O baile da Rubi (conto)
Essa é a primeira história da terceira temporada da Novelinha <3
Se ainda não leu a última história da segunda temporada, "3xTPM - A festa", clique aqui.
A década de 1980 foi marcada no Brasil por momentos inéditos de esperança,
com o fim da ditadura que durou um período macabro de mais de duas décadas,
cinco mandatos militares e 16 atos institucionais que, em geral, impuseram
repressão e censura no país, além de muitas mortes e torturas de todos os tipos.
Ou seja, com a transição ocorrida neste período, acompanhou-se em tempo real a
tentativa de restabelecimento da normalidade, ainda que isso tenha ocorrido a
passos lentos, na opinião de alguns. Vale lembrar que os anos 80 foram bastante
difíceis para a economia brasileira, com a inflação nas alturas e a dívida
externa colaborando para que o país enfrentasse o que ficou conhecida como “a
década perdida”.
Em 1987, ainda no embalo dos primeiros meses da Nova República, iniciada
dois anos antes, em março de 1985, com a chegada de Tancredo Neves ao poder, um
publicitário paulista chamado Inácio José Marzon aproveitou a onda de confiança
que engolfava o país e, aos 40 anos, fez aquilo que muitos achavam impossível:
recomeçou. Embalado pela nova perspectiva política, que desenhava no horizonte
um cenário bastante favorável, ele decidiu arriscar tudo o que tinha e inovar no
mercado da propaganda, numa aposta considerada ousada para a época. A
redemocratização foi o principal mote de sua recém-criada Agência Rubi, sendo
inspiração para as primeiras campanhas que rapidamente passaram a definir os rumos
deste nicho do mercado brasileiro, graças ao desenvolvimento de um método
original e criativo de se comunicar bem e vender ainda melhor.
Os anos que se seguiram, com o fim da Guerra Fria e a abertura do mercado
nacional para o mundo, foram favoráveis para a Rubi e fundamentais para que a
agência suportasse o baque provocado pelo período turbulento que veio logo em
seguida, que culminou no primeiro impeachment de um presidente que conseguiu manchar
e enfraquecer uma tímida economia e uma jovem democracia, em 1992.
Mas Inácio resistiu – a todas as intempéries, aos desastres econômicos,
políticos e até sociais. E a insistência o fez levar adiante o sonho de profissionalizar,
com o máximo de ética, um mercado com potencial bastante competitivo e, até aquele
momento, pouco explorado e mal aproveitado. A persistência o fez ganhar ao
longo desta jornada muitos prêmios e um importante reconhecimento Brasil afora,
ao ponto de as universidades começarem a estudar o método desenvolvido pela
Rubi, tornando-a referência no ramo publicitário.
Com a chegada dos anos 2000, Inácio finalmente construiu a sede de sua
agência, na zona oeste da capital paulista, próxima ao memorial da América
Latina, estrategicamente numa esquina que nunca foi movimentada. O prédio de
três andares, todo espelhado, foi desenhado pelo próprio publicitário, que
mandou fazer tudo conforme o seu gosto: do projeto ao acabamento, passando
pelos detalhes como a decoração e os móveis, que combinavam entre si
harmoniosamente.
Em sua autobiografia, escrita por uma ghost writer, Inácio revelou
que a agência só pareceu criar forma quando enfim ganhou sua sede própria, onde
ele jurava que ficaria até morrer. Mais que isso: o publicitário disse, com
todas as letras, que a Rubi só tomou corpo de verdade quando ganhou sua joia,
chamada Preta Rodrigues, em 2013. A responsável pelo Atendimento inclusive
tinha um capítulo só para ela no livro, tamanha a sua importância, na visão do
sr. Marzon.
Em 2022, já praticamente aposentado, porém oficialmente ainda na ativa,
Inácio escolheu O Bistrô para sediar a festa de 35 anos da agência. Se
aproveitou de que, além de agradável, o restaurante era detentor de vários
prêmios do Guia Goodyear, principal referência da gastronomia, patrocinado por
ele. À Márcia Vianna, sua escritora fantasma, Inácio J. Marzon revelou em
segredo que aquele seria o seu último grande ato à frente da Rubi.
E até que finalmente chegasse esse momento, os dias que antecederam a
grande celebração envolveram muita dedicação, trabalho árduo e expectativas vindas
de muitos lados. Para o sucesso do evento tão aguardado foi preciso foco,
especialmente na coordenação de diversos prestadores de serviço, vindos de
várias partes da cidade, que tinham horário quase cronometrado para suas entregas
no restaurante localizado próximo à Avenida Paulista. Tudo isso num sábado.
Ainda que a maior parte do
trabalho tenha ficado inteiramente a cargo da chef Patrícia Figueiredo e de sua
equipe nO Bistrô, indubitavelmente competentes, houve muita gente na agência
que também precisou de horas extras para garantir que tudo saísse conforme o
planejado por Inácio. Inclusive Miriá Azevedo, que desde o dia do anúncio da
tal festa já vinha se desdobrando além do horário comercial porque Preta, seu
principal apoio na rotina de trabalho, precisou ser afastada por motivos de
saúde, no pior momento do ano – bem no dia em que o restaurante foi escolhido
para sediar a festa.
Por isso, já fazia semanas que Miriá vinha cuidando do serviço que era seu,
por contrato, tratava dos detalhes pendentes da festa e ainda era obrigada a se
dedicar às questões do Atendimento, pois embora Elias, contratado emergencialmente
para a função, fosse um profissional eficaz, a Rubi tinha peculiaridades próprias,
específicas de uma engrenagem igualmente única, que não se aprende do dia para
a noite e que coube a ela ensiná-lo.
De tudo, certamente a festa da Rubi deveria ser o tema menos importante
de sua lista de afazeres, mas de longe foi o assunto sobre o qual Miriá mais se
debruçou. Afinal, sabia que o evento seria comentado depois durante meses e um
único detalhe fora do lugar poderia ser o assunto principal dessas inevitáveis
conversas.
Então, se dependesse dela tudo naquela noite estaria perfeito; nem tanto por
amor ao trabalho, mas especialmente porque tinha consciência de que seu nome
era vinculado ao da Rubi. O sucesso da agência era o seu e vice-versa. Por isso
trabalhou, e muito.
Quando finalmente chegou o grande dia, sentia-se tão cansada que ao
acordar até cogitou ficar na cama por mais um instante. Era fim de semana,
afinal. Mas mesmo esgotada, física e mentalmente, ela se levantou, com o dia
ainda meio escuro do lado de fora da janela, porque seu senso de
responsabilidade era tamanho que não saberia ser capaz de sequer tirar algum
cochilo.
Como fazia todas as manhãs, se vestiu com o roupão por cima do pijama e
foi até a varanda, apreciar o dia sobre o topo dos prédios ao redor do seu.
Acendeu um cigarro que tirou do maço que ficava propositalmente ali, e emendou
os dois primeiros tragos, sentindo o gosto forte de nicotina na ponta da
língua, acalmando os nervos que ela gostaria que tivessem despertado um pouco
menos à flor da pele.
Era uma das poucas pessoas desperta àquela hora na vizinhança inteira, o
que seria propício para fumar em paz e colocar os pensamentos em ordem, mas
Miriá apagou o cigarro na metade e, ao retornar para o quarto, ao invés de
deixar a porta da varanda aberta preferiu acender a luz.
Foi com o primeiro gole de café, minutos depois, que pensou em Célia pela
primeira vez naquele dia. Constatou pelo celular que suas últimas mensagens nem
tinham sido recebidas por ela e fez um muxoxo ao observar que já fazia dias que
não conversavam direito. Em partes porque andava ocupada, é verdade, mas também
porque Célia parecia ter desaparecido nas últimas horas.
Nada novo no horizonte.
Ao acender o segundo cigarro, ainda sentada à mesa na cozinha, Miriá sentia-se
preocupada, com receio de ter seus planos frustrados, mais uma vez, por causa
de Célia e seus afazeres de mulher casada. Só que desta vez parecia pior porque
tinha partido dela a ideia de dormirem juntas, depois da festa da agência. O
plano era perfeito, desde que desse certo. Miriá tinha trabalhado bastante para
isso, mas Célia precisava fazer a sua parte do combinado. A começar, dando
algum sinal de vida.
Mas porque havia muito assunto para resolver até de noite, Miriá preferiu
deixar a questão de lado, junto com o resto do café, que jogou morno dentro da
pia. “Foco, mulher”, ela se disse, caminhando pelo apartamento descalça e
determinada, decidindo o que vestir. A agência estaria vazia naquele sábado,
como era de praxe aos finais de semana, e ela aproveitaria o silêncio e a
tranquilidade para finalizar o trabalho que não conseguiu terminar na noite
anterior, ao reconhecer às dez da noite que precisava ir embora, para descansar.
Trabalhar logo cedo não era exatamente o programa ideal para aquele dia, mas deixar
acumular para segunda-feira era ainda pior. A festa passaria, mas seus deveres
não, e Miriá era competente na arte de evitar dores de cabeça futuras. Se
poupava de todos os aborrecimentos que conseguia prever. Isso com relação ao
trabalho, é claro. Célia já era outra história.
Voltou a pensar nela a caminho da agência, quando parou para abastecer e
cogitou de lhe enviar outra mensagem. Chegou a pegar o celular e abrir o
aplicativo, mas desistiu. Primeiro porque achou perigoso mexer no aparelho ali,
ao lado da bomba de gasolina (há alertas de que isso pode provocar explosões).
Depois porque considerou que mandar mais uma mensagem não ajudaria em nada.
Pelo contrário! Ao guardar o celular de volta na bolsa, Miriá refletiu que
tentar algum contato agora poderia ser até pior, no sentido de incriminá-la de
algo, vai saber.
Se envolver com mulher casada fez dela “gata escaldada”, então pensava
sempre nos piores cenários, especialmente diante dos sumiços de Célia, infelizmente
comuns, provocados por motivos quase sempre relacionados à Bruna, esposa dela. Às
vezes até ficava com a impressão de que vivia em um eterno estado de espera, aguardando
o dia em que tudo finalmente viria à tona. Sim, porque algo lhe dizia que isso
em algum momento aconteceria; não era nem uma questão de “se”, mas de “quando”.
Aí, como uma espécie de mecanismo de defesa acabava sempre dando mais espaço
para Célia quando sentia algo de estranho, ou quando ela sumia, por exemplo. No
dia em que o circo pegasse fogo, não seria Miriá quem riscaria o fósforo. Ao
menos não era sempre que desejava ser a responsável por isso, como agora. Sentia-se
ocupada demais, afinal, e sem muita energia para lidar com essas questões no
momento.
Verdade seja dita, em grande parte do tempo Miriá achava até benéfico o
fato de ser amante. Era cômodo e prático, considerando que nunca foi de muito
apego, de ficar em cima, grudada. E durante um tempo a relação nesse formato
bastou, ajudando a abafar as frustrações que vieram no caminho, desde que havia
cruzado com Célia. Foi tudo muito bom, e seguro, enquanto não se apaixonou.
Em geral, ponderar sobre isso gerava sempre outro pensamento, mais pesado
que o anterior, de arrependimento por estar fazendo aquilo, há tanto tempo, com
alguém. Mas ainda que detestasse se imaginar no lugar de mulher traída, Miriá
seguiu para a agência sem pensar mais naquilo; optou por se focar no trabalho que
pretendia finalizar ainda pela manhã. Foi no trajeto calculando mais ou menos o
horário que se livraria de tudo e iria para casa, quem sabe descansaria um
pouco antes da festa. Com sorte, se encontraria mais tarde com Célia e ela
daria uma desculpa qualquer para o sumiço; diria algo que Miriá provavelmente
nem faria muita questão de ouvir.
Chegou ao trabalho fazendo uma lista, deliberadamente já colocando para o
fim as tarefas que talvez não cuidasse por agora, listando quais poderia terceirizar,
mas rapidamente seus pensamentos se calaram. Miriá se surpreendeu ao encontrar
movimento logo no saguão da agência. Ao passar pela porta de entrada reconheceu
Inácio sentado com sua bengala, Ricardo, o filho dele, mais à frente, e uma mulher
que de imediato não se lembrou do nome. Viu também Elias, no sofá, e Preta, em
pé ao lado dele. Foi a primeira surpresa do dia, sem dúvida. Sem querer, ergueu
as duas sobrancelhas.
Sua entrada fez com que todos imediatamente se calassem, a encarando como
se Miriá flagrasse algo proibido. Ou um encontro em que obviamente não tinha
sido convidada.
– Miriá, bom
dia, minha querida – Inácio a cumprimenta, assim que a vê – Não esperava te
encontrar por aqui tão cedo. Como você está?
– Oi, seu
Inácio. Bom dia – Miriá se abaixa para um abraço breve, após dar um beijinho na
lateral de seu rosto – Pois é, não esperava também encontrá-los aqui hoje, em pleno
sábado – complementou, olhando diretamente para Preta, que sustentou o olhar –
Voltou?
– Oi, Miriá –
Ricardo a cumprimenta com um beijo rápido – Marcamos de nos encontrar aqui hoje
para apresentar o Elias...
– Bom dia, Miriá
– Elias se aproxima e a cumprimenta de um jeito paulista, também com um
beijinho só de um lado do rosto – Já agilizei o relatório que me pediu ontem, deixei
na sua mesa.
– ... a Preta
retorna oficialmente na segunda, achamos interessante promover esse encontro
prévio entre os Atendimentos – Ricardo continua, se afastando um passo, dando
espaço para a aproximação de Preta, mas ela se manteve imóvel – Estava
inclusive comentando com ela sobre como você e o Elias se deram bem, né Elias?
Miriá saltou os olhos de Ricardo
para Elias, depois voltou a encarar Preta, que permaneceu parada, em silêncio.
Parecia estar descansada, mas tinha no rosto uma conhecida expressão de
desconforto, a boca contorcida num biquinho, bem sutil. Se assemelhava com a
feição de Elias, cujas expressões ela já sabia ler.
– Oi, Miriá –
Preta finalmente falou, movendo a cabeça rapidamente, numa espécie de
cumprimento informal – Não imaginei te ver aqui.
– Ué – Miriá
deixou escapar, o corpo se virando em direção ao elevador – Eu trabalho aqui, gente,
por que a surpresa?
Miriá não esperou uma resposta.
Fez apenas um aceno com a cabeça, erguendo as sobrancelhas agora de propósito,
e apertou o botão no elevador, fazendo a porta se fechar antes que ela selecionasse
o andar. Lá em cima, caminhou rápida até o meio da sala e desabou em sua
cadeira, satisfeita por encontrar o local inteiramente vazio, mas bastante
incomodada com a cena no saguão. “Injustiçada” seria o termo mais correto
porque no fundo se sentia traída, depois de tanto esforço nos últimos dias,
sendo deixada de lado numa reuniãozinha besta que não custava nada ter sido
convidada.
– Sério que eu
nem volto direito e você me recebe assim? – o tom de Preta era de mágoa. Entrou
na sala como um furacão, chegando até a mesa de Miriá antes que ela sequer
esboçasse uma reação à pergunta.
– Você podia ter
pelo menos me avisado que estava voltando – Miriá retruca, também parecendo
magoada – Some durante várias semanas, nem soube se estava bem ou não, se tinha
melhorado...
– Eu tentei te
avisar! O que houve com o seu celular? – Preta cruza os braços, lançando um
olhar desafiador em sua direção, teatral – Não me venha com esse tom de traída,
Miriá, porque quem estava até agora ouvindo elogios melosos à pessoa que me
substituiu era eu e não você.
– Elias não te
substituiu... – Miriá resmunga, pegando o celular na bolsa. Abriu na tela da
conversa com Célia, ainda só um tracinho indicando que a mensagem não tinha
sido recebida.
– Viu? – Preta
estava mostrando o seu próprio celular, a chamada não completada indicada no
visor – Seu celular está fora do ar, olha aqui quantas vezes eu tentei te
avisar sobre hoje – ela volta a virar o aparelho em sua direção, seu número
listado várias vezes, em horários distintos – Não importa o que tenha
acontecido, Miriá... eu te considero minha amiga, minha parça, pô. Achei
que era recíproco.
– Claro que é,
Pretinha – Miriá se levanta, depois de um suspiro alto. Abraçou a colega,
parecendo sincera – Desculpa, ando muito cansada.
– Tudo bem.
– E nem sabia
que meu celular estava fora do ar, que... meleca – Miriá volta a sentar, vendo
Preta mexer no relatório deixado por Elias.
– Parece que ele
é bom, mesmo... Esse tal de Elias – Preta pareceu falar sozinha, logo largando
o documento de volta à mesa.
– Ele é e não
vai roubar o seu lugar. Elias vem para somar, eu fiz o Ricardo prometer isso. O
quê?, não somos parça? – Miriá completa, sendo encarada por Preta – E
ele é gente boa, dá uma chance.
– Veremos –
Preta suspira, rodopiando em cima dos calcanhares, se virando em direção à
porta – Estamos resolvidas, né? Acho bom, nos vemos na segunda – ela diz, dando
um tchauzinho com a mão, enquanto caminhava, sem esperar qualquer resposta.
– Não vai à
festa? – Miriá pergunta, um tom mais alto para ser ouvida.
– Jamais! –
Preta dá uma risada gostosa, sonora, audível mesmo depois que a porta do
elevador se fechou.
Subiu mais um andar, ao invés de
descer, estampando no rosto seu sorriso mais cortês, antes mesmo que a porta do
elevador voltasse a abrir. Preta não achava que corria algum risco de perder o
cargo, ou o emprego, mas só porque Inácio a idolatrava. O problema é que o criador
da agência estava ficando velho e em breve seria obrigado a se aposentar. Isso
tinha ficado claro para ela nesta manhã, ao encontrá-lo no saguão da Rubi.
Depois de quase três meses afastada, se recompondo, no reencontro Preta o achou
debilitado, quase senil.
Se bem que agora avaliava que Miriá também parecia ter envelhecido umas
duas primaveras neste período, não se lembrava de já tê-la visto tão abatida,
com olheiras tão profundas. Antes de entrar na sala de reunião, onde todos a
aguardavam, Preta reforçou para si mesma o que vinha se dizendo nas últimas
semanas: não priorizaria mais o trabalho acima de sua saúde mental. Mesmo que o
dono da agência se afastasse do trabalho, isso não seria uma desculpa.
Ao sentar-se ao lado de Inácio, na cadeira que o velho sempre deixava
reservada para ela, Preta se perguntou o que Ricardo mudaria por ali, quando
assumisse os negócios do pai. Sem querer, se flagrou pensando se Elias é quem
se sentaria naquela cadeira e afastou aquilo da mente tão rápido quanto viu
chegar. Vinha adotando, desde o Burnout, o método de “ligar o foda-se” para os
problemas e, nesse sistema, preocupações banais como essa não têm vez.
Mesmo assim, sorriu para Márcia, a escritora que estava sentada do outro
lado da mesa, porque confiava em seu sexto sentido, que lhe alertava sobre a
saída de Inácio da Rubi. A ghost writter com certeza tinha informações
valiosas, que mais ninguém naquela sala possuía. Preta decidiu que falaria com
ela mais tarde, ao perceber que o encontro daquela manhã não era para tratar
desse assunto, mas sim da festa que ela realmente não pretendia ir.
Enquanto ouvia o que parecia ser um discurso ensaiado (e por isso mesmo,
enfadonho) de Ricardo, a respeito do cronograma da festa de logo mais nO
Bistrô, assunto que pouco lhe interessava, Preta se deixou vagar pela sala, reconhecendo
se sentir contente por estar de volta, por estar ali. Embora a agência parecesse
significar nos últimos dias a sua quase condenação, era ali que se sentia bem,
até feliz. Sorriu para Inácio por isso, que retribuiu o sorriso, dando dois
tapinhas em sua mão, alheio ao que se passava dentro dela. Quando notou, Elias
também sorria, parecendo gentil na outra ponta da mesa, e Preta se lembrou de
Miriá pedindo para que lhe desse uma chance. Só por isso correspondeu ao gesto,
interrompendo quando finalmente descobriu o porquê de ter sido chamada naquele
sábado.
– A Miriá vai
ser homenageada na festa e vocês não a avisaram disso? – perguntou,
demonstrando estar atenta ao que se passava na sala, apesar de sua mente
fugidia. Seu rosto demonstrava toda a desaprovação por aquilo, até mais do que ter
sido intimada a comparecer para entregar à amiga o Troféu Profissionais do
Ramo, na categoria Criatividade, que Miriá ainda não sabia ter sido contemplada
– Só eu que acho isso uma péssima ideia? – olhou novamente para Inácio, mas
desta vez ele fugiu de encará-la.
– É uma
surpresa, Preta – Ricardo parecia contrariado, como ficava sempre que era
confrontado, ainda que indiretamente – Fala para ela, pai.
– É verdade, é
verdade – Inácio concorda, balançando a cabeça enquanto fechava os olhos
devagar – Na festa da Rubi você não pode faltar, Preta, querida. E será uma
justa homenagem à Miriá, que trabalhou tanto pela agência esses anos todos,
você sabe bem. Vocês duas são as joias da minha coroa – acrescentou,
emocionado, não vendo Preta levantar os olhos.
Ainda que discordasse de absolutamente
tudo aquilo, Preta mordeu o lábio, sem vontade de discutir. Não se opunha
quanto à homenagem, achava até que um prêmio só era pouco; Miriá merecia também
um aumento gordo, férias estendidas, uma viagem com tudo pago. O problema era
quererem fazer surpresa com aquilo. Nem todo mundo gosta de surpresas. Só que,
oficialmente, ainda não tinha retornado ao trabalho, então pensou: para que se
indispor tão cedo? E com Ricardo, que em breve seria seu chefe imediato?
Ficou em silêncio, mas balançou a cabeça, em negativa. Conhecia Miriá de
vários carnavais. Não apenas isso: conhecia Miriá de vários happy hours,
sabia que o álcool costumava sempre trazer a tiracolo a imprevisibilidade, entre
otras cositas más, que facilmente fazem desandar até os planos mais bem
elaborados. E se ela, sei lá, sumisse na hora da premiação? Não seria a
primeira vez.
O evento era um baile a fantasia
com todos os convidados usando máscaras, tampando suas identidades numa festa open
bar. Mesmo a contragosto, Preta se lembrava bem de que Miriá era amante da
esposa de uma das principais clientes da Rubi. Suspirou, levando a mão à testa,
pensando brevemente em Célia Dantas de Alencar e Bruna Toledo. Analítica que
era, avaliou em alguns segundos o risco que isso podia trazer para o sucesso do
evento da Rubi.
Quando Ricardo voltou a falar, Preta
abstraiu-se de tudo e não registrou o que ele dizia, com a voz empolgada de
quem cheirou duas carreiras de cocaína logo cedo. Sem querer, refletiu de novo sobre o tanto de coisa que mudaria com
a saída de Inácio. Ricardo era tão diferente do pai que era simplesmente
impossível não fazer comparações. Mas ainda estava muito cedo para sofrer,
Preta pensou, servindo-se de água apenas para ocupar suas mãos inquietas. A
saída de Inácio nem tinha sido anunciada
oficialmente, afinal de contas.
Sentada uma cadeira à frente, Márcia
percebeu o desconforto da mulher, que tinha um porte todo elegante, ainda que a
estivesse conhecendo só agora, porque Preta era bastante transparente em suas
expressões faciais, quando queria. Observar as interações fazia parte de seu
trabalho como ghost writter, mas mesmo sem querer Márcia era uma atenta
analista das cenas à sua volta, das trocas humanas que ocorriam ao seu redor.
Sua função ali era especificamente escrever a biografia do fundador de
uma das agências de publicidade mais importantes do país e para isso se
esforçava para absorver cada detalhe de todos em volta daquela mesa. Não se
preocupava muito em ouvir o que Ricardo falava, com uma empolgação que só era
vista pelas manhãs, porque seu gravador em cima da mesa cumpria esse dever. Então,
Márcia registrava tudo o que podia observar; aquelas eram as horas finais de
Inácio Marzon à frente da Rubi, últimas chances de captar seu entrosamento com
aquelas pessoas.
Ricardo era o filho, uma pessoa
completamente diferente do pai, que provavelmente já tinha em mente todas as
mudanças que certamente vai colocar em prática tão logo assumir os negócios. Márcia
conhecia bem o tipo, que se autoafirma só para, quem sabe, ter uma aprovação
paterna que pode nunca chegar. Não seria nenhuma surpresa daqui um tempo vir a
público algum escândalo com o herdeiro da Rubi, pensou. Se fosse apostar, seu
palpite envolveria algum problema com drogas.
Sentado perto dele estava Elias,
que Márcia ainda não tinha conseguido traçar um perfil, exatamente. A
incomodava o fato de ter algo no rapaz que lhe era familiar, mas não sabia o
quê. Notou que ele parecia ser o único a prestar atenção no que Ricardo falava,
se atropelando nas próprias palavras.
– ...conseguimos
o apoio e a cobertura da imprensa, mas vai ter mídia informal também, com lives,
galera tudo ao vivo. Nós chamamos blogueiros, convidamos influencers...
– Ricardo dizia, listando nos dedos mais algumas palavras que Márcia não
registrou.
A escritora permanecia observando
Elias, o moço bonito que tinha sotaque do sul. Na ausência de Preta, o que Márcia
ouviu foi que sua contratação abria um precedente nas ações de Inácio, que mais
tarde confessou, quando estavam a sós, que a síndrome de Burnout de sua joia o
assustou o suficiente para reconhecer que, sozinha, Preta já não dava mais
conta da demanda da agência. A nova era da Rubi, ele revelou, era um período
que não fazia tanta questão de vivenciar. Suas constatações no fim o levaram a
crer que já estava cansado também e que preferia parar enquanto tudo ainda
estava bem com sua saúde – inclusive a mental. Mas Inácio pediu para que ela
escrevesse isso de um jeito que minimizasse a responsabilidade de Preta em sua
decisão de sair de cena. O livro terminaria assim.
Era fato que Preta tinha uma
presença marcante, era alguém importante ali dentro. Márcia refletia agora que
parecia, inclusive, que a tal joia contava até com um status mais “brilhante”
que o de Miriá, que já era bem significativo.
Com a voz do filho do dono de
fundo para as conjecturas que fazia, Márcia constatou depois de dois ou três
pensamentos que havia algo entre Preta e Miriá. Sexualmente, talvez;
amorosamente com certeza. Não apenas porque Preta ficou incomodada com a ideia
do prêmio surpresa, mas especialmente porque mais cedo Márcia percebeu a troca
de olhares entre as duas, quando se encontraram no saguão, a cena toda
parecendo ser exatamente o oposto do que era. Miriá nitidamente se sentiu
traída ao encontrá-los, mas mais por Preta, que não quis começar a reunião
antes de ir lá se resolver com ela.
Márcia
conhecia bem os dramas humanos, porque era escritora e muito observadora, e
conhecia melhor ainda os dramas sáficos. Preta tinha um semblante completamente
diferente quando retornou da conversa com Miriá, embora agora já fosse outro,
desde o anúncio do prêmio que supostamente teria que entregar, sem que a outra
soubesse. Foi quando a ghost writter se distraiu, se preocupando com a
roupa que ela própria teria que escolher, caso fosse intimada para ir a um
baile desse naipe, assim, de supetão.
– O que você
acha, Márcia? Não parece perfeito? – Ricardo pergunta, as pupilas dilatadas
focadas nela, seus olhos atentos, assim como dos outros em volta da mesa.
– Olha, gente...
– Márcia pigarreia. Não tinha a menor ideia sobre o que falavam – O que vocês decidirem...
para mim está ótimo – completou, um tom mais baixo, antes de pigarrear mais uma
vez, como se tossisse – O que o senhor acha, seu Inácio?
– É, eu me
preocupo agora um pouco com o prêmio da Miriá... – Inácio responde, fazendo
questão de tocar na mão de Preta antes de continuar – Talvez seja prudente avisarmos
com antecedência, não é...
– Bom, nesse
sentido... – Márcia volta a falar – ... por ser uma festa, talvez valha
alertá-la, inclusive para que ela não beba muito, sei lá... Vai ter ampla cobertura
da mídia, né? – ela olha para Ricardo, que pareceu concordar, e depois olha para
Preta, que lançava um olhar agradecido de volta, acenando com mais veemência,
em concordância – ... até para manter a boa imagem que a Rubi tem, que a Miriá
tem...
– Com certeza.
Não, com certeza, vocês têm total razão – Ricardo diz, já puxando do gancho o
telefone de cima da mesa e discando o ramal de Miriá, que atendeu zangada, sem
saber que estava no viva-voz.
– O que é? – Miriá
perguntou, com um suspiro impaciente.
– Oi, Miriá, é o
Ric, dá um pulinho aqui, faz favor – Ricardo pede, com um sorriso estático no
rosto – Meu pai quer falar com você, tá legal? Estamos te esperando na sala de
reunião.
Márcia se serviu de um pouco de
água, se esforçando para não rir enquanto bebia, mesmo sem sede. Era nítido que
Miriá assustava o filho do patrão, que se esforçava para não deixar transparecer
isso, e ela simplesmente adorava quando homens se sentiam afrontados.
Miriá surgiu na sala com cara de
poucos amigos, os óculos grandes apoiados na ponta do nariz fino refletindo a luz
do notebook, que por algum motivo ela levou. Seu cabelo estava preso numa
espécie de coque, aparentemente com uma caneta, dando a ela uma aparência ao
mesmo tempo sexy e bagunçada, um ótimo contraste com o prêmio que recebeu das
mãos de Preta, que sorriu de verdade desde que Márcia a tinha visto pela
primeira vez, algumas horas atrás. Formavam um casal bonito, admitiu.
– A ideia era te
entregarmos esse prêmio hoje à noite – Inácio diz, interrompendo o clima na
mente de Márcia – ...mas a Preta e eu achamos por bem não fazermos nenhuma
surpresa, assim você aproveita melhor a noite – o velho complementa, dando à
Márcia os detalhes finais de como realmente funcionava sua dinâmica com Preta.
– Boa! Te devo
uma, Pretinha – Miriá piscou um olho, cúmplice – Grata, seu Inácio, pela
consideração, pela oportunidade. Agradeço muito pela Rubi na minha vida.
– Imagina,
Miriá. Nós é que agradecemos tudo o que você faz pela agência – Ricardo diz,
num tom que deixou claro que a reunião havia terminado – Na verdade, nós agradecemos
a todos os senhores, pela presença aqui hoje... para nada, né – ele
complementa, em tom quase inaudível, mas Márcia fez leitura labial.
Combinaram de, propositalmente,
Inácio não ser um dos primeiros a chegar ao restaurante para a festa. O evento
começaria às sete, Márcia sugeriu que o homenageado da noite aparecesse já depois
das oito e meia, para uma entrada triunfal, à sua altura. Mesmo assim, se
comprometeu a estar lá bem cedo, revelou conhecer a chef Patrícia e sua esposa,
Tatiana, omitindo de propósito o nome de Mariana. Não reparou que Elias ergueu
as sobrancelhas ao ouvir aquilo, porque apesar do gesto ele não disse nada. Márcia
só foi descobrir o grau de parentesco entre Elias e sua ex, Mariana, na festa
dO Bistrô.
Quando chegou ao restaurante,
Zezé foi quem a recepcionou. Ambas se conheciam só por nome, pelas histórias
que ouviam uma da outra, uma vez que Márcia costumava ir ao restaurante apenas
nas noites em que Zezé não trabalhava, quando O Bistrô ficava fechado, para a prova
dos pratos, todo final de ano. Márcia imaginou que a gerente fosse mais alta; já
Zezé achava que a “sigilosa” tivesse cara de hétero.
– É um prazer
finalmente conhecê-la – Zezé sorriu para ela, gentil – Vou avisar a Tati que
você chegou.
– Não – Márcia
segura seu braço, antes que Zezé se vire – Não precisa, querida, agradeço. Hoje
estou aqui a trabalho – ela coloca uma máscara que tinha o mesmo tom azulado de
seu terninho – Estou a caráter, mas tenho a missão de observar o pessoal da Agência
Rubi. Sabe se já chegou alguém? – ela precisou se aproximar para fazer a
pergunta, porque uma música alta começou a tocar de repente.
– O primo da
Mariana é o primeiro – Zezé indica com a cabeça para Elias, que acenou para
elas da porta.
– Primo? –
Márcia repete, a informação já se encaixando dentro do organograma formado em
sua mente – Claro, certo.
Zezé cumprimenta Elias com um
beijinho, observando a interação entre ele e a tal de Márcia. Pelas histórias
que Tatiana lhe contava, que se renovavam a cada ano novo, acreditava que a
mulher teria uma aparência completamente diferente. Não achou que fosse tão
jovem! Nem que parecesse tão amigável.
Ao lado de Elias, Márcia não
chegava nem na altura de seu ombro. Por isso ele se encurvava para falar com
ela, demonstrando uma certa intimidade. Zezé reparou que as máscaras dos dois
combinavam e se flagrou pensando se haveria algum tipo de código de ética que proíbe,
mesmo que indiretamente, a relação de ex com primos. Se distraiu pensando
nisso, rindo sozinha, quando viu Estela entrar nO Bistrô. O salão estava
começando a encher e ao olhar para a porta, mesmo com o rosto tampado
reconheceu a fotógrafa atrás da máscara. Ela tinha olhos muito marcantes, como
não reconhecê-la?
Aquela era a segunda vez que se
encontravam ali, só que na primeira, uns anos atrás, Zezé conseguiu fugir, se
escondeu durante o tempo em que Patrícia deu entrevista para a repórter da
Conexão Sáfica. Foi quando Zezé soube que Estela trabalhava no jornal como
fotógrafa. Agora, tempos depois, se perguntava aflita como é que não tinha se
tocado de que a pessoa contratada pela chef para as fotos da festa da Rubi era
Estela, a Estela. Ou seria melhor dizer Senhorita L.?
– Zenaide, olá –
Estela estica a mão para cumprimentá-la, bem formal. Era praticamente a única
no mundo que a chamava assim e sabia disso – Desta vez não deu tempo de se
esconder de mim, hein? – ela puxa a câmera do pescoço e tira uma foto de Zezé,
sem anunciar – Perfeita! Sua cara está impagável! – Estela dá uma risada sincera,
fazendo um som agradável, que desmontou Zezé.
– Boa noite, Se...
– a gerente morde a língua, sorrindo para ela. Olhou para os lados e viu que ninguém
as olhava – ...Senhorita L., boa noite.
– Boa menina –
Estela ri de novo, vendo o salão por cima do ombro de Zezé, seus olhos
brilhando contra a luz – Ah, que bom que consegui chegar cedo o suficiente,
ainda está vazio. Te vejo por aí, certo?
Ela não esperou pela resposta.
Deu só uma risadinha e desviou de Zezé, já tirando fotos de detalhes que à
primeira vista foi julgando interessantes. De imediato Estela percebeu como o
restaurante estava diferente desde a última vez que estivera ali, trabalhando
com Mirtes, jornalista da Conexão. Arrumado para festa, O Bistrô parecia até
outro lugar. De igual só um rosto ou outro, como o de Tatiana, que ela viu
passando distraída a caminho da cozinha, o de uma garçonete, que tinha o
sorriso bonito, e o de Patrícia, que veio cumprimentá-la muito elegante em seu
uniforme de cozinha, numa versão comemorativa.
Como Estela era bastante
observadora e admirava a postura de mulheres como a chef, empoderada, dona da
porra toda, foi impossível não reparar no quanto Patrícia parecia fadigada.
Estava impecavelmente arrumada, mas algo em seus olhos revelava um certo
cansaço, uma quase exaustão. Estela tinha ouvido falar que ela e a esposa haviam
se casado com uma terceira mulher, um babado que provocou burburinhos durante
meses, as mina tudo indo conhecer o restaurante só para ver essa história de
perto. Achava isso um ótimo marketing!, mas não combinava com a expressão de
Patrícia.
Estela quis tirar uma foto da
chef, de começo de festa, e escolheu o bar para servir de fundo, por ser mais
escuro. Daquele ângulo não dava para notar a expressão cansada de Patrícia, que
sorriu antes do clique, com o peito estufado, parecendo orgulhosa por seu
negócio, mais uma vez. Estela deu a sorte de Tatiana passar ali bem naquela
hora e fotografou as duas juntas, sorridentes. A esposa #1 se comprometeu a encontrar
a esposa #3 e reunir o trisal para uma foto, assim que localizasse Mariana, que
nenhuma delas sabia onde estava.
Estela agradeceu e viu a chef retornar para a cozinha com passos firmes,
parecendo discutir com Tatiana, que rapidamente se afastou, indo cumprimentar
alguém que tinha chegado. A fotógrafa apoiou a câmera no balcão e tirou mais
duas fotos da dona dO Bistrô, vendo Patrícia parar para dizer algo no ouvido de
um garçom, que ficou girando a bandeja na mão enquanto balançava a cabeça,
concordando com ordens que dali não dava para ouvir. Foi então que Estela virou
o corpo e viu a bartender atrás do balcão. A achou muito exótica, com o cabelo
todo para cima, um ar meio misterioso. Tirou uma foto que saiu bem psicodélica,
por causa da luz.
– Podemos marcar
uma sessão, se quiser – Lola brinca, sorrindo antes de ser fotografada mais uma
vez – Posso te oferecer algo para beber?
– Claro, me
surpreenda – Estela responde, sorrindo para a mulher que nem de longe imaginava
o que uma “sessão” com ela realmente significava.
Estela captou os movimentos de
Lola preparando o drinque. Seu uniforme escuro se complementava à pouca luz do
ambiente, fazendo com que o copo com o líquido amarelado brilhasse em suas mãos
habilidosas. Numa sequência de fotos, Estela focou no sorriso da bartender por
trás do vidro da garrafa e o viu se desmanchar, após ela reconhecer alguém que não
pareceu gostar de ver ali.
Discreta, Estela fingiu não
perceber o embaraço repentino de Lola, agradeceu o drinque e foi trabalhar. Circulou
entre os convidados mascarados, que já preenchiam bem o espaço do salão, tirando
diversas fotos, inclusive de algumas pessoas distraídas, detalhes da decoração
e a DJ, que usava um fone de ouvido enorme. Em dado momento, algum tempo
depois, no meio daquele mar de gente conseguiu ver um rosto conhecido. Ou
metade do rosto, pois Nicole estava de máscara.
Nicole costumava participar de
corridas de rua. Estela sabia disso porque colecionava várias fotos dela
correndo. A mulher se destacava entre os atletas porque tinha uma beleza única
e também porque tinha uma perna mecânica, impossível não reparar nela. O prazer
de Estela era reconhecê-la quando estava trabalhando nessas corridas como fotógrafa
freelancer, sua determinação era inspiradora!
Pensou em puxar papo, mas não
soube o que falaria. Especialmente porque seu desejo era fotografá-la nua em
seu estúdio, marcar com ela a sessão digna que Nicole merecia, mas a abordagem
para esse tipo de foto era sempre um assunto complicado para Estela. Era
tímida, apesar das fotografias que fazia.
Frustrada, saiu para fumar e ao
atravessar a rua viu Mariana chegar aO Bistrô, num carro amassado com um dos faróis
apagado. Sabia quem ela era, embora a nova esposa de Patrícia tivesse o perfil
fechado no Instagram – o que nunca foi impeditivo para ela descobrir algo sobre
alguém. Trabalhar tantos anos com jornalistas a fez criar um senso
investigativo bem afiado!
Mariana tinha o ar um pouco
desorientado. Ficou um tempo parada na frente do carro, observando o amassado que
parecia ter sido causado por uma batida recente. Depois abriu e fechou o
porta-malas duas vezes, como se decidindo se deveria ou não tirar o que trazia
ali dentro. Por fim, acabou fechando a tampa, falou alguma coisa sozinha,
gesticulando com a mão, e entrou no restaurante com uma bolsa.
Estela achou a cena curiosa,
ficou imaginando como funcionaria a dinâmica de um casamento entre Patrícia e
Tatiana, e alguém como Mariana, que parecia ser tão diferente delas. Quis
entrar logo para ver se flagrava seu encontro com uma das esposas, não para
fotografar, mas porque era curiosa, só que antes da porta giratória a perdeu de
vista, quando esbarrou em Sabrina.
Sabrina não era a mulher mais
alta que Estela conhecia, mas sem dúvida era a maior de todas. Estava linda,
num vestido todo preto, com um véu fino combinando. Sua máscara prata contava
com vários detalhes cravejados de vermelho, mais puxada na altura dos olhos. A
abertura de sua roupa na frente dos joelhos revelava o calçado que usava, preto
e de salto altíssimo, o que a deixava com uma aparência ainda mais soberana,
imensa, poderosa. Estava com os cabelos soltos, ondulados, mais ou menos na
altura dos ombros, desnudos pelo corte do vestido, que deixava também seu colo
de fora, adornado com um colar brilhante. Sem perceber, Estela se curvou ao
cumprimentá-la.
– Dona Sabrina,
satisfação em vê-la – Estela a encarou nos olhos, sustentando o olhar.
– Senhoritinha,
que bom ver que esta festa está tão bem frequentada – Sabrina se abaixou alguns
centímetros e depositou um beijo em seu rosto. Atrás dela, bem perto, havia uma
mulher que permaneceu em silêncio – Está aqui a trabalho, eu imagino – ela
aponta para a câmera pendurada no pescoço da fotógrafa.
– Sempre a
trabalho, dona Sabrina.
– Sempre a trabalho,
claro – Sabrina falou junto com ela, e sorriu ao final. Então se virou um passo
e se direcionou à sua acompanhante, mais atrás – Pode entrar, Caramelo. Eu já
te encontro lá dentro.
– Mas, dona... –
a moça começou a dizer e logo foi interrompida.
– Luana! –
Sabrina a chama, sem precisar dizer mais nada.
Estela riu internamente ao ver a
mulher se calar e obedecê-la, sem contestar. Sabia bem o que aquele tom
representava e imaginou de onde viria o apelido que Sabrina usava para falar
com a jovem, que era muito bonita, em seu vestido todo vermelho aveludado.
– E as fotos? –
Sabrina pergunta, puxando o maço de cigarros do bolso da camisa de Estela –
Como andam suas sessões?
– Andam bem... –
Estela responde, se apressando para acender o cigarro de Sabrina e na sequência
outro, para si – Quer dizer, estão meio fracas, daquele jeito, sabe como é...
– Se não há
atitude, Senhoritinha... – Sabrina soprou a fumaça para o alto com força,
fazendo um som junto com o gesto, balançando a cabeça em negativa. Não precisou
terminar a frase.
– É, eu sempre penso
muito nisso que você fala... – Estela comenta, cabisbaixa. Chutou uma pedrinha
no chão, colocando a mão no bolso da calça, meio sem graça.
– Então pare de
pensar e coloque em prática! O que está esperando? – Sabrina sorriu, apesar de
falar sério. Cerrou os olhos, na ausência de uma resposta – Aproveita que está
de máscara, esconda sua timidez atrás da indumentária. Olha quanta gente bonita
aqui hoje. Aposto que muitas adorariam posar para as suas lentes, do jeito que
você gosta.
– É, seria
bom... – Estela riu, mas se conteve ao ver que Sabrina ainda a encarava séria, do
alto de mais de 1,90m. Teria tirado uma foto dela nesse momento, se fosse outra
mulher. A achava muito imponente e nesta noite estava absolutamente
deslumbrante com aquela fantasia. Combinava demais com ela, mas seu registro ficou
apenas na memória.
– Não estou
brincando, Senhorita – Sabrina entregou o cigarro aceso pela metade para
Estela, se despedindo com um aceno breve com a cabeça – Quero que agende uma
sessão hoje.
– Claro, dona
Sabrina – Estela diz, apagando os dois cigarros no cinzeiro da calçada – Já sei
até com quem – complementou, depois que a mulher já tinha passado pela porta.
Sabrina encontrou Luana assim que passou pela porta giratória e ficou satisfatoriamente
surpresa com a decoração do local. Como boa lésbica que era, conhecia O Bistrô
desde que havia lido o artigo no jornal Conexão Sáfica, na época em que
Patrícia e seu restaurante tinham merecidamente entrado para o Guia Goodyear,
uma conquista comemorada por muitas, inclusive ela, que era declaradamente contra
o patriarcado e aplaudia em pé o progresso feminino.
De propósito, fingiu não perceber a cara feia que Luana fazia. Estava uma
noite ótima, afinal, e não a estragaria com birra de quem definitivamente não
sabe se portar em público. Aquela seria inclusive a primeira e última vez que
fariam juntas um programa do tipo, dado o comportamento que observava na mulher
que vinha logo atrás dela. Adorava se exibir por aí com suas prendas, mas para
isso precisavam de uma dose mínima de bons modos – que Luana não parecia ter.
Caminharam como se desfilassem pelo salão, como se o baile fosse delas e sua
imponência parecia fazer com que o caminho se abrisse conforme avançavam em
direção ao bar. Achou que aquela parte dO Bistrô também estava diferente, com
menos mesas que o habitual, mas encontrou uma banqueta privilegiadamente
localizada em frente ao balcão. Assim que se sentou, foi atendida por uma
bartender que usava uma cartola alta e uma máscara que só escondia a parte dos
olhos. Era nova; se lembraria dela, caso já a tivesse visto.
Como de costume, Sabrina a olhou de cima a baixo, do jeito que fazia
quando se interessava por alguém, os dentes mordendo o lábio, sem perceber,
como se estivesse com desejos, bem explícita. O gesto aborreceu ainda mais
Luana, que desta vez bufou – alto o suficiente para ser ouvida, apesar da
música que tocava alta.
– Boa noite,
madame, como posso te servir? – Lola perguntou, se debruçando de um jeito sexy
em cima do balcão.
– Com uísque,
por enquanto – Sabrina respondeu, sorrindo satisfeita, aproximando o rosto do
ouvido dela. Tanto que seu lábio encostou no lóbulo da orelha da bartender, que
deixou escapar uma risadinha, contraindo o ombro.
– Dona, não
estou gostando de estar aqui, podemos ir embora? – Luana pergunta, com uma voz
melosa, mas baixa o suficiente para que somente elas ouvissem.
– De jeito nenhum,
meu Caramelo. É uma festa do seu trabalho, além de ser o nosso teste – Sabrina
responde, omitindo de propósito o fato de que Luana havia falhado antes mesmo
de passarem pela elegante porta giratória dO Bistrô. Ainda assim, a puxou pela
cintura, a trazendo para mais perto – Quero te observar interagindo com suas
colegas de trabalho, com sua chefe – complementou, num tom ainda mais baixo,
arrepiando com seu cochicho a pele da mulher escorada nela.
– Não gostei
como você falou com a fotógrafa lá fora... – Luana insiste, manhosa, se
aconchegando no abraço de Sabrina, que a abrigou.
– E você não
saber lidar com o seu ciúme é problema meu ou é seu? – Sabrina arqueia uma
sobrancelha, se afastando alguns centímetros para encará-la.
– Mas...
– Não tem “mas”,
querida. Você sabe os termos desta relação, não sabe? Sabe, sim – Sabrina volta
a abraçá-la, desviando de propósito do olhar dela.
– Eu só não
sabia que seria tão incômodo encontrar com uma das suas logo de cara...
– Luana resmunga, sentindo seu corpo mexer, quando ela riu. Como gostava de
fazer, Sabrina demorou para responder, fazendo com que o silêncio de sua pausa
servisse para reflexão.
– Senhorita L.
não é “uma das minhas”. Talvez tenha sido no passado, há muito tempo, mas digamos
que ela seguiu para o outro caminho logo após sua iniciação.
– Como é? –
Luana a encarou com os olhos brilhando, refletindo as luzes do bar – Ela é tipo
uma “colega” sua? É uma dominadora também, dona? – seu olhar pareceu ganhar um
brilho extra.
– Mas olha só
essa carinha... – Sabrina sorriu, após o comentário – Mudou rápido, do ciúmes
para a luxúria! Toma vergonha, Caramelo!
– Ué – Luana riu,
descontraída pela primeira vez na noite – A dona mesmo não diz que sou que nem
vira-lata? – ela ri, enlaçando o pescoço de Sabrina com os dois braços, dando
um beijo em seu rosto depois da fala – Hum? Não vai me dizer?
– Não deveria,
só para você aprender a lidar com essa sua curiosidade – Sabrina rebate, vendo
o rosto de Luana mudar quando Lola colocou um copo baixo à sua frente – E com o
ciúme – complementa, piscando para a bartender antes de beber um gole curto de
uísque.
Ao sentir o primeiro contato do
álcool com seu paladar sensível, Sabrina fechou um pouco os olhos, apreciando o
sabor forte da bebida, que imediatamente amoleceu seu maxilar, trazendo um
conforto imediato e conhecido. Quando voltou a focar sua visão no salão, viu
uma mascarada se aproximar delas com certa determinação, embora cambaleasse um
pouco.
– Lu, cadê
Miriá? – perguntou, se apoiando no braço de Luana. Estava um pouco ofegante e
demorou a olhar para Sabrina – Você sabe dela?
– Não, amiga... Não
a vi desde que cheguei, quase agora, por quê? – Luana retruca, olhando à volta
para ver se a chefe estaria por ali.
– Aconteceu uma
situação e eu preciso muito encontrá-la.
– Essa foi a
Rita – Luana apresenta, apoiando a mão no ombro de Sabrina, que permanecia
sentada enquanto a viam cumprimentar alguém próximo delas – É minha dupla no
trabalho, a gente costuma sair para beber às sextas.
– Ela é...
intensa – Sabrina bebericou mais um gole de uísque, fazendo um gesto rápido na
sequência – Cuide do meu lugar, sim? Vou até o toalete e já volto.
– Não quer minha
companhia?
– Não para isso
– Sabrina se levantou e mandou um beijinho no ar, indo em direção ao banheiro
sem olhar para trás.
Luana levantou os ombros,
sentando na banqueta de Sabrina, degustando a bebida que não era dela. Achou
muito forte, não tinha nem uma pedrinha de gelo para se salvar ali. Por isso,
fez uma careta e gesticulou para a bartender, pedindo uma caipirinha de saquê.
Enquanto aguardava, olhou à sua volta, tentando reconhecer alguém atrás
de tantas máscaras coloridas. Viu Ricardo e o pai, dono da agência, um pessoalzinho
do administrativo e dois colegas de andar. Se perguntou então o que teria
acontecido com Miriá e logo depois se questionou se teria algum problema ela ter
chegado tarde à festa. A princípio achava que não, mas só até saber que algo
tinha acontecido. Torceu silenciosamente para que a chefe estivesse bem.
Daí seu pensamento migrou para Sabrina e Luana sorriu, pois estava feliz por
sair com sua dona pela primeira vez em público. Isso era excitante em níveis
que não conseguia descrever e torcia para estar fazendo tudo corretamente, para
que a experiência se repetisse mais vezes. Talvez para isso tivesse apenas que
se esforçar para não querer saber mais sobre a fotógrafa da calçada, muito
menos demonstrar insegurança/ciúmes. Era um teste, afinal, também para isso.
Considerava-se uma mulher desprendida, achava sempre que se bastava e por
causa disso acabou de certa forma blindada ao longo da vida, saindo ilesa de
alguns relacionamentos que terminaram pelo caminho. Mas com Sabrina era
diferente, provavelmente porque nem podia usar esse rótulo com ela. Não era um
título que lhe cabia; não tinham nenhum envolvimento, exatamente, e o que
existia entre elas era selado por um contrato. Mais frio que isso, impossível.
Mas Luana se sentia confortável em sua presença. Era fácil estar com Sabrina,
assim como era fácil se submeter ao seu controle. Sentia-se sempre segura com
ela, de um jeito que em namoro nenhum foi capaz, ainda que essa segurança tenha
surgido somente após um tempo, quando conquistaram uma certa intimidade.
Ao pegar sua caipirinha em cima do balcão, Luana refletiu que a palavra
era justamente essa: intimidade. Soava sexy aos seus ouvidos,
especialmente quando se relacionava à Sabrina. Decerto porque era o auge do
envolvimento entre elas e Luana era consciente de que não passariam jamais disso.
E ela nem queria, embora estivesse adorando fazer papel de casalzinho num
ambiente externo.
Riu sozinha com o pensamento e olhou em direção ao banheiro, esperando
ver por ali Sabrina em seu lindo vestido de festa. Já tinha memorizado cada
centímetro do fecho que com muito prazer deslizaria para baixo, a despindo, com
sorte ainda esta noite. Desde que sua dona desse a permissão para isso, é
claro.
Estava distraída, com a mente bem longe dali, nem viu Elias se aproximar.
Muito menos notou a preocupação que ofuscava seu rosto, tanto quanto a máscara
preta escondia parcialmente sua identidade.
– Oi, Luana!
Aqui, será que teria como tu me fazeres um favor? – Elias pergunta, logo após o
cumprimento.
– Oi, claro! Se
eu conseguir te ajudar... – Luana responde, emendando um generoso gole em sua
caipirinha. Com o gesto, deixou claro que estava ali exclusivamente a lazer, e
Elias entendeu o recado.
– Estou
procurando a Miriá, me disseram que ela pode estar lá no banheiro... Você podia
ir até lá?
– Putz – Luana
responde, bebendo mais – Pior que não posso sair daqui – complementa. Não
estava mentindo! Estava guardando um lugar.
– Tá, tudo bem, sem
problemas – Elias sorri para a colega, procurando Lola pelo bar. A bartender
certamente o ajudaria, mas ela parecia ter desaparecido dali.
Sem dizer mais nada, Elias se
afasta de Luana, indo em direção ao banheiro, ainda que não pretendesse entrar.
Estava preocupado com Miriá, tinha visto uma movimentação suspeita de uma
mulher em cima dela, instantes atrás, no que pareceu ser uma discussão. Não
sabia se podia ser chamada assim porque não foi exatamente uma briga, mas deu
para ver que o que quer que a mulher lhe tenha dito, a abalou. Se Elias perdeu
tempo em procurar Miriá foi porque antes de atravessar o salão até ela, procurou
saber quem era a mascarada.
Descobriu com certa facilidade:
Bruna costumava frequentar O Bistrô, era amiga de Patrícia e Tatiana. Mais do
que isso: tratava-se de importante cliente da Rubi, presidente de uma rede de
hotéis de luxo. E além: era esposa da amante de Miriá. Quem contou tudo isso
foi Tatiana, que adorava um bochicho, ao ser perguntada sobre Bruna e saber de
uma suposta discussão envolvendo a amante de Célia.
Foi inevitável Elias não pensar
em Preta. Como uma bruxa, ela tinha previsto que algo podia acontecer na festa,
envolvendo Miriá. E ele nem sabia da preocupação dela de Miriá sumir justamente
no momento em que ocorreria a premiação! No caso, agora.
– Ei, você é o
primo da Mari, não é? – alguém pergunta.
Elias estava chegando ao banheiro quando foi interceptado. Junto com a
pergunta a pessoa segurou seu braço, o fazendo parar. Ao estancar e se virar,
se deparou com Bruna. Os olhos marejados por trás da máscara cor de vinho
amoleceram seu coração.
– Sou, sim. Me
chamo Elias. E você é a Bruna Toledo, da Etur Lux. Eu assumi a sua conta,
provisoriamente, na Agência Rubi. Muito prazer em conhecê-la.
– O prazer é
meu, Elias. Você pode, por favor, me ajudar a sair do restaurante sem que
ninguém me veja? Eu preciso ir embora daqui.
Elias olhou à volta. O Bistrô
estava bem cheio, lotado de um jeito que ainda não tinha visto, desde que havia
chegado à cidade. O que era bom, por um lado representava o sucesso do evento
da Rubi, mas por outro era um problema, se a intenção era sair dali de maneira
despercebida. Algo no tom de voz de Bruna o tocou, de um jeito que pôde
entender com perfeição a necessidade daquela discrição, e também sua urgência.
Seu plano de fuga inicial
envolveu burlar o cordão que a imprensa fazia na entrada do restaurante, saindo
pelos fundos. Se conseguissem chegar até a cozinha, poderiam usar a porta de
serviço, e seria exitoso, desde que não houvesse ninguém da mídia nesse local.
Aí se lembrou de Ricardo, todo orgulhoso naquela manhã, falando que teria até
gente fazendo live durante o evento.
Não havia saída, qualquer que
fosse a rota escolhida, Bruna seria vista, provavelmente a cercariam para ser entrevistada.
Só havia um jeito, portanto, que não era o mais ideal, mas certamente o único
viável. Valia os riscos, Elias pensaria mais tarde. Naquela hora, porém, nem
pensou em nada, apenas agiu.
– Vem comigo – disse,
estendendo a mão para ela.
Bruna confiou num quase
desconhecido e segurou em sua mão. Elias caminhou o tempo todo à sua frente sem
dizer nada e enquanto iam passando pela pequena multidão que se aglomerava dentro
dO Bistrô, tudo o que ela conseguia pensar era no que tinha acabado de fazer.
Seu casamento tinha terminado há
muito tempo, mas Bruna soube disso só há alguns dias, e da pior forma, ao
descobrir uma traição antiga. Suas últimas decisões e as ações que vieram depois
disso se embolaram, se emendando umas às outras. Primeiro fez o que estava mais
ao seu alcance: demitiu Marta Pinheiro, a assistente de sua esposa adúltera.
Depois, mandou Célia para um congresso em Bonito/MS, que até pretendia ir
junto, inicialmente, numa viagem romântica. Com ela longe era mais fácil
pensar, ou pelo menos tentar organizar seus pensamentos, bem tumultuados àquela
altura.
Já sozinha, decidiu ir à festa dO Bistrô vestindo a fantasia que a esposa
pretendia usar, só para contar à Miriá, pessoalmente, o caso entre Célia e sua
assistente. Bruna tinha ficado horas lendo as conversas das duas pelo WhatsApp,
sabia que a publicitária não detinha dessa informação. Mais do que isso: tinha total
ciência de que a revelação a faria sofrer e pensar nesse sofrimento a satisfez
por um instante. Caso um dia revelasse tudo isso em detalhes para Giovana, sua
terapeuta, talvez Bruna diria que este ato com a amante foi por pura maldade, porque
não quis sentir aquela dor sozinha. Mas o mais certo é que ela poupasse sua
psicóloga, também disso.
Tudo bem que Miriá não esboçou nenhuma reação de raiva, mas paralisou de
um jeito que foi perceptível notar o seu abalo ao escutar tudo aquilo. Se não
fosse a música alta, talvez daria até para ouvir seu coração se despedaçando
naquele momento.
Miriá ficou em estado de choque, Bruna pensou, ainda seguindo Elias em
direção aos fundos do restaurante. E a mágoa tem um poder assombroso, apostava
tudo no fato de que ela nunca mais iria querer saber de sua esposa. Célia ia
ficar sem Marta e sem Miriá. Sua missão então estava integralmente cumprida
nesta noite.
Quase sorriu ao pensar nisso quando viu o rapaz alto que ainda segurava sua
mão se esticar para alcançar um quadro de luz, perto da porta da cozinha, e
deliberadamente desligar o disjuntor. A escuridão foi imediata em todos os
espaços dO Bistrô, tão instantânea quanto o silêncio, logo substituído por
gritos e assovios dos convidados, que pareceram acreditar que aquele era algum
efeito da festa.
– Vem, nós
precisamos ser rápidos – Elias fala, no momento em que algumas pessoas
começavam a ligar as lanternas dos celulares, criando um clima novo no
ambiente.
Bruna nem questionou, só o
seguiu. Apertou sua mão e confiou para onde Elias a levava. No caso, até a
entrada de serviço, que ficava no fim de um corredor estreito, depois da sala
de Zezé, passando a cozinha. Para isso precisaram atravessar o bar, contornando
o balcão lustroso, com a ajuda da lanterna do celular de Elias.
Durante a fuga, Bruna nem
reparou que Lola esbarrou neles, tentando fugir de alguém que na verdade nem
estava no país. Em sua paranoia, a bartender jurava estar sendo seguida pelo ex
e acreditava até que aquela queda de energia repentina e suspeita podia ser
alguma artimanha sua para surpreendê-la no escuro, na surdina. Por isso é que imediatamente
saiu de onde estava quando as luzes se apagaram; atrás do balcão sentia-se
muito visível, um alvo fácil. Carl sabia que ela era bartender e a esta altura
Lola acreditava que ele já tinha até seu endereço completo. O delírio que já
durava algumas horas atingiu o ápice com aquele breu, que entrou de penetra na
festa.
Mas Lola não pensava nisso, na
possibilidade de estar temendo por algo irreal ou que estivesse só vivenciando
algum surto. Não tinha condições de ser racional naquele momento porque
nem se sentia consciente, de verdade. No dia da festa da Rubi, Lola foi vítima
de sua própria distração.
A meta era trabalhar direitinho
até o fim da noite, servindo os convidados da melhor maneira possível, com
simpatia e, se desse, até se divertindo durante a festa. Tinha acompanhado nO
Bistrô toda a preparação para aquele evento, uma vez que sua própria
contratação já foi feita visando isso. Então, viu de perto as infinitas
conversas e reuniões entre Patrícia e Zezé, Zezé e Tatiana, Zezé e os garçons,
Patrícia e o pessoal da cozinha... No que dizia respeito ao seu trabalho, a
ordem era bastante simples: atender bem. Ponto. O que poderia dar de errado?
A resposta é: uma dor de cabeça.
Uma crise de enxaqueca que acordou Lola bem cedinho, com pontadas constantes na
têmpora que a forçaram a se levantar da cama praguejando, fazer o café xingando
e tomar banho reclamando. Tantos dias para doer e foi doer bem no dia da festa!
Mas Lola, ao mesmo tempo em que
não era adepta de tomar remédios, tampouco era do tipo que se dá por vencida
facilmente. “Aqui não, violão”, ela disse, quando decidiu tomar um comprimido, ao
chegar ao trabalho sem que a dor tivesse cessado. Encheu um copo com água da
torneira mesmo, e antes de guardar a mochila no armário, puxou de dentro seu
estojinho de primeiros socorros.
Ali tinha até coisa que já estava vencida e outras que ela nem se
lembrava mais que guardava. Se comprometeu a arrumar a bolsinha de remédios
enquanto abria uma caixinha branca, usada para estocar comprimidos.
Ao enfiar um na boca e engolir, nesse momento, exatamente, Lola não
pensou em nada. Mas um segundo depois ela imediatamente se desesperou,
ao perceber o que havia acabado de fazer, por livre e espontânea vontade. Sem
se dar conta, distraidíssima, a bartender tomou um comprimido inteiro de ecstasy.
Sua primeira reação foi rir, de desespero, inicialmente. Lola desacreditou
em sua capacidade de se drogar em pleno ambiente de trabalho, e em dia de festa
importante! Depois, se consolou afirmando que a bala estava naquele estojo há
muito tempo, ela já nem se lembrava há quanto, o que provavelmente afetaria sua
eficácia. Por fim, Lola se acalmou, se convencendo de que nas últimas vezes em
que tomou anfetamina, quando ainda estava no exterior, nem tinha “batido”
direito, se manteve consciente o tempo todo, uó. Provavelmente porque vinha
emendando festas regadas à substância de alto poder estimulante e alucinógeno,
mas ela isso relevou.
A “droga do amor” fez Lola crer que a DJ estava a fim dela. A fez ver
Carl circulando de máscara pelo salão dO Bistrô. Deu energia para que ela
dançasse enquanto atendia, sem que suas pernas se cansassem ou doessem, dando
em cima de metade dos clientes. A forçou a sair de seu posto de trabalho
durante o blecaute, a levando diretamente para a boca de Patrícia. Sua chefe e
esposa de sua amiga.
Para piorar o que já era ruim, Mariana viu as duas se beijando, no meio
de um apagão que apagou também as condições de Lola de tentar se defender. Tudo
o que se lembrava depois é que, ao ser intimada, o que fez foi balbuciar e
gaguejar palavras desconexas.
Ao dormir naquela noite, algumas horas após o fim do evento, confusa
entre o que era realidade e invenção de sua mente, Lola já sentia o prenúncio
de uma ressaca, inclusive moral, que se instaurava sorrateiramente, num clima
típico de pós-festa. Que dor de cabeça!
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