A exceção – Luana (conto erótico)
Essa é a terceira parte da terceira história da terceira temporada da Novelinha <3
(U A U ! )
Se ainda não leu a segunda, "A exceção - Raí", clique aqui.
No mundo, cada pessoa é de um jeito. Às vezes podemos até passar
simultaneamente pelas mesmas situações, mas os sentimentos e os enfrentamentos
vão sempre variar, segundo as protagonistas que encenam todo e qualquer ato.
Seja porque já nascemos propensas a uma dada personalidade, seja devido ao meio
onde crescemos, que nos influencia muito mais do que imaginamos, ou a genética,
ou ainda a educação que nos dão, que também tem o poder incrível de nos moldar
– de nos forjar! Adoro essa palavra, condiz com o que estou querendo
dizer: acredito que somos inteiramente lapidadas pela vida que vivemos, mas
movidas por uma força única, que nos torna tão especiais. E a graça de tudo é
que ninguém tem nada além da própria vida para cuidar, o que é ótimo, porque só
uma já dá bastante trabalho, imagine então se fossem mais...
O interessante é que mesmo com a crença de que somos seres singulares,
com tanta distinção disponível por aí e tanta gente com gostos tão
particulares, meu principal objetivo na vida é atingir o máximo possível delas,
chamadas tantas vezes de “público-alvo” que em muitos casos até me esqueço de
suas sutis individualidades. Somos pessoas ímpares, mas igualmente agregadas em
grupos, ao menos na minha cabeça. Nos separo por “baciadas”.
Sendo publicitária, muito mais do que ter que vender produtos ou
serviços, meu papel é transmitir a mensagem certa, da forma correta e certeira,
e para isso preciso entender verdadeiramente do comportamento humano, que
basicamente é o que nos transforma em consumidores – estes sim, os verdadeiros
alvos da Publicidade. Confesso que alguns anos de estudo me revelaram verdades
bastante desagradáveis sobre nós, ao ponto de me forçar a me afastar de tudo o
que pareça ser uma mera “jogada de marketing”. Que envolve os relacionamentos,
é claro. Dia dos Namorados, por exemplo, é uma data absolutamente comercial,
como são todas as demais!
No fim, acabei me convencendo de que até o amor é uma construção social,
uma invenção da nossa sociedade que, aceitemos ou não, é ancorada nos preceitos
conservadores e heteronormativos vigentes da nossa Era. Mas nem todas estão
preparadas para ouvir isso! Acostumada a me relacionar com pessoas de todos os
tipos que possa imaginar, percebo que até no mundo sáfico/lésbico a gente
reproduz um comportamento muitas vezes machista, sexista... Acabou se tornando
relativamente fácil me blindar do que nunca desejei para mim. Por este motivo,
nunca namorei.
Tem um nicho que se choca com isso. Há pessoas que se surpreendem (no
limiar da ofensa, quase!) com a minha decisão de ficar só, e muitas vezes
soltam aquela clássica: “nossa, mas você é tão bonita e não namora?”, como se
beleza tivesse alguma relação. A essas rotulo com a etiqueta de “mantenha-se
afastada”. Minha cabeça funciona de um jeito peculiar, mas funciona bem e tenho
uma excelente memória fotográfica, que pode ser chamada de rancor também, a
depender da pessoa ou situação.
Entendo claramente que somos seres perigosamente sociáveis, que ninguém
nasce nesse mundo para viver sozinha, mas o que percebo é que nessa pegada
solitária eu ganho mais do que perco, então por que mudar? Isso jamais me
impediu de transar com alguém, que fique claro. Acredito até que ser solteira
me permite gozar (n)a vida muito mais, se quer saber.
Pode parecer egoísmo (e talvez até seja), mas a verdade é que não tenho
tempo a perder e morro de preguiça de entrar em situações fadadas ao insucesso,
que no fim das contas só me consumiriam energia. Prefiro direcionar meu foco em
outras atividades mais proveitosas, por exemplo, ganhando dinheiro e prêmios
com minhas ideias, com a mente completamente livre de perturbações externas.
Não bastasse o que já é muito, há gente ardilosa em abundância por aí, é
difícil saber quem realmente é de confiança – e confiança é justamente a base
de todo e qualquer relacionamento, não é verdade? Detesto pensar na ideia de
dormir com alguma inimiga... O mundo dos negócios é cheio disso e no ramo da
propaganda o que não falta é quem queira subir na vida a qualquer custo,
inclusive te usando de escada. Há muita vaidade nesse meio, muito ego, muita
futilidade... fico com sono por tudo isso e muito mais.
Entendo que reproduzimos (inclusive sem perceber) certos padrões de
comportamento em nossas relações cotidianas, de maneira padronizada e
sistematizada, como se vivêssemos numa bolha. Meu papel é furar essa bolha, não
tocar o coração de quem acabo porventura esbarrando. E é o que faço, com primor
e sucesso.
Talvez o segredo seja ter em mente que hoje estamos assim, vivendo sob
este conjunto de normas e regras, mas amanhã podem existir novas formas de se
comunicar, de se relacionar e é importante estar preparada para tudo isso.
Gosto de pensar que esse futuro nem está tão distante, considerando que até
recentemente a monogamia mesmo era uma regra cimentada nos bons costumes e hoje
em dia o poliamor já é muito mais tolerável.
Não que seja algo que almejo para mim! O que defendo é que cada uma seja
feliz da maneira que quiser, só isso.
Durante um tempo, teve uma época em que criei uma fanfic envolvendo minha
chefe, Miriá, e a Preta, Atendimento da agência onde trabalho, e desse jeito
até pareceu viável me relacionar, assim. Prático, né, a pessoa está ali o tempo
todo, joga no mesmo time que você... Na Rubi tem muita gente boa, mas
ainda que eu viva cercada de profissionais absolutamente competentes, nenhuma
faz o meu tipo. Atração é uma coisa louca, fala aí!
Confesso que demorei um tempo até finalmente descobrir o que me atraía de
verdade... Desde então, me satisfaço atendendo aos caprichos de uma mulher que
a vida me deu de presente, como a boa cadelinha vira-lata que sou. E embora ela
seja a dona de todo o meu tesão já há alguns meses, consigo não saber
absolutamente nada a seu respeito – o que faz, onde mora, nada. E nem ela sabe
nada sobre mim (somente o básico, que contei por livre e espontânea vontade, e
porque ela aceitou ir comigo à festa a fantasia do trabalho).
Não é um namoro, nem um “relacionamento” – não assim, nos padrões conhecidos.
Mas me deixa confortável, aguça demais a minha criatividade, é cômodo, é
prático, é seguro e excitante em níveis que jamais pretendo tentar explicar
para alguém – até porque, além de Dona Sabrina, não conheço mais ninguém desse
afrodisíaco e estimulante universo BDSM (e quem é de fora não entende).
Quer dizer, para ser justa, conheci de vista uma fotógrafa, no dia do
baile da firma, contatinho da Dona. Senhorita alguma coisa. Mas nem sei também
o que faz porque tudo o que foi dito a seu respeito na ocasião é que ela
“seguiu para o outro caminho” – o que quer que isso possa significar. Minha
mente é fértil, já tive mil e um pensamentos até aqui. Inclusive que não falo
com a Dona desde essa ocasião.
Hoje inclusive amanheci pensando
nela. Nas últimas semanas virou hábito acordar e logo conferir no celular não
se há alguma mensagem nova, mas se ao menos o meu último envio foi lido. Dona
Sabrina gosta de me punir de uns jeitos bem... peculiares. E tudo o que
perguntei foi se ela mandaria algum sinal para o próximo encontro ou se eu
deveria entrar em contato, nada demais.
Minha sorte é que penso em muita coisa o tempo todo, senão isso estaria me
consumindo! Já me segurei duas vezes para não entrar no WhatsApp só para ver se
ela estava on-line. Olha o nível da doida!
Quando acordei hoje quis fazer isso. Acho que porque dormi mal, não sei,
tive uma noite parcialmente em claro, rodando na cama que nem um peru louco. Já
faz uns dias que o jingle de um remédio contra gripe não para de tocar
na minha cabeça, fiquei pensando em versões que pudessem ser tão chicletes
quanto a original, mas não consegui muita coisa. Anotei mesmo assim, porque até
que tive boas inspirações, dá para adaptar para algum outro segmento. Aí estava
lá deitada, era cedo, peguei o celular para ver o bloco de notas e meio no
automático cliquei no ícone das mensagens. Sei lá se por instinto.
“Deixa ir embora, vai curar...”, cantarolei, jogando o celular
para o outro lado do colchão. Pareceu apropriado fazer isso, inclusive na
dramaticidade do gesto. “Gripcur vai te ajudar. Deixa ir embora, deixa ir
embora...”, continuei, ao me levantar, colocando os dois pés no chão
gelado, movimentando os dedos sem perceber.
– Droga de
música que não para! – resmungo, estalando os dedos no ritmo do jingle,
que permaneceu tocando na minha cabeça.
Imediatamente decidi que algo precisava ser feito para mudar o foco.
Correr sempre me ajudou, então era a solução perfeita. Há quase duas semanas
que o clima não colaborava, talvez a noite insone fosse até por causa isso: eu
estava com muita energia acumulada!
– Acho que vou
tomar um Gripcur só por precaução – resmungo de novo, falando sozinha – “Deixa
ir embora, deixa ir embora. Deixa ir embora, vai curar... Gripcur...”.
Abri a janela do quarto assoviando o jingle e levei alguns
segundos me decidindo se o dia estava nublado ou se o que eu via no céu era
névoa de poluição (foi a alternativa mais otimista que consegui pensar, de
imediato). Estava obviamente nublado, mas a boa notícia é que pelo menos não
chovia mais.
Mentalmente, listei: vou só tomar um café, trocar de roupa e correr. Quem
sabe ir até algum parque, aproveitar um pouco do sol que com certeza vai sair.
Para preencher o silêncio, primeiro pensei em colocar um som, mas no meio
do caminho mudei de ideia e decidi ouvir um podcast. Aí sentei na beira da cama
para escolher o melhor tema, o que acabou me consumindo bem uma meia hora.
Escolhi um podcast sobre “Os sete hábitos das pessoas altamente eficazes” e
ouvi o primeiro minuto, até minha mente se desligar completamente do conteúdo.
Cheguei na cozinha e a pia estava daquele jeito: um monte de louça
suja, o fogão todo respingado com o suco que fiz de madrugada... Antes de tomar
café, limpei uma parte da sujeira, até que o detergente acabasse. Quando fui
pegar outro, no armarinho, peguei também um multiuso e limpei a geladeira na
passagem, antes de voltar à pia.
Aí limpei o espelho do interruptor, bem ao lado da geladeira, porque me
pareceu sujo. Provável que eu nunca tenha limpado, o que me fez obviamente limpar
todos os outros do apartamento. Quer dizer, quase todos, porque em dado momento
o pano ficou muito sujo e em vez e lavar, o deixei no tanque e finalmente fui
tomar café da manhã. Já eram quase dez horas e eu ainda em jejum.
Fiz café e enquanto coava me esqueci do leite, que ferveu até
transbordar, encheu de nata, detesto. Tive que lavar a peneira que permanecia
dentro da pia, suja da manhã anterior, quando uma cena semelhante aconteceu.
– “Dor de
cabeça, nariz congestionado, corpo todo mole, deixa ir embora... –
cantarolei, sem perceber, limpando o fogão com o multiuso que tive que ir
buscar no banheiro – ... vai curar! Gripcur vai te ajudar... Deixa ir
embora, deixa ir embora...”.
Enquanto comia (tapioca, uma doce e outra salgada, nessa ordem), considerei
que o ideal seria lavar tudo assim que terminasse o desjejum. Então listei: vou
terminar de lavar a louça, concluir a limpeza dos interruptores, trocar de
roupa e correr. Pela janela basculante deu para ver que ainda estava nublado,
mas o dia parecia mais claro do que quando levantei. Perfeito para uma
corridinha, que delícia!
Dei uma sambadinha ao colocar a caneca dentro da pia, na cabeça tocando
uma versão em pagode do jingle do remédio gripal. Bati palmas distraída
rodando no meio da cozinha e nem lembrei da louça; fui direto para o quarto, me
vestir. Aí arrumei a cama, depois de decidir lavar os lençóis. Troquei todas as
fronhas, até dos travesseiros usados só de enfeite, que me obrigavam a tirá-los
e colocá-los de volta à cama, todos os dias. Enfiei tudo dentro da máquina,
liguei o foda-se no ciclo longo e enchi o reservatório com um amaciante
cheiroso (“Inny: aroma de amor que sua família merece!”).
Desta vez tomei o cuidado de antes verificar se não havia nada que
pudesse manchar as roupas, ainda que aquele jogo de cama fosse o mais manchado
de todos. Mas sempre é hora de ficar esperta! “Deixa ir embora, vai curar.
Deixa ir embora, deixa ir embora...”.
Só na volta lembrei de ver o cesto de roupa suja. Foi quando encontrei
todas as minhas roupas de corrida, que tiveram a lavagem adiada várias e várias
vezes nas últimas semanas porque, afinal, só choveu. Não eram prioridade no meu
varal, que não é dos mais extensos. É aquele tipo de coisa que com o tempo
acaba se tornando parte do cenário, sabe?, num determinado momento a gente já
nem vê; eu nem me lembrava mais! Estavam no mesmo bolo meu short preferido de
correr e todas as camisetas que me deixam confortável, sem falar nas meias que
aguardavam sua vez de serem lavadas, na paciência típica de bolinhas.
A máquina ainda estava enchendo de água, no comecinho da lavagem, mesmo
que lavasse tudo e as meias, já na sequência, jamais que secariam a tempo. Fui
para o quarto pensando nas opções que me restavam no fundo das gavetas,
refazendo a lista, deliberadamente empurrando para o dia seguinte o resto da
louça suja e a finalização da limpeza dos interruptores. “Deixa ir embora,
deixa ir embora... Gripcur vai tcharará...”, cantarolei.
A busca por uma roupa para correr me obrigou a arrumar as cinco gavetas da
cômoda, que há tempos estavam bagunçadas, esperando esse momento. Redobrei peça
por peça, tentando separar eventualmente alguma que não estivesse sendo usada
para doar, mas só consegui tirar da pilha um pijama, que no final voltou para
onde estava anteriormente (para debaixo de todas as roupas, no caso).
Puxei da última gaveta um short antigo que estava rasgado e a caixinha
com os instrumentos de costura. Levei um baile até conseguir enfiar a linha na
agulha, então parei tudo e comecei uma lista, num post-it: “marcar
oftalmologista”, “comprar detergente”, “Gripcur”.
“Deixa ir embora, vai curar! Gripcur vai te matar!”. Aproveitei e
costurei a lateral de uma camiseta que deixou de ser usada depois que me prendi
na entrada do prédio, fugindo de uma chuva. Ao definir o look, fui
conferir a roupa na máquina e acabei lavando o resto da louça na pia. Não
faltava muito, seria puro desleixo deixar para depois. Não sabemos o dia de
amanhã, afinal.
Inspirada, acabei de limpar também em volta de todos os interruptores,
que podiam agora passar os próximos dois ou três anos sem serem limpos
novamente, até que eu me desse conta disso mais uma vez. Aproveitei e varri
toda a casa, usando depois o mesmo pano, esfregado algumas vezes no tanque,
para passar desinfetante no chão. Nem percebi, mas foi quando o jingle
finalmente parou de tocar.
Ao terminar, depois de pôr a roupa no varal e deixar 27 pares de meia
lavando dentro da máquina, vi que já estava perto da hora do almoço. Pois é,
gastei a manhã inteira com tarefas aleatórias e quase infinitas. Isso me fez
decidir correr mais tarde, no fim do dia, quando o parque ainda estaria cheio,
mas já começando o movimento de esvaziar. Se desse sorte, conseguiria
aproveitar um pouquinho do sol, merecidamente. Então tomei um banho demorado e
fui ao mercado. Aproveitei para passar na farmácia, na frutaria e depois na
bomboniere. Praticamente não saí do quarteirão, uma das vantagens de se morar
no bairro Santa Cecília: tem tudo perto, é muito prático. Levei para casa um
lanche, para não ter que cozinhar e sujar louça, porque praticidade também me
define.
Sem que tivesse me planejado, limpei e lavei tudo dentro do apartamento
só para correr e fugir de uma música de propaganda que há dias tocava num looping
eterno dentro da minha cabeça – mas evitei pensar muito a respeito, pois havia
o risco de o jingle voltar a tocar, provocado pela mera lembrança.
Deixei ir embora.
Quando estava colocando as roupas que há meses tinha deixado de usar,
pensei de novo em Dona Sabrina e imaginei o que ela poderia estar fazendo uma
hora dessas. Mas assim, foi algo super breve porque fantasias que a envolvem
com acompanhantes não são as minhas preferidas. E com certeza ela não estava
sozinha, no que quer que estivesse ocupada pelas duas últimas semanas.
Fiquei pensando que não parecia, agora, muito vantajoso ter sido avisada
de que ela se ausentaria por alguns dias, se em nenhum momento foi dito o
motivo do sumiço. Era algo que a impedia de ler minha mensagem. Ou não,
provavelmente não leu porque não quis, porque sabe que isso é punitivo para
mim. Fiquei em dúvida se deveria me sentir ofendida ou lisonjeada com o gesto.
Sentei na cama por um instante, um pouco desolada e quase desistindo de
correr. Não achei que combinou o único modelito limpo e disponível para vestir,
a começar que o short era mais curto que os demais que eu vinha usando
ultimamente, aí uma parte das minhas pernas queimadas de sol ficou de fora, de
um jeito chamativo. A camiseta era cavada, me lembrei só ao vestir, depois de
alguns metros deixava tudo à mostra, então precisei trocar o top que nem
deveria mais integrar o time do meu guarda-roupa porque já estava frouxo. Vesti
outro que era quase florescente. E a meia, a única limpa, era uma da Lisa
Simpson fumando um cigarro, nada condizente com o look.
– “Meias Fil,
fiu-fiu” – cantarolo, sem perceber o perigo do ato – “Na academia só dá
Fil, para andar de bike só com Fil...” – continuei, calçando o tênis,
absolutamente distraída – “No rolezinho vou de Fil, e na balada...? Fil,
fiu-fiu! Meias Fil, fiu-fiu”.
Parei no corredor por alguns
breves segundos, antes de sair, pensando se deveria encher a garrafinha de
água. Decidi não levar, já estava tarde, mais um minuto e eu ia acabar
desistindo de sair. Só por isso fui correr no Parque Villa Lobos, que tem
bastante bebedouro.
Deixei a música no modo
aleatório tocando no fone de ouvido, ditando a trilha sonora do rolê, que
envolveu um percurso de metrô e outro de trem. Dava para ir de ônibus, mas eu
era perita em me perder de ônibus, então fiz o caminho mais longo, porém mais
seguro de dar certo. Quando desci na estação da CPTM na Marginal, coisa de uma
hora depois de ter saído de casa, já pertinho do parque, o sol ainda brilhava
no céu, de um jeito absolutamente convidativo.
Estiquei os braços me alongando, satisfeita por não ter desistido de
sair, ainda que o local estivesse cheio de famílias barulhentas, o que me fez
aumentar o volume no máximo. A playlist era muito animada, dava mesmo
vontade de correr.
Me propus a percorrer pelo menos
duas vezes a rota completa de quase 3,5km em volta do parque. Corro uma, bebo
água, me refresco, vou mais uma e, se animar, emendo uma terceira. Era o plano.
A pista de corrida é plana, bem tranquilinha, dava para fazer, mesmo depois de
tantos dias parada.
Ajustei o relógio, liguei o
aplicativo no celular e comecei a correr. Senti meu corpo duro, a princípio, se
recusando a fazer esforço, mas logo em seguida já cedeu, pronto para receber
uma generosa dose de endorfina que o recompensaria por cada gota de suor, que começou
a escorrer prematuramente, antes mesmo do primeiro quilômetro.
Achei a primeira volta tranquila
e aí emendei na segunda, sem parar para beber água. Não precisou! Ainda que o
clima estivesse relativamente quente, não estava muito abafado, provavelmente
devido à chuva dos últimos dias, então deu para esticar um pouco mais. Sem
perceber, em dado momento me vi listando todas as tatuagens que conhecia da
Angelina Jolie, depois de dispender vários minutos refletindo acerca do
casamento entre Daniela Mercury e Malu Verçosa.
Estava perto de completar a segunda volta quando a sede começou a brotar,
primeiro através de pigarros característicos, depois já com aquela sensação de
algo estar rasgando a garganta, queimando por dentro. Por isso diminuí o ritmo e
passei a direcionar toda a minha atenção aos canteiros da pista de corrida,
onde ficavam instalados os bebedouros, pensando de novo em oftalmologista. Foi
nessas que a vi.
Ou melhor, foi nessas que achei que a tinha visto.
– Ah, uau – eu
disse, evidentemente tendo que parar a corrida de repente, ao ver Dona Sabrina
na fila do sorvete. Sim! Dona! Sabrina! Num! Parque! Tomando! Sorvete!
Puxei o fone de ouvido sem muita delicadeza, meu rosto todo virado em
direção ao seu avantajado decote, várias emoções tomando conta de mim
repentinamente, deixando meu corpo ainda mais em combustão. Senti meu rosto
ficar imediatamente quente, como se queimasse! Estava claro que ela tinha se
ausentado por motivos de: silicone! Não que precisasse, mas ficou incrível.
– Foi por isso
que você se ausentou, Dona? – pergunto, diante do óbvio, passando a mão na
testa e secando o suor, que começou a pingar quando parei de correr. Do nada,
minha sede aumentou em uns mil por cento, estimulada pelo nervosismo da
surpresa, que me fez atropelar as palavras – Por favor, me amarra e me
chicoteia agora mesmo, que linda que você está! Com todo respeito, é claro.
– Caramelo? –
alguém me chama, com a voz ridiculamente igual à de Dona Sabrina. Quando olhei
para a figura parada bem ao nosso lado, pertinho de nós, imediatamente senti
uma confusão do tamanho do mundo se instalar no meu cérebro, que deu um nó!
Bum!
Tirei
os óculos escuros, olhando de novo para a mulher parada na fila do sorvete, que
me fitava só com uma sobrancelha arqueada. Ela manteve os braços cruzados numa
postura intimidadora, dando ainda mais destaque para o seu belo decote. Um
tesão! Depois encarei Dona Sabrina mais uma vez, exatamente igual à mulher, mas
infinita e estranhamente menos combativa que ela, o que era só um detalhe esquisito
em meio a tantos disparates. As duas eram idênticas, ou quase idênticas. Nessa
hora deu para ouvir meu coração batendo alto, disputando com a música que
escapava dos fones (tocava Bella Ciao numa versão eletrônica, adoro!).
Vi que Dona Sabrina me analisou com os olhos um pouco contraídos, dando a
impressão de ter gostado do meu novo corte de cabelo. Parecia feliz de me ver!
– Mentira que
você é duas! – acabo dizendo, que nem uma boba, meus braços caindo em direção
ao chão quando nitidamente não soube o que fazer com as mãos. Me forcei a
manter os olhos bem longe do decote dela, que estava como sempre esteve:
normal, lindo também.
– Não sou – Dona
Sabrina responde, calmamente.
– Ela é uma só!
– a mulher igual à Dona diz, ao mesmo tempo. Falou num tom ofendido, lançando
para ela na sequência um olhar bastante questionador – “Caramelo”? Que nem o
vira-lata do meme?
– Longa
história... – Dona Sabrina desconversa mexendo com a mão, mantendo os olhos em
mim. Definitivamente parecia satisfeita por ter me encontrado – Não imaginei te
ver aqui... – diz, me olhando de novo dos pés à cabeça, agora com mais malícia,
quando chegou a vez da outra ser atendida pelo sorveteiro. Ela me segurou pela
cordinha dos óculos escuros ao continuar, como se me guiasse por uma coleira
imaginária, o que me excitou instantaneamente – Gosto dessa sua versão
esportista – o comentário saiu num cochicho, emendado por um de seus sorrisos
mais bonitos – Não fale nada, ok?
– Ok – respondo,
vendo a mulher parecida com ela pagar por dois picolés. E eu ali morrendo de
sede! – Que bom que gosta, também não esperava te encontrar aqui! Surpresa boa
– consegui dizer, mirando em seu decote, sem querer. Imediatamente deu para ver
que ela se incomodou com o meu gesto. Quase se ofendeu!
– Você é paciente
da Sabrina? – a mulher me pergunta, entregando um sorvete para a Dona, sem
perguntar se eu também queria um.
– Paciente? –
pergunto. Então era assim que ela chamava?
– É, ué, minha
irmã não é sua psicóloga? – a mulher insiste. Em poucos segundos, percebi o
quão mais ácida era em relação à Dona Sabrina.
– Psicóloga? –
perguntei agora para a Dona, que ainda me contemplava com um olhar divertido,
apesar de parecer um tanto desconfortável com o diálogo como um todo, com
aquele encontro a três. Fui obrigada a constatar que nunca tinha imaginado essa
profissão para ela, que imediatamente me fez imaginá-la deitada nua num divã,
invertendo os papéis só para a cena fazer algum sentido na minha cabeça.
– Está meio por
fora, hein, Caramelo? – a comedora de sorvete parecia ser quem mais estava se
divertindo com a conversação. Nem me deu tempo de pensar no quanto ser
psicóloga combinava com uma dominadora tão cheia de fetiches quanto Dona
Sabrina.
– Eu não sabia
que você tinha uma irmã gêmea... – foi tudo o que meus lábios conseguiram
proferir. Deveria sintetizar a enxurrada de palavras que eu gostaria de ter
dito, mas soei boba, só. Minha língua, a esta altura, já estava quase grudando
no céu da boca, de tanta sede.
– Quase
idênticas... – a mulher ri, parecendo balançar os seios ao dizer aquilo. Mas
não sei se realmente fez isso, ou se foi só impressão minha. Ela mordeu o
sorvete parecendo muito igual, mas também muito diferente de Dona Sabrina.
Quase outra mulher! – ... exceto pela parte de encontrar com alguém por acaso
num parque e a pessoa me pedir para chicoteá-la! Isso é algum tipo de código ou
o quê?
Porra, Luana, que vacilo!
– Desculpa – eu
falo, com o corpo todo virado em direção à Dona, mas respeitosamente mantendo
os olhos em seus pés.
– Ei, Caramelo,
qual é o seu nome? Sou Giovana, a propósito – ela levanta os ombros antes de
morder de novo seu picolé de chocolate. Parecia ter ciência do quanto o
encontro era embaraçoso para mim, mas principalmente para a irmã, e só por isso
se divertia em prolongar o fim da situação.
– Vamos embora,
Gi? – Dona Sabrina pergunta, um milésimo antes de eu responder – Acho que já
podemos ir.
– Me chamo Luana
– respondo. Ao mesmo tempo, o jingle do Gripcur voltou a tocar na minha
cabeça, mas numa negativa: “não deixa ir embora, não deixa ir
embora...”.
– Luana! –
Giovana repetiu meu nome com uma empolgação esquisita, seus olhos adquirindo um
brilho imediato – A Luana! Da mensagem –
a mulher ri, sem especificar ao que se referia, mas pela cara de Dona
Sabrina, ela tinha entendido – Sim, podemos ir. Vem com a gente, Luana! –
complementou, me olhando de um jeito diferente.
– Eu... –
balbuciei, sem saber o que exatamente deveria responder. “Que inesperado, Inês
Pereira”, pensei. Olhei brevemente para a Dona, antes de procurar à minha
volta, mais uma vez, por algum bebedouro. Sinceramente, não sei dizer o que era
maior nesse momento: meu constrangimento ou a sede – ... imagina, estava
correndo, estou toda suada...
– Mas na Sabrina
tem chuveiro, ué – Giovana provoca – Vamos, aí aproveito para te conhecer
melhor no caminho! Hoje vou embora para a minha casa, minha irmã deve estar com
saudade de você!
Ah, então era esse o motivo do
sumiço! Se chamava “Giovana siliconada”. Mas nem me demorei pensando muito a
respeito porque a mera possibilidade de ir à casa de Dona Sabrina me causou um
friozinho na barriga. Mesmo que o convite não tivesse partido dela, provocou
uma expectativa deliciosa, que durou pouco, bem pouco. Até parece que eu ia lá!
Nunca foi algo contemplado no nosso acordo!
Dona Sabrina a esta altura
encarava a irmã com um olhar desafiador, zangado, até. Fiquei então esperando
que ela desse logo a ordem para que eu voltasse à corrida, me liberando de uma
vez.
Mas não foi isso que aconteceu.
Ao me encarar, desanuviou o olhar, mudando até a expressão do rosto. Disse algo
para Giovana sobre não ser previsível, antes de falar comigo.
– Se quiser,
pode nos acompanhar – ela disse, sua voz soando como melodia para meus ouvidos.
É isso mesmo, produção?
Espanto e incredulidade substituíram
minha sede por alguns segundos, me forçando a abrir a boca, sem conseguir dizer
nada num primeiro momento. O que se fala numa hora dessas?
– Se eu quero? –
murmurei, depois de alguns segundos analisando o que o convite de fato
significava. Pedi para a irmã gêmea me chicotear no meio de um parque, depois
ofendi minha dona com uma encarada em direção ao seu decote sem silicone... –
Quero muito, Don... Sabrina.
Recoloquei os óculos escuros,
escondendo delas a efusão de sentimentos que estampou meu rosto com um sorriso
incontido. Além de conhecer o castelo da rainha, a visita ainda ia me
proporcionar momentos de puro prazer em sua masmorra, depois de vários dias de
uma abstinência forçada. Desejei que Dona Sabrina me castigasse com chicote, só
para eu aprender a manter minha boca bem fechadinha. Seria a primeira vez!
Não sei se foi impressão, mas
pareceu que Giovana não esperava por este desfecho, a começar que saiu andando
na nossa frente quase em disparada, provocando um rasto de sorvete pingado atrás
dela. Mas isso não foi de todo ruim porque pude notar que a Dona não parecia
aborrecida por estar voltando para casa antes do previsto – e acompanhada por
mim.
– Gostei dos
seus óculos – ela diz, mais uma vez me segurando pela cordinha que ficava caída
atrás do pescoço. O contato, mesmo superficial, provocou uma onda de espasmos
no meu corpo inteiro.
– E eu gostei do
seu convite – cochicho, segurando seu mindinho até que chegássemos ao carro.
Mais do que a sede, a esta altura gritante, eu ansiava era em encostar minha
pele na dela. Qualquer reles contato era estimulante ao ponto de quase me
desnortear.
Dona Sabrina tinha uma SUV preta
que combinava com ela, incluindo os bancos de couro, tão de acordo com seus
gostos. A irmã embarcou atrás, deixando o carona livre para mim e ao entrar
senti seu cheiro impregnado em cada parte do interior do automóvel. Uma
delícia, me fez contrair inteira sem querer.
– Então,
Caramelo, minha irmã te deixou duas semanas de castigo? – Giovana pergunta,
puxando papo. Apesar de sua escolha curiosa de palavras, não parecia que ela
sabia dos prazeres de Dona Sabrina, que a encarou séria pelo espelho ao
afivelar o cinto, antes de dar partida no veículo.
Castigo foi ela não ter lido a
minha mensagem!, pensei.
– É, mas eu fui
avisada, no dia da festa. Ela me disse que ficaria ausente por um tempo – digo,
me virando ao responder. Tentei ser o mais cortês possível, mas me senti
“pisando em ovos” porque Dona Sabrina foi explícita na ordem para não falar
nada. Mas tive que responder à mulher, né!
– Hum, vocês
foram juntas! – Giovana retruca – Aquela festa a fantasia, né? Da agência de
publicidade?
– Minha irmã me
ajudou a escolher o vestido – Dona Sabrina explica.
A lembrança me faz recordar como ela estava simplesmente deslumbrante na
noite do baile. O pós-festa era recorrente agora nas minhas siriricas porque
ser dominada por uma mulher em roupa de gala entra para a memória de um jeito
todo especial.
– É, eu sou
publicitária. Trabalho na Rubi – respondo.
A menção à agência, como sempre, despertou o DJ da minha mente, que
disparou em cantorias: “Ruby, Ruby, Ruby, Rube (oh, oh, oooh)! Do ya, do ya,
do ya, do ya (oh, oh, oohh)”. A música ficou tocando como se fosse a trilha
sonora das ruas que percorríamos no carro cheiroso de Dona Sabrina – trajeto
este que eu adoraria ter prestado atenção o suficiente para depois conseguir
voltar por conta própria.
– Ah, é? Não me
diga! – Giovana rebate, num tom diferente.
O que quer que eu tenha falado a fez mergulhar numa espiral de
pensamentos que a manteve em silêncio pelo resto do caminho. Dona Sabrina, para
ajudar, também ficou muda. Agora, além de sem graça por estar indo à sua casa
pela primeira vez, fiquei também encanada de ter falado alguma bobagem, ainda
que não tenha dito nada, exatamente. Nada comprometedor, ao menos!
Qual o problema em dizer onde trabalho? Por acaso ela conhece alguém de
lá?, eu hein.
Para a minha sorte, chegamos rapidamente ao nosso destino, um condomínio
de três prédios super altos perto da Marginal, e foi com alívio que
desembarquei do carro, depois de ver a Dona executar uma baliza com esmero,
entre duas vagas espremidas. Que fique registrado: antes desse maravilhoso
encontro surpresa eu corri quase 7km, sem parar para beber água. Estava
morrendo de sede, me sentindo até um pouco desidratada!
Ao entrarmos no elevador espelhado, fiquei pensando em como estaria o meu
odor depois de uma corrida no sol. Nesse momento desejei com ardor por alguns
litros de água – para beber e também para poder me banhar, me lavar, me refrescar
um pouco.
Antes de chegarmos ao oitavo andar, numa subida rápida e silenciosa, o
celular da Dona tocou e ela e a irmã desenrolaram um diálogo no mínimo
inusitado, como se conversassem por meio de códigos, sem que a ligação fosse
atendida. Nem ousei me meter no meio do papo porque assuntos entre irmãs já
costumam ser bem peculiares, entre gêmeas, então... Me mantive em silêncio e só
neste momento lembrei de que não tinha desligado o aplicativo da corrida, mas
mantive o celular no bolso do short, com receio de que um movimento mais brusco
chamasse a atenção delas para mim.
Quando o elevador se abriu, Dona Sabrina destrancou a porta do
apartamento para uma apressada Giovana, que foi logo entrando, cheia de
intimidade e familiaridade com o lugar. Já eu fiquei parada perto da porta, sem
saber para onde deveria ir ou o que era esperado que eu fizesse naquele
momento. O conjunto de ineditismos conseguia ser mais intenso que minha sede,
que era igualmente paralisante.
– Seja bem-vinda
à minha casa, Caramelo – Dona Sabrina diz, passando a mão em meu rosto, numa
clara tentativa de me deixar confortável. Seu apartamento tinha um aroma
fascinante, uma mistura do cheiro dela, inebriante, e também de conforto e
aconchego.
Meus olhos varreram a sala por uma fração de segundos, passando pelos
móveis sóbrios, pelos quadros de paisagem e natureza morta, pelos tapetes
indianos perto do sofá marrom. Dona Sabrina me deixou observar sem dizer nada,
parecendo distraída, à vontade. Ainda assim evitei encará-la; sou uma boa conhecedora
das regras e sei que, independentemente do local, em sua presença devo manter
meus olhos sempre no chão, sob o risco de cometer uma falta grave.
– Vem cá, vou te
levar até o quarto, te mostrar onde fica meu chuveiro – ela diz, estendendo a
mão em minha direção. Em seu habitat, achei Dona Sabrina extremamente gentil e
cordial.
A segui por um corredor
iluminado, comprido e acarpetado, enfeitado de porta-retratos. Evitei de
propósito olhar para o ambiente à nossa volta, embora meu cérebro me ordenasse para
que procurasse logo por uma bica, uma torneira, uma jarra ou qualquer copo
d’água que pudesse saciar de uma vez por todas a sede que eu sentia. Só ergui a
cabeça quando ela soltou minha mão.
O quarto de uma dominatrix não é
nada parecido com o que achei que seria. Não havia correntes e gaiolas e
algemas espalhadas pelo recinto. Nem mesmo a decoração dava alguma mostra de
quem ali dormia: achei tudo sóbrio e discreto, inclusive o quadro com um lírio
pintado em cor de rosa, acima da cabeceira de sua cama convidativa. Não havia
nenhum gancho, apenas um guarda-roupa branco e uma mesa combinando, como em
qualquer dormitório normal. Se fiquei frustrada? Talvez, um pouco, mas foi
rápido porque ainda assim era o quarto dela. Automaticamente deu vontade de me
esfregar em cima do colchão, me sarrar em seu travesseiro e gozar em seus
lençóis, demarcando o território que nem um cachorro, impregnando o meu cheiro
em tudo o que pudesse imaginar – a começar por ela, todinha.
Dona Sabrina me tirou de meus
devaneios sexuais ao me entregar uma toalha amarela, felpuda e perfumada.
Esperou que eu a olhasse para dizer que levaria a irmã até o andar de cima, me
pediu para que me comportasse em sua breve ausência e para que não falasse com
estranhos nesse período. Como se não estivéssemos no apartamento dela e
houvesse realmente o risco de algo acontecer!
– Sim, senhora.
Só vou tomar banho no seu banheiro, Dona – eu disse, num tom de riso, cheirando
a toalha, distraída. Achei a orientação um tanto cômica!
– Eu sei – ela
respondeu, antes de me deixar sozinha no quarto. Saiu de um jeito que até achei
que ia me trancar ali dentro!
Num primeiro momento me senti tentada a beber água direto da pia do
banheiro, mesmo, mas me contive porque lembrei de uma história que a Ritinha contou
esses dias no trabalho, de não sei quem que bebeu água suja de cano e morreu.
Foi uma história longuíssima, chata e cheia de detalhes, durou o horário de
almoço inteiro, foi difícil me desligar. Só por isso encostei o ouvido na porta
e, assim que Dona Sabrina e a irmã saíram, imediatamente fui atrás de água
gelada. Eu merecia. E precisava!
Não foi desta vez que vi quais eram os momentos registrados nas fotos
daquele corredor porque saí em disparada para onde meu senso de direção apontou
ser a cozinha. Foi inevitável não reparar em como o apartamento era
impecavelmente limpo e arrumado, mas de novo tive o pensamento interrompido
porque assim que avistei a geladeira, ouvi um barulho da porta se abrindo.
“Tão rápido!”, pensei, em dúvida se voltava correndo para o quarto e me
enfiava debaixo do chuveiro ou se finalmente estancava a sede que, juro, já
estava me matando. Necessidades básicas, né, o corpo grita. Me escondi dentro
da geladeira quando vi que não era a Dona quem tinha chegado e sim uma mulherzinha
invocada que avançou para cima de mim como se fosse um cão de guarda.
– Ei, quem é
você? Está fazendo o que aqui? – ela rosnou, raivosa. Era quase do meu tamanho,
só que mais forte. E muito zangada!
Me deu um pouco de tesão, se quer saber, gosto de mulheres bravas, me
excitam. Mas fiquei preocupada também, porque há cães que ladram e mordem, tipo
pinscher, que tem boca pequenininha, mas dentes que doem – tenho cicatrizes nos
tornozelos que são a prova disso! Só que nesse momento eu me encontrava deveras
ocupada, procurando numa geladeira desconhecida uma garrafa qualquer que
tivesse água. Sete quilômetros, lembra?
“Água que nasce na fonte...”, Guilherme Arantes começou a cantarolar
dentro da minha cabeça quando finalmente encontrei uma garrafa de água com gás,
porque meu DJ é pontual e sagaz.
– Não, quem é você? – revido a
pergunta, bebendo direto do gargalo. Seria eu capaz de beber 800ml de água Voss
com gás? Hoje descobriria.
– Nada te dá o
direito de invadir assim a cozinha da Dona Sabrina, sua geladeira... – ela
fecha a porta, meio dramática.
Numa breve pausa para tomar ar, vi que metade da garrafa já tinha ido
para dentro e que a invocadinha que me encarava tinha cara de poucos amigos.
Uma gracinha! Os braços fortes, definidinhos. Crossfit, será? Cadê a Dona para
prender o cachorro dela, hein? Será que é por isso que me ela chama de
vira-lata? Nossa, com certeza é por isso! Será que essa mulher é quem estou
pensando?
– Eu fui
convidada a estar aqui e você? – arrisco perguntar, mas ela só rosna e não
responde. Terminei de beber a água porque, sim, consigo beber quase um litro de
água com gás de uma só vez – Não sou eu quem vai embora – finalizo, tratando de
voltar logo para o quarto porque se a Dona disse que voltaria logo, realmente
não tardaria a voltar e eu tinha uma missão simples que era tomar banho. Mesmo
sendo interpelada pela poodle dela.
– Eu não vou
embora! – ela gritou atrás de mim.
Quase pude sentir o bafo quente no pescoço! “Dona, socorro”, pensei
rindo. Eu que não sou de violências quis enrolar um jornal e bater nela, e
pensar nisso me excitou. Imaginei na verdade nós duas apanhando de jornal da
Dona, o que me fez pensar que com certeza já estava sob influência do ambiente
enigmático que era sua casa. Tudo parecia absurdamente normal, mas era só um
truque e eu já sentia os efeitos. Estava sob os encantos de Dona Sabrina de um
jeito diferente.
– Ei, não grita
comigo não – rebato, entrando no quarto perfumoso, a esta hora já na penumbra
do começo da noite. Minha vontade era encurralar a mulherzinha na parede,
fazê-la calar a boca de um jeito que com certeza a deixaria mais doce.
– Não vem me
dizer o que fazer – ela avança, um pouco agressiva. Me fez lembrar daquele
meme: “cuidado, eu moido”. Feloiz. Uma graça, gente! Alguém põe
uma coleira nessa chihuahua!
– Raiana! – a
Dona a chamou, aparecendo no quarto de repente. Sua voz veio naquele timbre que
ela usava quando eu a desapontava muito, muito, muito, mas desta vez falou
outro nome; pela primeira vez não foi o meu, o que fez imediatamente meu rosto
queimar com o fogo do ciúmes – Alguém quer me explicar o que está acontecendo?
– continuou, jogando luz sobre nossos rostos, ao bater a mão com força no
interruptor – Ei, vira-lata? – ela finalmente me chama, mas eu estava zangada
demais para responder – Fico dois minutos fora... – sua voz agora tinha desapontamento. Era o
pior tom de todos.
– Vou tomar banho – resmungo, sem saber se
deveria esperar uma ordem direta, de novo.
– Vai! – a Dona
fala, com uma voz diferente. Parecia frustrada!
Eu fui, porque de rosnado,
latido e mordida entendo muito pouco se a adestradora é Dona Sabrina e se eu
sou só uma vira-lata comum. Já Raiana, assim se chamava, era mesmo do tipo
valente, ficou lá encarando a Dona até que as duas finalmente saíram do quarto.
Lavei o cabelo três vezes, com
xampus diferentes. Não encontrei o condicionador, então passei uma máscara
cheirosa, que deixei só uns dois minutos, se muito, porque tenho ansiedade.
Minha empolgação estava nas alturas, eu só queria sair logo do chuveiro e
deitar na cama da Dona, que parecia ser muito macia.
Não, mentira, meu anseio mesmo era ficar na posição que é o primeiro
comando de toda sessão, quando a Dona estala o dedo junto com a ordem, que não
é nada demais, mas me deixa molhada, sempre. O gesto que antecede o ato é puro
deleite, só não me derreto porque a posição não me permite, mas me escorro
sempre. E até poderia ser na cama, se assim minha dona desejasse, sem
problemas. Meu dever é atendê-la, somente, e hoje tínhamos o bônus de uma companhia!
Na casa da Dona, uau!
Se não fosse tão inapropriado, este momento seria perfeito para sentar e
escrever algumas ideias, insights valiosos que sempre escoam nas
cascatas da inspiração nessas horas tão inapropriadas, quando estamos sem lápis
e papel, e encharcadas de outras torrentes, igualmente inspiradoras e
excitantes. Porque estimulam! E se minhas conjecturas estiverem corretas,
minhas senhoras, a convidada desta noite é ninguém mais, ninguém menos que a
iniciada da Dona. Raiana. A primeira de todas. A que veio antes. Abridora de
portas. Lançadora de dommes. Inauguradora de dominatrix. A que testa e
atesta. Pitbull. Obviamente era meu
dever resolver o mal-estar e ser amiga dela.
Enrolei no cabelo a toalha que encontrei em cima da pia e antes de sair
conferi o que havia dentro do armário do banheiro. Me senti uma transgressora
fazendo isso, mas quebrar regras às vezes é um tesão. Aí duas escovas de dente
em caixinhas semelhantes me chamaram a atenção, me mostrando que o preço de ser
subversiva pode ser bem alto. Quase brochante.
Mas ver Raiana ajoelhada ao lado da cama da Dona me fez mudar o rumo do
pensamento. Não esperava vê-la ali, toda obediente e comportada, mesmo estando
completamente sozinha no quarto. Essa galera de primeira classe é realmente
outro nível! Ainda bem que nunca tive pressa de chegar neste patamar, mas ó, é
bonito de ver!
– Desculpa, não
começamos muito bem – falo, puxando um pufe para perto dela – Vamos tentar de
novo! Amigas? – estendo a mão, como se hasteasse uma bandeira branca – Você é a
Raiana, né?
– Raí – ela
corrige, mas retribui o cumprimento – E você? “Vira-lata”?
– Meu nome é
Luana – respondo, quase dizendo “Caramelo”.
Quem erra o próprio nome?,
penso. Por que será que a Dona me chamou de “vira-lata”? Ela é que me convidou
para vir, nem de longe estava esperando por isso, mas aí vim e o cachorro
estava solto, e eu, morrendo de sede... Só queria beber água, depois de correr.
“Deixa ir embora, deixa ir embora...”. Ah, não! “Gripcur vai te surtar...”.
– Ei, Raí –
esperei ela me olhar – Qual a senha do wi-fi? Preciso colocar uma música –
balancei a caixinha de som, reforçando o que dizia.
– “Terapia em
dia” – a resposta demorou alguns segundos. Deu tempo de a toalha do meu cabelo
querer escapar umas duas vezes – Coisas de Dona Sabrina...
– Claro! – Dona
Sabrina, a psicóloga.
Ainda tinha que matutar sobre isso algumas horas antes de emitir uma
opinião formal a respeito. No momento, o que estava ao meu alcance era conectar
o celular à rede, e depois à caixinha de som, para fugir daquele jingle
alucinante. Qual a boa, DJ?
– “Numa nave
espacial/certos de que além do acima há uma jornada/eu quero ir pro espaço
sideral/nessa vida passageira eu vou contigo até o fim...” – cantei,
distraída.
Precisava pensar em algo para me redimir com a Dona, que ia além de
conquistar Raí, que acho que já estava do meu lado, ainda que não tenha feito
nada quando tentei sensualizar para ela.
Me alertei para depois perguntar o que ela fazia para não sentir dor nos
joelhos. Eu depois de um minuto ajoelhada já peço arrego, sai fora! Não pude
perguntar naquela hora porque neste momento Dona Sabrina chegou, parecendo mais
calma, como sempre ficava depois do cigarro que ela sempre dizia não gostar de
fumar.
– Vocês têm 15
minutos para se acertarem – ela diz, num tom sério, antes de ir tomar banho –
Não me interessa como vão fazer, mas se resolvam.
– Nossa, como
essa mulher é brava! – exclamo, extasiada, depois que ela se fecha no banheiro
e nos deixa mais uma vez sozinhas – Adoro, que delícia! Ei, Raí! Posso te
perguntar uma coisa? – ela só levanta os ombros, sem dizer nada – Por acaso
hoje você subiu de escada?
– É realmente
isso que você quer saber? – Raí questiona, depois de fazer uma cara de sincera
surpresa, que durou alguns segundos.
– Hum... Tá. Nunca
participei de sessão com mais gente e você? – essa dúvida era maior que a
anterior, ainda que realmente eu quisesse saber o porquê de ela estar tão sem
ar quando me flagrou mais cedo na cozinha. Sou corredora, pareceu que ela tinha
subido os oito andares de escada, sei lá por que – Já? – insisto, diante de seu
silêncio.
– Sim, algumas
vezes – Raí responde com uma casualidade que me espantou.
– No plural? –
me ouço perguntando. Ora, é claro que sim! A mulher é quem experimenta os
aparatos da Dona em primeira mão, Luana, o que mais você quer? Ela foi a quem
iniciou, acorda!
Como será que era a Dona antes de ser dominatrix? E quem era a dona da
Raí? Como esse povo faz para se conhecer? Existem festas que as reúne num mesmo
espaço?
Será que os imóveis que eu juro que são só de fachada são na verdade
clubes de BDSM com fachada de imóveis? Imagine como seria o mundo se os
fetiches fossem estampados em nossos muros!, pá!, na nossa cara! Teríamos mais
fã ou mais hater?
– Geralmente é
algo combinado – Raí continua, me trazendo de volta à realidade – Dona Sabrina
gosta de tudo bem acordado, sabe como é.
– Sei, sim, meu
contrato que o diga – eu rio, lembrando de quando o documento foi elaborado.
Sempre uma ótima memória! – Pera, então hoje é uma exceção?
– Ela não me
avisou de nada...
– Nem a mim! Não
estava esperando por uma sessão, a Dona ainda nem leu minha última mensagem –
resmungo, refletindo se a esta altura isso ainda tinha alguma importância.
– Provavelmente
porque ela andou ocupada com a irmã, que operou.
– Pois é, e eu
não encontrei por acaso com elas mais cedo, sem saber da existência dessa irmã?
Ou que a Dona era psicóloga!
– Mentira! E
você confundiu as duas?
– Claro, elas são idênticas – me defendo,
lembrando do silicone.
– Quase idênticas
– Raí diz – Pera, mas você confundiu as duas e mesmo assim está aqui? Que
façanha! Como conseguiu esse convite? Elas detestam ser confundidas.
– Percebi! Não
sei o porquê de estar aqui. A Dona me chamou depois, talvez para me punir por
ter pedido para a irmã dela me chicotear.
– Você pediu
para a Giovana te bater? – ela ri, tampando a boca para não fazer barulho – Com
certeza é por isso!
– Falei por
impulso, fiquei emocionada achando que o silicone era da Dona... Deve ter sido
a adrenalina da corrida, só pode. Nunca nem apanhei de chicote... a Dona tem
subido a escala dela bem gentilmente comigo, sou um pouco sensível à dor... –
minha voz foi diminuindo no final da frase, virando quase um miado.
– Dói, hein –
Raí afirma, sem pestanejar. Pareceu que de repente ficou desarmada. Até
amigável! – Dói mais se for empunhado com a mão direita. Com a esquerda a Dona
tem menos força.
– Dói mais que
fio? – pergunto, usando minha referência máxima de dor. Fio é ardido demais, quequeéisso
– Não conheci ainda todos os aparatos da Dona...
– É, o chicote
fica perto do topo. Não por acaso é um dos mais doloridos, sim. Mais que fio.
– Preciso
amaciar a Dona... alguma sugestão? Sermos amigas é o primeiro passo, acho.
– Com certeza se
a gente não brigar já será um bom começo... – ela resmunga, se ajeitando na
posição. Foi a primeira vez que pareceu estar incomodada por estar daquele
jeito – Te diria para tentar um strip-tease, mas você já está sem roupa.
– É uma boa
ideia. Ainda tenho a toalha me cobrindo, afinal – respondo, por instinto
levando a mão até a boca. Meu gatilho para o nervosismo sempre foi roer unha,
mas era proibida de fazer isso perto da Dona, o que no fim acabou me ajudando
até para quando ela estava distante também. Mas gatilho é gatilho, sabe como é
– E quanto ao meu erro no parque? O que me sugere fazer? – pergunto, sem
especificar que me referia também ao fato de ter sido flagrada olhando para o
decote da Dona, após me deslumbrar com o decote siliconado da irmã, e depois de
pedir uma surra por engano.
– Ah, quanto a
isso, gata... O que eu tenho a dizer é: prepara a bundinha – Raí diz, mas sua
fala não soou ameaçadora. Não sei se foi sua intenção ser e nem se ela tinha
essa capacidade, também – E não se mexe durante a contagem, para não correr o
risco de ter que recomeçar.
Pronto. Taí um conselho sábio.
Só torci para que fosse fácil me manter parada e me perdi confabulando como
seria participar de uma sessão com mais gente. Ou melhor, com Raí. Quando a
Dona saiu do banho, eu já estava molhada, envolta em minhas fantasias.
Nunca imaginei fazer strip-tease
com playlist de corrida, mas até que deu certo, consegui seduzir mesmo
com um som tão agitado e cumpri minha função de surpreender a Dona, que não
parecia estar esperando por algo do tipo, uma vez que eu já me encontrava só de
toalha. E a surpresa maior na verdade foi minha, ao perceber o quão excitante
era me exibir para minha dona acompanhada de alguém tão cativante quanto Raí,
que manteve os olhos em mim durante a breve apresentação, que durou duas ou
três músicas.
E se eu esperava uma roupa
especial, uma fantasia, algo com couro ou látex, me estabaquei, do alto das
minhas expectativas, pois a Dona voltou para o quarto usando apenas um roupão
branco atoalhado, imaginei que com mais nada embaixo. E conseguiu ficar mais
sexy do que qualquer outra vestimenta seria capaz de deixá-la!
Quis sentir sua pele cheirosa debaixo do pano macio que escondia seu
corpo de mim! Mas tudo o que fiz foi me esfregar no assento do pufe dela,
fingindo rebolar na cadência de um som que eu já nem ouvia mais. A esta altura,
meus ouvidos reproduziam eram os meus próprios gemidos, despertados por um
tesão alucinante que provocava vibrações no meu corpo inteiro, fazendo a região
entre as minhas pernas latejar e doer.
Em dado momento, puxei os óculos escuros de cima da mesa, junto de onde
estavam minhas roupas, e me pus de quatro a engatinhar pelo chão do quarto,
provocativa, como se segurasse com a boca a coleira que mais cedo a Dona me
guiou pelo parque, na frente de todas as pessoas. Me deixei ser vista por
alguns segundos, cativando as duas, até parar de repente em frente à Raí,
contendo uma vontade maluca de mordê-la inteira, de rasgar suas roupas e cravar
meus dentes em toda a extensão de seu corpo. Para machucá-la, sim, deixá-la
toda marcada, por ser a cadelinha da Dona cheia de pedigree, mas especialmente
para provocar uma briga, para tirá-la de seu prumo ali, ajoelhada,
desencadeando uma rinha, a fazendo me morder também, quem sabe.
Fiquei apoiada nos joelhos, nossos olhos mais ou menos na mesma altura, e
ao encará-la, rosnei. Pareceu um ronronado, mas eu mirei foi no rugido. Acho
que quis mostrar a ela meu potencial, só que o tesão me desviou (para não dizer
“meu bom coração”, que soaria brega demais). Raí obviamente não se intimidou,
nem piscou! E isso me excitou de tal maneira que nem planejei direito meus
próximos atos, nem esperei um comando da Dona; quando vi, já estava me pegando
com ela num beijo ardente, a enlaçando pela cintura, a puxando para bem perto
de mim. E foi recíproco: o beijo e as carícias, enquanto nos beijávamos de um
jeito que parecia que estávamos dançando, mesmo depois que a música trocou.
Dona Sabrina participou indiretamente do nosso momento íntimo e foi a
responsável por tirar a camiseta de Raí, que não era adepta de sutiãs e tinha
os seios fartos, bonitos. Quis senti-los com os meus, que encobriam meu coração
acelerado, em polvorosa com tantos estímulos e expectativas das melhores
qualidades. Mas ainda havia roupa nos separando, então sentei nos tornozelos
aguardando Raí terminar de se despir.
Nos separamos brevemente, rápido o suficiente apenas para que ela tirasse
primeiro a calça e depois a cueca, antes de voltar a se encostar inteira em
mim, permitindo que nossos pelos se prendessem, dando nó em nós. O fato de
enfim ficarmos nuas juntas, tão próximas e pela primeira vez, acelerou nosso
beijo, que agora tinha uma pegada mais urgente e apressada, carregada de
luxúria.
– Na posição, as
duas – a Dona ordena, estalando os dedos uma única vez.
Meu corpo inteiro se contraiu ao ouvir o comando, deixando minhas pernas
moles, e quase não consigo subir na cama, atrás de Raí. Ela inclusive foi a
primeira a se debruçar sobre colchão, perto da cabeceira, se empinando toda
gostosa, mostrando uma disciplina que estava a anos-luz da minha.
Esta posição me excita desde a primeira vez em que me pus assim, com o
rosto para baixo e a bunda para cima, as mãos trançadas para trás, nas costas.
E ela conseguiu ficar ainda mais prazerosa sendo compartilhada. Raí e eu ficamos
com o rosto virado para o centro da cama, nos encarando, experimentando da
mesma expectativa, ainda que acreditasse que nesta noite apenas eu fosse
apanhar.
Dona Sabrina se colocou atrás de nós em silêncio, decerto admirando a
cena que via, e fez Raí gemer gostoso ao passar lubrificante nela, a forçando a
fechar os olhos em um sincero regozijo, o corpo todo se contraindo de maneira
defensiva e logo voltando à posição, se oferecendo. Daquele ângulo pude ver que
o plug escolhido para Raí tinha uma cauda externa, igual à de uma raposa, que
eu adorei! Mas gostei mais foi do gemido que ela deixou escapar, ao receber uma
carícia da Dona, que conhecia bem nossos corpos. Gemi com ela, me ofertando
também, e ganhei um tapa bem sonoro, daqueles que ficam as marcas dos dedos no
local atingido.
Esse tipo de coisa ao invés de me brecar, acelera. Por isso sorri para
Raí quando ela olhou para mim, segundos antes de eu também receber das mãos da
Dona um plug, que parecia ser normal, mas que me excitou enormemente, de todo
jeito, arrancando de mim um gemido mais demorado quando a peça de metal gelado
me invadiu, me preenchendo.
A Dona então se levantou e durante alguns segundos pareceu procurar por
algo dentro do baú que ficava acoplado aos pés da cama. Ali provavelmente era
onde guardava seu tesouro, as ferramentas de tortura que depois transportava
dentro de uma maleta sóbria. Agora eu sabia que era parte de seu estilo!
A acompanhei voltar para perto de Raí segurando um vibrador, que ao ser
introduzido despertou gemidos em nós três. Raí piscou de maneira demorada,
sexy, me fazendo contrair os olhos sem querer. Aí a vi ser levantada pela Dona,
que ajeitou um estimulador externo preso em seu clitóris, ligado ao aparato
dentro dela. Não parecia estar funcionando, mas já provocava uma notável moleza
nas pernas de Raí, que ficou ali parada quase se contorcendo, vendo desta vez
eu ser levantada da cama, abruptamente.
Um breve interrogatório aconteceu enquanto merecidamente eu era sufocada
no decote de minha dona, que conforme minha prévia suposição tinha mesmo se
ofendido com meu comportamento mais cedo, no parque. Não relutei porque de fato
julguei que merecia a advertência e também porque sufocamentos sempre são
eficientes para me deixar excitada. Extremamente excitada, morro de tesão!
Dona Sabrina calmamente desfez alguns novelos de uma corda preta
encerada, sem verbalizar que pretendia nos prender uma à outra para me punir do
jeitinho que eu havia pedido: com um chicote, mesmo que fosse instrumento
avançado na sua escala de punições.
Antes de iniciar as amarrações a Dona ligou o vibrador e Raí gemeu
baixinho ao ser presa em mim, se escorando na cama. Então fomos posicionadas de
forma que ficássemos bem próximas, as cinturas praticamente coladas, ao ponto
de eu também ser beneficiada com o estímulo do vibrador que massageava o
clitóris dela. Nossos púbis se apertaram, unidos por cordas que já provocavam
sulcos em nossas peles. Até nossas virilhas foram trançadas, de um jeito que
pareceu que foi apenas para o prazer da Dona, que ao terminar de nos prender
ficou um tempo admirando sua obra de arte, antes de aumentar a potência do
vibrador.
Raí ficou apoiada com a bunda na cama, virada para onde a Dona estava. Eu
fiquei de costas, com o rosto na direção da cabeceira, tão engatada nela que
era simplesmente impossível sair do lugar um centímetro que fosse. Nossos
tornozelos mantinham nossas pernas abertas, presos aos pés da cama. Me vi
pensando que o quadro de lírio deveria na verdade ser algum registro de
bondage, já que ela gostava tanto. Será que era esse tipo de foto que a tal
Senhoritinha fotógrafa fazia?
Ainda que não estivesse vendada, como era de costume nas sessões com Dona
Sabrina, o fato de não estar vendo o que ocorria às minhas costas me impedia de
especular o que estava por vir. E o anúncio veio em forma de som, quando um
chicote de repente estalou no ar entre as paredes do quarto, fazendo com que
Raí e eu gemêssemos por motivos opostos, mas complementares.
– Não goza – a
Dona diz para Raí, mas a ordem fez eu me encharcar mesmo assim, me arrancando
um suspiro prévio, que anteviu os que viriam na sequência.
O segundo som foi igual ao
primeiro, mas em vez de estalar no chão, o chicote lambeu a carne fina da minha
bunda.
– Ai, ai, Dona,
Dona... – eu resmungo, gemendo de dor e prazer, já pedindo arrego em
pensamentos. A ardência da chicotada se estendeu por longos segundos depois do
impacto da tira de couro contra o couro da minha pele. Dói muito mais que fio,
socorro.
– Dona – Raí
geme também, mesmo sem sentir nada. Ou talvez gemeu porque sentia muitas
coisas.
– Eu disse “não
goza” – a Dona repete, sua voz séria ecoando instantes antes de o chicote
rasgar o ar mais uma vez, atingindo minha bunda de novo, de um lado ao outro,
me arrancando quase um grito.
Instintivamente quis fugir dali,
correr para onde o chicote não me alcançasse, mas estávamos bem amarradas, Raí
e eu, e minha tentativa frustrada de escapar só serviu para forçar ainda mais o
vibrador nela, a fazendo fincar as pontas dos dedos na minha pele, me prendendo
com força em seus braços.
– Conta – a Dona
ordena.
– Três, ai – a
chicotada pegou em cima de onde foi dada a primeira, reforçando a sensibilidade
do local – Hum, quatro – continuo contando e Raí gemendo – Cinco, ai minha
dona...
– Ô Dona! Dona!
– Raí ficou chamando, sem dizer nada.
A quinta chicotada doeu demais,
me forçou imediatamente a pensar na palavra de segurança, que ficou gritando na
minha mente, em neon. Mas a sexta chicotada foi ainda pior! Será que a Dona
estava com a mão esquerda e mudou? Me fez gritar, juro!
– Hum... – Raí
geme de um jeito diferente, mas eu estava ocupada demais sentindo minha bunda
queimar inteira para tentar entender.
– Raiana – a
Dona a chama, num tom de alerta.
– Sete – eu
conto. Me empinei porque sou uma putinha safada e sem nenhuma vergonha na cara,
mas as cordas me impediram de me erguer mais, oferecida – Ai, Dona...
– Posso gozar,
Dona? – Raí pede, com um fio de voz – Vai, por favor, eu imploro, já está
vindo, deixa, Dona, por favor...
– Oooito –
conto. Falta pouco! Força, guerreira!
– Você só vai
gozar quando eu mandar – a Dona diz, mandona – Ainda não.
– Ai, Dona, nove
– minha contagem sai esganiçada. Tá, agora com certeza ela mudou de mão porque
essa doeu demais! – Por favor... – a palavra de segurança fica presa na
ponta da minha língua.
– Dona – Raí me
aperta, quase me deixando sem ar – Dona, eu não vou aguentar, por favor, me
deixa gozar!
A décima e mais dolorida
chicotada veio junto com o orgasmo de Raí, que gemeu alto e demoradamente,
gradativamente me soltando de seu abraço forçado. Foi tão gostoso, e tão
estimulante, que me esfreguei onde ela latejava, minha bunda ardendo servindo
de motor para eu gozar também. Senti que Raí quase gozou de novo.
Permanecemos um tempo ali,
paradas no meio do quarto, amarradas e ofegantes, até que a Dona enfim nos
liberasse das cordas. Honestamente, achei que ficaríamos assim até o dia
seguinte, mas ela nos soltou para que lhe déssemos um merecido e molhado
orgasmo. Junto de Raí, me acocorei sobre o colchão e revelei o corpo de Dona
Sabrina nu debaixo do roupão, respingado de suor pelo esforço que tinha
dispendido. Maravilhosa! Esplêndida!
Meu prêmio da noite foi ouvir a
deliciosa cadência de seu gemido ao gozar. Pelo visto, era o som preferido de
Raí também.
Eu nem imaginava, mas passei a
noite bem acompanhada, bem molhada e bem gozada. E ainda com o bônus de ser
contemplada toda hora pela Dona e por Raí, que pareciam satisfeitas com as
marcas deixadas pelo chicote em mim.
Em dado momento, já perto de
dormir, Dona Sabrina se distraiu com algum problema do trabalho e Raí e eu
tivemos uma conversa em outro tom, bem diferente do usado no primeiro diálogo.
Ela então me contou que trabalhava com paisagismo, que preferia planta a bicho
e que gostava mais de bicho do que de gente, o que a fazia viver um pouco
reclusa – suas únicas saídas eram para fazer faxina no apartamento da Dona,
atividade que desempenhava pelo puro prazer do cuidado.
Raí revelou que admirava quem
corria por lazer, disse que durante boa parte de sua vida foi sedentária e
obesa, e que gostava de sentar em bancos de parque para ver as pessoas
praticando cooper. Enquanto a Dona ainda estava às voltas com sua
agenda, resolvendo algum pepinão, Raí disse que o que a fez mudar o prumo foi o
BDSM, quem diria. Aí me contou que Dona Sabrina tinha responsabilidade nisso,
porque alguns anos atrás havia determinado que Raí abolisse os elevadores de
sua vida, assim como as escadas rolantes. Sem que eu precisasse perguntar
novamente, explicou o porquê de estar sem ar quando nos encontramos mais cedo,
na cozinha. Subir de escada era uma ordem expressa que ela gostava de cumprir.
Mais tarde, quando Raí deitou
aos pés da cama para dormir, Dona Sabrina me entregou uma escova de dentes
extra que deixava no armário do banheiro, igual à dela. Ao fazer minha higiene
bucal, puxei o celular e me surpreendi com uma mensagem sua; uma resposta ao
meu questionamento de dias atrás. Dizia: “Você pode entrar em contato, mas
sempre fique atenta aos meus sinais”.
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