O Jardim (conto)

      Essa é a quarta história da terceira temporada da Novelinha <3 

Se ainda não leu a terceira (parte da terceira história), "A exceção - Luana", clique aqui.

 

Durante muitos anos a obra O Jardim das Delícias Terrenas, de Bosch, pseudônimo de um pintor holandês nascido no final da Idade Média, foi alvo de críticas e descaso, muito provavelmente devido a erros de interpretação. O quadro, que na verdade é um tríptico de madeira, retrata a criação do mundo numa espécie de linha do tempo, onde no centro é mostrado o pecado, de um jeito curioso e colorido, como se fosse um tipo de paraíso perdido, tendo à esquerda o início da Terra e, à direita, a consequência dos atos mundanos, num inferno em tom escuro.

Quando fechado, o quadro revela em sua parte exterior um globo que supostamente faria alusão ao terceiro dia da criação do mundo, com a Terra dentro de uma esfera transparente que lembra uma bolha de sabão, talvez em referência à fragilidade do planeta. O número três, considerado perfeito, pois encerra princípio e fim, pode ter relação também com a trindade divina, e conversa com a única frase da obra, em latim, extraída do salmo 33: “Ele o diz e todo foi feito. Ele o mandou e tudo foi criado”.

Críticos e historiadores do mundo inteiro por muitos anos analisaram as três cenas, repletas de simbolismos que remetem principalmente ao ato sexual, como aves de todos os tipos. Naquela época, o plural de pássaros era a mesma palavra usada para descrever o sexo, o que faz muitas pessoas acreditarem que a encomenda não foi feita pela Igreja, como era costume nos tempos mais antigos. Mas há também detalhes mais explícitos, por exemplo, um Adão olhando com interesse libidinoso para uma Eva amparada por um Deus extremamente jovem, parecendo Jesus Cristo, além de ostras e mariscos, símbolos igualmente sexuais, que remetem à anatomia íntima feminina. Tudo isso pintado em linhas firmes durante um período em que o sexo era considerado meramente reprodutivo, quase inocente.

Só muitos séculos mais tarde, quando o movimento surrealista deu palco para artistas como Salvador Dalí, famoso pela combinação de imagens oníricas e bizarras, é que a obra de Bosch começou a ter seu merecido reconhecimento e pôde sair da apatia do esquecimento, mostrando ao mundo um enquadro poético e até mesmo divertido. E décadas se passaram depois disso até que finalmente chegasse o dia em que os olhos de Alessandra se esbarassem na obra pela primeira vez, a encantando de imediato. Ao encontrar a ilustração num livro empoeirado e antigo, sentiu que portas que sequer sabia que existiam dentro dela destravaram-se, ao conhecer mundos excêntricos onde a observação e a perspectiva de quem vê fazem toda a diferença. Mais ou menos como ocorre na vida, em que tanta coisa passa despercebida.

Não por acaso, uma réplica de Bosch é a primeira coisa que se vê ao entrar na loja de flora e paisagismo O Jardim, localizada numa área nobre da zona sul de São Paulo. Em meio a plantas de todos os tipos, flores e arranjos de variados tons, Alessandra trabalha sempre se lembrando da importância de se ter um olhar apurado e, principalmente, de que tudo segue um ciclo de começo, meio e fim, sem castigos para a diversão.

Nem de longe acreditava que a humanidade estivesse fadada ao inferno desde sempre, assim como tinha a convicção de que o mesmo havia ocorrido com Bosch, tido por muitos como pessimista, um delirante de gosto duvidoso, “inventor de monstros e quimeras”. Dona de uma sensibilidade poética, Alessandra gostava de crer que “tudo é divino e maravilhoso”, como diria a eterna Gal. Por isso, partia do princípio de que, se existe, é permitido. Não há pecado quando tudo é certo e liberado. E ela provava seu ponto de vista escorada no inferno de Bosch, povoado apenas por religiosos, apostadores e soldados. Ou seja, ao jardim das delícias ficam reservadas as delícias da vida.

Assim, de flor em flor, Alessandra se deleitava em sua fase mais ativa desde a entrada na idade adulta. Deliciava-se fartamente e sem nenhum pudor com os prazeres da carne, envolvendo-se com mulheres que, assim como ela, não nutriam por aí nenhum sentimento de culpa por conta de sua luxúria muitas vezes exacerbada. “Gozar a vida” era um termo quase literal em sua rotina que começava e terminava nO Jardim, sob as bênçãos da obra de Bosch. Alessandra passava os dias envolvida com as plantas e as noites enrolada em rabos de saia. Acreditava desta forma estar sempre acompanhada das melhores espécies, diariamente.

A loja O Jardim era quase toda de vidro, com heras em três tons de verde que cresciam do lado de dentro e trepadeiras floridas de rosa cercando a estrutura de metal pela parte de fora, tornando o ambiente bastante fresco em dias quentes e úmido nas estações mais frias. O salão espaçoso era dividido por prateleiras vazadas que criavam corredores itinerantes, que mudavam conforme a época do ano, expondo plantas específicas de cada período. Estrategicamente, no meio ficava um balcão circular onde Alessandra passava parte do dia, quando não estava trabalhando na estufa acoplada ao imóvel, seu local preferido. Gostava mais de minhocas às burocracias do negócio.

Nos fundos, perto da porta que dava acesso ao pequeno armazém e o orquidário, Alessandra tinha mandado construir uma cozinha e um banheiro pequeno, e em cima ficava o escritório, com uma espécie de sacada para o interior da loja, onde ficavam pendurados  diversos vasos com brincos de princesa. O teto vazado permitia que a luz do sol entrasse, então certas áreas eram privilegiadas para espécies com flor, como ali. Mas a predileção de Alessandra eram as folhagens, então junto do que estava à venda havia também plantas que eram dela, companheiras de vários anos de vida, como samambaias, costelas de Adão e jiboias, suas favoritas.

– Bom dia! E aí, contabilizados os prejuízos do fim de semana? – Raí pergunta, assim que chega ao trabalho e encontra Alessandra com o rosto iluminado pela tela do computador. Uma caneca vermelha de porcelana fumegava próximo de sua mão, exalando um delicioso e convidativo aroma de café. As raízes expostas de uma orquídea pendurada acima de sua cabeça quase tocavam seu cabelo.

O drama envolvendo uma noiva traída no fim de semana tinha sido um dos assuntos mais comentados nas últimas horas, indo parar nos trending topics do Twitter, com vários memes circulando desde então numa velocidade absurda. O mais engraçado fazia referência ao buquê, que terminou a noite impecável mesmo depois de ter sido arremessado várias vezes contra o noivo, flagrado e intimado no meio da festa.

– Ainda não, mas a publicidade foi boa – Alessandra responde, sem encará-la, erguendo os ombros no fim da frase, distraída – O assunto não ficou restrito à internet e foi parar no telejornal local. Um barraco e tanto! Nunca imaginei divulgar O Jardim assim...

Alessandra vira o notebook para Raí, rindo. Na tela, havia um meme colorido que dizia: “Minha nova meta na vida é não perder jamais a compostura e terminar a noite deslumbrante, que nem o buquê da loja O Jardim”. No fundo, uma imagem do arranjo florido com a logo da loja. Realmente, uma ótima propaganda, ainda mais por ser gratuita. E viral!

Embora os danos da festa superassem a questão emocional, afinal os estragos foram múltiplos (algumas fotos do salão de festas parcialmente destruído circulavam pelas redes sociais), Alessandra não parecia preocupada com alguma possibilidade de perda financeira. Ou porque era desprendida, ou porque confiava no seguro embutido no preço de seus serviços de festa.

Raí a observa ocupada com algo no computador, seus olhos escuros refletindo a luz do monitor, mas não detecta nenhum sentimento carregado vindo da mulher. Pelo contrário, ela parecia leve, como em todas as manhãs.

– Está com a carinha boa, Raí! O que rolou nessa sua folga, hein? – talvez por sentir-se observada, Alessandra finalmente encara a funcionária, que desvia o olhar diante do comentário, visivelmente encabulada – Olha aí, toda coradinha, parecendo saudável, hum... Tomou um belo de um chá, né, isso está claro como o sol que brilha lá fora – ela cruza os braços e a encara, se recostando na cadeira com um olhar divertido. Mesmo depois de tanto tempo, Raí era um completo mistério para ela, super discreta em tudo o que fazia fora dali.

– Nem tudo tem a ver com sexo, Alê... – Raí desconversa, virando os olhos, sem graça. Enfiou a mochila debaixo do balcão, parecendo querer se enfiar junto dentro do nicho.

– Não... mas no seu caso, sim! – Alessandra dá uma gargalhada alta, bem sonora – No meu também, tudo bem, meu bem – ela mexe com a mão, como se o gesto tirasse o peso de suas palavras, e atos, segundos antes de digitar algo no computador, voltando sua atenção ao que fazia anteriormente.   

– Ah, sim! E aí, foi bom o seu encontro com a sua ex? – Raí pergunta, puxando papo de um jeito afiado. Preferia quando o foco da conversa não era ela.

O fato de trabalharem muitos anos juntas foi um facilitador para que Alessandra e Raí virassem amigas, embora tão diferentes em tantos sentidos. A primeira, bastante extrovertida e falante, gostava de contar detalhes sobre seus encontros – antes e principalmente depois que ocorriam. Já a segunda era do tipo que gostava só de ouvir.

– Foi bom, a Mirtes é uma pessoa ótima, super espirituosa – Alessandra não parecia prestar atenção ao que dizia, ainda digitando no teclado, seus dedos produzindo um som cadenciado.

– Engraçado você falar isso...

– Ah, mas... – Alessandra resmunga. Ao erguer a cabeça para encarar Raí, os óculos que estavam na testa caíram em direção à ponta de seu nariz. Então contraiu os olhos, como sempre fazia quando se defendia de alguma coisa – ...quando a gente não namora, as relações mudam – complementou, se justificando no mesmo tom.

– Claro, não estou te julgando – Raí retruca, parecendo sincera. Se impressionava em como conseguiam ter longos diálogos sem dizerem nada, exatamente, mas ainda se lembrava bem de como Alessandra e Mirtes brigavam feito cão e gato na época em que namoravam, e sabia que a chefe reconhecia sua boa memória – O que está rolando? Temos alguma encomenda? – ela aponta com a cabeça para o computador. Algo importante a fazia trabalhar logo cedo e supôs que tivesse relação com algum projeto novo.

– Não, menina. Isso aqui é assunto pessoal – Alessandra abaixa a tela do laptop, antes de se levantar e servir mais café. Caminhou na ponta dos pés, que nem bailarina, e pareceu escolher bem as palavras antes de dizê-las – Estava pesquisando nas redes sociais sobre uma mulher, sabe, uma cliente em potencial – ela diz, dando maior importância ao que de fato fazia.

– Sei – Raí responde, sem saber, realmente. Parecia mais preocupada com o café, que servia numa caneca estampada com unicórnio.

– É um antigo rolo da Mirtes, se chama Antonieta. Era professora da USP, se aposentou e agora mora numa chacrinha na saída da cidade, lá para os lados da Granja Viana.

– Legal, e você vai fazer o projeto de paisagismo dela?

– Lindíssima, super culta, detentora de vários títulos acadêmicos – Alessandra lista, revelando a real intenção por trás de suas pesquisas logo cedo. Quando terminou de falar, não pareceu ter ouvido a pergunta – A chamei para vir conhecer a loja, estava muito bêbada, só vi a mensagem que enviei no dia seguinte. Espero que ela nem venha, mas se vier eu preciso saber pelo menos o básico a seu respeito.

– Além do fato de ela ser ex da sua ex – Raí dá um risinho junto com a fala. Distraída, não viu o olhar que Alessandra lhe lançou.

– Como se isso fosse uma questã importante... – Alessandra vira os olhos, mas ri.

– É, para você realmente não é – Raí agora ri. Cutucou a chefe com o cotovelo antes de continuar – Você não se preocupa com o risco de falar errado na frente de alguém que é PhD em ter diploma?

– Pois saiba que eu tenho total domínio sobre a minha língua, Raí! – Alessandra se defende, rindo também. Falou de um jeito malicioso, com duplo sentido.

– Aham... Até esses dias atrás você estava aí falando só “que tistreza”. Ficou dias sem conseguir falar direito.

– Não, mas agora é diferente. Quer dizer, isso se eu conseguir atendê-la. Hoje estou cheia de coisa para fazer... – ela suspira e volta a sentar diante do computador, que apita com o som de uma notificação. Em vez de checar do que se tratava, bebericou um gole de café.

– Ai, Alê, não me faz ter que atender gente assim, por favor – Raí murmura, preocupada, pensando na possibilidade de ter que interagir com alguém. Não percebeu que Alessandra a observava por cima da borda de sua caneca vermelha.

– Não vou, relaxa. Eu sei que você é bicho do mato – ela ri, ainda olhando para Raí – Me pergunto como foi que conseguiu uma namorada sendo assim, desse jeito!

– Não tenho uma...

– ...namorada – Alessandra completou, antes que Raí terminasse a frase. Imitou a voz dela ao fazer isso e riu – Pois é, sabemos.

– Enfim... – Raí resmunga, a conversa toda a fazendo logo cedo pensar em Sabrina. Imediatamente seu pensamento rumou para Luana, o que a fez contrair o canto da boca sem querer.

– “Enfim”, pois é. Ainda assim alguém deixou um chupão no seu pescoço – Alessandra emenda, rindo, vendo a colega correr em direção ao quadro de Bosch. Na ausência de um espelho por perto, tentou se ver no reflexo do vidro debaixo da moldura – Raí, Raí... Cuidado que a sua namorada que não é namorada vai ficar brava, hein... – ela ri de novo. Voltou a erguer a tela do laptop, alisando o próprio queixo sem notar. Aí sim, leu o e-mail recebido.

– Tá, e qual que é dessa Antonieta? – Raí pergunta, sentando-se perto de Alessandra. Antes puxou para cima do balcão dois vasos com mini rosas e uma tesourinha de poda.

– Bom, ela não responde nenhum processo, não tem nome sujo e nem antecedentes criminais.

– Importante! Lembra da Soninha? – Raí pergunta, tirando duas folhas da roseirinha à sua frente em dois cortes precisos, quase cirúrgicos.

– A Mirtes me confessou a certa altura que ficava insegura de mandar e-mail para ela – Alessandra revela, como se não tivesse ouvido o comentário. Não à toa! Quem gosta de ser lembrada que namorou uma estelionatária que ficou famosa na internet?

– Mirtes, que é uma jornalista, com receio de escrever e-mail? Sério? – Raí faz uma careta, a boca para baixo parecendo esnobe – Nossa, então tá!

– Pois é, também achei curioso! Depois até fui ver se na mensagem que eu mandei não tinha escrito nada errado, já pensou?

– Imagina se ela é louca e tem, sei lá, fetiche por quem fala errado? – Raí pergunta, ao mesmo tempo, rindo – A sua mensagem tinha erro?

– Fetiche por erro? – Alessandra volta a gargalhar, do jeito que até inclinava um pouco a cabeça para trás – Nossa, já pensou? “Fala ‘pobrema’, fala”, enquanto enforca – ela ri de novo, agora mais demoradamente , fazendo um gesto com as duas mãos – Não, mandei uma mensagem sem erros.

– Vai saber, né, tem maluca para tudo – Raí fala, se lembrando de Luana amarrada nela levando chicotada na bunda. O som daquele gemido ainda ecoava em sua mente, uma delícia! A memória a faz se contrair involuntariamente e naquele momento agradeceu em silêncio por Alessandra não conseguir acessar nenhum de seus pensamentos. Passaria agora o resto da manhã molhada, só por acidentalmente ter esbarrado naquela lembrança – Tá, o papo está muito bom, mas agora preciso trabalhar. Quando dona Antonieta chegar por favor me avisa, que é para eu ficar bem longe dela.

– Pode deixar, Raí – Alessandra ri.

                Acompanhou a mulher sair pela porta dos fundos, carregando os vasos podados nos braços, novamente pensando que Raí parecia mesmo diferente nesta manhã. Às vezes tinha vontade de ser uma mosquinha e segui-la para ver como se distraía em suas horas livres. Sua discrição era terreno fértil para a imaginação de Alessandra, que pensava em mil cenários diferentes; 999 envolvendo sexo, claro.

Deu uma olhadinha para o quadro de Bosch, seu jardim das delícias terrenas, um bacanal artístico a céu aberto, tão colorido e inspirador. Às vezes, ao olhar para a ilustração tinha uma vontade sincera de rolar nua pela relva e esse pensamento, jamais compartilhado com ninguém, sempre a fazia rir. Parecia absurdo, provavelmente por se tratar de algo verdadeiro.

Então voltou sua atenção para o computador e fechou todas as abas de pesquisa antes de se focar no planejamento do dia. Não podia correr o risco de pegar um projeto importante estando com a agenda bagunçada, muito embora seu interesse em Antonieta não fosse comercial. Mas era sua desculpa, para não dizer “armadilha”, e por isso o mínimo era atendê-la bem, de maneira eficiente, para mostrar serviço, mesmo.

No quesito fetiche, o seu sempre foi por mulheres inteligentes. Apreciava uma boa conversa e ficava completamente desarmada, de quatro, diante de quem conseguia entretê-la, com a excitante capacidade de falar por horas sobre qualquer assunto que fosse. Era uma boa ouvinte, não fazia o tipo exigente, se interessava por variados temas. Gostava tanto que muitas vezes nem ouvia direito o que estava sendo dito, ficava quietinha só observando sua interlocutora se expressar, a fala muitas vezes coordenada com os gestos, com o corpo todo. Achava bonito e ao mesmo tempo afrodisíaco. Era uma apreciadora de detalhes e seus exames eram sempre da obra completa, sem deixar nenhum pormenor de fora.

Antonieta tinha o bônus de ser especialista numa área dominada por homens; era doutora em engenharia mecânica com pós-doutorado em nanotecnologia. Alessandra nem imaginava o que isso exatamente significava!, mas tinha certeza de que ela era uma mulher foda. Adorava mulheres fodas! Morria de tesão.

Tão logo soube da existência dela, por intermédio de uma Mirtes alcoolizada, ficou com vontade de sentar com Antonieta em uma mesa de bar, ainda que acreditasse que a mulher não fosse exatamente adepta deste tipo de programa. Mas se sentaria para ouvir qualquer coisa que ela tivesse a lhe dizer, onde quer que fosse, essa é a verdade. Sua vontade era sentar nela!

Só agora parava para refletir que talvez Mirtes pudesse ter ficado incomodada com seu interesse repentino, mas descartou a possibilidade quando pensou que a ex a conhecia muito bem, além de não ter dado mostras de ter algum interesse no encontro delas duas. Alessandra sempre foi desapegada, afinal, praticante do rebuceteio. Que não dá para se fugir muito, convenhamos, estamos todas conectadas por uma rede invisível, a gente querendo (e gostando) ou não. Se não fosse por intermédio de Mirtes, qualquer outra possibilidade poderia fazê-la um dia conhecer Antonieta. A ex só encurtou esse caminho. Quer dizer, isso se a mulher realmente desse as caras por ali.

Alessandra se ocupou a manhã toda no atendimento de clientes atraídos até a loja graças à publicidade do fim de semana. Em uma nota mental, se alertou para depois entrar em contato com a colega de Mirtes, que trabalhava com gerenciamento de mídias sociais. Depois do casamento desfeito e os memes que vieram a tiracolo, precisaria de alguém para gerenciar a conta dO Jardim no Instagram, que amanheceu com milhares de novos seguidores. A social media tinha o nome parecido com o de algum furacão, mas de imediato Alessandra não conseguiu se lembrar qual era. Porém, recordou-se que Catarina era quem cuidava ultimamente das redes sociais do restaurante O Bistrô. Os sentimentos que vieram junto com a memória reforçaram como era impressionante sua dificuldade em relevar certas coisas do passado. Logo ela, que se dizia tão evoluída e desprendida!

Por causa disso, quando saiu para fazer sua hora de almoço estava com um semblante diferente. E ela própria se sentia carregada, então decidiu comer na estufa, em vez de ir para o escritório como sempre fazia. A companhia das plantas certamente lhe seria mais benéfica do que da papelada lá em cima.

Depois de almoçar, enquanto fazia a digestão tomando um justo cafezinho, ligou a caixinha de som para que a música também cumprisse com seu papel, no sentido de elevar a vibração. Amarrou o avental do uniforme na frente da roupa quando os primeiros acordes de “Veja bem, meu bem”, de Los Hermanos, começou a tocar na voz de Ney Matogrosso. Se sentiu performática como ele, quando girou em cima dos calcanhares e começou a cantar, o avental rodopiando junto com o movimento.

– “Veja bem, meu bem... Sinto lhe informar...” – cantarola, ao improvisar uma saia com a barra do avental – “...que arranjei alguém... para me confortar...”.

                Ela para de cantar e novamente leva a mente de volta ao passado. Sorriu ao reconhecer que a letra da música que tocava já foi mais dolorida, em outros tempos, remotos. Entretanto, o movimento feito com a cabeça foi no sentido negativo.

– “Somos no papel... mas não no viver...” – Alessandra continua, cantando baixinho, com os olhos fechados – “Viajar sem mim... me deixar assim...”.

Realmente, assim como na pintura de Bosch, inspiração para o nome da loja, Alessandra acreditava que no presente tudo é concedido se o passado é inocente. E inferno é a gente que cria, por isso esfregou as mãos, como se livrando da poeira do tempo, e foi se ocupar com o serviço, que por ali jamais faltava.

Estava distraída, cantando sozinha nos acordes finais, antes da última estrofe, nem reparou quando alguém abriu a porta e entrou na estufa. Aquele não era um local liberado para a circulação de clientes, que neste momento se acotovelavam dentro da loja, e por isso Alessandra não se incomodava com a possibilidade de ser interrompida de algo – até mesmo de uma cantoria, que era o caso, porque Raí, que de vez em quando passava por ali, não era do tipo que julgava. E obviamente a funcionária estava bastante ocupada, tendo que atender pessoas, espécie que ela mais detestava.

– Sua loja se parece muito com o jardim de Bosch, pendurado lá na entrada – uma mulher diz, provocando um sobressalto em Alessandra – Por favor, interprete isso como um elogio! São muitos detalhes e tantas cores!

– Aceito o elogio só se essa estufa representar o paraíso – ela brinca, sorrindo para a conhecida desconhecida. Tinha visto várias fotos suas e nenhuma se equivalia ao que via agora. Antonieta era simplesmente um espetáculo vestindo jeans e all star.

– A sua funcionária disse que eu te encontraria aqui, mas não imaginei que a indicação me levaria diretamente ao Éden.

                Antonieta olha à sua volta e levanta as mãos, reforçando o que dizia. Ainda que não fosse muito espaçoso, o local abrigava inúmeras miudezas, e muitas delas estavam vivas. Diversos vasos com planta se encontravam dispostos sobre o balcão, nas prateleiras das paredes e pendurados no teto em correntes trançadas. Inicialmente dava uma impressão de caos generalizado, de uma bagunça sem fim, mas olhando de perto era notável que a organização seguia determinada ordem. Alessandra não parecia perdida, pelo contrário: ali, dava mostras de ser a rainha do lugar, que ia muito além de ser somente a proprietária do negócio.

                Usava um avental de um preto desbotado, sujo de terra na altura da cintura. Perto do peito, a logo da loja vinha acompanhada pelo nome dela, bordado à mão em linhas verdes. O desenho era familiar, lembrava uma logomarca que Antonieta tinha visto em algum lugar.

– Bem que você disse que eu ia gostar! Só não imaginei o quanto – Antonieta diz, sem no entanto especificar ao que se referia.

– Fico contente que tenha aceitado meu convite – Alessandra se aproxima e a cumprimenta com um beijinho no rosto – Seja bem-vinda aO Jardim! Aceita um café?

– Sempre, grata – ela responde, voltando a analisar os detalhes dentro da estufa – Deve ser maravilhoso trabalhar cercada de tanta vida, de tanta riqueza!

– Com certeza, tem planta que é melhor que muita gente – Alessandra ri, lhe entregando uma xícara de café. Assim como no pires, a peça trazia a marca da loja estampada na porcelana – Mas pessoas são legais também – ela encosta o seu café no da mulher, como se brindasse.

– Hum, que delícia esse cafezinho! Parece aquele que vendem ali na Alameda Santos, sabe?

– Sim, inclusive foi lá que comprei – Alessandra sorri para ela, sem revelar que só conhecia a cafeteria em questão porque sua ex, Gisele, trabalhava no local. Detalhe, né.

                As duas tomaram café em silêncio, eventualmente se olhando. Antonieta era diferente do que Alessandra tinha imaginado, enquanto Alessandra, na visão de Antonieta, era exatamente como ela supunha ser. Gostava de mulheres que não transbordam feminilidade, como era seu caso. A achou sexy, suja de terra.

– Então, me conta – Antonieta diz, depois de um breve pigarro – Você costuma mandar mensagens bêbada para mulheres que não conhece, propondo encontros em horários comerciais?

– Em geral, não. Mas acontece – Alessandra dá uma risadinha.

– Sei – Antonieta sorri também – Estava lá bebendo com a ex, que por sua vez falou da ex, e aí você “opa! Curti, vou mandar uma mensagem para ela”.

– É... não foi assim, desse jeito, mas foi quase isso, sim. A Mirtes me convidou para ir com ela na reinauguração do Balalaika. Você conhece?, um bar lésbico que tem aqui perto.

– Não... – a resposta pareceu um resmungo – Não sou muito de frequentar bares.

– Imaginei – Alessandra bebe mais um gole de café, a observando. Era linda! Muito mais do que nas fotos, sem sombra de dúvida – Enfim, conversa vai, conversa vem... É um prazer conhecê-la pessoalmente.

– Eu digo o mesmo – Antonieta ergue a xícara, antes de beber o último gole – Me aposentei recentemente, estou morando numa chacrinha... Não chega a ser uma chácara, mas é um terreno bem grande, pensei em plantar algumas árvores. Você poderia me ajudar com isso?

– Com todo prazer do mundo, claro.

– Marcamos de você ir até lá, para conhecer, estudar as melhores opções. Não digo hoje porque sei que está atarefada – ela inclina a cabeça em direção à loja, logo ao lado – Eu vi alguns memes envolvendo o buquê de noiva que você fez.

– Pois é, nem eu esperava começar a semana assim! As coisas na internet acontecem muito rápido.

– Sim, é uma ferramenta incrível – Antonieta tira uma foto da xícara vazia – A gente consegue descobrir muita coisa, para não dizer tudo!

– Tipo o nome da minha loja? – Alessandra ri porque a mulher parecia estar pesquisando a foto no Google.

– É, não! – Antonieta ri também – Desculpa, é que tenho a impressão de que vi uma logo parecida com a sua em algum lugar, mas não consigo me lembrar onde foi.

– Ah... – Alessandra resmunga. Ficou olhando o dedo da convidada deslizar na tela do celular, sem dar mostras de êxito em sua busca. Talvez porque “parecido” não é “igual”, mas sabia ao que ela se referia – Eu li que muita gente ficou surpresa com a sua saída da universidade.

– É, porque as pessoas adoram especular – Antonieta mantinha a atenção no celular – Se frustram quando os planos que traçam para os outros não se concretizam... No meu caso, esqueceram de me consultar se eu pretendia passar o resto da vida na Academia.

– Pequeno detalhe...

– Só um, entre tantos – ela parece desistir da procura, e enfia o celular no bolso da calça – Somos mais complexos que o tríptico do seu Bosch.

– Taí uma verdade – Alessandra finaliza seu café, colocando a caneca em cima do balcão, entre dois vasos cor de abóbora – Pelo jeito o meu gosto artístico te agradou!

– Sim, aprecio o surrealismo. Gosto de Frida Kahlo, de Pablo Picasso... Mas confesso que minha predileção são os desenhos de Henri Matisse. Admiro o simples. No caso de Bosch, especialmente do seu O Jardim das Delícias Terrenas, admiro justamente o oposto: a complexidade, a riqueza de detalhes, a história que é contada através da história que está pintada.

– É um precursor, né – Alessandra sorri para ela. Antonieta tinha o contorno da boca bem feitinho, o lábio de cima fazia uma curva a depender da palavra proferida. Um arraso, ficou com vontade de beijá-la ali mesmo, saber o gosto que tinha sua boca adocicada de café. Ainda que estivesse a alguns passos de distância, sentia que dela exalava um cheiro mais doce que de flor.

– Sim, sempre tem alguém que vem antes. Aqui, entre nós, é a Mirtes.

– E esse elo te incomoda?

– Nem um pouco. Quem é que não tem passado? – Antonieta sorri, parecendo querer reforçar o que dizia.

– Pois é... No meu caso, minhas ex sempre acabam virando contato. Especialmente de negócios, mas acontece de ser de pessoas, também.

– Interessante. Será que conheço algum dos seus projetos? Além do buquê da noiva de sábado, que agora o Brasil inteiro conhece.

– Hum... talvez... Já fiz o paisagismo de clínica de dentista, de salão de estética, de restaurante, de consultório de psicologia...

– Qual restaurante? Costumo sair bastante para comer fora.

– Hum... Conhece O Bistrô, que fica no finzinho da Paulista?

– Ah, sim! Maravilhoso! Já dei aula para uma das proprietárias, num curso de MBA.

– Para a novinha, do trisal? – Alessandra pergunta, com um pouco de desdém carregando o tom de voz.

– Trisal? Não sei, elas agora são um trisal? Na época eram duas, só. Fui professora da Tatiana Custódio, muitos anos atrás.

– Sei. Sim, agora elas são um trisal. Já tem um tempinho, na verdade.

– Que modernas. E corajosas também! Se relacionar com uma já não é fácil, imagina duas... – o comentário saiu como se Antonieta pensasse em voz alta.

– É, ouvi rumores de que as coisas por lá não andam mesmo bem. Parece que rolou uma festa no restaurante e uma delas beijou a bartender... um rolo assim.

– Quem beijou, a terceira do trisal? – Antonieta pergunta, demonstrando que até quem tem bastante estudo se interessa por uma boa fofoca.

– Não sei, provavelmente! – Alessandra responde, se sentindo ardilosa.

– Ah! – a mulher bate as duas mãos, numa palma solitária – Claro! É daí que vem minha lembrança! A logomarca dO Jardim se parece com a logo dO Bistrô! É isso – ela parecia sinceramente satisfeita com sua constatação.

– Ah, sim – Alessandra retruca, parecendo um pouco desinteressada – É que a mesma pessoa foi a responsável pelos dois desenhos. A Tatiana, inclusive, que você conhece.

– Claro, que largou a área de Exatas para virar artista. Professora de Artes, bem dizer. Faz sentido. É muito bonita! A sua logo e a do restaurante também. Sempre me chamou atenção. Inclusive... – ela faz uma pausa, buscando algo na memória – A parte de paisagismo do restaurante também sempre chamou muita atenção! Parabéns, você faz um excelente trabalho.

– Grata, que bom que gosta! Aquele foi um dos meus primeiros projetos, ainda estava só começando. Na época foi fundamental para que eu conseguisse novos contratos, até hoje me serve como uma excelente vitrine.

– Consigo entender o porquê – Antonieta sorri para ela, gentil. Uma única covinha aparecia em sua bochecha esquerda quando o gesto era feito, tão harmoniosamente que serviu para desviar o rumo dos pensamentos de Alessandra, que insistiam em caminhar para um lado sombrio de sua mente.

– Alê, sei que está no almoço, mas preciso da sua ajuda na loja – Raí fala, aparecendo na estufa de repente. Seu pedido veio em tom de desculpas – Achei que daria conta, mas estou enlouquecendo, socorro.

– Claro, já estou indo – Alessandra responde, desamarrando o avental imediatamente.

– Não vou te atrapalhar – Antonieta sorri, ajeitando no ombro a bolsa de alça transversal – Adorei nosso café, e principalmente conhecer o seu cantinho boschiano, tão agradável. Espero que possa em breve conhecer o meu espaço e me ajudar a transformá-lo, como fez aqui.

– Vai ser um prazer! Podemos marcar um horário até o fim da semana. Quinta-feira está bom para você? – ela puxa a agenda de dentro de uma gaveta, vendo que dia 23 era o próximo domingo. Irritada, não quis pensar em quem fazia aniversário naquela data.

– Quinta está ótimo. Vou te mandar meu endereço pelo WhatsApp. Mais uma vez, muito prazer em conhecê-la, Alessandra!

– Digo o mesmo, querida! Até breve, nos falamos – elas se despedem com um abraço rápido.

                Alessandra passou o dia atarefada, com a loja cheia. De vez em quando, pensava ora em Antonieta, ora em Tatiana, nO Bistrô. Pensou até mesmo em Mariana, que sabia não ter sido a responsável por beijar a bartender na tal festa. Por tudo isso, sem querer ficou o resto da semana inteira pensando na aniversariante do dia 23.


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