O baile da Rubi (conto)

     Essa é a primeira história da terceira temporada da Novelinha <3

Se ainda não leu a última história da segunda temporada, "3xTPM - A festa", clique aqui.


A década de 1980 foi marcada no Brasil por momentos inéditos de esperança, com o fim da ditadura que durou um período macabro de mais de duas décadas, cinco mandatos militares e 16 atos institucionais que, em geral, impuseram repressão e censura no país, além de muitas mortes e torturas de todos os tipos. Ou seja, com a transição ocorrida neste período, acompanhou-se em tempo real a tentativa de restabelecimento da normalidade, ainda que isso tenha ocorrido a passos lentos, na opinião de alguns. Vale lembrar que os anos 80 foram bastante difíceis para a economia brasileira, com a inflação nas alturas e a dívida externa colaborando para que o país enfrentasse o que ficou conhecida como “a década perdida”.

Em 1987, ainda no embalo dos primeiros meses da Nova República, iniciada dois anos antes, em março de 1985, com a chegada de Tancredo Neves ao poder, um publicitário paulista chamado Inácio José Marzon aproveitou a onda de confiança que engolfava o país e, aos 40 anos, fez aquilo que muitos achavam impossível: recomeçou. Embalado pela nova perspectiva política, que desenhava no horizonte um cenário bastante favorável, ele decidiu arriscar tudo o que tinha e inovar no mercado da propaganda, numa aposta considerada ousada para a época. A redemocratização foi o principal mote de sua recém-criada Agência Rubi, sendo inspiração para as primeiras campanhas que rapidamente passaram a definir os rumos deste nicho do mercado brasileiro, graças ao desenvolvimento de um método original e criativo de se comunicar bem e vender ainda melhor.   

Os anos que se seguiram, com o fim da Guerra Fria e a abertura do mercado nacional para o mundo, foram favoráveis para a Rubi e fundamentais para que a agência suportasse o baque provocado pelo período turbulento que veio logo em seguida, que culminou no primeiro impeachment de um presidente que conseguiu manchar e enfraquecer uma tímida economia e uma jovem democracia, em 1992.

Mas Inácio resistiu – a todas as intempéries, aos desastres econômicos, políticos e até sociais. E a insistência o fez levar adiante o sonho de profissionalizar, com o máximo de ética, um mercado com potencial bastante competitivo e, até aquele momento, pouco explorado e mal aproveitado. A persistência o fez ganhar ao longo desta jornada muitos prêmios e um importante reconhecimento Brasil afora, ao ponto de as universidades começarem a estudar o método desenvolvido pela Rubi, tornando-a referência no ramo publicitário.

Com a chegada dos anos 2000, Inácio finalmente construiu a sede de sua agência, na zona oeste da capital paulista, próxima ao memorial da América Latina, estrategicamente numa esquina que nunca foi movimentada. O prédio de três andares, todo espelhado, foi desenhado pelo próprio publicitário, que mandou fazer tudo conforme o seu gosto: do projeto ao acabamento, passando pelos detalhes como a decoração e os móveis, que combinavam entre si harmoniosamente.

Em sua autobiografia, escrita por uma ghost writer, Inácio revelou que a agência só pareceu criar forma quando enfim ganhou sua sede própria, onde ele jurava que ficaria até morrer. Mais que isso: o publicitário disse, com todas as letras, que a Rubi só tomou corpo de verdade quando ganhou sua joia, chamada Preta Rodrigues, em 2013. A responsável pelo Atendimento inclusive tinha um capítulo só para ela no livro, tamanha a sua importância, na visão do sr. Marzon.

Em 2022, já praticamente aposentado, porém oficialmente ainda na ativa, Inácio escolheu O Bistrô para sediar a festa de 35 anos da agência. Se aproveitou de que, além de agradável, o restaurante era detentor de vários prêmios do Guia Goodyear, principal referência da gastronomia, patrocinado por ele. À Márcia Vianna, sua escritora fantasma, Inácio J. Marzon revelou em segredo que aquele seria o seu último grande ato à frente da Rubi.

E até que finalmente chegasse esse momento, os dias que antecederam a grande celebração envolveram muita dedicação, trabalho árduo e expectativas vindas de muitos lados. Para o sucesso do evento tão aguardado foi preciso foco, especialmente na coordenação de diversos prestadores de serviço, vindos de várias partes da cidade, que tinham horário quase cronometrado para suas entregas no restaurante localizado próximo à Avenida Paulista. Tudo isso num sábado.

 Ainda que a maior parte do trabalho tenha ficado inteiramente a cargo da chef Patrícia Figueiredo e de sua equipe nO Bistrô, indubitavelmente competentes, houve muita gente na agência que também precisou de horas extras para garantir que tudo saísse conforme o planejado por Inácio. Inclusive Miriá Azevedo, que desde o dia do anúncio da tal festa já vinha se desdobrando além do horário comercial porque Preta, seu principal apoio na rotina de trabalho, precisou ser afastada por motivos de saúde, no pior momento do ano – bem no dia em que o restaurante foi escolhido para sediar a festa.

Por isso, já fazia semanas que Miriá vinha cuidando do serviço que era seu, por contrato, tratava dos detalhes pendentes da festa e ainda era obrigada a se dedicar às questões do Atendimento, pois embora Elias, contratado emergencialmente para a função, fosse um profissional eficaz, a Rubi tinha peculiaridades próprias, específicas de uma engrenagem igualmente única, que não se aprende do dia para a noite e que coube a ela ensiná-lo.

De tudo, certamente a festa da Rubi deveria ser o tema menos importante de sua lista de afazeres, mas de longe foi o assunto sobre o qual Miriá mais se debruçou. Afinal, sabia que o evento seria comentado depois durante meses e um único detalhe fora do lugar poderia ser o assunto principal dessas inevitáveis conversas.

Então, se dependesse dela tudo naquela noite estaria perfeito; nem tanto por amor ao trabalho, mas especialmente porque tinha consciência de que seu nome era vinculado ao da Rubi. O sucesso da agência era o seu e vice-versa. Por isso trabalhou, e muito. 

Quando finalmente chegou o grande dia, sentia-se tão cansada que ao acordar até cogitou ficar na cama por mais um instante. Era fim de semana, afinal. Mas mesmo esgotada, física e mentalmente, ela se levantou, com o dia ainda meio escuro do lado de fora da janela, porque seu senso de responsabilidade era tamanho que não saberia ser capaz de sequer tirar algum cochilo.

Como fazia todas as manhãs, se vestiu com o roupão por cima do pijama e foi até a varanda, apreciar o dia sobre o topo dos prédios ao redor do seu. Acendeu um cigarro que tirou do maço que ficava propositalmente ali, e emendou os dois primeiros tragos, sentindo o gosto forte de nicotina na ponta da língua, acalmando os nervos que ela gostaria que tivessem despertado um pouco menos à flor da pele.

Era uma das poucas pessoas desperta àquela hora na vizinhança inteira, o que seria propício para fumar em paz e colocar os pensamentos em ordem, mas Miriá apagou o cigarro na metade e, ao retornar para o quarto, ao invés de deixar a porta da varanda aberta preferiu acender a luz.

Foi com o primeiro gole de café, minutos depois, que pensou em Célia pela primeira vez naquele dia. Constatou pelo celular que suas últimas mensagens nem tinham sido recebidas por ela e fez um muxoxo ao observar que já fazia dias que não conversavam direito. Em partes porque andava ocupada, é verdade, mas também porque Célia parecia ter desaparecido nas últimas horas.

Nada novo no horizonte.

Ao acender o segundo cigarro, ainda sentada à mesa na cozinha, Miriá sentia-se preocupada, com receio de ter seus planos frustrados, mais uma vez, por causa de Célia e seus afazeres de mulher casada. Só que desta vez parecia pior porque tinha partido dela a ideia de dormirem juntas, depois da festa da agência. O plano era perfeito, desde que desse certo. Miriá tinha trabalhado bastante para isso, mas Célia precisava fazer a sua parte do combinado. A começar, dando algum sinal de vida.

Mas porque havia muito assunto para resolver até de noite, Miriá preferiu deixar a questão de lado, junto com o resto do café, que jogou morno dentro da pia. “Foco, mulher”, ela se disse, caminhando pelo apartamento descalça e determinada, decidindo o que vestir. A agência estaria vazia naquele sábado, como era de praxe aos finais de semana, e ela aproveitaria o silêncio e a tranquilidade para finalizar o trabalho que não conseguiu terminar na noite anterior, ao reconhecer às dez da noite que precisava ir embora, para descansar. Trabalhar logo cedo não era exatamente o programa ideal para aquele dia, mas deixar acumular para segunda-feira era ainda pior. A festa passaria, mas seus deveres não, e Miriá era competente na arte de evitar dores de cabeça futuras. Se poupava de todos os aborrecimentos que conseguia prever. Isso com relação ao trabalho, é claro. Célia já era outra história.

Voltou a pensar nela a caminho da agência, quando parou para abastecer e cogitou de lhe enviar outra mensagem. Chegou a pegar o celular e abrir o aplicativo, mas desistiu. Primeiro porque achou perigoso mexer no aparelho ali, ao lado da bomba de gasolina (há alertas de que isso pode provocar explosões). Depois porque considerou que mandar mais uma mensagem não ajudaria em nada. Pelo contrário! Ao guardar o celular de volta na bolsa, Miriá refletiu que tentar algum contato agora poderia ser até pior, no sentido de incriminá-la de algo, vai saber.

Se envolver com mulher casada fez dela “gata escaldada”, então pensava sempre nos piores cenários, especialmente diante dos sumiços de Célia, infelizmente comuns, provocados por motivos quase sempre relacionados à Bruna, esposa dela. Às vezes até ficava com a impressão de que vivia em um eterno estado de espera, aguardando o dia em que tudo finalmente viria à tona. Sim, porque algo lhe dizia que isso em algum momento aconteceria; não era nem uma questão de “se”, mas de “quando”. Aí, como uma espécie de mecanismo de defesa acabava sempre dando mais espaço para Célia quando sentia algo de estranho, ou quando ela sumia, por exemplo. No dia em que o circo pegasse fogo, não seria Miriá quem riscaria o fósforo. Ao menos não era sempre que desejava ser a responsável por isso, como agora. Sentia-se ocupada demais, afinal, e sem muita energia para lidar com essas questões no momento.

Verdade seja dita, em grande parte do tempo Miriá achava até benéfico o fato de ser amante. Era cômodo e prático, considerando que nunca foi de muito apego, de ficar em cima, grudada. E durante um tempo a relação nesse formato bastou, ajudando a abafar as frustrações que vieram no caminho, desde que havia cruzado com Célia. Foi tudo muito bom, e seguro, enquanto não se apaixonou.

Em geral, ponderar sobre isso gerava sempre outro pensamento, mais pesado que o anterior, de arrependimento por estar fazendo aquilo, há tanto tempo, com alguém. Mas ainda que detestasse se imaginar no lugar de mulher traída, Miriá seguiu para a agência sem pensar mais naquilo; optou por se focar no trabalho que pretendia finalizar ainda pela manhã. Foi no trajeto calculando mais ou menos o horário que se livraria de tudo e iria para casa, quem sabe descansaria um pouco antes da festa. Com sorte, se encontraria mais tarde com Célia e ela daria uma desculpa qualquer para o sumiço; diria algo que Miriá provavelmente nem faria muita questão de ouvir.

Chegou ao trabalho fazendo uma lista, deliberadamente já colocando para o fim as tarefas que talvez não cuidasse por agora, listando quais poderia terceirizar, mas rapidamente seus pensamentos se calaram. Miriá se surpreendeu ao encontrar movimento logo no saguão da agência. Ao passar pela porta de entrada reconheceu Inácio sentado com sua bengala, Ricardo, o filho dele, mais à frente, e uma mulher que de imediato não se lembrou do nome. Viu também Elias, no sofá, e Preta, em pé ao lado dele. Foi a primeira surpresa do dia, sem dúvida. Sem querer, ergueu as duas sobrancelhas.

Sua entrada fez com que todos imediatamente se calassem, a encarando como se Miriá flagrasse algo proibido. Ou um encontro em que obviamente não tinha sido convidada.

– Miriá, bom dia, minha querida – Inácio a cumprimenta, assim que a vê – Não esperava te encontrar por aqui tão cedo. Como você está?

– Oi, seu Inácio. Bom dia – Miriá se abaixa para um abraço breve, após dar um beijinho na lateral de seu rosto – Pois é, não esperava também encontrá-los aqui hoje, em pleno sábado – complementou, olhando diretamente para Preta, que sustentou o olhar – Voltou?

– Oi, Miriá – Ricardo a cumprimenta com um beijo rápido – Marcamos de nos encontrar aqui hoje para apresentar o Elias...

– Bom dia, Miriá – Elias se aproxima e a cumprimenta de um jeito paulista, também com um beijinho só de um lado do rosto – Já agilizei o relatório que me pediu ontem, deixei na sua mesa.

– ... a Preta retorna oficialmente na segunda, achamos interessante promover esse encontro prévio entre os Atendimentos – Ricardo continua, se afastando um passo, dando espaço para a aproximação de Preta, mas ela se manteve imóvel – Estava inclusive comentando com ela sobre como você e o Elias se deram bem, né Elias?

                Miriá saltou os olhos de Ricardo para Elias, depois voltou a encarar Preta, que permaneceu parada, em silêncio. Parecia estar descansada, mas tinha no rosto uma conhecida expressão de desconforto, a boca contorcida num biquinho, bem sutil. Se assemelhava com a feição de Elias, cujas expressões ela já sabia ler.

– Oi, Miriá – Preta finalmente falou, movendo a cabeça rapidamente, numa espécie de cumprimento informal – Não imaginei te ver aqui.

– Ué – Miriá deixou escapar, o corpo se virando em direção ao elevador – Eu trabalho aqui, gente, por que a surpresa?

                Miriá não esperou uma resposta. Fez apenas um aceno com a cabeça, erguendo as sobrancelhas agora de propósito, e apertou o botão no elevador, fazendo a porta se fechar antes que ela selecionasse o andar. Lá em cima, caminhou rápida até o meio da sala e desabou em sua cadeira, satisfeita por encontrar o local inteiramente vazio, mas bastante incomodada com a cena no saguão. “Injustiçada” seria o termo mais correto porque no fundo se sentia traída, depois de tanto esforço nos últimos dias, sendo deixada de lado numa reuniãozinha besta que não custava nada ter sido convidada.

– Sério que eu nem volto direito e você me recebe assim? – o tom de Preta era de mágoa. Entrou na sala como um furacão, chegando até a mesa de Miriá antes que ela sequer esboçasse uma reação à pergunta.

– Você podia ter pelo menos me avisado que estava voltando – Miriá retruca, também parecendo magoada – Some durante várias semanas, nem soube se estava bem ou não, se tinha melhorado...

– Eu tentei te avisar! O que houve com o seu celular? – Preta cruza os braços, lançando um olhar desafiador em sua direção, teatral – Não me venha com esse tom de traída, Miriá, porque quem estava até agora ouvindo elogios melosos à pessoa que me substituiu era eu e não você.

– Elias não te substituiu... – Miriá resmunga, pegando o celular na bolsa. Abriu na tela da conversa com Célia, ainda só um tracinho indicando que a mensagem não tinha sido recebida.

– Viu? – Preta estava mostrando o seu próprio celular, a chamada não completada indicada no visor – Seu celular está fora do ar, olha aqui quantas vezes eu tentei te avisar sobre hoje – ela volta a virar o aparelho em sua direção, seu número listado várias vezes, em horários distintos – Não importa o que tenha acontecido, Miriá... eu te considero minha amiga, minha parça, pô. Achei que era recíproco.

– Claro que é, Pretinha – Miriá se levanta, depois de um suspiro alto. Abraçou a colega, parecendo sincera – Desculpa, ando muito cansada.

– Tudo bem.

– E nem sabia que meu celular estava fora do ar, que... meleca – Miriá volta a sentar, vendo Preta mexer no relatório deixado por Elias.

– Parece que ele é bom, mesmo... Esse tal de Elias – Preta pareceu falar sozinha, logo largando o documento de volta à mesa.

– Ele é e não vai roubar o seu lugar. Elias vem para somar, eu fiz o Ricardo prometer isso. O quê?, não somos parça? – Miriá completa, sendo encarada por Preta – E ele é gente boa, dá uma chance.

– Veremos – Preta suspira, rodopiando em cima dos calcanhares, se virando em direção à porta – Estamos resolvidas, né? Acho bom, nos vemos na segunda – ela diz, dando um tchauzinho com a mão, enquanto caminhava, sem esperar qualquer resposta.

– Não vai à festa? – Miriá pergunta, um tom mais alto para ser ouvida.

– Jamais! – Preta dá uma risada gostosa, sonora, audível mesmo depois que a porta do elevador se fechou.

                Subiu mais um andar, ao invés de descer, estampando no rosto seu sorriso mais cortês, antes mesmo que a porta do elevador voltasse a abrir. Preta não achava que corria algum risco de perder o cargo, ou o emprego, mas só porque Inácio a idolatrava. O problema é que o criador da agência estava ficando velho e em breve seria obrigado a se aposentar. Isso tinha ficado claro para ela nesta manhã, ao encontrá-lo no saguão da Rubi. Depois de quase três meses afastada, se recompondo, no reencontro Preta o achou debilitado, quase senil.

Se bem que agora avaliava que Miriá também parecia ter envelhecido umas duas primaveras neste período, não se lembrava de já tê-la visto tão abatida, com olheiras tão profundas. Antes de entrar na sala de reunião, onde todos a aguardavam, Preta reforçou para si mesma o que vinha se dizendo nas últimas semanas: não priorizaria mais o trabalho acima de sua saúde mental. Mesmo que o dono da agência se afastasse do trabalho, isso não seria uma desculpa.

Ao sentar-se ao lado de Inácio, na cadeira que o velho sempre deixava reservada para ela, Preta se perguntou o que Ricardo mudaria por ali, quando assumisse os negócios do pai. Sem querer, se flagrou pensando se Elias é quem se sentaria naquela cadeira e afastou aquilo da mente tão rápido quanto viu chegar. Vinha adotando, desde o Burnout, o método de “ligar o foda-se” para os problemas e, nesse sistema, preocupações banais como essa não têm vez.

Mesmo assim, sorriu para Márcia, a escritora que estava sentada do outro lado da mesa, porque confiava em seu sexto sentido, que lhe alertava sobre a saída de Inácio da Rubi. A ghost writter com certeza tinha informações valiosas, que mais ninguém naquela sala possuía. Preta decidiu que falaria com ela mais tarde, ao perceber que o encontro daquela manhã não era para tratar desse assunto, mas sim da festa que ela realmente não pretendia ir.  

Enquanto ouvia o que parecia ser um discurso ensaiado (e por isso mesmo, enfadonho) de Ricardo, a respeito do cronograma da festa de logo mais nO Bistrô, assunto que pouco lhe interessava, Preta se deixou vagar pela sala, reconhecendo se sentir contente por estar de volta, por estar ali. Embora a agência parecesse significar nos últimos dias a sua quase condenação, era ali que se sentia bem, até feliz. Sorriu para Inácio por isso, que retribuiu o sorriso, dando dois tapinhas em sua mão, alheio ao que se passava dentro dela. Quando notou, Elias também sorria, parecendo gentil na outra ponta da mesa, e Preta se lembrou de Miriá pedindo para que lhe desse uma chance. Só por isso correspondeu ao gesto, interrompendo quando finalmente descobriu o porquê de ter sido chamada naquele sábado.

– A Miriá vai ser homenageada na festa e vocês não a avisaram disso? – perguntou, demonstrando estar atenta ao que se passava na sala, apesar de sua mente fugidia. Seu rosto demonstrava toda a desaprovação por aquilo, até mais do que ter sido intimada a comparecer para entregar à amiga o Troféu Profissionais do Ramo, na categoria Criatividade, que Miriá ainda não sabia ter sido contemplada – Só eu que acho isso uma péssima ideia? – olhou novamente para Inácio, mas desta vez ele fugiu de encará-la.

– É uma surpresa, Preta – Ricardo parecia contrariado, como ficava sempre que era confrontado, ainda que indiretamente – Fala para ela, pai.

– É verdade, é verdade – Inácio concorda, balançando a cabeça enquanto fechava os olhos devagar – Na festa da Rubi você não pode faltar, Preta, querida. E será uma justa homenagem à Miriá, que trabalhou tanto pela agência esses anos todos, você sabe bem. Vocês duas são as joias da minha coroa – acrescentou, emocionado, não vendo Preta levantar os olhos.

                Ainda que discordasse de absolutamente tudo aquilo, Preta mordeu o lábio, sem vontade de discutir. Não se opunha quanto à homenagem, achava até que um prêmio só era pouco; Miriá merecia também um aumento gordo, férias estendidas, uma viagem com tudo pago. O problema era quererem fazer surpresa com aquilo. Nem todo mundo gosta de surpresas. Só que, oficialmente, ainda não tinha retornado ao trabalho, então pensou: para que se indispor tão cedo? E com Ricardo, que em breve seria seu chefe imediato?

Ficou em silêncio, mas balançou a cabeça, em negativa. Conhecia Miriá de vários carnavais. Não apenas isso: conhecia Miriá de vários happy hours, sabia que o álcool costumava sempre trazer a tiracolo a imprevisibilidade, entre otras cositas más, que facilmente fazem desandar até os planos mais bem elaborados. E se ela, sei lá, sumisse na hora da premiação? Não seria a primeira vez.

                O evento era um baile a fantasia com todos os convidados usando máscaras, tampando suas identidades numa festa open bar. Mesmo a contragosto, Preta se lembrava bem de que Miriá era amante da esposa de uma das principais clientes da Rubi. Suspirou, levando a mão à testa, pensando brevemente em Célia Dantas de Alencar e Bruna Toledo. Analítica que era, avaliou em alguns segundos o risco que isso podia trazer para o sucesso do evento da Rubi.

                Quando Ricardo voltou a falar, Preta abstraiu-se de tudo e não registrou o que ele dizia, com a voz empolgada de quem cheirou duas carreiras de cocaína logo cedo.   Sem querer, refletiu de novo sobre o tanto de coisa que mudaria com a saída de Inácio. Ricardo era tão diferente do pai que era simplesmente impossível não fazer comparações. Mas ainda estava muito cedo para sofrer, Preta pensou, servindo-se de água apenas para ocupar suas mãos inquietas. A saída  de Inácio nem tinha sido anunciada oficialmente, afinal de contas.

                Sentada uma cadeira à frente, Márcia percebeu o desconforto da mulher, que tinha um porte todo elegante, ainda que a estivesse conhecendo só agora, porque Preta era bastante transparente em suas expressões faciais, quando queria. Observar as interações fazia parte de seu trabalho como ghost writter, mas mesmo sem querer Márcia era uma atenta analista das cenas à sua volta, das trocas humanas que ocorriam ao seu redor.  

Sua função ali era especificamente escrever a biografia do fundador de uma das agências de publicidade mais importantes do país e para isso se esforçava para absorver cada detalhe de todos em volta daquela mesa. Não se preocupava muito em ouvir o que Ricardo falava, com uma empolgação que só era vista pelas manhãs, porque seu gravador em cima da mesa cumpria esse dever. Então, Márcia registrava tudo o que podia observar; aquelas eram as horas finais de Inácio Marzon à frente da Rubi, últimas chances de captar seu entrosamento com aquelas pessoas.

                Ricardo era o filho, uma pessoa completamente diferente do pai, que provavelmente já tinha em mente todas as mudanças que certamente vai colocar em prática tão logo assumir os negócios. Márcia conhecia bem o tipo, que se autoafirma só para, quem sabe, ter uma aprovação paterna que pode nunca chegar. Não seria nenhuma surpresa daqui um tempo vir a público algum escândalo com o herdeiro da Rubi, pensou. Se fosse apostar, seu palpite envolveria algum problema com drogas.

                Sentado perto dele estava Elias, que Márcia ainda não tinha conseguido traçar um perfil, exatamente. A incomodava o fato de ter algo no rapaz que lhe era familiar, mas não sabia o quê. Notou que ele parecia ser o único a prestar atenção no que Ricardo falava, se atropelando nas próprias palavras.

– ...conseguimos o apoio e a cobertura da imprensa, mas vai ter mídia informal também, com lives, galera tudo ao vivo. Nós chamamos blogueiros, convidamos influencers... – Ricardo dizia, listando nos dedos mais algumas palavras que Márcia não registrou.

                A escritora permanecia observando Elias, o moço bonito que tinha sotaque do sul. Na ausência de Preta, o que Márcia ouviu foi que sua contratação abria um precedente nas ações de Inácio, que mais tarde confessou, quando estavam a sós, que a síndrome de Burnout de sua joia o assustou o suficiente para reconhecer que, sozinha, Preta já não dava mais conta da demanda da agência. A nova era da Rubi, ele revelou, era um período que não fazia tanta questão de vivenciar. Suas constatações no fim o levaram a crer que já estava cansado também e que preferia parar enquanto tudo ainda estava bem com sua saúde – inclusive a mental. Mas Inácio pediu para que ela escrevesse isso de um jeito que minimizasse a responsabilidade de Preta em sua decisão de sair de cena. O livro terminaria assim.

                Era fato que Preta tinha uma presença marcante, era alguém importante ali dentro. Márcia refletia agora que parecia, inclusive, que a tal joia contava até com um status mais “brilhante” que o de Miriá, que já era bem significativo.

                Com a voz do filho do dono de fundo para as conjecturas que fazia, Márcia constatou depois de dois ou três pensamentos que havia algo entre Preta e Miriá. Sexualmente, talvez; amorosamente com certeza. Não apenas porque Preta ficou incomodada com a ideia do prêmio surpresa, mas especialmente porque mais cedo Márcia percebeu a troca de olhares entre as duas, quando se encontraram no saguão, a cena toda parecendo ser exatamente o oposto do que era. Miriá nitidamente se sentiu traída ao encontrá-los, mas mais por Preta, que não quis começar a reunião antes de ir lá se resolver com ela.

                Márcia conhecia bem os dramas humanos, porque era escritora e muito observadora, e conhecia melhor ainda os dramas sáficos. Preta tinha um semblante completamente diferente quando retornou da conversa com Miriá, embora agora já fosse outro, desde o anúncio do prêmio que supostamente teria que entregar, sem que a outra soubesse. Foi quando a ghost writter se distraiu, se preocupando com a roupa que ela própria teria que escolher, caso fosse intimada para ir a um baile desse naipe, assim, de supetão.

– O que você acha, Márcia? Não parece perfeito? – Ricardo pergunta, as pupilas dilatadas focadas nela, seus olhos atentos, assim como dos outros em volta da mesa.

– Olha, gente... – Márcia pigarreia. Não tinha a menor ideia sobre o que falavam – O que vocês decidirem... para mim está ótimo – completou, um tom mais baixo, antes de pigarrear mais uma vez, como se tossisse – O que o senhor acha, seu Inácio?

– É, eu me preocupo agora um pouco com o prêmio da Miriá... – Inácio responde, fazendo questão de tocar na mão de Preta antes de continuar – Talvez seja prudente avisarmos com antecedência, não é...

– Bom, nesse sentido... – Márcia volta a falar – ... por ser uma festa, talvez valha alertá-la, inclusive para que ela não beba muito, sei lá... Vai ter ampla cobertura da mídia, né? – ela olha para Ricardo, que pareceu concordar, e depois olha para Preta, que lançava um olhar agradecido de volta, acenando com mais veemência, em concordância – ... até para manter a boa imagem que a Rubi tem, que a Miriá tem...

– Com certeza. Não, com certeza, vocês têm total razão – Ricardo diz, já puxando do gancho o telefone de cima da mesa e discando o ramal de Miriá, que atendeu zangada, sem saber que estava no viva-voz.

– O que é? – Miriá perguntou, com um suspiro impaciente.

– Oi, Miriá, é o Ric, dá um pulinho aqui, faz favor – Ricardo pede, com um sorriso estático no rosto – Meu pai quer falar com você, tá legal? Estamos te esperando na sala de reunião.

                Márcia se serviu de um pouco de água, se esforçando para não rir enquanto bebia, mesmo sem sede. Era nítido que Miriá assustava o filho do patrão, que se esforçava para não deixar transparecer isso, e ela simplesmente adorava quando homens se sentiam afrontados.

                Miriá surgiu na sala com cara de poucos amigos, os óculos grandes apoiados na ponta do nariz fino refletindo a luz do notebook, que por algum motivo ela levou. Seu cabelo estava preso numa espécie de coque, aparentemente com uma caneta, dando a ela uma aparência ao mesmo tempo sexy e bagunçada, um ótimo contraste com o prêmio que recebeu das mãos de Preta, que sorriu de verdade desde que Márcia a tinha visto pela primeira vez, algumas horas atrás. Formavam um casal bonito, admitiu.

– A ideia era te entregarmos esse prêmio hoje à noite – Inácio diz, interrompendo o clima na mente de Márcia – ...mas a Preta e eu achamos por bem não fazermos nenhuma surpresa, assim você aproveita melhor a noite – o velho complementa, dando à Márcia os detalhes finais de como realmente funcionava sua dinâmica com Preta.

– Boa! Te devo uma, Pretinha – Miriá piscou um olho, cúmplice – Grata, seu Inácio, pela consideração, pela oportunidade. Agradeço muito pela Rubi na minha vida.

– Imagina, Miriá. Nós é que agradecemos tudo o que você faz pela agência – Ricardo diz, num tom que deixou claro que a reunião havia terminado – Na verdade, nós agradecemos a todos os senhores, pela presença aqui hoje... para nada, né – ele complementa, em tom quase inaudível, mas Márcia fez leitura labial.

                Combinaram de, propositalmente, Inácio não ser um dos primeiros a chegar ao restaurante para a festa. O evento começaria às sete, Márcia sugeriu que o homenageado da noite aparecesse já depois das oito e meia, para uma entrada triunfal, à sua altura. Mesmo assim, se comprometeu a estar lá bem cedo, revelou conhecer a chef Patrícia e sua esposa, Tatiana, omitindo de propósito o nome de Mariana. Não reparou que Elias ergueu as sobrancelhas ao ouvir aquilo, porque apesar do gesto ele não disse nada. Márcia só foi descobrir o grau de parentesco entre Elias e sua ex, Mariana, na festa dO Bistrô.

                Quando chegou ao restaurante, Zezé foi quem a recepcionou. Ambas se conheciam só por nome, pelas histórias que ouviam uma da outra, uma vez que Márcia costumava ir ao restaurante apenas nas noites em que Zezé não trabalhava, quando O Bistrô ficava fechado, para a prova dos pratos, todo final de ano. Márcia imaginou que a gerente fosse mais alta; já Zezé achava que a “sigilosa” tivesse cara de hétero.

– É um prazer finalmente conhecê-la – Zezé sorriu para ela, gentil – Vou avisar a Tati que você chegou.

– Não – Márcia segura seu braço, antes que Zezé se vire – Não precisa, querida, agradeço. Hoje estou aqui a trabalho – ela coloca uma máscara que tinha o mesmo tom azulado de seu terninho – Estou a caráter, mas tenho a missão de observar o pessoal da Agência Rubi. Sabe se já chegou alguém? – ela precisou se aproximar para fazer a pergunta, porque uma música alta começou a tocar de repente.

– O primo da Mariana é o primeiro – Zezé indica com a cabeça para Elias, que acenou para elas da porta.

– Primo? – Márcia repete, a informação já se encaixando dentro do organograma formado em sua mente – Claro, certo.

                Zezé cumprimenta Elias com um beijinho, observando a interação entre ele e a tal de Márcia. Pelas histórias que Tatiana lhe contava, que se renovavam a cada ano novo, acreditava que a mulher teria uma aparência completamente diferente. Não achou que fosse tão jovem! Nem que parecesse tão amigável.

                Ao lado de Elias, Márcia não chegava nem na altura de seu ombro. Por isso ele se encurvava para falar com ela, demonstrando uma certa intimidade. Zezé reparou que as máscaras dos dois combinavam e se flagrou pensando se haveria algum tipo de código de ética que proíbe, mesmo que indiretamente, a relação de ex com primos. Se distraiu pensando nisso, rindo sozinha, quando viu Estela entrar nO Bistrô. O salão estava começando a encher e ao olhar para a porta, mesmo com o rosto tampado reconheceu a fotógrafa atrás da máscara. Ela tinha olhos muito marcantes, como não reconhecê-la?

                Aquela era a segunda vez que se encontravam ali, só que na primeira, uns anos atrás, Zezé conseguiu fugir, se escondeu durante o tempo em que Patrícia deu entrevista para a repórter da Conexão Sáfica. Foi quando Zezé soube que Estela trabalhava no jornal como fotógrafa. Agora, tempos depois, se perguntava aflita como é que não tinha se tocado de que a pessoa contratada pela chef para as fotos da festa da Rubi era Estela, a Estela. Ou seria melhor dizer Senhorita L.?

– Zenaide, olá – Estela estica a mão para cumprimentá-la, bem formal. Era praticamente a única no mundo que a chamava assim e sabia disso – Desta vez não deu tempo de se esconder de mim, hein? – ela puxa a câmera do pescoço e tira uma foto de Zezé, sem anunciar – Perfeita! Sua cara está impagável! – Estela dá uma risada sincera, fazendo um som agradável, que desmontou Zezé.

– Boa noite, Se... – a gerente morde a língua, sorrindo para ela. Olhou para os lados e viu que ninguém as olhava – ...Senhorita L., boa noite.

– Boa menina – Estela ri de novo, vendo o salão por cima do ombro de Zezé, seus olhos brilhando contra a luz – Ah, que bom que consegui chegar cedo o suficiente, ainda está vazio. Te vejo por aí, certo?

                Ela não esperou pela resposta. Deu só uma risadinha e desviou de Zezé, já tirando fotos de detalhes que à primeira vista foi julgando interessantes. De imediato Estela percebeu como o restaurante estava diferente desde a última vez que estivera ali, trabalhando com Mirtes, jornalista da Conexão. Arrumado para festa, O Bistrô parecia até outro lugar. De igual só um rosto ou outro, como o de Tatiana, que ela viu passando distraída a caminho da cozinha, o de uma garçonete, que tinha o sorriso bonito, e o de Patrícia, que veio cumprimentá-la muito elegante em seu uniforme de cozinha, numa versão comemorativa.

                Como Estela era bastante observadora e admirava a postura de mulheres como a chef, empoderada, dona da porra toda, foi impossível não reparar no quanto Patrícia parecia fadigada. Estava impecavelmente arrumada, mas algo em seus olhos revelava um certo cansaço, uma quase exaustão. Estela tinha ouvido falar que ela e a esposa haviam se casado com uma terceira mulher, um babado que provocou burburinhos durante meses, as mina tudo indo conhecer o restaurante só para ver essa história de perto. Achava isso um ótimo marketing!, mas não combinava com a expressão de Patrícia.

                Estela quis tirar uma foto da chef, de começo de festa, e escolheu o bar para servir de fundo, por ser mais escuro. Daquele ângulo não dava para notar a expressão cansada de Patrícia, que sorriu antes do clique, com o peito estufado, parecendo orgulhosa por seu negócio, mais uma vez. Estela deu a sorte de Tatiana passar ali bem naquela hora e fotografou as duas juntas, sorridentes. A esposa #1 se comprometeu a encontrar a esposa #3 e reunir o trisal para uma foto, assim que localizasse Mariana, que nenhuma delas sabia onde estava.

Estela agradeceu e viu a chef retornar para a cozinha com passos firmes, parecendo discutir com Tatiana, que rapidamente se afastou, indo cumprimentar alguém que tinha chegado. A fotógrafa apoiou a câmera no balcão e tirou mais duas fotos da dona dO Bistrô, vendo Patrícia parar para dizer algo no ouvido de um garçom, que ficou girando a bandeja na mão enquanto balançava a cabeça, concordando com ordens que dali não dava para ouvir. Foi então que Estela virou o corpo e viu a bartender atrás do balcão. A achou muito exótica, com o cabelo todo para cima, um ar meio misterioso. Tirou uma foto que saiu bem psicodélica, por causa da luz.

– Podemos marcar uma sessão, se quiser – Lola brinca, sorrindo antes de ser fotografada mais uma vez – Posso te oferecer algo para beber?

– Claro, me surpreenda – Estela responde, sorrindo para a mulher que nem de longe imaginava o que uma “sessão” com ela realmente significava.

                Estela captou os movimentos de Lola preparando o drinque. Seu uniforme escuro se complementava à pouca luz do ambiente, fazendo com que o copo com o líquido amarelado brilhasse em suas mãos habilidosas. Numa sequência de fotos, Estela focou no sorriso da bartender por trás do vidro da garrafa e o viu se desmanchar, após ela reconhecer alguém que não pareceu gostar de ver ali.

                Discreta, Estela fingiu não perceber o embaraço repentino de Lola, agradeceu o drinque e foi trabalhar. Circulou entre os convidados mascarados, que já preenchiam bem o espaço do salão, tirando diversas fotos, inclusive de algumas pessoas distraídas, detalhes da decoração e a DJ, que usava um fone de ouvido enorme. Em dado momento, algum tempo depois, no meio daquele mar de gente conseguiu ver um rosto conhecido. Ou metade do rosto, pois Nicole estava de máscara.

                Nicole costumava participar de corridas de rua. Estela sabia disso porque colecionava várias fotos dela correndo. A mulher se destacava entre os atletas porque tinha uma beleza única e também porque tinha uma perna mecânica, impossível não reparar nela. O prazer de Estela era reconhecê-la quando estava trabalhando nessas corridas como fotógrafa freelancer, sua determinação era inspiradora!

                Pensou em puxar papo, mas não soube o que falaria. Especialmente porque seu desejo era fotografá-la nua em seu estúdio, marcar com ela a sessão digna que Nicole merecia, mas a abordagem para esse tipo de foto era sempre um assunto complicado para Estela. Era tímida, apesar das fotografias que fazia.

                Frustrada, saiu para fumar e ao atravessar a rua viu Mariana chegar aO Bistrô, num carro amassado com um dos faróis apagado. Sabia quem ela era, embora a nova esposa de Patrícia tivesse o perfil fechado no Instagram – o que nunca foi impeditivo para ela descobrir algo sobre alguém. Trabalhar tantos anos com jornalistas a fez criar um senso investigativo bem afiado!

                Mariana tinha o ar um pouco desorientado. Ficou um tempo parada na frente do carro, observando o amassado que parecia ter sido causado por uma batida recente. Depois abriu e fechou o porta-malas duas vezes, como se decidindo se deveria ou não tirar o que trazia ali dentro. Por fim, acabou fechando a tampa, falou alguma coisa sozinha, gesticulando com a mão, e entrou no restaurante com uma bolsa.

                Estela achou a cena curiosa, ficou imaginando como funcionaria a dinâmica de um casamento entre Patrícia e Tatiana, e alguém como Mariana, que parecia ser tão diferente delas. Quis entrar logo para ver se flagrava seu encontro com uma das esposas, não para fotografar, mas porque era curiosa, só que antes da porta giratória a perdeu de vista, quando esbarrou em Sabrina.  

                Sabrina não era a mulher mais alta que Estela conhecia, mas sem dúvida era a maior de todas. Estava linda, num vestido todo preto, com um véu fino combinando. Sua máscara prata contava com vários detalhes cravejados de vermelho, mais puxada na altura dos olhos. A abertura de sua roupa na frente dos joelhos revelava o calçado que usava, preto e de salto altíssimo, o que a deixava com uma aparência ainda mais soberana, imensa, poderosa. Estava com os cabelos soltos, ondulados, mais ou menos na altura dos ombros, desnudos pelo corte do vestido, que deixava também seu colo de fora, adornado com um colar brilhante. Sem perceber, Estela se curvou ao cumprimentá-la.

– Dona Sabrina, satisfação em vê-la – Estela a encarou nos olhos, sustentando o olhar.

– Senhoritinha, que bom ver que esta festa está tão bem frequentada – Sabrina se abaixou alguns centímetros e depositou um beijo em seu rosto. Atrás dela, bem perto, havia uma mulher que permaneceu em silêncio – Está aqui a trabalho, eu imagino – ela aponta para a câmera pendurada no pescoço da fotógrafa.

– Sempre a trabalho, dona Sabrina.

– Sempre a trabalho, claro – Sabrina falou junto com ela, e sorriu ao final. Então se virou um passo e se direcionou à sua acompanhante, mais atrás – Pode entrar, Caramelo. Eu já te encontro lá dentro.

– Mas, dona... – a moça começou a dizer e logo foi interrompida.

– Luana! – Sabrina a chama, sem precisar dizer mais nada.

                Estela riu internamente ao ver a mulher se calar e obedecê-la, sem contestar. Sabia bem o que aquele tom representava e imaginou de onde viria o apelido que Sabrina usava para falar com a jovem, que era muito bonita, em seu vestido todo vermelho aveludado.

– E as fotos? – Sabrina pergunta, puxando o maço de cigarros do bolso da camisa de Estela – Como andam suas sessões?

– Andam bem... – Estela responde, se apressando para acender o cigarro de Sabrina e na sequência outro, para si – Quer dizer, estão meio fracas, daquele jeito, sabe como é...

– Se não há atitude, Senhoritinha... – Sabrina soprou a fumaça para o alto com força, fazendo um som junto com o gesto, balançando a cabeça em negativa. Não precisou terminar a frase.

– É, eu sempre penso muito nisso que você fala... – Estela comenta, cabisbaixa. Chutou uma pedrinha no chão, colocando a mão no bolso da calça, meio sem graça.

– Então pare de pensar e coloque em prática! O que está esperando? – Sabrina sorriu, apesar de falar sério. Cerrou os olhos, na ausência de uma resposta – Aproveita que está de máscara, esconda sua timidez atrás da indumentária. Olha quanta gente bonita aqui hoje. Aposto que muitas adorariam posar para as suas lentes, do jeito que você gosta.

– É, seria bom... – Estela riu, mas se conteve ao ver que Sabrina ainda a encarava séria, do alto de mais de 1,90m. Teria tirado uma foto dela nesse momento, se fosse outra mulher. A achava muito imponente e nesta noite estava absolutamente deslumbrante com aquela fantasia. Combinava demais com ela, mas seu registro ficou apenas na memória.

– Não estou brincando, Senhorita – Sabrina entregou o cigarro aceso pela metade para Estela, se despedindo com um aceno breve com a cabeça – Quero que agende uma sessão hoje.

– Claro, dona Sabrina – Estela diz, apagando os dois cigarros no cinzeiro da calçada – Já sei até com quem – complementou, depois que a mulher já tinha passado pela porta.

Sabrina encontrou Luana assim que passou pela porta giratória e ficou satisfatoriamente surpresa com a decoração do local. Como boa lésbica que era, conhecia O Bistrô desde que havia lido o artigo no jornal Conexão Sáfica, na época em que Patrícia e seu restaurante tinham merecidamente entrado para o Guia Goodyear, uma conquista comemorada por muitas, inclusive ela, que era declaradamente contra o patriarcado e aplaudia em pé o progresso feminino.

De propósito, fingiu não perceber a cara feia que Luana fazia. Estava uma noite ótima, afinal, e não a estragaria com birra de quem definitivamente não sabe se portar em público. Aquela seria inclusive a primeira e última vez que fariam juntas um programa do tipo, dado o comportamento que observava na mulher que vinha logo atrás dela. Adorava se exibir por aí com suas prendas, mas para isso precisavam de uma dose mínima de bons modos – que Luana não parecia ter.

Caminharam como se desfilassem pelo salão, como se o baile fosse delas e sua imponência parecia fazer com que o caminho se abrisse conforme avançavam em direção ao bar. Achou que aquela parte dO Bistrô também estava diferente, com menos mesas que o habitual, mas encontrou uma banqueta privilegiadamente localizada em frente ao balcão. Assim que se sentou, foi atendida por uma bartender que usava uma cartola alta e uma máscara que só escondia a parte dos olhos. Era nova; se lembraria dela, caso já a tivesse visto.

Como de costume, Sabrina a olhou de cima a baixo, do jeito que fazia quando se interessava por alguém, os dentes mordendo o lábio, sem perceber, como se estivesse com desejos, bem explícita. O gesto aborreceu ainda mais Luana, que desta vez bufou – alto o suficiente para ser ouvida, apesar da música que tocava alta.

– Boa noite, madame, como posso te servir? – Lola perguntou, se debruçando de um jeito sexy em cima do balcão.

– Com uísque, por enquanto – Sabrina respondeu, sorrindo satisfeita, aproximando o rosto do ouvido dela. Tanto que seu lábio encostou no lóbulo da orelha da bartender, que deixou escapar uma risadinha, contraindo o ombro.

– Dona, não estou gostando de estar aqui, podemos ir embora? – Luana pergunta, com uma voz melosa, mas baixa o suficiente para que somente elas ouvissem.

– De jeito nenhum, meu Caramelo. É uma festa do seu trabalho, além de ser o nosso teste – Sabrina responde, omitindo de propósito o fato de que Luana havia falhado antes mesmo de passarem pela elegante porta giratória dO Bistrô. Ainda assim, a puxou pela cintura, a trazendo para mais perto – Quero te observar interagindo com suas colegas de trabalho, com sua chefe – complementou, num tom ainda mais baixo, arrepiando com seu cochicho a pele da mulher escorada nela.

– Não gostei como você falou com a fotógrafa lá fora... – Luana insiste, manhosa, se aconchegando no abraço de Sabrina, que a abrigou.

– E você não saber lidar com o seu ciúme é problema meu ou é seu? – Sabrina arqueia uma sobrancelha, se afastando alguns centímetros para encará-la.

– Mas...

– Não tem “mas”, querida. Você sabe os termos desta relação, não sabe? Sabe, sim – Sabrina volta a abraçá-la, desviando de propósito do olhar dela.

– Eu só não sabia que seria tão incômodo encontrar com uma das suas logo de cara... – Luana resmunga, sentindo seu corpo mexer, quando ela riu. Como gostava de fazer, Sabrina demorou para responder, fazendo com que o silêncio de sua pausa servisse para reflexão.

– Senhorita L. não é “uma das minhas”. Talvez tenha sido no passado, há muito tempo, mas digamos que ela seguiu para o outro caminho logo após sua iniciação.

– Como é? – Luana a encarou com os olhos brilhando, refletindo as luzes do bar – Ela é tipo uma “colega” sua? É uma dominadora também, dona? – seu olhar pareceu ganhar um brilho extra.

– Mas olha só essa carinha... – Sabrina sorriu, após o comentário – Mudou rápido, do ciúmes para a luxúria! Toma vergonha, Caramelo!

– Ué – Luana riu, descontraída pela primeira vez na noite – A dona mesmo não diz que sou que nem vira-lata? – ela ri, enlaçando o pescoço de Sabrina com os dois braços, dando um beijo em seu rosto depois da fala – Hum? Não vai me dizer?  

– Não deveria, só para você aprender a lidar com essa sua curiosidade – Sabrina rebate, vendo o rosto de Luana mudar quando Lola colocou um copo baixo à sua frente – E com o ciúme – complementa, piscando para a bartender antes de beber um gole curto de uísque.

                Ao sentir o primeiro contato do álcool com seu paladar sensível, Sabrina fechou um pouco os olhos, apreciando o sabor forte da bebida, que imediatamente amoleceu seu maxilar, trazendo um conforto imediato e conhecido. Quando voltou a focar sua visão no salão, viu uma mascarada se aproximar delas com certa determinação, embora cambaleasse um pouco.

– Lu, cadê Miriá? – perguntou, se apoiando no braço de Luana. Estava um pouco ofegante e demorou a olhar para Sabrina – Você sabe dela?

– Não, amiga... Não a vi desde que cheguei, quase agora, por quê? – Luana retruca, olhando à volta para ver se a chefe estaria por ali.

– Aconteceu uma situação e eu preciso muito encontrá-la.

– Essa foi a Rita – Luana apresenta, apoiando a mão no ombro de Sabrina, que permanecia sentada enquanto a viam cumprimentar alguém próximo delas – É minha dupla no trabalho, a gente costuma sair para beber às sextas.

– Ela é... intensa – Sabrina bebericou mais um gole de uísque, fazendo um gesto rápido na sequência – Cuide do meu lugar, sim? Vou até o toalete e já volto.

– Não quer minha companhia?

– Não para isso – Sabrina se levantou e mandou um beijinho no ar, indo em direção ao banheiro sem olhar para trás.

                Luana levantou os ombros, sentando na banqueta de Sabrina, degustando a bebida que não era dela. Achou muito forte, não tinha nem uma pedrinha de gelo para se salvar ali. Por isso, fez uma careta e gesticulou para a bartender, pedindo uma caipirinha de saquê.

Enquanto aguardava, olhou à sua volta, tentando reconhecer alguém atrás de tantas máscaras coloridas. Viu Ricardo e o pai, dono da agência, um pessoalzinho do administrativo e dois colegas de andar. Se perguntou então o que teria acontecido com Miriá e logo depois se questionou se teria algum problema ela ter chegado tarde à festa. A princípio achava que não, mas só até saber que algo tinha acontecido. Torceu silenciosamente para que a chefe estivesse bem.

Daí seu pensamento migrou para Sabrina e Luana sorriu, pois estava feliz por sair com sua dona pela primeira vez em público. Isso era excitante em níveis que não conseguia descrever e torcia para estar fazendo tudo corretamente, para que a experiência se repetisse mais vezes. Talvez para isso tivesse apenas que se esforçar para não querer saber mais sobre a fotógrafa da calçada, muito menos demonstrar insegurança/ciúmes. Era um teste, afinal, também para isso.

Considerava-se uma mulher desprendida, achava sempre que se bastava e por causa disso acabou de certa forma blindada ao longo da vida, saindo ilesa de alguns relacionamentos que terminaram pelo caminho. Mas com Sabrina era diferente, provavelmente porque nem podia usar esse rótulo com ela. Não era um título que lhe cabia; não tinham nenhum envolvimento, exatamente, e o que existia entre elas era selado por um contrato. Mais frio que isso, impossível.

Mas Luana se sentia confortável em sua presença. Era fácil estar com Sabrina, assim como era fácil se submeter ao seu controle. Sentia-se sempre segura com ela, de um jeito que em namoro nenhum foi capaz, ainda que essa segurança tenha surgido somente após um tempo, quando conquistaram uma certa intimidade.

Ao pegar sua caipirinha em cima do balcão, Luana refletiu que a palavra era justamente essa: intimidade. Soava sexy aos seus ouvidos, especialmente quando se relacionava à Sabrina. Decerto porque era o auge do envolvimento entre elas e Luana era consciente de que não passariam jamais disso. E ela nem queria, embora estivesse adorando fazer papel de casalzinho num ambiente externo.

Riu sozinha com o pensamento e olhou em direção ao banheiro, esperando ver por ali Sabrina em seu lindo vestido de festa. Já tinha memorizado cada centímetro do fecho que com muito prazer deslizaria para baixo, a despindo, com sorte ainda esta noite. Desde que sua dona desse a permissão para isso, é claro.

Estava distraída, com a mente bem longe dali, nem viu Elias se aproximar. Muito menos notou a preocupação que ofuscava seu rosto, tanto quanto a máscara preta escondia parcialmente sua identidade.

– Oi, Luana! Aqui, será que teria como tu me fazeres um favor? – Elias pergunta, logo após o cumprimento.

– Oi, claro! Se eu conseguir te ajudar... – Luana responde, emendando um generoso gole em sua caipirinha. Com o gesto, deixou claro que estava ali exclusivamente a lazer, e Elias entendeu o recado.

– Estou procurando a Miriá, me disseram que ela pode estar lá no banheiro... Você podia ir até lá?

– Putz – Luana responde, bebendo mais – Pior que não posso sair daqui – complementa. Não estava mentindo! Estava guardando um lugar.

– Tá, tudo bem, sem problemas – Elias sorri para a colega, procurando Lola pelo bar. A bartender certamente o ajudaria, mas ela parecia ter desaparecido dali.

                Sem dizer mais nada, Elias se afasta de Luana, indo em direção ao banheiro, ainda que não pretendesse entrar. Estava preocupado com Miriá, tinha visto uma movimentação suspeita de uma mulher em cima dela, instantes atrás, no que pareceu ser uma discussão. Não sabia se podia ser chamada assim porque não foi exatamente uma briga, mas deu para ver que o que quer que a mulher lhe tenha dito, a abalou. Se Elias perdeu tempo em procurar Miriá foi porque antes de atravessar o salão até ela, procurou saber quem era a mascarada.

                Descobriu com certa facilidade: Bruna costumava frequentar O Bistrô, era amiga de Patrícia e Tatiana. Mais do que isso: tratava-se de importante cliente da Rubi, presidente de uma rede de hotéis de luxo. E além: era esposa da amante de Miriá. Quem contou tudo isso foi Tatiana, que adorava um bochicho, ao ser perguntada sobre Bruna e saber de uma suposta discussão envolvendo a amante de Célia.

                Foi inevitável Elias não pensar em Preta. Como uma bruxa, ela tinha previsto que algo podia acontecer na festa, envolvendo Miriá. E ele nem sabia da preocupação dela de Miriá sumir justamente no momento em que ocorreria a premiação! No caso, agora.

– Ei, você é o primo da Mari, não é? – alguém pergunta.

Elias estava chegando ao banheiro quando foi interceptado. Junto com a pergunta a pessoa segurou seu braço, o fazendo parar. Ao estancar e se virar, se deparou com Bruna. Os olhos marejados por trás da máscara cor de vinho amoleceram seu coração.

– Sou, sim. Me chamo Elias. E você é a Bruna Toledo, da Etur Lux. Eu assumi a sua conta, provisoriamente, na Agência Rubi. Muito prazer em conhecê-la.

– O prazer é meu, Elias. Você pode, por favor, me ajudar a sair do restaurante sem que ninguém me veja? Eu preciso ir embora daqui.

                Elias olhou à volta. O Bistrô estava bem cheio, lotado de um jeito que ainda não tinha visto, desde que havia chegado à cidade. O que era bom, por um lado representava o sucesso do evento da Rubi, mas por outro era um problema, se a intenção era sair dali de maneira despercebida. Algo no tom de voz de Bruna o tocou, de um jeito que pôde entender com perfeição a necessidade daquela discrição, e também sua urgência.

                Seu plano de fuga inicial envolveu burlar o cordão que a imprensa fazia na entrada do restaurante, saindo pelos fundos. Se conseguissem chegar até a cozinha, poderiam usar a porta de serviço, e seria exitoso, desde que não houvesse ninguém da mídia nesse local. Aí se lembrou de Ricardo, todo orgulhoso naquela manhã, falando que teria até gente fazendo live durante o evento.

                Não havia saída, qualquer que fosse a rota escolhida, Bruna seria vista, provavelmente a cercariam para ser entrevistada. Só havia um jeito, portanto, que não era o mais ideal, mas certamente o único viável. Valia os riscos, Elias pensaria mais tarde. Naquela hora, porém, nem pensou em nada, apenas agiu.

– Vem comigo – disse, estendendo a mão para ela.

                Bruna confiou num quase desconhecido e segurou em sua mão. Elias caminhou o tempo todo à sua frente sem dizer nada e enquanto iam passando pela pequena multidão que se aglomerava dentro dO Bistrô, tudo o que ela conseguia pensar era no que tinha acabado de fazer.

                Seu casamento tinha terminado há muito tempo, mas Bruna soube disso só há alguns dias, e da pior forma, ao descobrir uma traição antiga. Suas últimas decisões e as ações que vieram depois disso se embolaram, se emendando umas às outras. Primeiro fez o que estava mais ao seu alcance: demitiu Marta Pinheiro, a assistente de sua esposa adúltera. Depois, mandou Célia para um congresso em Bonito/MS, que até pretendia ir junto, inicialmente, numa viagem romântica. Com ela longe era mais fácil pensar, ou pelo menos tentar organizar seus pensamentos, bem tumultuados àquela altura.

Já sozinha, decidiu ir à festa dO Bistrô vestindo a fantasia que a esposa pretendia usar, só para contar à Miriá, pessoalmente, o caso entre Célia e sua assistente. Bruna tinha ficado horas lendo as conversas das duas pelo WhatsApp, sabia que a publicitária não detinha dessa informação. Mais do que isso: tinha total ciência de que a revelação a faria sofrer e pensar nesse sofrimento a satisfez por um instante. Caso um dia revelasse tudo isso em detalhes para Giovana, sua terapeuta, talvez Bruna diria que este ato com a amante foi por pura maldade, porque não quis sentir aquela dor sozinha. Mas o mais certo é que ela poupasse sua psicóloga, também disso.

Tudo bem que Miriá não esboçou nenhuma reação de raiva, mas paralisou de um jeito que foi perceptível notar o seu abalo ao escutar tudo aquilo. Se não fosse a música alta, talvez daria até para ouvir seu coração se despedaçando naquele momento.

Miriá ficou em estado de choque, Bruna pensou, ainda seguindo Elias em direção aos fundos do restaurante. E a mágoa tem um poder assombroso, apostava tudo no fato de que ela nunca mais iria querer saber de sua esposa. Célia ia ficar sem Marta e sem Miriá. Sua missão então estava integralmente cumprida nesta noite.

Quase sorriu ao pensar nisso quando viu o rapaz alto que ainda segurava sua mão se esticar para alcançar um quadro de luz, perto da porta da cozinha, e deliberadamente desligar o disjuntor. A escuridão foi imediata em todos os espaços dO Bistrô, tão instantânea quanto o silêncio, logo substituído por gritos e assovios dos convidados, que pareceram acreditar que aquele era algum efeito da festa.

– Vem, nós precisamos ser rápidos – Elias fala, no momento em que algumas pessoas começavam a ligar as lanternas dos celulares, criando um clima novo no ambiente.

                Bruna nem questionou, só o seguiu. Apertou sua mão e confiou para onde Elias a levava. No caso, até a entrada de serviço, que ficava no fim de um corredor estreito, depois da sala de Zezé, passando a cozinha. Para isso precisaram atravessar o bar, contornando o balcão lustroso, com a ajuda da lanterna do celular de Elias.

                Durante a fuga, Bruna nem reparou que Lola esbarrou neles, tentando fugir de alguém que na verdade nem estava no país. Em sua paranoia, a bartender jurava estar sendo seguida pelo ex e acreditava até que aquela queda de energia repentina e suspeita podia ser alguma artimanha sua para surpreendê-la no escuro, na surdina. Por isso é que imediatamente saiu de onde estava quando as luzes se apagaram; atrás do balcão sentia-se muito visível, um alvo fácil. Carl sabia que ela era bartender e a esta altura Lola acreditava que ele já tinha até seu endereço completo. O delírio que já durava algumas horas atingiu o ápice com aquele breu, que entrou de penetra na festa.  

                Mas Lola não pensava nisso, na possibilidade de estar temendo por algo irreal ou que estivesse só vivenciando algum surto. Não tinha condições de ser racional naquele momento porque nem se sentia consciente, de verdade. No dia da festa da Rubi, Lola foi vítima de sua própria distração.

                A meta era trabalhar direitinho até o fim da noite, servindo os convidados da melhor maneira possível, com simpatia e, se desse, até se divertindo durante a festa. Tinha acompanhado nO Bistrô toda a preparação para aquele evento, uma vez que sua própria contratação já foi feita visando isso. Então, viu de perto as infinitas conversas e reuniões entre Patrícia e Zezé, Zezé e Tatiana, Zezé e os garçons, Patrícia e o pessoal da cozinha... No que dizia respeito ao seu trabalho, a ordem era bastante simples: atender bem. Ponto. O que poderia dar de errado?

                A resposta é: uma dor de cabeça. Uma crise de enxaqueca que acordou Lola bem cedinho, com pontadas constantes na têmpora que a forçaram a se levantar da cama praguejando, fazer o café xingando e tomar banho reclamando. Tantos dias para doer e foi doer bem no dia da festa!

                Mas Lola, ao mesmo tempo em que não era adepta de tomar remédios, tampouco era do tipo que se dá por vencida facilmente. “Aqui não, violão”, ela disse, quando decidiu tomar um comprimido, ao chegar ao trabalho sem que a dor tivesse cessado. Encheu um copo com água da torneira mesmo, e antes de guardar a mochila no armário, puxou de dentro seu estojinho de primeiros socorros.

Ali tinha até coisa que já estava vencida e outras que ela nem se lembrava mais que guardava. Se comprometeu a arrumar a bolsinha de remédios enquanto abria uma caixinha branca, usada para estocar comprimidos.

Ao enfiar um na boca e engolir, nesse momento, exatamente, Lola não pensou em nada. Mas um segundo depois ela imediatamente se desesperou, ao perceber o que havia acabado de fazer, por livre e espontânea vontade. Sem se dar conta, distraidíssima, a bartender tomou um comprimido inteiro de ecstasy.

Sua primeira reação foi rir, de desespero, inicialmente. Lola desacreditou em sua capacidade de se drogar em pleno ambiente de trabalho, e em dia de festa importante! Depois, se consolou afirmando que a bala estava naquele estojo há muito tempo, ela já nem se lembrava há quanto, o que provavelmente afetaria sua eficácia. Por fim, Lola se acalmou, se convencendo de que nas últimas vezes em que tomou anfetamina, quando ainda estava no exterior, nem tinha “batido” direito, se manteve consciente o tempo todo, uó. Provavelmente porque vinha emendando festas regadas à substância de alto poder estimulante e alucinógeno, mas ela isso relevou.

A “droga do amor” fez Lola crer que a DJ estava a fim dela. A fez ver Carl circulando de máscara pelo salão dO Bistrô. Deu energia para que ela dançasse enquanto atendia, sem que suas pernas se cansassem ou doessem, dando em cima de metade dos clientes. A forçou a sair de seu posto de trabalho durante o blecaute, a levando diretamente para a boca de Patrícia. Sua chefe e esposa de sua amiga.

Para piorar o que já era ruim, Mariana viu as duas se beijando, no meio de um apagão que apagou também as condições de Lola de tentar se defender. Tudo o que se lembrava depois é que, ao ser intimada, o que fez foi balbuciar e gaguejar palavras desconexas.

Ao dormir naquela noite, algumas horas após o fim do evento, confusa entre o que era realidade e invenção de sua mente, Lola já sentia o prenúncio de uma ressaca, inclusive moral, que se instaurava sorrateiramente, num clima típico de pós-festa. Que dor de cabeça!  

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