, que por sorte não a viu sentada ali. Naquele
momento a última coisa que queria era ter que cumprimentar alguém e Bruna
estava acompanhada por Elias, então seria uma saudação mais ampla, expandida. Mayara
estava sem condições para tanto contato social, então virou o corpo em direção
à cozinha, para não ser vista e nem ser reconhecida por ninguém. Ao se virar,
seus olhos se cruzaram com os de Nicole, que vinha dos fundos do restaurante e
sorriu ao vê-la ali.
– Oi, Maya! Nossa, que surpresa boa te ver aqui! – Nicole exclama, com o
sorriso se desmanchando após uma fração de segundo, seus olhos escaneando o
rosto da mulher sentada sozinha no meio do salão – O que aconteceu? Por que você
está chorando? – a pergunta foi num tom mais baixo, feita depois que ela sentou
ao seu lado, tomando o cuidado de apoiar a mão em seu braço, gentil.
– Eu... Acabei de levar um fora – Mayara responde, com um fio de voz, os
ombros se levantando sem que notasse. Se ouvir dizendo isso em voz alta a emocionou
um pouco, ficou triste e isso fez seus olhos marejarem.
– Ah... – foi tudo o que Nicole disse. Não chegou a ser uma palavra,
exatamente, pareceu mais um suspiro pesado, um ruído. Manteve o tempo todo os
olhos fixos em seu rosto.
– Não sei como as pessoas fazem... como elas conseguem... – Mayara fala,
depois de um tempo. O comentário saiu num tom de lamúria e não especificou
exatamente ao que se referia, embora fosse óbvio.
– Nem todas conseguem, Maya. E tudo bem! Às vezes parece que há uma
cobrança para que a gente se relacione a qualquer preço, como se ficar sozinha
fosse um crime, ou um erro. Nem é!
– Não é, mas você concorda que nós somos seres sociáveis? É um pouco
esperado que a gente se envolva, poxa... E mais esperado ainda que a gente faça
dar certo!
– Pois é, por isso que tem tanta gente frustrada por aí... – Nicole diz,
certeira.
– É foda... – Mayara resmunga, impedida de evitar que uma lágrima
rolasse por vontade própria em direção à gola de sua blusa. Fungou, tentando
segurar o choro.
– É sim, eu sinto muito. Você almoçou? – Nicole aponta com a cabeça para
a xícara de café vazia em cima da mesa.
– Não, nem deu tempo. Estava esperando a Taís chegar para pedi-la em
casamento e aí comer. Talvez não nessa ordem.
– Entendi – Nicole rebate, sem demonstrar se tinha entendido mesmo – Hein,
olha só... A Patrícia me deu almoço, dá para nós duas e ainda sobra. Você quer me
acompanhar? – ela dá duas batidinhas numa sacola de papel apoiada em seu colo, estampada
com o logo dO Bistrô – Vai, a gente vai até lá em casa, almoça sem pressa, fica
à vontade, você pode reclamar do quanto a sua ex foi escrota por terminar com
você antes do almoço... antes do noivado – o complemento saiu quase um cochicho.
– E por mensagem de texto! – Mayara acrescenta, zangada.
– Pior ainda! – Nicole vira os olhos, fazendo um sinal para Andreia –
Oi, querida, tudo bem? Posso te pedir uma gentileza? Coloca por favor o
cafezinho da minha amiga na conta da Mariana? Não, melhor, coloca na conta da
Patrícia, diz que foi a Nicole quem pediu – ela dá uma piscadinha para a
garçonete e aperta a mão de Mayara, de um jeito cúmplice.
– Pode deixar, o café fica por minha conta – Andreia sorri para Mayara,
deixando claro que a gentileza era para ela, não para Nicole e muito menos para
Mariana – Fica bem, viu! Espero te ver de volta logo – a garçonete diz,
retirando a xícara e se afastando.
– Nada como ser influente – Nicole ri e se levanta, oferecendo a mão
para Mayara acompanhá-la – É bom que, você almoçando comigo, não sobra comida.
A Patrícia cozinha bem demais, jogar fora equivaleria a um crime!
– Por que ela te deu comida?
– Não sei, porque é gentil, acho. Ou porque acha que passo fome,
considerando que me olha como se eu não comesse o suficiente – Nicole ri de
novo, caminhando numa passada firme em direção à porta – A primeira vez foi na
semana passada. Foi ideia da Tatiana, que pediu para a Mariana providenciar com
a Patrícia uma marmita para mim, num dia que a gente veio trabalhar aqui, nem
lembro o porquê. Aí hoje vim deixar um documento com a Mariana e ganhei almoço de
novo. E a Tatiana nem está aqui! Não reclamo.
– É, eu não tenho a menor dúvida de que tem gente que tem sorte mesmo...
– Mayara resmunga, no momento em que chegam à calçada. O sol estava forte e
contrastou com o frescor convidativo do ar-condicionado do salão do restaurante,
às suas costas.
– Eu vou dividir com você – Nicole frisa, falando por cima do ombro, alheia
aos pensamentos de Mayara, que na verdade se referia ao casamento entre Patrícia,
Mariana e Tatiana – Seu carro está aqui? – ela para na entrada do
estacionamento.
– É, eu sei, preciso lavá-lo e com urgência... – Mayara comenta,
destravando o botão do alarme, passando o dedo indicador na poeira do teto do
carro.
– Imagina, está limpinho, como sempre – Nicole afirma, embarcando e
afivelando o cinto de segurança, sentindo um aroma agradável dentro do automóvel.
Não parecia mesmo ter reparado na sujeira que Mayara via – Você é muito cuidadosa,
Maya. Se alguém te disser o contrário, desconfie.
– Você diz isso porque não conhece meu pai... – Mayara resmunga, sem
dividir com Nicole o fato de que, para o seu progenitor, carro sujo era um
sinal de casa imunda e vida bagunçada. O táxi dele reluzia.
As duas fizeram o
trajeto até o centro da cidade em completo silêncio, depois que Mayara se
distraiu com o trânsito. O único som era a música do rádio, que tocava
baixinha. A motorista tinha o dom de ficar completamente dispersa de todos os seus
problemas enquanto segurava o volante, por isso acreditava que dirigir era um
pouco terapêutico. Chegou ao prédio de Nicole alguns minutos depois, sem precisar
ligar o GPS, fazendo a passageira refletir no quanto a Uber tinha boa memória.
Nicole inclusive se perguntou quantos outros endereços Mayara
saberia de cor e como funcionaria a mente de alguém assim. Ela mesma tinha que
anotar tudo, sempre, fazia planilhas para absolutamente qualquer coisa, só para
não se perder em suas responsabilidades – de trabalho, mas a mania englobava as
atividades domésticas também, seus planos de corrida, os treinos da academia, as
compras do mercado, tudo. Anotava até quando regava o único vaso de planta da
casa. Se fosse depender só da cabeça, estava lascada!
Ao destrancar a
porta do apartamento, a moça repetiu o que sempre dizia quando alguém chegava
ali pela primeira vez: “seja bem-vinda, fique à vontade, não repara na
bagunça...”, porque sabia que sua casa não era das mais tradicionais, e isso
nem se devia ao fato de ela ter poucos móveis.
Havia uma rede
colorida, pendurada num canto da sala, que parecia fazer contraponto com uma
estação de trabalho que ficava no outro lado, próximo à janela. Duas telas
ocupavam uma mesa antiga de madeira, junto de um notebook moderno que
contrastava um pouco com a rusticidade do móvel. Uma cadeira gamer, cor
de rosa, terminava por compor o espaço com seu encosto alto.
– Uau, o que é isso? – Mayara pergunta, vendo um quadro branco, grande,
com vários nomes interligados por traços (alguns contínuos, outros tracejados).
Viu naquele emaranhado até mesmo o nome dela, à esquerda, abaixo do centro, perto
do nome de Nicole – Parece o quadro da Alice – complementa, em referência à
série lésbica The L Word.
– Inspiração é tudo, né, bebê? – Nicole responde, deixando Mayara em
dúvida se ela estaria fazendo referência a alguma fala conhecida do mundo das Artes
– Ah, isso aqui é não é nada demais... É só algo sem muita importância que
comecei a fazer, numa noite dessas atrás, que eu não conseguia dormir...
Nicole caminha dois
passos e para ao lado do quadro, que na verdade era uma lousa, dessas que se
escreve com caneta. Seus olhos brilharam de um jeito que demonstraram que as
palavras que tinha acabado de dizer não condiziam muito com a realidade. Ela
parecia bem orgulhosa por ter feito aquilo.
– Comecei anotando os primeiros nomes numa folha pequenininha, num bloco
de anotações que tenho. Aí precisei ampliar, fui atrás de uma folha A4... que pareceu
pequena quando resolvi que, para fazer sentido, eu deveria estar no quadro
também. Aí foi quando decidi que seria um quadro (“o quadro”!). Minha
ideia é depois passar tudo isso para o Corel, sei lá, pensei em mandar enquadrar...
mas nem sei qual seria a utilidade disso, confesso – ela ri.
– Você interligou essas mulheres conforme o grau de relação, é isso? –
Mayara insiste, pois Nicole ainda não havia respondido – Traços assim,
contínuos, são relacionamentos sérios – seu dedo deslizou na lousa a um
milímetro do traço que ligava seu nome ao de Taís. A frase não teve tom de
pergunta – Já os tracejados representam ligações, apenas, sem a tensão sexual
do traço reto – seu dedo deslizou por cima da linha que ligava seu nome ao de
Nicole, que por sua vez se ligava ao nome de Tássia, tia dela, que igualmente
se interligava ao seu nome também.
– Um dia desses atrás eu conheci a Tatá – Nicole aponta para o apelido, no
centro do quadro – Tatá, ex da Mari – o traço contínuo mostrava isso, antes
mesmo que ela apontasse – Mari, casada com Tati e Pati – ela deslizou pelos
riscos – Pati, que conhece a Zezé, a gerente dO Bistrô, que já saiu com a Estela.
Conhece? É fotógrafa do jornal Conexão Sáfica – havia um tracejado entre os nomes
das TPM e de Zezé, e um traço contínuo entre Zezé e Estela.
Nicole parou de falar e apontou para a reta contínua, que
ligava o nome de Estela ao seu. Mayara viu que ela havia relacionado Mirtes e
Catarina, que trabalhavam com Estela no jornal, e de Catarina, que por algum
motivo estava identificada como “Katrina”, saíam três tracejados que
desembocavam no trisal do restaurante. Do trisal, Mariana definitivamente era a
que tinha mais retas em volta do nome. A maioria, contínua.
– Me permite? – Mayara pegou a caneta, vendo Nicole assentir com a
cabeça – Mari é prima de Elias – ela faz um tracejado firme, escrevendo o nome
com uma letra bonita – Elias trabalha com Miriá.
Mayara fez outro tracejado, em direção ao alto do quadro,
à esquerda. Assim, até parecia que se por acaso esta fosse alguma história de
ficção, tipo uma Novelinha, tudo teria começado com Miriá, devido à posição em
que seu nome foi escrito, no “começo”.
– Miriá é publicitária e trabalha na mesma agência que
Preta, Luana... – ela fez os tracejados, interligando as mulheres adicionadas
ao quadro – ... e Ritinha – Mayara escreveu “Rita” no quadro, e antes de largar
a caneta fez uma linha contínua a ligando à Rita.
Aquele parecia um universo
muito interessante, ainda que não conhecesse todas as personagens identificadas
no quadro, sabia que eram pessoas únicas, cada uma com uma história, um universo
recheado de personalidades e possibilidades. Mas os olhos de Mayara se
prenderam no traço reto que a unia ao mundo da Agência Rubi. O traço que a unia
à Ritinha.
Rita era muito legal, inteligente, atraente e tal, mas
tinha uma regra idiota sobre não sair mais do que três vezes com a mesma
mulher. Um claro mecanismo de defesa, quiçá um instinto de sobrevivência, e sem
dúvida um repelente bastante eficiente. Serviu para repeli-la! Contemplando “O
quadro”, Mayara percebeu que do nome de Rita saía uma reta a ligando à Mariana,
que talvez propositalmente estava no centro de tudo. Nicole não comentou, mas
pareceu que ela tinha começado por ali; puxou o fio a partir de Mariana (e
Tatá, e depois Lola, a bartender dO Bistrô).
Mais cedo, Mayara havia se recriminado no restaurante por
não ter conseguido manter seu relacionamento com Taís, mas olhando para aqueles
nomes todos no quadro, conseguiu se dar conta de que Mariana tentou com muita
gente, até conseguir dar certo – e o “certo” dela foi com duas mulheres que já
eram casadas, ou seja, às vezes a vida vai para caminhos que a gente nem
imagina. E verdade seja dita, Taís ofereceu muitas demonstrações de não estar exatamente
em sintonia com ela, com seus planos, mas Mayara é que preferiu não enxergar.
Imaginou uma vida junto com ela talvez mais por comodismo do que por amor.
Estava perto de reconhecer isso!
Como influenciada pela gravidade, deslizou os olhos do
nome de Mariana até a parte de baixo do quadro. Um traço reto apontava que em
algum momento Mariana havia se relacionado com Camilinha, ex de Cibele, que não
estava identificada ali. Mayara escreveu sem muito capricho o nome de Cibele, que
era sua ex também, e fez as devidas ligações. Acrescentou ao final uma reta
ligando-a ao seu nome. E, novamente, olhou para a linha que a unia à Rita.
Era inegável que havia se divertido com Ritinha, e muito!
O encontro das duas jamais foi planejado e a surpreendeu porque, além de
excelente companhia, dona de um humor sagaz, entre elas havia uma química especial.
Rita era daquelas mulheres que parecem esculpidas para se encaixar direitinho
no seu corpo, sabe? No abraço, sim, mas especialmente no sexo. O 69, por
exemplo, vira uma experiência incomparável, única, perfeita. Um aperitivo para
as outras posições, todas igualmente modeladas.
Inevitavelmente, se
lembrou de Ritinha nua e suada, com o cabelo bagunçado... tão linda! Na lembrança,
apareceu sorrindo para ela de um ângulo excitante, por cima de seu corpo, prendendo
o dorso e os braços em sua perna esticada para cima, os olhos se contraindo sem
querer bem naquele momento quando as vulvas se encaixam, de um jeito tão subliminar.
Quente e molhado. Pulsante.
Rita tinha um
cheiro muito gostoso. E um gosto maravilhoso. Se lembrar disso fez Mayara
molhar os lábios, sem notar, como se estivesse faminta de algo que jamais
caberia numa sacola de papel do restaurante O Bistrô. A mulher tinha uma pegada
deliciosa, a deixava toda rendida, daquele jeito que se fica quando alguém
descobre seu ponto mais fraco. Rita na verdade foi além e desvendou cada uma de
suas zonas erógenas. A desnudou de um jeito que Taís nenhuma, Cibele nenhuma,
jamais chegaram perto de fazer igual.
Não que fosse justo
comparar, Mayara detestava a ideia porque não gostava de se imaginar sendo
comparada como ex de ninguém, mas achou que o momento era propício; Taís podia
ser o alvo de suas críticas pelo menos pelos próximos dias. E Cibele era outra
que não merecia também muita consideração, Mayara pensou, fazendo uma linha
contínua que ligou Cibele à Tatá. Quem diria que a pessoa que inspirou Nicole a
fazer um quadro tão complexo quanto aquele tinha ligação também com ela. O tal
do rebuceteio é fogo!
Para não parecer mau-caráter, interrompeu todo e qualquer
pensamento de retaliação contra mulheres que, de um jeito ou de outro, foram
pontes para que outras chegassem. Mas isso não significa que Mayara tenha se
permitido também pensar que Rita seria seu destino final. Ou o seu “felizes
para sempre”, para soar mais adequado ao contexto.
Provavelmente ela jamais mudaria de ideia, se manteria
firme às suas convicções, não era propensa a ter muitas retas, vai saber. Ou
não, as pessoas têm uma tendência natural à mudança, somos fadadas a evoluir,
não há muita escapatória quanto a isso. Mas é fato que qualquer que fosse o
posicionamento atual de Ritinha, Mayara jamais poderia arquitetar sua vida
assim, usando outra pessoa como arrimo. Talvez Nicole estivesse realmente certa,
tudo bem ficar sozinha. E aceitar isso certamente era o primeiro passo para, de
fato, conseguir ficar bem.
Por ora, se distraiu com as mil coisas que acabou
pensando por causa do quadro de Nicole. Mayara ficou refletindo que seria
interessante se no meio daquele emaranhado de vidas tivesse alguma escritora
para poder reunir essas histórias todas em um livro. Ou numa trilogia, porque
um volume só poderia ser insuficiente para escrever tanta coisa.
Será que tinha e ela é que não sabia? Com certeza se
houvesse era alguém ligada à Mariana por uma linha contínua!
– Quando falei para a Mari sobre esse quadro que estava fazendo, ela
comentou que conhece uma escritora fantasma... ghost writer, né, que
chama. Mais tarde disse que vem aqui me ajudar com algumas lacunas, o auxílio
dela vai agregar bastante – Nicole ri. Estava sentada com as pernas cruzadas, a
artificial servindo de base para a outra, e falou como se lesse os pensamentos
de Mayara.
Se fosse um pouco mais velha, Nicole seria alguém com
quem Mayara talvez conseguisse imaginar alguma coisa, mas a jovem era vista mais
como uma irmãzinha, e isso nem se devia somente à sua pouca idade. As
afinidades têm escalas e a que havia entre elas não era do tipo que alcança o
patamar sexual.
– Imagina só um dia encontrar algum livro por aí e me ver identificada nele
como “Mayara, a Motorista” – Mayara ironiza.
– “Mayara, a Uber” – Nicole ri.
– Você seria quem? – ela ri também. Não estava fumando o que Nicole
fumava, mas sentia-se leve para aquele tipo de humor.
– Bom, eu fiz o quadro, né... – Nicole se recosta na cadeira, que range
e se move alguns milímetros para trás. Uma baforada de fumaça branca formou um
cogumelo acima de sua cabeça, ao ser soprada em direção ao teto – Talvez eu
possa ser a moça que digita tudo.
– “Nicole: muito mais que uma personagem, um pseudônimo”.
– E corredora, por favor! Porque eu corro bastante – seu comentário foi
acompanhado pelo tilintar de medalhas penduradas atrás dela, que se moveram com
o vento vindo da janela, fazendo Nicole sorrir com a sincronicidade da cena.
– Grata por ter me salvado hoje – Mayara diz, com sinceridade.
– Imagine, sinto muito pelas circunstâncias, mas saiba que é uma honra
te retribuir. Afinal, você me resgatou no dia em que nos conhecemos. E não
acredito que tenha sido um encontro por acaso – Nicole dá uma piscadinha, se
levantando para arrumar a mesa para o almoço.
Aceitar o convite de Nicole e de algum jeito ainda saborear
a comida de Patrícia afagou o coração de Mayara, num dia tão agitado. Há
consolos que realmente só uma boa refeição é capaz de propiciar, e o tempero da
chef dO Bistrô era sensacional, a fez comer gemendo, num puro deleite de
satisfação.
Ao se despedirem, Mayara agradeceu novamente pelo socorro
de Nicole naquela tarde. Combinaram de se ver novamente em breve, porque Nicole
era uma boa amiga, mas também porque Mayara queria apreciar O quadro quando a
obra estivesse completa (se é que há um fim para isso, para a arte que é a vida).
No caminho para casa, Mayara considerou ativar o
aplicativo de corridas. Se imaginou jogando a sorte, tendo êxito ao transportar
alguém que agregasse algo. As pessoas são realmente como universos, cheias de
história, quem sabe alguma poderia consolá-la. Mas desistiu porque gostava mesmo
era de trabalhar à noite, quando o perfil de clientela era outro, e porque preferiu
o silêncio de sua própria companhia, interrompido pela sineta do celular, que
vibrou quando ela parou no semáforo.
A mensagem era curta e simples, mas dizia tanto em tão
poucas palavras, e ao mesmo tempo era tão ampla, que Mayara até titubeou ao
verificar se haveria alguma continuação. Mas não havia.
– “Oi, bonita! Está disponível?” – era o que dizia a mensagem de
Ritinha.
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