Meia-volta
Essa é a sétima história da terceira temporada da Novelinha <3
Se ainda não leu a sexta, "A sessão", clique aqui.
Provavelmente em algum momento da vida você ouviu alguém dizer que viver é
como se equilibrar numa corda bamba emocional. Às vezes, há determinados casos
e situações que somos obrigadas a enfrentar que a impressão que fica é que ainda
por cima atravessamos essa corda de uma ponta à outra com os olhos vendados,
numa dificuldade danada, sem nenhum amparo ou rede de proteção.
Se nunca ouviu algo do tipo, há
outra comparação que é mais comum, dita por quem acredita que a vida equivale a
andar numa montanha-russa, pois nossos dias não são estáveis, mas sim formados por
inúmeros e sortidos altos e baixos, num sobe e desce frequente que nunca cessa.
Ou melhor, até acaba, mas a estabilidade termina por ser algo ruim porque representa
o fim – vide os monitores cardíacos, que indicam com uma linha reta o término
da vida de alguém. Parar o movimento, portanto, é estagnar a vida, feita
justamente por esses altos e baixos.
É fato que ninguém nasceu para se manter estática; nossa evolução se
assemelha a uma jornada que inclui movimentação. Mas também é verdade que todo
e qualquer desajuste desarmoniza até o mais belo dos conjuntos, que dirá uma
formação humana, tão frágil e ao mesmo tempo tão complexa. No caso, quando as
subidas e descidas tão comuns da vida não ocorrem de forma natural, mas
abruptamente, até o mais racional dos seres perde o equilíbrio.
De perto ninguém é normal, tá legal, mas convenhamos que há vários níveis
de desordem que nos afetam de variadas maneiras, com poder suficiente para
interferir não só na rotina, mas também na nossa personalidade, no caráter, na
maneira como nos relacionamos com as outras pessoas, com o mundo e até com a
gente mesma. A depender do grau, há quem se atire no abismo de si mesma, numa
queda livre que muitas vezes dura uma existência inteira.
Frida se acostumou a ouvir analogias de todos os tipos quando o assunto era
oscilação e variação de humor, e achava que algumas até serviam como ótimas
ilustrações, o povo em geral é bem criativo. Sua preferida era aquela que afirmava
ser positiva a falta de uma estabilidade, que ela deveria até ser grata porque,
afinal, a marinheira se faz é na tempestade. “Viver é navegar”, lhe diziam, mesmo
Frida vivendo tão longe do mar. Mesmo nunca tendo aprendido a nadar!
No fundo, sabia ser impossível ser feliz o tempo todo, ninguém está ileso
de vez ou outra ser abatido por algum nocaute, porque “a vida é uma caixinha de
surpresas” e a rotina eventualmente nos dá umas rasteiras que nos levam ao
chão, direto para a lona. Frida sabia também que há quem acredite que é justamente
nessas horas de virada que a pessoa finalmente muda; no momento que algo fica
ruim é quando surge aquele ensejo para se movimentar, o que muitas vezes acaba
por nos tirar de zonas de conforto que, em realidade, são super desconfortáveis
e incômodas.
O problema é que embora ciente de tudo isso, ela se sentia absolutamente refém
de si mesma e tinha o costume de relutar contra as suas emoções, sempre tão extremas.
Seus “altos e baixos” não eram simples variações; a montanha-russa de sua vida parecia
mais uma roda-gigante, de tanto looping que era obrigada a enfrentar,
várias vezes ao dia e sem nenhum tipo de dispositivo de segurança que a
impedisse de se revirar.
E as quedas vinham. Elas sempre vêm.
Sem a boia do meio-termo para se escorar, Frida se afogava em crises tempestuosas,
daquelas que a gente tem vontade até de se desprender de quem se é. Tudo porque
tinha a capacidade de ir do céu ao inferno em uma fração de segundo. Sem motivo
ou causa aparente, subia e descia os degraus do humor, sapateando.
Na adolescência, por volta dos 16, 17 anos, teve um pico de estresse que
paralisou todo o seu corpo de repente, a fez parar num hospital, onde um milhão
de exames não apontaram nada além de excesso de ansiedade, o que a levou de lá direto
para a sala de uma psiquiatra. Foi assim que recebeu o diagnóstico de bipolaridade,
um transtorno de humor que alterna episódios de euforia com depressão, e que
ela particularmente até hoje acreditava definir grande parte de seu perfil
psicológico.
Depois, já adulta, perto dos 25, foi diagnosticada com transtorno de
personalidade borderline, responsável por também provocar flutuações extremas
de humor. No seu caso, englobavam irritabilidade e agressividade, com crises
súbitas de depressão ou euforia. Os extremos, e ela chacoalhando para lá e para
cá. Muito além de mera montanha-russa, Frida nessas horas era um parque de
diversões inteiro, só que daqueles itinerários, de qualidade bem duvidosa. Ou
pelo menos era assim que se via.
Inevitavelmente, sua autoestima era totalmente abalada, em partes devido à
sua autoimagem distorcida, que fragmentava a autoconfiança que tinha. De
maneira mais acentuada nos dias em que estava para baixo, mas acontecia de
estar super feliz e também não se enxergar direito no espelho. Por isso os
evitava, não fazia o estilo vaidosa. Mas era bonita, especialmente quando
conseguia não viver se arrastando pelos cômodos de casa.
Para sua sorte, e com a ajuda de uma combinação de fármacos para
controlar, seus episódios depressivos eram substancialmente menores que os de euforia,
quando então valia por duas. Esse pico de energia extra era usado para malhar, mas
também na madrugada, para tarefas básicas como faxinar e até trabalhar no dia
seguinte, atividades que ela meio que suspendia quando estava em crise.
A bipolaridade pontuava descidas semanais; a depender da época,
quinzenais, até mensais. Nesse meio-tempo, Frida conseguia viver mais ou menos
como uma mulher comum, exceto pelo fato de sentir menor necessidade de dormir,
ao mesmo tempo em que ficava agitada, elétrica, energizada. Maníaca, na linguagem
da psiquiatria, que é o oposto à depressão. Já o fator borderline a fazia subir
e descer na escala do humor várias vezes ao dia, independentemente de estar maníaca
ou depressiva de sua condição bipolar.
Equivalia a uma escada de apenas três degraus, em que o do meio é o
normal, onde vive a maioria das pessoas (e que ela nem pisava), o de baixo é o
fundo do poço e o de cima é o topo do céu. Aí vinham as combinações:
bipolaridade com borderline no degrau de baixo, ou seja, negativo com negativo,
resultava num abatimento letárgico, num tipo de lama emocional pantanosa,
terrível. Era o pior estado, onde tomar banho e sair da cama de manhã se
tornavam missões impossíveis. Bipolaridade positiva com borderline negativo
gerava mil pensamentos a milhão, horrorosos, daqueles que a gente até se
envergonha depois. Era quando vinha a impulsividade e ocasiões em que ela ousava
cortar o cabelo, furar um piercing e até se tatuar. Já bipolaridade negativa
com borderline positivo despertava nela uma ansiedade maluca, junto de uma vontade
profunda de socar o mundo. De querer bater nas pessoas, de verdade. Nem dirigia
quando estava assim, porque se arriscava a levar um tiro em alguma briga de
trânsito.
Agora, a combinação bipolaridade positiva com borderline positivo a
enchia de uma certeza de ser a pessoa mais incrível do planeta! A mais foda, sem
dúvida a mais engraçada e a mais inteligente também. E sua capacidade de se
concentrar intensamente, chamada na medicina de hiperfoco, transformava-se em
combustível nessas horas e ela era mesmo capaz de virar especialista em
qualquer assunto. Frida tirava proveito disso, se valia dessa “parte boa”.
Esta era também a fase da libido em alta, quando ela se atirava na cama
de estranhas, deliberadamente e sem pestanejar. Sem sono, se jogava na noite
paulistana disposta a topar qualquer parada. Nessas, amanhecia na praia, em
outro estado, teve uma vez que foi parar até no Paraguai. Se tornava uma
companhia divertida, mas igualmente arriscada, do tipo que te coloca em
situações que, sozinha, você jamais viveria. Quem gostava disso era sua fiel e
melhor amiga, Catarina. Uma social media que não por acaso tinha o
apelido de Katrina, de Furacão.
Juntas, as duas eram um perigo, como fogo e pólvora. Quer dizer, isso
quando Frida estava nos estágios de sair para badalar, que era um estado
constante na vida de Furacão Katrina.
Catarina, que por sua vez tinha transtorno do déficit de atenção com
hiperatividade (TDAH), conhecia cada beco de São Paulo e nessas horas arrastava
a amiga para lugares que muitas vezes ficavam depois apenas na memória, porque
não costumavam se fotografar. Em partes porque Frida não gostava de retratos,
nem selfies. Era low profile, ao contrário de Katrina, que
registrava até os pratos de seus almoços, quase cada passo que dava. Exceto
aqueles em companhia de Érica, ou sua amiga Frida, que não eram dos mais
frequentes, mas certamente eram os mais inflamados.
Por tudo isso, uma palavra que sempre definiu Frida muito bem é
“intensidade”. Seja para cima, seja para baixo, ela é uma mulher muito intensa
em suas ações, reações e relações, e nem todo mundo sabe lidar com gente assim.
A convivência torna-se um fardo emocional que muitos não têm força para
sustentar. Ou então amor suficiente para aguentar. Mas para a sorte de sua
saúde mental, este não era um assunto que costumava aborrecê-la. Pelo menos não
quando estava no degrau de cima, como era o caso agora, porque nessas horas seus
pensamentos eram blindados de importância.
Quando Catarina a encontrou naquela noite de domingo, antes mesmo de
cumprimentá-la já identificou o humor “para cima” da amiga. Adorava quando
Frida estava em seu estado eufórica, mas estranhou o caos na casa dela. A
bagunça era generalizada na sala, do jeito que ficava quando ela estava
deprimida. Além de uma bola de sujeira no chão, que se mexia conforme o
movimento do ventilador no teto, como se fosse um amaranto-do-deserto em filme
de velho oeste, o sofá estava fora do lugar, desalinhado com o babado do tapete.
– Entrarão
na sua casa, roubarão tudo? – Catarina pergunta, da porta, em referência
ao meme. Estava tudo revirado, como se uma gangue tivesse invadido o
apartamento de Frida, ou como se ela também tivesse TDAH e estivesse perdida no
meio de uma faxina – Que houve?
– Oi, amiga! Estou
fazendo uma limpa aqui – Frida responde, erguendo a cabeça ao vê-la entrar. Usava
um lenço azul no cabelo e estava sentada perto da janela, no chão, parecendo um
pouco desolada.
As duas eram vizinhas, moravam a uma distância de dois andares e usavam a
área comum do prédio como se fosse o quintal delas. Prova disso é que Catarina estava
vestindo um pijama estampado com ursinhos e pantufas cor de rosa. Ela trancou a
porta da amiga usando a sua cópia da chave, pendurada num chaveiro em formato
de joystick, que guardou no bolso.
– Uma limpa antes
ou depois de algum terremoto? – Catarina brinca, espichando a cabeça para olhar
para a cozinha, que estava com a luz acesa e igualmente bagunçada.
– Tive que
marcar com um pedreiro, amanhã – ela começa a explicar, se levantando do chão.
– Certo –
Catarina senta no sofá, segundos antes de Frida – Por causa daquele vazamento
na sua área de serviço?
– É... – a
resposta vem acompanhada de uma virada de olhos, irritada – Aí precisei marcar
com uma faxineira. Porque, né, olha o estado da minha casa – Frida levanta as
mãos para cima, evidenciando o que parecia óbvio – Está tudo sujo, eu não teria
cara e nem coragem de colocar um estranho aqui dentro com o apartamento estando
desse jeito – ela fala mesmo assim, para explanar bem suas alegações.
– Oxe, mas vai fazer
faxina antes de chamar um pedreiro? E qual é a lógica disso?
– Pois é. Não
tem lógica, foi o que eu pensei na sequência. O certo é chamar depois, né? Toda
obra faz sujeira, sabemos que pedreiro é o tipo de sujeito que não toma cuidado
com limpeza. Ai, fazer reforma é um inferno... – Frida complementa, depois de
um muxoxo.
– Mas, amiga...
– Catarina interrompe – Não é bem uma reforma, né? O cara só vai desentupir um
cano do seu tanque, meio quê.
– Não, eu sei, é
só que...
– E outra,
foda-se se o pedreiro vai achar sua casa suja! Azar o dele! E, sim, a faxineira
vem depois, mas Frida – Catarina a faz olhar para ela, ficando em silêncio até
conseguir a audiência desejada – ... não é para você fazer faxina antes da
mulher vir aqui faxinar! Porque isso também não tem cabimento nenhum.
– Ah, mas...
– Não, não tem
“mas” – Catarina interrompe de novo, agora tocando em seu braço para que a
amiga olhasse novamente – Se você vai pagar para alguém limpar, deixa que limpem.
– É que já
comecei, porque fui lavar a louça, aí tive a brilhante ideia de desengordurar
os pratos que ficam ali em cima do fogão, sabe? Nisso eu desmontei o depurador
de ar, que também estava engordurado.
– É aquilo ali?
– Catarina aponta para um amontoado de peças metálicas em cima da barra da
cortina. Parecia tudo, menos um depurador, mas ela reconheceu pela logomarca.
– É, eu não
consegui montar, depois de ter limpado. E limpei bem mais ou menos, se você
quer saber, porque essa desgrama dessa gordura parece que está impregnada –
Frida ri, mas de desânimo – Aí vim aqui na sala e decidi varrer o chão, imundo,
para sentar ali perto da janela, porque hoje está muito calor. Pensei de ver
algum vídeo no YouTube que ensinasse a montar depurador de ar. Você acha que
tem?
– E não varreu
por quê? – Catarina pergunta, vendo a vassoura encostada na parede ao lado
delas.
– Porque fui
buscar a pá guardada lá na área e no caminho me lembrei daquela piada sem graça
da Camilinha, sabe?, aquela da “mulher que ‘morreu de panela’”? “Veio a
caminhão e PÁ! Nela!” – Frida ri, mas só porque era uma péssima piada.
– Sei... –
Catarina parecia se esforçar para seguir a linha da narrativa que estava sendo
contada. Ser amiga de Frida era desafiador às vezes. A faxina, por causa de um
reparo, que por sua vez envolvia um depurador de ar desmontado, tinha chegado à
amiga delas.
– Essa piadinha
tosca me fez lembrar que a Camilinha me contou mais cedo que conhece a dona
daquela loja de planta, O Jardim, envolvida naquele barraco do casamento, sabe?
Que virou meme?
– Do buquê, sim.
– É, do buquê –
Frida repete, puxando o celular. Ao ligar o aparelho, o Instagram da loja O
Jardim se destacou na tela. Mais especificamente uma foto da dona do empreendimento
– Aqui. Alessandra Silva, essa é a mulher. A tal de Alê, é cliente da Camilinha
há vários anos.
– Cara... –
Catarina estava quase sorrindo, mas manteve-se séria – ...eu juro que estou
tentando acompanhar sua linha de raciocínio, mas não consegui entender a
relação disso tudo. Você adiou a sua faxina, que por sinal decidiu fazer só para
receber um pedreiro amanhã, por causa de uma cliente da Camilinha? Entendi foi
nada. Achei que você estava cagando para esse entupimento no cano do seu tanque,
por que a pressa de já chamar um pedreiro amanhã?
– Eu estava
cagando para o entupimento do tanque... Até discuti no começo da semana com a
vizinha aqui de baixo.
– Eu lembro. Você
se irritou com as reticências na mensagem que ela te mandou no WhatsApp.
– Mensagem que
ela mandou no grupo do condomínio! – Frida corrige – E as reticências foram
mesmo super provocativas, na hora você até concordou!
– É, mas porque
pareceu realmente que ela estava te afrontando – Catarina ri – Mas, Frida,
esses dias mesmo você achou que o porteiro estava sendo sarcástico contigo,
dando piscadinha, e ele só tinha uma irritação no olho.
– Eu sei – Frida
ri também, porque depois conseguia achar graça. Mas na hora pareceu sarcasmo e
ela ficou enfurecidíssima.
– E é aquilo,
né... A casa da mulher aqui embaixo molha toda vez que você lava roupa e liga a
sua máquina aqui em cima. Precisamos admitir que, nesse caso, as reticências dela
foram até que educadas. Ela podia ter enfiado exclamações no seu cu!
– Poderia. E teria
sido mais honesto da parte dela, sonsa...
– Mas e aí, o
que a mulher do meme tem a ver com a história do cano que joga água no
apartamento da Dona Três Pontinhos? Ou não tem?
– Não tem –
Frida dá uma risadinha frustrada – É só que tive que fazer essa faxina, por
causa do pedreiro, né... Por causa do entupimento, bem dizer, e aí me lembrei
nisso tudo do comentário da Camilinha, sobre ela cortar o cabelo da mulher do
meme e tal. Parei tudo para fazer a detetive na internet e ver se confirmava
algo, porque você não acredita de quem essa paisagista dO Jardim é ex. Velho, o
mundo é muito pequeno! Ou é essa cidade que a gente jura que é grande, mas na
real é um ovo e todo mundo já se pegou, não é possível.
– Quem?
– O problema é
que é a palavra da Camilinha, né... Que, sabemos, gosta de contar vantagem,
aumenta umas histórias... – Frida continua, com a fala acelerada – Por isso fui
procurar na internet, ver se é verdade mesmo o que ela tinha falado, mas não
achei nenhuma pista, nada, nenhuma prova de algo... Aí agora já não sei se é
verdade mesmo.
– A mulher do
meme do buquê é ex de quem? – Catarina pergunta novamente, com uma sobrancelha
arqueada.
– Não vai chutar
um nome?
– Ai, Frida... –
Catarina parecia impaciente – Conta logo, que suspense!
– Ela é ex de
uma esposa da Mariana.
– Mariana... –
Catarina tentou buscar algum rosto na memória que se associasse ao nome – A Mari?
Mari Souza, que se casou com as muié dO Bistrô?
– Essa – Frida
concorda com a cabeça, dando uma piscadinha.
– Pera. A mulher
da loja de flor, do meme, é ex de uma das esposas da Mari? – Catarina se
levanta e começa a juntar as almofadas para cima do sofá. Parecia decidida a
varrer o chão – De qual das duas?
– É. Bom, parece,
não sei, a Camilinha é que falou, não achei nenhuma prova... Mas parece que
muito tempo atrás essa tal de Alessandra Silva, dO Jardim, era namorada da Patrícia
Figueiredo, a chef bonitona.
– Sei – Catarina
assente, juntando a sujeira com a vassoura, utilizando a pá que foi a responsável
por desandar a faxina da amiga.
– Então – Frida
diz, esperando que ela processasse a informação.
– Tá, mas e aí?
– E aí que diz a
lenda que a Patrícia namorava com a Alessandra quando ela conheceu a Tatiana. A
esposa número um.
– Já existia um
trisal antes, então?
– Nos sonhos da
Patrícia, talvez – Frida dá uma gargalhada um pouco maldosa – Não, amada. A Patrícia
traiu a Alessandra com a Tatiana. As três ficaram amigas, mas quem sobrou nessa
história foi a Alê.
– Nossa, e eu bem
que falei para a Mari que o logo dO Bistrô era parecido com o logo dessa loja
de paisagismo! Até mostrei para ela no Google, quando eu fui lá acertar os
detalhes daquele trabalho de gerenciamento das redes sociais do restaurante, e
vi o logo dO Bistrô de perto... mas ela achou que não, falou que era brisa
minha.
– É... não é
brisa, não.
– Não segundo a
Camilinha, pelo menos – Catarina ri – Que, sabemos, “gosta de contar vantagem,
aumenta umas histórias”...
– É, não segundo
ela... – Frida mantinha a atenção focada no celular – Uau, realmente, os logos
são idênticos! Que coisa, né?
– É, monogamia às
vezes é tão mono que só funciona de um lado... – Catarina ri de novo.
– Aqui no site está
dizendo que a Tatiana foi quem desenhou o logo dO Bistrô – Frida vira o celular
para ela – Será que a Tatiana também foi quem fez o logo da loja que virou meme?
Será que ela desenhou antes ou depois de trair a Alessandra, até então namorada
da Patrícia?
– Será que a
Mari sabe desse rolo todo? – Catarina emenda a pergunta.
– Com certeza
sabe, né, Cá! Ou você acha que as duas iam se casar justamente com a Mariana,
sem saber do passado dela? E vice-versa! Essas coisas certamente foram
exaustivamente debatidas entre elas, devem ter até entrado no contrato nupcial
do trisal, se duvidar. Imagina, considerando todo o histórico da Mariana...
– Mas a Mari nunca
traiu ninguém. Quer dizer... – Catarina se abaixa e começa a juntar as peças do
depurador de ar que estavam no chão, tentando montar a estrutura – Não coloco
minha mão no fogo nem por mim, mas... Até onde sabemos, nunca houve nenhuma
traição.
– Katrina, eu participei
até de suruba na época em que andava com a Mariana, quando a gente saía! –
Frida interrompe, enfática.
– Mas participou
de maneira consensual. Ela não foi para um bacanal sozinha, é o que quero
dizer.
– É, não foi...
– Então! –
Catarina sorri, comprovando estar certa com seu ponto de vista – Mas sim, ainda
assim é babado a Patrícia ter traído a mulher do meme. O mundo é pequeno mesmo,
amiga, vai saber quantas ligações que existem entre nós!
– Pois é... –
Frida sai do sofá e vai até a cozinha – Desiste desse depurador de ar, Catita.
Não dá para montar, eu quebrei isso aqui quando estava na função de desmontar para
limpar – ela mostra uma peça quebrada em três pedaços.
– Bom... O jeito
vai ser fritar ovo com a janela aberta – Catarina recomenda, resolvendo desta
maneira o problema da falta de um depurador na cozinha, para onde ela foi,
atrás de Frida.
– É, vai ser o
jeito. Eu preciso de foco, amiga! Foco! – ela faz um gesto ao lado dos olhos,
como se os direcionasse para algo – Se vou fazer faxina, é faxina que tenho que
fazer. Vou lá, lavo a louça, varro o chão, passo um pano e acabou. É o que as
pessoas normalmente fazem. No fim, fiquei enrolada com isso o dia todo porque
fiquei patinando.
– É, mas a
fofoca da Camilinha era boa, valeu o seu esforço – Catarina a consola, dando um
tapinha em suas costas antes de amarrar o avental na frente do pijama e começar
a lavar a louça – Você conversou com a sua psicóloga sobre estar assim, tão
avoada, nos últimos dias?
– Sim, na
verdade foi ela que percebeu que eu estava dispersa. A palavra que ela usou foi
“alheada”, achei uma escolha interessante.
– E qual foi o
prognóstico de Dona Sabrina? Ela é boa psicóloga, né?
– A Sabrina é
ótima! Gosto mais dela do que da irmã dela! – Frida se senta ao lado da amiga,
o rosto iluminado pela tela do celular. Dali, Catarina viu que ela permanecia
no Instagram dO Jardim – A psi acha que estou assim por causa do remédio, que
mudou a dose e tal....
– E você já
conversou com a sua médica? Eu gosto da Giovana, Frida! Acho uma pena que você tenha
pegado implicância com ela, era ótimo quando a gente tinha a mesma terapeuta!
– Não é
implicância, Katrina! Ela bocejava só durante a minha sessão! Com você eram
risos, sorrisos e risadinhas – Frida vira os olhos, o movimento acompanhado por
um suspiro ruidoso.
– A pobi
bocejou uma única vez! – Catarina ri – O problema é que você tem mania de ficar
procurando sinal nas coisas, no rosto das pessoas...
– Que seja –
Frida desconversa, mal-humorada.
– E você já
conversou com a sua médica? – Catarina repete a pergunta, ainda sem resposta.
– Não, marquei
consulta para sexta que vem – Frida abaixa o celular, para encará-la – Mas você
estava certa, não era para eu estar assim. E o pior foi que eu nem percebi!
– Acontece,
amiga... principalmente quando provocado por remédio – ela fala, enxaguando um
copo cheio de talheres – Pega leve com você!
– É, preciso...
– Frida resmunga, voltando a atenção para o celular.
– Me fala agora
do pedreiro. Qual foi a urgência de fazer um reparo que você nem estava com
pressa de resolver? O que rolou?
– Ai, menina...
– Frida apoia o celular no colo e cruza os braços. Uma das mãos escondeu os
próprios olhos, como se ela estivesse envergonhada de algo.
– Não me diga
que rolaram mais reticências? Eu nem vi as mensagens no grupo do condomínio
hoje, não sei onde enfiei meu celular...
– Não, foi pior.
Lembra que a reclamação da vizinha aqui de baixo era que a água do cano
entupido descia e molhava todo o chão dela?
– Sim, que você
rebatia dizendo que as mãos dela não iam cair por ter que secar.
– Pois é...
– E o que tem?
– Você acredita
que eu descobri hoje cedo que ela é cadeirante?
– A vizinha de
baixo é cadeirante? – Catarina pergunta, para confirmar.
– Eu sei o que você
está pensando. Que eu sou uma pessoa terrível por praguejar e chamar de
preguiçosa alguém com mobilidade reduzida. Restrita, né – Frida faz uma careta
e suspira, desconsolada – Me sinto péssima por isso. Uma péssima vizinha, uma
péssima humana!
– Não pensei
nada disso, estava era lembrando de você a xingando de fingida porque ela não
usa ponto final nas mensagens do zap.
– Ah, mas isso ela
é mesmo – Frida diz e ouve Catarina rir – É verdade, ué, caráter não tem a ver
com nada disso! Dissimulada, falsiane...
– Tá, aí o fato
de ela ser cadeirante tocou seu coraçãozinho de veludo?
– Claro, né? Que
espécie de gente eu seria se isso não me tocasse de alguma forma? Marquei com o
pedreiro na mesma hora, ainda vou ter que pagar uma taxa de urgência para ele
vir já de manhã.
– E quem foi que
te falou que a vizinha é cadeirante? A Camilinha? – Catarina ri, mas Frida não
retrucou porque a amiga estava lavando a louça. Não se mexe com quem lava a sua
louça!
– Não, eu a
encontrei no hall, lá embaixo, por acaso. A vizinha. Ela estava reclamando que
o apartamento dela estava todo molhado.
– Você lavou
roupa hoje? Que sorte a sua ela não conhecer seu rosto!
– É. Sim, lavei cedo,
antes das seis – Frida responde sem pestanejar – Não conseguia dormir, aí fui
cuidar da vida antes do sol nascer. Comecei arrumando lá dentro, aí vim lavar
louça, mas vi que não tinha detergente, precisei ir ao mercado. Foi quando a encontrei
lá embaixo.
– Entendi – Catarina
responde. Agora realmente tudo fazia mais sentido e a história de Frida tinha
um mínimo de coerência.
– O pedreiro
disse que se o entupimento não for logo na parte de cima do cano, vai ter que
ir quebrando até descobrir onde está o problema.
– Por isso você
resolveu limpar sua área de serviço? – Catarina aponta com a cabeça para o
cômodo ao lado, que estava de ponta-cabeça, todo desarrumado. Frida estava
mesmo desfocada.
– Foi. Ainda
manchei sem querer minha camiseta com água sanitária – ela puxa a barra da blusa,
mostrando a marca desbotada. Seu short também estava manchado, mas Catarina preferiu
poupá-la e não comentou nada a respeito.
– Pedreiros nem
reparam em bagunça, Fridinha... Eles são os primeiros a zonear tudo!
– Ah, eu sei,
mas...
– Mas você se
importa com o que os outros pensam. Sabemos – a voz de Catarina saiu abafada,
competindo com o ruído dos pratos enxaguados sendo colocados logo ao lado, no
secador.
– Sempre me lembro
daquele taxista... – Frida começou a dizer.
– Um estranho,
um completo imbecil que um dia fez um comentário mais idiota que ele e você
levou para o coração.
– Às vezes há
sabedoria no que as pessoas falam, Furacão... – Frida tenta se justificar, em
tom de desculpa.
– O cara disse
que quem tem o carro sujo, tem a casa imunda e a vida bagunçada. Sentido nenhum,
zero sabedoria nisso aí.
– Tá, enfim... Mas
foi algo que ficou na minha cabeça, aí resolvi dar uma ajeitada aqui pelo menos
por alto, antes de o cara vir amanhã quebrar todo o chão da minha casa.
– Amiga, você
desmontou o seu depurador! Mas, tá, não precisamos falar disso – Catarina
desconversa, vendo o olhar atravessado que Frida lançou em sua direção – Amanhã
você não vai trabalhar, então?
– Vou, preciso
ir, amanhã estou sozinha no consultório. Pedi para o seu Jaime vir aqui e acompanhar
o pedreiro.
– Seu Jaime, o
porteiro? Mas você nem confia nele, Frida! Diz que o cara é todo sarcástico,
que tem “cara de riso”...
– Mas ele tem! –
Frida rebate – Aquele olhinho torto, aff...
– Uma alergia o forçou
a piscar estranho! – Catarina ri – E você disse outro dia que ele te irritava.
– E é verdade, ele
me irrita mesmo! Mas tudo bem porque amanhã não estarei por perto, nem vou ver a
cara daquele boca mole. O importante é resolver esse entupimento logo de uma
vez, Catarina.
– Por que você vai
estar sozinha amanhã? O que houve com a Natália? – Catarina pergunta, se
referindo à secretária da clínica de Frida.
– Ela mandou
mensagem mais cedo dizendo que estava cheia de cólica, me pediu para faltar
amanhã, para tentar um encaixe na UBS. Essa endometriose acaba com a gente, que
difícil que é ser mulher...
– Eu te ajudo
amanhã. Posso ficar acompanhando o pedreiro aqui, se preferir, sem problemas,
mas posso ir até a clínica com você também.
– Até parece que
eu ia fazer você trabalhar em plenas férias.
– Não vai ser
“trabalho”, Frida – Catarina levanta os ombros, parecendo sincera – Aproveito e
vejo aquele computador da recepção que você falou que está com vírus.
– Seria
incrível, Furacão! Eu ficaria mais grata por isso do que por essa louça lavada
– Frida dá um beijo na bochecha da amiga.
– Então, fechou.
Amanhã cedo eu passo aqui e a gente vai junto.
– Tá, mas tem
certeza?
– Absoluta –
Catarina dá uma piscadinha, como forma de validar o que dizia – Se o movimento
estiver tranquilo, aproveito para assistir um pouco do dorama que
comecei a ver ontem, maravilhoso. Mas, ó, se chegar cliente com algum bichinho
muito fofo eu vou abraçar e apertar, já vou logo avisando!
– Tá bem, Felícia,
combinado – ela ri. A amiga sempre dava um jeito de ajeitar o que ela sozinha
não dava conta e nessas horas Frida sentia-se a mulher mais rica e sortuda da
Terra, por tê-la. A vida é mais leve quando há uma boa amiga por perto.
Na manhã seguinte, bem cedinho, ela a chamou na porta, já pronta para
passar um dia inteiro de descanso trabalhando sem salário na clínica
veterinária de Frida. Catarina realmente não se importava em acompanhá-la, na
verdade, até preferia se ocupar com algo útil do que ficar em casa batendo
cabeça – que basicamente era o que fazia, quando se via obrigada a se manter
afastada do serviço, durante suas férias. Gostava de ficar sempre ocupada, pois
assim era mais fácil se blindar das enxurradas torrenciais de pensamento que
sempre a deixavam tão esgotada. Muito mais do que ficava diante de qualquer
ofício ou labuta.
A primeira cliente apareceu assim que chegaram à clínica. Num primeiro
momento, Catarina, que estava na recepção, levou alguns segundos até reconhecer
o rosto da mulher parada diante do balcão. Na sequência, achou muita
coincidência que justamente Patrícia estivesse ali. Tinham falado dela ontem!
Patrícia pareceu confusa ao chegar à veterinária, carregando Percival
dentro de uma caixinha de transporte, e encontrar Catarina na recepção da
clínica. Ela cuidava das redes sociais dO Bistrô, era amiga de Mariana e, até
onde sabia, não tinha relação alguma com o ramo animal. Seu esquema era todo
digital! Ou não?
Não quis perguntar. Sentia-se muito aflita, o gato da esposa apresentava
um comportamento estranho, estava sozinha em casa quando o bichano começou a
miar de um jeito esquisito, que se emendou em uma tosse mais atípica ainda, o
que a forçou a enfiá-lo dentro do carro. Dirigiu seguindo o trajeto que o GPS
indicava, depois de digitar no aparelho o endereço do cartão de vacinação de
Percival, que Patrícia encontrou no fundo de uma gaveta, depois de revirar o
escritório inteiro de Mariana.
– Por favor,
fica bem Nonozinho, por favor, por favor – Patrícia fala, ao ficar sozinha na
sala da recepção, depois que Catarina foi chamar a veterinária – Sua mãe não atendeu o celular
porque está trabalhando, mas vai ficar tudo bem, eu te trouxe até aqui... Hein?
Você vai ver, essa tosse é só uma bobagem, já vai passar, meu benzinho.
Lá dentro, no consultório que
ficava no final de um corredor comprido, a veterinária acompanhava com a amiga o
diálogo entre humana e felino, pela câmera de segurança. Esta era a primeira
vez que Frida via Patrícia pessoalmente e achou que o fato de terem conversado
a seu respeito na noite anterior era algum sinal. Do que, exatamente, não
sabia, mas parecia ser – e fortíssimo!
– Vamos ver se a
Mariana nos atende agora... – Patrícia resmunga, puxando o celular do bolso
após tirar Percival de dentro da caixa de transporte e acomodá-lo em seu colo –
Eu sei, meu amor, mas sua mãe falou que tinha uma tal reunião – ela diz, depois
de um miado – Se não está atendendo, certamente é por isso. A Mari ainda nos
ama, vem cá – Patrícia beija a cabeça do gato, que tosse mais uma vez.
Frida se surpreendeu porque a
leitura que fazia de Patrícia era outra, completamente diferente do que via
pelo monitor. Jamais imaginou que a dona do restaurante O Bistrô fosse amorosa
com gatos, por exemplo. Ela tinha uma postura tão sisuda...!
Na verdade, desde que Camilinha havia
lhe contado o boato de que um dia Patrícia foi talarica, num passado não tão
remoto, Frida não parava de pensar no trisal. Por motivos diversos, mas
especialmente porque ultimamente sentia que se focar exaustivamente num único
assunto parecia ser a nova tendência de sua mente tarja preta.
Frida achava excêntrico isso, um relacionamento com três mulheres. Mais
ainda porque conhecia bem uma delas, já que Mariana tinha até morado em sua
casa durante um tempo. E a Mari que ela conhecia não só fugia de casamentos,
como era contrária a qualquer outro tipo de relacionamento. Dizia que eles aprisionavam
e ela era um espírito livre e liberto. Era inevitável não pensar no que a teria
feito mudar de ideia. Ou quem.
A constatação mais lógica e óbvia é que Patrícia e Tatiana certamente serviam
um belo de um chá, que combinou com o de Mariana, que era bem desinibida na
cama. Sexo não é tudo, mas é muito numa relação. E com Mariana sendo quem era,
Frida sabia que este era um fator importante.
Só que as mulheres tinham lá o seu mérito, nas análises de Frida, também
em outras áreas. Porque Mariana era divertidíssima, só que dona de um perfil
bem característico. Peculiar. Ela vivia perdendo as coisas e se batendo nos
lugares, era do tipo desajeitada, que tropeçava na própria sombra e, se tudo já
não bastasse, antes de nascer passou duas vezes na fila da teimosia. Isso
inclusive foi o que fez elas terminarem, após o breve período em que namoraram,
mais ou menos na época que Percival apareceu.
Mas agora, olhando Patrícia pelo monitor da câmera de segurança, Frida
acrescentou novos elementos às suas observações. Sabia o quanto Mariana gostava
do gato e a cena que via entre Patrícia e Percival dizia muita coisa.
– Cara, nós falamos
dessas minas ontem! – Catarina comenta, trazendo Frida de volta ao momento
presente – Você acha que o gatinho delas está doente?
– Não sei, tenho
que examiná-lo, mas essa tosse não parece ser nada grave. Ele só deve estar
engasgado com uma bola de pelo.
Frida acompanhou a amiga de
volta à recepção, onde cumprimentou Percival e depois Patrícia, que se levantou
ao vê-las. A veterinária estava abaixada acariciando o gato e não viu a
expressão de estranheza da mulher, ao ouvi-la chamá-lo pelo nome de Juvenal.
Por Patrícia aparentar estar nervosa, Frida levou o bichano no colo até
sua sala, novamente acompanhada por Catarina, que gostava de ser ajudante de
veterinária apenas quando o paciente atendido não corria nenhum tipo de perigo
ou risco. As duas estavam lá dentro quando Mariana chegou.
– Oi, Pati – ela
cumprimenta, apoiando a mochila no sofá da recepção, para abraçá-la após um
beijo rápido – Vim correndo, assim que li sua mensagem. Cadê o Nonô?
– A veterinária
levou lá na sala, está examinando, acho que vai fazer alguns exames – Patrícia
retorce as mãos, aflita – Eu sei que você tinha uma reunião e mil compromissos,
ouvi você comentando ontem à noite com a Tati... mas preferi te avisar ainda
assim.
– Claro e fez
bem, meu amor – Mariana dá um beijo em seu rosto, seguido de um tapinha na
perna – Você disse que ele estava tossindo, é isso?
– É, eu já
estava indo trabalhar, ouvi um som estranho, aí fui ver...
– Que coisa –
Mariana coça a cabeça, puxando a bombinha de asma do bolso da frente da calça.
– É, e... –
Patrícia resmunga, mas se cala.
– E? – Mariana
olha para ela, alheia ao fato de que sua conversa podia ser ouvida lá dentro,
por Frida e Catarina.
– Eu... –
Patrícia pigarreia, abaixando a cabeça – Desculpa... – o pedido sai num fio de
voz.
– Pelo que, Pati?
Amor, essa história toda de baile, de Lola, para mim já está resolvida, gata. Acabou,
já deu – Mariana diz, num tom zangado. Ou só estava preocupada e seu comentário
soou assim – Agora, você e a Tati têm que se resolver, vocês já são bem grandinhas,
já eram casadas antes, então deem um jeito agora, façam as pazes.
– Para você está
mesmo resolvido? Olha só o jeito que você fala comigo, Mari! Até seu olhar está
diferente!
– Mas é porque
estou cansada, Patrícia! Do trabalho, dos problemas da empresa que tenho que
resolver sozinha... e aí nem em casa eu tenho paz! – Mariana dá um suspiro,
mexendo no cabelo de um jeito impaciente – E sim, para mim está resolvido, sim.
Nós precisamos pôr uma pedra em cima desse assunto, senão a gente vai ficar
empacada nisso para sempre.
– Eu sei...
– Você me diz
que foi sem querer, a Lola diz que foi sem querer, e eu me vejo obrigada a
acreditar em vocês. Senão vou ficar maluca.
– Se vê
obrigada, mas não parece acreditar... – o comentário de Patrícia foi num tom
extremamente baixo, quase inaudível.
– É, porque é
difícil... Eu acho que se não tivesse rolado um flagra a gente jamais falaria a
respeito.
– Não falaria devido
à falta de importância, amor! – Patrícia afirma.
– Bom, o fato é
que, querendo ou não querendo, eu não acho que um beijo seja forte o suficiente
para abalar o que a gente tem. Se vocês tivessem, sei lá, transado, ou ficado
várias vezes, se encontrado às escondidas, seria pior. Talvez terminativo. Mas
isso não aconteceu, né?
– Claro que não,
Mari... – Patrícia responde, vendo a esposa levantar os ombros.
– Então tá, já
chega de falarmos disso. Mas você e a Tatiana que se resolvam sozinhas, de
verdade. E rápido, Patrícia. Porque isso está desgastando a nós três.
– Eu vou.
Prometo – Patrícia dá um beijo na mão esquerda de Mariana, em cima de sua
aliança dourada – Mas não era isso que eu ia falar...
– E o que era?
– Eu acho... O
Nonô... – Patrícia parecia escolher bem as palavras – Não, eu... Eu me esqueci
de guardar um potinho com óleo que não descartei ontem, já estava com sono,
deixei para depois. Nem tampei, deixei lá na pia. Amor, acho que eu envenenei o
seu filho – Patrícia começa a chorar – Eu acho que ele bebeu esse óleo...
– Pati... –
Mariana coloca a mão em suas costas, sem saber o que deveria dizer. Duvidava muito
que o gato tivesse realmente feito algo do tipo. Percival não tinha o costume
de lamber potes ou panelas, mas ela não teve tempo de elaborar nada para falar,
porque Patrícia continuou com sua lamúria.
– Eu não sei o
que está acontecendo comigo, Mari, sinceramente, parece que ultimamente só faço
besteira... Primeiro a história do baile, agora o gato... E eu só queria ser
feliz com vocês, ter uma vidinha pacata... Mas até os fantasmas do meu passado
parece que resolveram se levantar da tumba só para me perturbar...
– Você está
falando daquela mulher do restaurante? Do jantar de aniversário? A Tati me
contou o que aconteceu entre vocês três.
– Não me orgulho
de nada, juro! Mas só que a vida era outra naquela época, eu era outra... E a
Tati... Ah, a Tati me encantou de imediato, me apaixonei à primeira vista. Foi
mais forte do que eu.
– Foi parecido com
o que rolou entre você e a Lola? Ah, qual é, Pati! Admite que você se interessou
por ela, pô! – Mariana diz, vendo a expressão facial da esposa se alterar ao
ouvir aquilo, indignada.
– Não foi nada
parecido, Mariana – Patrícia dá uma fungada e seca uma lágrima com o dedo.
– Mas rolou uma
atração – Mariana insiste – Eu sei ler as coisas, Patrícia, sei ler as cenas, leio
as pessoas, você.
– Uma atração
boba, sim – a resposta sai bem baixinha – Mas...
– Sem “mas”! –
Mariana interrompe – Grata por finalmente admitir! Jamais admita isso para a
Tati, mas agradeço sua sinceridade comigo.
– Eu amo você –
Patrícia diz, na defensiva.
– E eu te amo também.
Amo a Tati. Acredito no seu amor. E, Pati – ela espera Patrícia encará-la – ...não
acho que o Nonô lambeu óleo. Ele não tem o hábito de fazer essas coisas.
– Eu sei, mas...
É que parece que o meu inferno astral não vai embora nunca, parece que não
termina, aí comecei a surtar pensando na possibilidade de ter feito algo, de
ter prejudicado... o Percival, você, a Tatiana... nós... – ela continua
listando – Nunca imaginei uma vida nesses moldes, nesse formato de trisal, mas
a partir do momento que te conheci, hoje eu sei do que preciso para viver bem e
ser feliz. E meu mundo ideal tem a gente casada, tem o Nonô com saúde...
– Está tudo bem,
meu bem – Mariana a abraça e a consola com um afago nas costas. Só ao fazer o
movimento é que ela viu a câmera de segurança presa no teto e torceu para que aquilo
não captasse som.
– Ah, sua amiga
Catarina está aqui. Estava trabalhando na recepção, quando cheguei – Patrícia
comenta, ao ouvir a porta do consultório se abrindo lá dentro – Achei que ela só
era social media! – o complemento veio num cochicho.
– E é! Mas ela é
vizinha da Frida, também. Deve ter vindo para ajudá-la, não foi você mesmo quem
disse que ela ia tirar férias do trabalho? – Mariana se levanta assim que as
mulheres entram na recepção, com Percival aninhado nos braços de Catarina.
Pegou seu filho no colo e cumprimentou as duas com um abraço breve, depois de
um beijinho no rosto.
– Frida? –
Patrícia se pergunta, lendo no uniforme da veterinária o nome “Érica”. Aí reparou
nas sobrancelhas dela e entendeu o apelido.
– Oi, meu amor! –
Mariana cumprimenta o gato, abraçando-o depois de uma verificada rápida, atrás
de algum sinal de problema ou doença – Oi, meu benzinho! Oi, meu querido, o que
houve com você, hein? Me conta, meu Nonô... – ela dá uma fungada atrás de uma de
suas orelhas e o gesto a faz espirrar logo em seguida, duas vezes.
– Mari, o Jujuvenal
está bem – Frida informa, afagando a cabeça do gatinho – Colhi um pouco de sangue
apenas para nos certificarmos, né, descartarmos a possibilidade de ter algo
sério, mas aparentemente ele só se engasgou com uma bola de pelo, mesmo. Fiz um
exame completo e não vi nada.
– Ai, que bom! –
Mariana suspira – Eu imaginei, mas é ótimo ouvir isso! – ela espirra de novo –
Já faz uns dias que eu pretendia vir aqui te ver, as vacinas dele estão
atrasadas...
– É, eu vi! Até
estranhei, você nunca deixou isso acontecer – Frida lhe entrega o cartão de
vacinação de Percival – Mas relaxa, agora está tudo em dia, de novo. Apliquei até
a vacina de raiva, fica tranquila. Ele é tão bonzinho que nem reclamou! – a
veterinária volta a afagá-lo.
– Ah, agradeço,
Frida! – Mariana apoia Percival no sofá, depois de espirrar novamente – Eu
tenho trabalhado muito, ando sem tempo nenhum. Minha vida está uma loucura.
– Mari, a
empresária das tecnologias – Frida ri, dando uma olhadinha para Catarina, que
riu também como se alguma piada interna tivesse sido contada – Mas que bom,
motivo nobre.
– Esses dias a
gente estava lá em casa lembrando daquela época que você trabalhava com
telemarketing, lembra? – Catarina pergunta – Lá na República?
– Credo, sim –
Mariana responde, mas ri também – Você saía com aquela doida, né. Como ela se
chama mesmo?
– Soninha –
Frida responde.
– Essa, “Soninha
Trambiqueira”! – Mariana ainda estava rindo quando aspirou o remédio da
bombinha de asma. Então deu um sorriso para a esposa, sem saber como integrá-la
à conversa porque Patrícia não conhecia muito do seu passado.
– Nossa, é
verdade – Frida agora ri da cara de Catarina – Por onde será que anda a
Trambiqueira, hein? Desenterrou esse apelido, Mari!
– É, sei lá, na
real nem foi disso que a gente lembrou, mas deixa quieto – Catarina se faz de
ofendida, mas ri no final.
– Tá certo,
senhoras. O papo está ótimo, é sempre bom vê-las, mas preciso trabalhar –
Mariana olha para Patrícia e depois para Percival.
– Ô, Mari! Antes
de você ir... – Catarina diz, com um sorriso amarelo – A Frida disse que aquele
computador ali da recepcionista está com vírus... você daria uma olhadinha, por
favor? Cê é especialista, né!
– Não nisso, mas
claro – Mariana vai para trás do balcão, seguida por Percival. O gato não tinha
tossido nem uma única vez, desde o susto com as picadas das vacinas – Que vírus
que deu, Fridinha?
– Ai, sei lá, menina.
A internet parou de conectar do nada... – Frida diz.
– Essa internet?
– Mariana ri. Nunca tinha resolvido nenhum problema tão rápido. E nem com tanta
facilidade: só teve que conectar o wi-fi.
– Nossa, como
você fez isso? – Frida pergunta, encantada com a astúcia da amiga. Ela já tinha
até considerado jogar o computador fora, e em um segundo Mariana resolveu o
problema. Literalmente em um clique – Arrasou, Mari! Nem precisa pagar a
consulta, grata – ela resmunga, imediatamente se desligando de seu entorno.
Ainda que estivesse apreciando muito
a rica oportunidade de conhecer Mariana em sua versão “mulher casada”, e sua
linda esposa, a mente de Frida estava a milhão, criando cenas em que o pedreiro
sozinho em seu apartamento quebrava até o chão do seu quarto. Ela já tinha
pensado até no prédio caindo!
Por isso, Frida se desligou por um momento do diálogo entre Mariana e
Catarina, que continuou, agora com a participação especial de Patricia, A Bela,
e acessou o WhatsApp web para ler a mensagem enviada por Jaime. Em tela cheia, Frida
abriu a foto daquilo que, segundo o boca mole do porteiro, tinha provocado o
entupimento do cano na área de serviço, que para sua alegria permanecia com o
chão intacto.
– Ah, achei minha
meia que tinha sumido...! – Frida diz, num suspiro.
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