A sessão (conto erótico)

   Essa é a sexta história da terceira temporada da Novelinha <3 

Se ainda não leu a quinta, "3xTPM - O aniversário", clique aqui.

  

O dia ainda estava amanhecendo, com os primeiros raios de um sol tímido iluminando fraquinho os azulejos da parede da cozinha, de um jeito quase sublime. As manhãs eram definitivamente as preferidas de Estela, sincera apreciadora de uma boa luz, em especial a natural. Sem perceber, começava bem cedo a registrar, primeiro com o celular, cenas que depois nem via, por exemplo, o feixe de luz que banhava o armário debaixo da pia.

Depois o Google era o responsável por trazer aquelas recordações, um ano mais tarde, em montagens automáticas do que chamava de “imagens semelhantes”. Pobre criatura eletrônica e sem coração! Categorizava como igual aquilo tudo que era tão diferente; cada clique é especial e único, afinal, nenhuma manhã se assemelha à outra. E em um segundo tudo muda: a luz, o enquadramento e até a disposição em fotografar, que igualmente afeta o resultado final.

Estela era uma mulher de fases. Em determinadas épocas do ano, como agora, por volta das 5h40 ela gostava de apreciar o reflexo do sol que batia no puxador do móvel, reproduzindo um efeito psicodélico com diversas luzinhas dançando nas paredes e no teto, numa festa que a fotógrafa fazia questão de estar presente. Tirava milhares de fotos que de cima a baixo focavam na fumaça, testemunha ocular de todo o evento, quiçá convidada especial!

Fumante desde a adolescência, Estela deixava o cigarro contra a primeira luz da manhã, que a depender da direção do vento (e seus assopros) produzia movimentos únicos, captados pela máquina presa em cima de um tripé, disparando em sequência uma média de 3,5 fotos por segundo. Era fascinada por fumaças! O som das fotografias nessas horas soava como música para seus ouvidos e ela bailava junto do sol nascente. Não porque acordasse sempre feliz, mas quem é que consegue ser triste vendo beleza onde mais ninguém vê?

Analítica, Estela conseguia acessar nesses momentos um estado profundo de imersão em si mesma, quase meditativo, considerando que até seus pensamentos mais recorrentes sempre se calavam, provavelmente também admirando ao maravilhoso e incrível espetáculo matinal. Talvez por isso o evento soasse tão mágico. A gente fica leve quando se despe de quem se é.

A fotografia exercia esse poder sobre Estela: era capaz de fazê-la mergulhar de corpo, mente e alma nos registros que captava, quer em casa, quer no trabalho. Desligava-se simplesmente, se concentrava e capturava para sempre o que suas lentes alcançavam, como se sua câmera fosse a extensão de seu corpo. Sentia-se uma artista nessas horas, mas do tipo poeta. De um jeito maluco, tinha a certeza de escrever poemas com suas fotos. Era assim que as considerava.

Desta forma, se valia da excentricidade artística como quem usa uma capa de invisibilidade e deliciava-se com o enorme prazer em não mostrar essas imagens para ninguém. Compartilhava com o mundo, é claro, tudo o que fotografava em troca de algum ganho financeiro, quando havia um contrato por fora. Era assim com as fotos do jornal Conexão Sáfica, que recebiam integralmente seus créditos, e era assim também com as demais, de todos os variados freelas que fazia com sua máquina a tiracolo. Com relação a essas, não havia apego algum. Quanto às demais, olhos nenhum sequer chegavam perto. Inclusive os dela, em alguns casos.

Mesmo assim, mantinha no computador diversos álbuns com fotos específicas. Havia um, por exemplo, só com as manhãs em sua cozinha, outro com registros sequenciais da árvore plantada no quintal de seu trabalho, outro exclusivo com imagens de chuva, havia um só com flor e por aí vai. Organizava tudo porque se sentia impelida a isso. Porque era sistemática, metódica, uma boa virginiana.

Sua rotina era iniciada quase sempre da mesma forma e evoluía facilmente da fotografia na cozinha para um momento de pura reflexão, quando então Estela enchia sua caneca térmica preta com um perfumado café expresso, duplo, e ia saborear a bebida bem quente apoiada no portal da entrada da sala, de frente para a pequena varanda que abrigava todos os seus cinco vasos de planta.

A vista era tipicamente a de uma cidade metropolitana: tudo o que havia de cenário eram prédios de tamanhos e cores variados, aglomerados numa aparente desordem, com a rua pequenininha lá embaixo, pulsando com o deslocamento contínuo de automóveis e pessoas, em todas as 24 horas dos dias. Os movimentos nos edifícios também se davam a qualquer hora e Estela gostava de tomar café ali, contemplando as janelas dos vizinhos e a vida de alguns moradores. Tão estratégico quanto o tripé da câmera fotográfica, que ficava na cozinha, na sala ela deixava um banco de madeira só para essas horas. Em um dos pés havia uma bolsinha de crochê amarrada, que guardava um maço de cigarro e um isqueiro. Vermelho, como todos os outros.

Aquele era só mais um dos vários locais que ela deixava nicotina armazenada e à mão. Gostava de praticidade e facilidade na hora de fumar, e cada cômodo a ocupava de uma maneira diferente, de modo que Estela tinha espalhado pelo apartamento diversos “pontos de Marlboro”. Nisso havia bolsinhas de crochê, caixinhas de madeira, estojos coloridos... todos com o mesmíssimo conteúdo. Já os cinzeiros, por sua vez, eram variados e sortidos, e nenhum se repetia. A maioria vindo de lojinhas de R$ 1,99 e catálogos de revista, onde ela amava comprar bugigangas.

Nesta manhã, sentada de frente para as plantas que há dois dias pediam por água, Estela estava com a cabeça em outros cantos. Como nos dias anteriores, acordou pensando em Nicole.

Desde a noite do baile da Agência Rubi no restaurante O Bistrô que elas não se viam. Em verdade, aquela foi a primeira e única ocasião em que se falaram realmente, muito embora fizesse tempo que Estela reparasse em Nicole. Que era uma mulher deslumbrantemente linda, impossível não notar!

Sua expectativa era encontrá-la nesta manhã de domingo, pois duas corridas estavam programadas para ocorrer na cidade, uma com cinco e a outra com 13km de percurso. Torcia para ter escolhido a prova certa para trabalhar como fotógrafa freelancer. Optou pela mais longa que, ainda que demorasse mais para acabar, pagava melhor por cada hora trabalhada debaixo do sol quente. Mas não só isso: acreditava que essa também tinha sido a escolha de Nicole, que marcava presença em corridas de rua pela capital.

Estela sempre a via no meio da multidão, estivesse trabalhando no chão ou em cima de alguma ponte. Encontrá-la era meio que um jogo do tipo “Onde está Wally?” e seu olhar apurado virava ferramenta nessas horas. Como se fizesse parte do trabalho, só sossegava quando a via em direção à linha de chegada, o que era um desafio e tanto, a depender do evento e da quantidade de inscritos. Mas a corredora se destoava do resto da massa, que faz questão de posar para os fotógrafos pelo caminho – tem até quem pare, no meio da corrida, só para sair nas fotos. Só que Nicole, não. Verdade seja dita, ela se escondia das lentes. Fugia, desviava, se ocultava de alguma maneira, atrás de alguém, atrás de um poste, corria para a calçada.

Não era nada pessoal, ao que parecia. Nas conversas que antecediam as provas, já tinha ouvido colegas comentando que Nicole costumava até a tampar seu número de inscrição na camiseta, só para se esconder das câmeras. Mas Estela nunca disse nada nessas ocasiões porque ninguém por ali sabia que a jovem corredora era sua crush.

Ela própria tinha certa dificuldade em admitir isso, ainda que só para si mesma (imagine para terceiros!). Inclusive porque falar assim soava um tanto quanto juvenil, algo que Estela não era já há algum tempo. Ao menos não se sentia mais. E mesmo na puberdade não era dada a namoricos, nunca foi de se apegar, sempre se envolveu brevemente com as pessoas que porventura cruzaram seu caminho. Nenhum compromisso propriamente dito jamais foi firmado – e tudo bem! Relacionamentos estiveram os anos todos bem distantes de seu radar, focado noutras coisas. Foi uma questão de escolha e era o que se dizia quando eventualmente se perguntava do porquê de estar só.

Sem contar o fato de que realmente tinham tido apenas um dedo de prosa, como se diz no interior, e nada mais. Não sabia absolutamente qualquer coisa sobre Nicole, como admitir estar a fim de alguém desse jeito?

É que Estela a achava... exótica. Bonita, sim, certamente, sem dúvida, mas era algo a mais, transpassava o simples campo da beleza. Nicole parecia carregar um ar misterioso, acabava sendo provocativo. Englobava também o fato de ela fazer questão de se esquivar dos fotógrafos, o que contribuía para Estela querer muito levá-la até seu estúdio e despi-la com suas lentes. Literalmente e bem devagarzinho. Excitava-se com a ideia sempre que o cenário se desenhava diante de seus olhos, num fetiche bem explícito, quase tátil de tão realista.

E esse pensamento era recorrente nos últimos dias. Tipo uma obsessão, sim. Por isso, Estela depositou várias fichas de esperança ao se lembrar com o calendário do evento daquela manhã. Seria a oportunidade perfeita para conversar mais um vez com Nicole, que não parecia ter entendido suas indiretas, seu convite camuflado de palavras gentis, ditas estrategicamente ao pé do ouvido. Nenhuma mulher jamais resistia, mas acontecia de uma ou outra não entender.

Desta vez, Estela deixaria ainda mais claro seu interesse em levá-la até sua casa. Seria explícita, se fosse preciso! Só não sabia exatamente como faria isso, considerando que estariam no meio de uma corrida de rua. Pelas coordenadas recebidas por e-mail na noite anterior, seu ponto de trabalho ficava no topo de uma subida. Nicole era boa em subidas! Mesmo nas ladeiras mais íngremes, sempre se esforçava para fugir de suas lentes.

Bom, o fato é que, tendo a oportunidade, Estela se determinou a atraí-la de um jeito que ficaria impossível Nicole não se convidar para ir até o estúdio, e já naquela noite, para fecharem o fim de semana com chave de ouro. Estela tinha uma tática que funcionava sempre, por isso nunca chamava ninguém; a mulherada ia e tirava a própria roupa para suas lentes totalmente por livre e espontânea vontade. E quer saber? Ficavam todas sempre muitíssimo satisfeitas.

Ao sair de casa e trancar a porta, o rumo de seu raciocínio mudou só porque Estela passou a listar, a caminho do elevador, se todos os materiais necessários para o seu trabalho estavam dentro da mochila: a câmera, óbvio, duas lentes básicas, uma de longa distância, por conveniência, uma bateria extra carregada, papel e caneta, papel higiênico, um absorvente para eventuais emergências, o colete da FotA – Foto em Ação, a empresa para a qual prestava serviço, e seu crachá de identificação. Este já estava pendurado no pescoço quando Estela chegou à calçada.

O dia estava relativamente bom para fotos, claro, com algumas nuvens e um sol não muito intenso. Ao menos não ainda, às 6h15, horário que o relógio do canteiro da Rua Amaral Gurgel indicava, marcando 25oC. Estela caminhou em direção ao ponto de ônibus e de propósito não atravessou a rua. Parou perto da primeira esquina, a poucos metros da estação de metrô Marechal Deodoro.

– Bom dia, vou deixar aqui para quando você acordar – ela diz, se abaixando ao lado de um homem que dormia em cima de um papelão num canto da calçada. Estela colocou perto de sua cabeça três notas de R$ 2, enroladas, parecendo um canudinho.

– Grrr – o sujeito pareceu rosnar, ao sentir a presença de alguém. Por instinto, agarrou o punho da mulher com força, o movimento liberando um forte odor etílico, junto de outros cheiros.

– Calma, José! – Estela fala, tentando se desvencilhar, puxando a mão – José, sou eu. Calma – ela pede novamente, o movimento balançando o crachá pendurado à frente de seu corpo encurvado, despertando a atenção do mendigo e também de algumas pessoas que passavam por ali e ficaram olhando para eles. Levou alguns segundos até finalmente conseguir se soltar e, ao se ver livre, a fotógrafa massageou o pulso, que ficou dolorido – Deixei um dinheiro aqui para o seu café. Dá para um café e um pão. José – Estela o chama mais uma vez, ao ver o homem voltar a dormir, notavelmente embriagado – Tenta comer um pãozinho com café quando acordar, tá?

                O sujeito deu a impressão de rosnar mais uma vez, resmungando algo que Estela não conseguiu entender. Mas guardou o dinheiro no bolso da calça suja e rasgada, então ela pôde seguir caminho.

Estela atravessou o Minhocão passando por baixo do viaduto, desviando de várias pessoas que dormiam pelo chão, gente de todas as idades. Manteve o passo apressado em direção ao ponto porque ainda que fossem seres originalmente humanos, infelizmente sua experiência comprovava que às vezes, sob determinados efeitos, a gente vira um pouco bicho. É triste, mas para se resguardar, ela se prevenia e evitava se demorar por ali. Quando dava, até fazia caminhos alternativos, que eram um pouco menos tensos que aquele.

Pegou o primeiro ônibus que passou sentido Consolação porque sabia que muitas ruas estavam fechadas perto da Avenida Paulista, então qualquer linha serviria. A condução estava vazia e ela escolheu o banco mais alto, em cima do pneu traseiro. Se distraiu no percurso se questionando se tinha feito uma boa escolha ou se deveria ter optado pelo metrô. Tentou ver no Google Maps se já havia alguma atualização de trânsito, mas a internet ainda parecia dormir, como boa parte da cidade. Acreditava que, além dela, do motorista e do cobrador, só tinha saído da cama aquele pessoal cheio de energia e disposição que levanta cedinho, calça um tênis e vai correr. Que Estela admirava, mas não invejava. Não fazia o tipo sedentária, mas passava ao largo do tipo esportista.

Sua expectativa nesta manhã, por exemplo, era andar o menos possível, inclusive por ser uma subida (cansativo, né). Estela achava que ainda estava muito cedo para tanto esforço, gostava de se poupar. Divagando, apoiou a cabeça e ficou contemplando o cenário se mexer fora da janela, parecendo combinar com a trilha sonora que o Spotify fornecia em seus fones de ouvido. Ficou pensando no quanto adoraria ter a sorte de encontrar café quente na tenda dos fotógrafos. Da última vez serviram café fraco e morno, e a lembrança a fez contrair o rosto em desgosto. Ajeitou-se ao se ver refletida no vidro da condução.

Instantes antes de se levantar, dar o sinal e descer, Estela teve alguns segundos de um breve apagão porque por algum motivo achou que estava indo para o jornal, se esqueceu de que era domingo e o job era outro. Fez um gesto se desculpando com o ônibus, como se o veículo pudesse ler seus pensamentos confusos e desembarcou perto da Brigadeiro Luís Antônio, a uma quadra da tenda da FotA, que já estava bem movimentada, cheia de fotógrafo. Claro que não era nada comparado às tendas dos grupos de corrida, bem ao lado, agitadas como se fossem o pós-festa de uma balada muito boa.

Estela não gostava de ter de fazer social e por este motivo levantou a mão fingindo um cumprimento generalizado, a caminho da garrafa térmica, que ainda tinha café. Interagir com estranhos listava entre os maiores desprazeres que a vida em sociedade a forçava a ter, ela detestava. Mas ser freelancer de corrida não era de todo ruim porque além de ser um trabalho individual e silencioso, aquele era um ramo em que havia mais profissionais como ela: antissociais e lésbicas. Além de fumantes, o que soava muito contraditório em eventos esportivos, cheios de gente saudável. Mas se havia algo que Estela apreciava nessas horas era justamente o fato de ser contraditória! Tinha horror a ser igual a todo mundo.

– Veio de metrô? – Estela pergunta, em tom de “bom dia”. Sentou-se na guia e acendeu o cigarro apagado que a mulher sentada ali segurava com o canto da boca, antes de acender seu próprio cigarro. Ela estava de cabeça estava baixa e via algo no pequeno visor de sua câmera. Pareciam fotos da última corrida.

– Vim e foi um erro – Alina responde, depois de um trago profundo – Acabei de chegar. A linha azul estava com pane, os trens todos rodando com velocidade reduzida, a plataforma cheia logo cedo... enfim, o caos. O caos – ela repete, tragando de novo, de um jeito teatral, cerrando os olhos – Muita humilhação para uma pobre camponesa como eu.

– Fiz bem em vir de ônibus, então – Estela ri. Seu comentário saiu abafado em meio aos gritos de um grupo próximo a elas.

– Que povo animado, credo – Alina resmunga, mau humorada. Bateu a cinza do cigarro dando um peteleco no filtro com o dedão – Espero nunca virar esse tipo de gente...

– Não acho que exista esse risco, amiga – Estela ri novamente, mas faz uma careta quando a gritaria demora a cessar.

– Amém! – Alina une as mãos para o alto, como se rezasse. Só então olhou para Estela, que permanecia encarando de longe as pessoas que ainda gritavam – Você cortou o cabelo?

– Cortei, já faz um tempinho, sim – Estela leva a mão à cabeça, num gesto automático – Fui lá naquela barbearia que você me indicou, que só tem mulher. Adorei, galera super competente, as minas mandam muito bem! E uma mulherada bonita, né? Achei tendência.

– Sim, amo! – Alina dá mais uma tragada antes de se levantar, batendo a mão para limpar a poeira da calça jeans, rasgada no joelho – Inclusive estou saindo com uma gatinha que trabalha lá! A Camilinha, não sei se conhece...

– Não conheço...

– É uma de moicano, tal... Ela é toda tatuada, tem várias rosas desenhadas no braço esquerdo.

– Sei – Estela se levanta também. Pela movimentação ao redor da tenda, o trabalho ia começar. Os primeiros motoqueiros já partiam com os fotógrafos que trabalhariam mais afastados na garupa. Saíram vários buzinando, com estardalhaço – Quer dizer, não sei. Mas sei que gostei tanto do serviço que até indiquei para uma colega do trabalho essa semana. Ela estava lá reclamando que a cabeleireira dela se apaixonou e se mudou para outro estado.

– Típico – Alina dá uma risadinha, apagando o cigarro com a sola do tênis – Mas arrasou, serviço bom a gente tem que divulgar mesmo. Ainda mais nesse ramo, que é dominado por homens.

– Esse e praticamente todos os outros, né – Estela ergue as mãos, chamando a atenção para o fato de estarem cercadas de macho. Dois deles, perto delas, riam de um jeito espalhafatoso.

– É, ainda bem que pelo menos entre os corredores tem várias deusas. Eu adoro trabalhar em corridas! É meu melhor freela.

– Oi, Camilinha? – Estela finge falar ao celular, usando a bateria da câmera de telefone – Então, sabe a Lili?

– Besta – Alina diz, mas ri, dando um tapinha em seu braço – Ela não se importa e nós estamos saindo, não namorando. E mesmo que fosse um namoro, ainda assim ela não seria minha dona. Olhar não arranca pedaço. O que é bonito tem que ser admirado!

– Aham – Estela responde, rindo, já se afastando. Acenou com a mão ao se despedir, sem olhar para Alina, indo em direção ao ponto em que iria trabalhar, perto da linha de chegada. Sabia que quando se encontrassem de novo, na próxima corrida, retomariam a conversa a partir dali. Mesmo que a tal de Camilinha já fosse outra.

                Estela desceu algumas quadras caminhando no sentido contrário ao trajeto que os atletas fariam em breve, com a Paulista ficando para trás, às suas costas. As ruas na região estavam silenciosas e vazias, fechadas para o trânsito, e ela fez uma única pausa para tirar uma foto em preto e branco de uma senhorinha que passeava com um cãozinho poodle idoso, ambos num ritmo bem vagaroso. Atrás, um letreiro de uma loja dizia, em letras grandes: “BEM-VINDO AO NOVO!”. Ficou um belo registro!

A fotógrafa confirmou no mapa do celular quais eram as esquinas que lhe serviam de referência e ao constatar estar no local correto, no cruzamento da Alameda Campinas com a Itu, se sentou deliberadamente no meio da rua, em cima da faixa pintada e tracejada de branco, pouco acima de uma lombada. Em questão de alguns minutos os primeiros corredores já começaram a ser vistos, virando lá embaixo em direção ao local onde ela estava. 

Como sempre ocorria, Estela ficou atenta ao máximo de atletas possível, afinal, suas comissões vinham das fotos compradas por eles, então quanto mais gente conseguisse captar, maior era sua chance de lucrar depois. Mas também procurou Nicole, por hábito. Não sabia exatamente o que faria se a visse, porque um aceno ou um cumprimento qualquer não faria o menor sentido para alguém que passaria por ali literalmente correndo. E Nicole era rápida, tinha o pace baixo, era até difícil de acompanhar.

Estela se manteve a prova inteira sentada no chão, com a câmera apontada para cima e um dos braços apoiado no joelho. Os corredores iam passando por ela, desviando conforme a viam, a tempo de sua lente captar um por um, nas poses montadas, mas também naqueles flagrantes de cansaço que só uma boa subida propicia a pernas já cansadas. Estas eram suas imagens preferidas.

Em dado momento, já próximo do fim, Estela riu sozinha ao se lembrar do comentário feito por Alina, dizendo que este era o melhor freela que havia. A memória foi despertada depois que viu uma dupla de corredoras extremamente bonita, com seus corpos lindíssimos e sarados parcialmente cobertos por roupas de ginásticas com cores berrantes. Uma delas sorriu para a máquina, ao vê-la apontada em sua direção, e depois para a fotógrafa, após Estela abaixar a câmera para olhá-la. Realmente este era um trabalho incrível!

A ladeira já estava se esvaziando, com apenas alguns esparsos atletas de última hora ainda lutando contra o desafio da geografia no final daquele percurso, quando Estela sentiu a presença de alguém se aproximando e sentando-se ao seu lado. Manteve o foco da câmera em um sujeito um pouco acima do peso, que usava uma faixa roxa na cabeça e estava vermelho que nem um pimentão, e não se deu ao trabalho de se virar porque acreditou que era Alina quem estava ali.

Tinha visto na escala que a colega trabalharia perto da largada, ou seja, já estava liberada de seu posto há um certo tempo.

– Não basta a humilhação de ser o último da corrida, a foto do coitado ainda precisa ser exposta no site da FotA para todo o mundo ver.

O comentário fez Estela se virar para ver quem falava porque não só estranhou o tom de voz, de boca cheia, muito diferente do timbre de Alina, como principalmente o teor do que tinha sido dito. Assim como ela, a outra fotógrafa adorava capturar as expressões de dor e sofrimento que preenchiam os finais de prova. Superação que nada! O objetivo delas era rir!

Estela viu que realmente não era Alina sentada ali, mas sim Nicole, que ainda mastigava um pedaço de banana ao sorrir para ela, quando seus olhares se cruzaram. Na posição em que estava, a perna com a prótese de carbono se manteve esticada sobre a outra e uma poça já escorria em direção ao tênis verde-limão. A água vinha dela, que estava com a roupa toda molhada. O cabelo, amarrado no alto da cabeça, também pingava atrás de suas costas. Seus ombros se mantinham tapados com a camiseta, enrolada em volta do pescoço, e a peça também gotejava água e suor.

Ao vê-la, ainda sob efeito do choque provocado pela surpresa, a primeira vontade de Estela foi tirar uma foto de Nicole. Estava linda, emoldurada pelo céu azul, de um jeito que até então jamais havia visto. Estava com as bochechas coradas depois do esforço físico, seus olhos brilhando com a satisfação da competição já concluída, cada parte de seu rosto iluminado pela liberação dos hormônios ligados ao bem-estar. Seu sorriso, sexy, meio de lado, especialmente formado para o prazer e deleite da fotógrafa, foi o que pressionou seu dedo no disparador. A câmera foi quem registrou a cena que capturou seu olhar naquele instante. Foi impossível desviar o foco.

– Eu não vi você – foi o que Estela conseguiu dizer. O comentário soou bobo e por isso ela desviou-se para os retardatários da corrida, se fazendo de ocupada. Não especificou se estava se referindo a antes ou agora.

– Eu vi, até acenei para você – Nicole dá uma risadinha, comendo o último pedaço de banana. Começou a descascar outra antes de voltar a falar, ainda mastigando, a mão esquerda tampando a boca cheia – Foi a primeira vez que te vi numa corrida, achei coincidência.

                Nicole não fala mais nada e seu breve silêncio faz Estela olhar outra vez em sua direção. Pareceu que seu sorriso estava agora coberto de malícia, o que quase a fez tirar outra foto. Não tirou porque foi um gesto muito breve, se desmanchou depois que Nicole deu uma mordidinha sutil no lábio inferior, meio que querendo se conter.

– Nos últimos dias venho pensando naquela nossa conversa, lá no baile – Nicole então diz – No convite que você me fez – ela abaixa a voz.

– Ah, sim? – Estela resmunga, vendo lá embaixo na rua a equipe de trânsito recolher os cones e cavaletes, liberando a via.

– Me parece ousado... ir para a casa de alguém que não conheço e tirar a roupa, sem mais, nem menos... mas já fiz tanto isso com esses aplicativos de pegação... – Nicole ri – Eu entendi que não vamos nos pegar! – ela se apressa em dizer e ri de novo, de um jeito diferente.

– Não se não quisermos – Estela puxa a mochila para o colo e começa a desmontar e guardar seus instrumentos – Digo, não é uma regra. Você pode ir só para ser fotografada, que é o objetivo principal.

– Está certo.

– Hoje? – Estela se levanta do chão e oferece a mão para que ela fique em pé também.

– Hoje? Eu adoraria – Nicole diz, com o rosto bem perto do dela. Eram praticamente da mesma altura, mas ainda assim ela abaixou os olhos para olhar a boca de Estela, de um jeito que a fez se contrair sem querer. Então mordeu o lábio novamente, antes de continuar a falar – Anota aí meu número, me manda a sua localização e o horário que eu estarei lá, dona Estela. Como devo mesmo te chamar?

– Senhorita L. – Estela responde, sorrindo porque Nicole respondeu junto com ela.

– Senhorita L. Isso – Nicole assente, olhando novamente para a boca da fotógrafa. Pareceu que só mais um segundo e elas se beijariam ali mesmo, no meio da rua – Até mais tarde, Senhorita.

– Até... – Estela suspira, vendo Nicole girar nos calcanhares e caminhar sentido Avenida Paulista, sem pressa. De costas também estava linda, com um short soltinho e top, a camiseta ainda sobre os ombros. Mesmo a distância deu para notar que seus músculos eram bem definidos. As fotos iam sair incríveis, sem dúvida.

                Estela decidiu voltar para casa de metrô, por preguiça de ter que andar até o ponto de ônibus. Na primeira baldeação entre as linhas, mandou seu endereço para Nicole enquanto andava. Estava bastante satisfeita com o desenrolar dessa história e sorriu diante da expectativa de amarrá-la e fotografá-la nua. Bondage e fotografia eram uma combinação perfeita! Tipo café e nicotina.

Enquanto a fotógrafa se ocupou à tarde transferindo as imagens do cartão de memória da câmera, fazendo o upload para o site da FotA, não muito longe dali Nicole descansava estirada em sua cama, depois de tomar um merecido banho e devorar uma marmitex inteira de almoço. Sentindo a brisa do ventilador virado para o teto, fumou um baseado inteiro pensando em chocolate. E em Estela.

Não tinha ideia de como deveria se vestir para um encontro cujo propósito era justamente se despir. Porque não era uma tiração de roupa qualquer; esta seria a primeira vez que participaria de uma sessão de fotos. E de bondage.

– Que desprendimento, hein, Nicole... – ela se diz, soprando a fumaça em direção à janela aberta – E que ousadia, a mulher vai te amarrar, garota!

                O pensamento a fez rir porque era preciso mesmo muita intrepidez para encarar tudo aquilo. Sua experiência com a prática era absolutamente zero, nem vídeo pornô com essa temática ela tinha o hábito de ver, tamanho o abismo que havia. Mas ainda assim era uma ideia excitante. Durante a conversa que tiveram no baile, os olhos de Estela faiscaram ao revelar a existência de um estúdio em sua casa, preparado especialmente para este fim. O que quer que isso realmente significasse de verdade.

                Em partes, a curiosidade era o que a movia mais, mas pensar nisso tudo também a deixava bastante excitada. Nicole não costumava praticar atos de dominação ou submissão, mas sempre se enchia de tesão quando porventura lia algo que envolvesse isso (na literatura lésbica o que não falta é história embrulhada em temas picantes como este). Além de que, sempre há a primeira vez para tudo, não é mesmo? Prova disso é que ela jamais disse “desta água não beberei” porque sempre considerou que havia uma possibilidade de “beberei”. Remota, porém real.

Por volta das 18h, quando já estava se preparando para sair, deu uma última verificada no trânsito, para decidir como chegaria ao apartamento de Estela. Ela morava perto dali, mas numa área bem ruinzinha para passar sozinha, por isso descartou ir de metrô, ainda que fosse a maneira mais rápida e mais econômica.

Checou seus e-mails, antes de desligar o laptop emprestado pela tia, só por desencargo de consciência. Sabia que Mariana estava de folga hoje e por isso não encontraria nenhuma mensagem nova.

No dia anterior tinham feito um corre juntas, foram várias surpresas de manhã até a tarde. Primeiro ela conheceu a casa da chefe e suas lindas esposas. Depois Mariana a levou ao apartamento de uma ex, que magicamente resgatou arquivos importantes no HD estragado de seu computador, enquanto fumavam um. Brisa boa! Não só porque evitou que todo o projeto desandasse como também a fez até sonhar com um quadro que agora ela precisava fazer! Amanheceu se sentindo a própria Alice Pieszecki num The L Word da vida real; numa novelinha sapatão com o trisal TPM no centro e Mariana estabelecendo a maioria das conexões do quadro. Talvez fizesse no Corel.

Ao acordar naquela manhã, sua programação era terminar o dia organizando parte do trabalho da próxima semana, como gostava de fazer aos domingos à noite. Esta era uma rotina que tinha aprendido cedo com a chefe, que também era viciada em trabalho, assim como Nicole. A organização não era um detalhe para elas. Mas o fato de Mariana estar off-line o dia inteiro por conta de um compromisso pessoal soava como uma brecha para que ela fizesse o mesmo. E sem culpa!

Por este motivo, deixou suas preocupações laborais de lado e se vestiu com seu melhor sorriso, ao tocar o interfone no endereço de Estela, cerca de 20 minutos depois de ter saído de casa. O Uber até o local custou só R$ 8,43, mas o motorista não fez a gentileza de esperar que ela entrasse, para então partir. Sozinha na calçada enquanto aguardava, Nicole se preocupou porque ali era uma região perigosa, com alto risco de assalto. Depois de um dia inteiro ansiosa para entrar na casa de Estela, não imaginou que sentiria medo antes disso.

– Ei, você vai na casa da Estela? – um homem pergunta, a poucos metros, ao vê-la parada ali – Hein? Você vai na casa da Estela? Vai? – ele insiste, falando ainda mais alto, depois que ela não respondeu. Estava sentado em cima de um papelão e tinha no colo uma caixa cheia de papel dobrado e diversas fotos, várias delas rasgadas – A vizinha da Estela se separou, você sabia? A Maria Lúcia – o cara diz, lendo o nome em um dos papéis, depois que Nicole balança a cabeça. Não porque quisesse papo, mas teve receio de não responder e isso fazê-lo se levantar e vir até ela – Foi traição! – ele revela, levantando um dos papéis, mostrando se tratar na verdade de uma antiga cartinha de amor – Não adianta, tudo vira ruína quando rola chifre. Compromisso tem que ser sério!

Sua tosse alta foi ouvida junto com o som da porta finalmente sendo aberta lá de cima, o que fez aumentar a agitação dentro de Nicole, agora pelo motivo certo. Ela então fez um gesto para o homem, como se pedisse licença, e entrou sozinha no saguão escuro do edifício.

Estela a esperava na porta, quando o elevador se abriu no corredor vazio, alguns andares acima. Vestia um short jeans, uma camiseta regata branca, estava sem chinelo e nitidamente sem sutiã. O decote revelava que no meio dos seios ela tinha um alce tatuado, e os chifres subiam pelo peito, em direção aos ombros. De sua mão saía um rastro de fumaça, vinda do cigarro aceso entre seus dedos. Aquele era o cheiro predominante de sua casa, que era arrumada e contava com uma decoração que incluía muitas fotos pregadas e emolduradas em praticamente todas as paredes.

– Uau – Nicole diz, entrando no apartamento, após cumprimentar Senhorita L. com um beijo no rosto. Seus olhos pulavam de fotografia em fotografia, deslumbrada com o que via. A mulher era ótima no que fazia! Dava para ver movimento naquelas imagens estáticas.

– Seja bem-vinda! – Estela diz, acostumada a ver aqueles registros. Na sala concentravam-se os de paisagem e natureza morta, mas havia também pessoas em cenários bonitos – Achou aqui fácil?

– Sim, tranquilo. Vim de Uber, me pareceu meio perigoso descer de metrô, já está de noite... – Nicole senta no sofá apontado por Estela e a observa puxar um cinzeiro metálico para cima da mesinha de vidro no centro da sala, segundos antes de sentar-se ao seu lado.

– É, aqui é foda. Eu evito ao máximo, também, não saio sozinha quando está escuro, nem fico dando bobeira na rua. Já até cogitei de me mudar, mas aqui é meu lar, já está tudo reformado e adaptado, acaba sendo o preço para morar num apartamento legal...

– Sua casa é muito legal, mesmo – Nicole olha em direção à janela, e se distrai vendo que até naquela parede havia fotos.

Estela a observou subir o olhar para as demais fotografias, que praticamente chegavam até o teto. Então viu seu rosto se transformar um pouco, ao encontrar acima de suas cabeças alguns dos ganchos que havia pelos cômodos. Pela expressão que ela fez, não achou necessário explicar a utilidade daquilo.

– Eu queria te perguntar quantas mulheres você já pendurou nisso – ela aponta para o teto, os olhos fitando a dona da casa. Em seu olhar havia mais expectativa que apreensão.

– Algumas. Não foram muitas – Estela ri. Acreditava que esta era uma boa resposta, provavelmente por ser pouco específica – Você gostaria de conhecer o meu estúdio?

                O convite soou provocativo, combinou com o sorriso malicioso e pontual que ela deu. Nicole segurou a mão estendida em sua direção, entrelaçando seus dedos nos dela.

– Sua vizinha terminou o namoro. Parece que rolou uma traição – ela repete a informação dada pelo morador de rua, puxando papo. Não que fosse o melhor momento para falarem amenidades, mas Nicole estava nervosa. O silêncio e a expectativa provocaram repentinamente uma inquietação nela.

– A Malu, sim – Estela ri, olhando rapidamente para trás, por cima do ombro – Ela e a namorada quebraram o pau ontem à noite. Como você sabe disso?

– O morador de rua lá embaixo me contou, enquanto eu esperava na calçada. Acho que ele encontrou algumas correspondências no lixo, aí estava lendo cartinha delas.

– Ah, o José! – Estela fala, acendendo a luz do corredor. O chão era de taco de madeira, daqueles bem antigos, e tinha cheiro de lustra-móveis – José é tipo o guardinha da rua, sabe de tudo o que se passa aqui no prédio, acaba sendo um bom vigia. Quando está sóbrio, claro. É raro, mas acontece.

– O José! – Nicole repete, apontando para uma das fotos, enquadrada perto do interruptor. Na imagem, o homem sorria sentado exatamente onde estava agora há pouco, mas parecia muito mais jovem, mesmo todo em preto e branco.

– Sim, e esta aqui é a Filó, que costumava ficar com ele – Estela aponta para a imagem logo ao lado. Para as lentes da fotógrafa, a cachorra malhada parecia sorrir.

Aquela era a única foto de cachorro que havia nas paredes, mas Nicole não teve a oportunidade de perguntar o porquê disso, pois neste instante Estela acendeu a luz do estúdio, no fim do corredor, o que simplesmente silenciou todos os seus pensamentos. Não tinha projetado nada e se surpreendeu talvez por isso.

O cômodo era sem janelas e muito espaçoso. Tanto que Nicole até imaginou que provavelmente na planta original ali havia dois quartos antes de o local se tornar um estúdio. Em contraste com o resto da casa, apenas uma parede exibia algumas poucas fotos, todas de bondage; em todas as outras o que preenchia era somente a tinta branca e nada mais. Bem intimista e sem a menor chance de alguém de fora ver o que se passava por ali.

No meio do estúdio, vindo do teto até metade do chão, Estela tinha colocado um fundo de chroma key de várias cores, com o preto por cima, ladeado por refletores de três tamanhos diferentes, além de um rebatedor (ou o que Nicole supôs ser um rebatedor). Um banco redondo, bem no centro do tecido que parecia lona, abrigava meia dúzia de cordas e vê-las ali a excitou. Inclusive porque combinavam com outras que estrategicamente já desciam do teto em direção ao chão, presas em ganchos semelhantes aos que tinham na sala, mas ali havia também algumas roldanas.   

– Está quente aqui, né? – Nicole comenta, em tom de brincadeira, se abanando com a gola da camiseta. Seus calores neste momento eram infinitos e variados, já estava cheia de tesão.

– Vamos resolver isso – Estela responde, sua voz seguida pelo apito do ar-condicionado sendo ligado – Posso tirar sua blusa? – ela emenda, perguntando bem perto do ouvido de Nicole, que não respondeu, mas ergueu os braços ao sentir a peça já sendo retirada.

                Nicole na verdade se deixou ser conduzida pela fotógrafa, que a despiu inteira da cintura para cima antes de pegar a câmera apoiada num tripé perto da porta. Com o olhar, a acompanhou observá-la seminua, seguindo seus olhos até um dos mamilos, que se intumesceu ao se sentir analisado. Desejou ardentemente nesse momento que Estela a tocasse, mas a mulher se conteve a apenas olhá-la.

– Está confortável? Podemos começar? – ela pergunta, empurrando uma mecha da franja de Nicole para trás de sua orelha. O toque contornou o lóbulo e seu dedo deslizou pela lateral do pescoço, se depositando na base de seu ombro. Ela sorriu ao reparar que o gesto a arrepiou – Em geral as sessões levam cerca de duas horas. As fotos costumam ser tecnicamente rápidas, mas eu demoro para amarrar.

                Junto com o comentário, Estela puxa de cima do banco um dos novelos de corda, desenrolando-o até o chão. Então sorriu para Nicole, num convite para que terminasse de se despir, o que ela fez prontamente. Ainda que fosse uma quase estranha, Estela a deixou à vontade o suficiente para que Nicole entregasse em suas mãos o que ainda lhe cobria. No caso, sua calça de tecido fino estampado e a calcinha preta de algodão.

                Ao ficar nua, a mulher a circundou algumas vezes, procurando por tatuagens, piercings, cicatrizes e possíveis marcas ou sinais de nascença. Estela acreditava que os detalhes eram o que compunham uma pessoa de verdade e sempre fazia questão de deixá-los no foco de suas fotos. Apreciava a singularidade de cada mulher que se desnudava para ela, o que ia muito além de simplesmente ficarem sem roupas.

Embora Nicole tivesse uma perna mecânica, Estela buscou por peculiaridades que fossem características exclusivamente dela, antes de começar a amarrá-la com uma corda encerada. Por exemplo, uma verruga que ela tinha no meio das costas e uma cicatriz perto da costela. Na análise, escaneou também seus músculos mais tonificados.

                Nicole se manteve o tempo todo em silêncio, se limitando a se movimentar diante das orientações de Estela, que demonstrou domínio completo sobre o que fazia enquanto a amarrava, sem nenhuma pressa. O único som que ouviam era de sua respiração, agitada com o esforço de prendê-la.

Em poucos minutos, o clique da câmera fotográfica finalmente começou com sua tão aguardada melodia. A primeira sequência de fotos foi apenas das mãos de Nicole unidas para a frente, com os dedos espalmados, os punhos bem presos pela corda que deu voltas nos dois pulsos, se trançando no meio do antebraço. Empinada sobre o banco, a posição impelia seus seios a se unirem forçadamente e seu colo saiu em parte das fotos, emoldurado por cordas e braços.

Pelo visor, Nicole viu que as fotografias não tinham cor e dali achou que o anel de coquinho que usava no polegar, seu único adereço, combinava com o fundo preto do estúdio da Senhorita L. O conjunto parecia arte. Ela própria parecia arte!

                A segunda sequência foram fotos de suas costas, depois que seus braços foram amarrados para trás, com as mãos presas agora de um jeito diferente, sem tantos nós, mas com os dedos cruzados, encostados no alto da bunda. Os braços foram amarrados à cintura, o que a forçava a ficar numa postura bem ereta. Estela a sentou no banco e prendeu outra corda na altura das axilas, trançando uma parte acima e outra abaixo dos seios, que de repente se viram contidos pelas amarrações. Uma terceira corda interligou as duas primeiras, fazendo voltas pelas virilhas, e Nicole foi fotografada aberta em cima do banco.

                Tão prazeroso quanto ser amarrada foi ser solta na sequência, sentindo partes específicas do corpo latejando com a normalidade da circulação sanguínea, embaixo de vergões que já marcavam a pele, ainda que não doesse. As posições não eram exatamente incômodas, mas poder voltar a se mexer é sempre bastante aliviante e agradável. Ao passar a mão em volta dos punhos, a região mais sensível até agora, Nicole ouviu a câmera fotografá-la mais uma vez. Percebeu então que Senhorita L. era realmente atenta a detalhes e suas sessões de foto e bondage incluíam registros de vários tipos e diferentes ângulos.

                Seus minutos desamarrada, porém, duraram pouco porque com uma única corda Estela a prendeu de novo, começando agora pelo pescoço, fazendo nós que desciam pelo centro do tronco, dando voltas por trás, nas costas, e emendando em novos nós, no dorso. As amarrações eram todas bem feitas e a força de Estela para prender as cordas fazia Nicole mexer com o corpo sem querer.

A última laçada, na altura do umbigo, imbricou numa ponta dupla que desceu cintura abaixo, trançada pelo meio de suas pernas, não mais pelas virilhas. Ao sentir o calor de sua mão ali, tão perto e ao mesmo tempo tão distante, Nicole se contorceu e deixou escapar um gemido baixinho, desejoso. Mas novamente Estela não a tocou, não da forma como gostaria, e se concentrou em fazer a terceira sequência de fotos.

                A esta altura o tesão de Nicole já estava nas alturas, fervilhava, mesmo sem receber as carícias que julgou apropriadas e pertinentes para o momento. E Estela percebeu isso, quando passou a última corda e a sentiu já toda molhada, fazendo com que se demorasse mais por ali de propósito, sadicamente. O banco em que Nicole estava sentada ficou carimbado depois que ela se levantou, o que comprovava que aqueles eram métodos eficientes para provocá-la e instigá-la.

                Estela gostava de torturar. Adorava provocar e testar os limites de uma mulher excitada. Por isso repetiu os nós feitos na frente agora às suas costas, com outra corda, para fazer a quarta sequência. As fotos dispararam flashes e o coração de Nicole, que não disse nada, mesmo após Estela puxar do teto uma corda lisa, presa a um gancho parecido com aqueles de alpinista. Senhorita L. prendeu ali duas cordas, sendo que a maior foi a que amarrou os braços de Nicole para trás, agora de outra maneira, de modo que suas mãos é que prendiam seu próprio antebraço.

                Outras duas cordas, parecendo aleatórias, subiram e desceram ao longo das pernas, mantendo suas coxas unidas por uma laçada completa, firme. Daí, inesperadamente Nicole foi içada para cima, com a barriga voltada para baixo. Com um puxão em uma das cordas, Estela a fez tirar de repente os dois pés do chão ao mesmo tempo, ficando completamente pendurada, o peso sustentado em partes variadas do corpo agora praticamente na horizontal.

Seu tronco era o que a prendia ao teto, mas todas as cordas pareciam importantes para mantê-la naquela posição. O som da câmera demorou mais a parar desta vez, talvez porque a pose era boa, e só pausou por um breve momento, suficiente apenas para que a fotógrafa soltasse suas pernas antes de amarrar seu pé à corda que unia suas mãos. Desse jeito, além de pendurada, Nicole ficou também com as pernas abertas, seu corpo parecendo um arco encurvado.

Para soltá-la, Estela tomou o cuidado de primeiro desprender sua perna direita, que Nicole apoiou no chão antes que as demais cordas fossem soltas. Desta vez ela não deu tempo para a mulher se massagear porque aproveitou parte das amarras que já estavam nela e a fez inverter a posição anterior.

De novo, com um tranco Nicole voltou a repentinamente perder o contato com o chão, suspensa de maneira inesperada pelo gancho preso no teto. Agora seu tronco ficou voltado para cima, com as pernas caindo abaixo em direção ao chão, seus braços ainda amarrados às costas de um jeito que era impossível sair dali.

As fotos pararam só para que Estela voltasse a amarrar seu pé às suas mãos, como anteriormente. O movimento fez Nicole gemer, desta vez de incômodo, ao sentir seu corpo inteiro se curvar à força para trás, à mercê de uma gravidade imposta por cordas atadas em nós, bem presas à sua carne.

– Linda! Você está maravilhosa assim, Nicole! Já vou te descer, só um momentinho – Estela resmunga, falando pela primeira vez durante a sessão, sua voz abafada pelo som dos disparos das fotos. Pelo tom de voz usado, ela parecia saber que aquela posição era desagradável e foi realmente breve a soltá-la.

                Ao voltar para o chão, Nicole mal teve tempo para um suspiro aliviado porque assim que as cordas foram parcialmente soltas do teto, sua perna direita foi quem subiu, para trás, indo parar quase no meio das costas, com uma corda que foi trançada em torno da coxa. Ela só não caiu, apoiada na prótese, porque Estela a amarrou firmemente, forte o suficiente para que não ficasse sem equilíbrio – inclusive porque estava sem mobilidade alguma, com os braços atados para trás, suas mãos ainda segurando os antebraços.

                Quando Estela a soltou, Nicole foi tomada por espasmos e contrações. De tesão, obviamente, mas também por ter ficado tanto tempo amarrada de um jeito desconfortável. A sensação que tomou seu corpo foi tão intensa que quase se sobrepôs à excitação.

                Por fim, sem saber que aquela era a última posição, Nicole teve a mesma perna amarrada agora à frente do corpo, o joelho erguido pela corda presa no teto. Ficou completamente exposta para as lentes e os olhos de Estela, que pareciam brilhar atrás da câmera, durante os longos segundos em que permaneceu assim. Seu corpo inteiro vibrou, mais ainda ao ver a expressão de tara estampada no rosto da fotógrafa.

                Sem dizer nada, Estela desafrouxou uma parte dos nós, a soltando da corda do teto, mas sem desamarrá-la por completo. Daí apoiou a máquina no tripé e ficou olhando Nicole terminar de se soltar sozinha pelo visor da câmera, que flagrou numa disparada sequencial a desenvoltura da mulher que, ao se ver livre, começou a se masturbar para ela.

                Nicole se encostou no banco, propositalmente com uma das cordas ainda em torno do pescoço, a ponta descendo pelo vale entre os seios, alinhavada entre seus dedos. Abriu as pernas de um jeito sexy e deu um sorriso lindo ao exibir seus pelos pretos molhados por um tesão genuíno, que gotejava e lubrificava todo o centro do seu prazer. Nitidamente querendo se exibir, Nicole se escorou e inclinou a pelve para a frente, ao mesmo tempo em que desceu a mão direita até a altura da virilha, acariciando-se com os dedos umedecidos pela ponta de sua língua, captada por uma das fotos, bem rosinha e provocativa. Voltou a lambê-los após uma breve carícia, e gemeu com o toque provocado por movimentos rápidos e bem-vindos.

                As fotos pegavam seu corpo inteiro, mas o olhar da fotógrafa registrava eram as feições que Nicole fazia. Com tesão, seu rosto se corava da mesma maneira que acontecia quando ela corria, mas assim conseguia ficar ainda mais bonita. Se exibindo desse jeito, então, ficava exuberante! Formidável! Esplêndida!

                Os olhos de Estela se demoraram ao redor do clitóris de sua fotografada quando a face de Nicole se contraiu, mais ou menos no momento em que seus gemidos se tornaram regulares e mais altos, cadenciados de um jeito melodioso, extremamente excitante e muito agradável de se ouvir. Foi então que se surpreendeu, ao vê-la se levantar de repente e vir em sua direção, numa caminhada segura, cheia de atitude. Isso fez arrepiar os pelos de sua nuca nos segundos que antecederam o primeiro beijo entre as duas.

                Nicole tinha a boca macia e era dona de um beijo urgente e sedento, que deixava explícito qual era o seu grau de excitação. Puxou Estela pela nuca, a outra mão pela cintura, e uniu-se nua ao corpo vestido da mulher, que não esboçou nenhum tipo de impedimento. Ao contrário: Senhorita L. cedeu e se rendeu.

                Foi assim que Nicole descobriu que embora Estela gostasse de dominar e fotografar mulheres amarradas, ela também curtia uma pegada mais firme, mais bruta. E a descoberta elevou seu tesão às alturas, a fazendo lamber a lateral de seu pescoço, depois de cerrar os dentes em cima de sua veia pulsante, enquanto arrancava sua roupa, a jogando no chão, se esfregando em sua coxa numa urgência insana. Seu coração batendo rápido soava como bumbo ensandecido, numa trilha sonora perfeita para o momento.

Elas se deitaram juntas em cima das roupas jogadas no chão, rodeadas pelos aparatos de fotografia, cadenciadas pelo som do ar-condicionado, que foi insuficiente para impedir que as duas logo ficassem suadas, numa troca de fluidos e gemidos que combinavam. Estela foi quem tirou a própria roupa, desnudando inúmeras tatuagens coloridas, espalhadas por lugares aleatórios em todo o corpo.

Sem desunir suas bocas, com as línguas estimulando ainda mais a emergência de tudo aquilo, Nicole e Estela se encaixaram, parecendo duas tesouras. Gemeram em uníssono quando as vulvas se encostaram inteiras uma na outra, quentes e molhadas. Pulsantes, em meio a um beijo lésbico bem sexual que fez as duas se molharem ainda mais, despertando novos gemidos entrecortados.

Estela tomou a iniciativa e começou por cima. Se encaixou e puxou a perna direita de Nicole para a frente do peito, se prendendo inteira nela. Se esfregou arrancando de ambas suspiros que vinham do fundo da garganta. Mas não era dada a muito esforço, embora adorasse fazer sexo, o que a forçou a ir ao chão alguns minutos depois, no auge do tesão. Nicole assumiu a posição com maestria e fôlego de corredora. Ficou linda acima dela, com o cabelo balançando conforme o vai e vem produzido pelo seu próprio movimento, sem dar nenhuma mostra de cansaço.  

Por muito pouco não gozaram juntas. Mas foi o gemido de Nicole que despertou o orgasmo de Estela, que quis gritar de prazer. E o som de Estela foi o que fez Nicole gozar de novo, antes que se afastassem. E ela só saiu dali porque se sentia exausta, precisava esticar o corpo, mesmo que na dureza do chão.

– Você vai me mostrar essas fotos depois? –  Nicole pergunta, de olhos fechados. Sentiu a barriga de Estela se mexer, com uma risada.

–  Depois dessa eu te mostro até minhas fotos mais secretas, te exponho tudo –  ela ri de novo.

–  Fotos secretas, é? Que misteriosa! –  Nicole ri também. Abriu um olho só para ver onde a outra mulher ia, ao senti-la se levantar.

–  Tenho algumas, sim – Estela puxa uma sacolinha pendurada na maçaneta e tira um maço de cigarro e um isqueiro vermelho de dentro – Gosto de flagrantes da vida real, da “vida como ela é”. Tenho uma coleção de registros de cada um dos lugares que vou, que já fui. Detalhes, sabe?

– Sei. Quer dizer, não sei – Nicole emenda, fechando os olhos mais uma vez, depois que Estela voltou a deitar ao seu lado.

– Tenho até coisa tua – ela revela.

– Sério? – Nicole parece surpresa, mas ri – De corrida?

– Sim! – Estela sopra a fumaça do cigarro – Da corredora enigmática que foge de fotógrafo, que esconde o número de peito só para não sair nas fotos, ou não ser identificada depois.

– Claro, pô! Treino todo dia, treino duro, treino pesado... para depois em dia de competição ser fotografada e aparecer no site da FotA com cara de quem está tendo um AVC! Me poupe, galera dos flashes!


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