O visitante (conto)

   Essa é a oitava história da segunda temporada da Novelinha <3

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Quantas horas é capaz de durar um longo dia? O de Elias já beirava as 48, um pouco mais, se considerasse que a última semana inteira parecia só uma grande sucessão de eventos, uns se emendando aos outros, dando impressão de continuidade. Embora tenha dormido um pouco, seu sono se assemelhou a singelos cochilos porque parecia-lhe que o tempo havia ganhado uma nova formatação desde aquela emblemática conversa com Max. E pensar que tudo começou porque Elias decidiu parar de fumar!

No 23º andar, apoiado na grade da varanda do seu quarto de hotel, Elias tentava organizar mentalmente todos os acontecimentos recentes, com um cigarro meio amassado e apagado entre os dedos. Observava as luzes da noite piscarem pequenininhas lá embaixo, brilhando de um jeito pulsante, hipnotizante, quase. Sentia debaixo dos pés descalços a frieza do piso de porcelanato e o vento gelado despenteava um pouco o seu cabelo. Ele roçava o dedão no filtro do cigarro, distraído, pensando em tudo e nada ao mesmo tempo.

São Paulo era mesmo uma cidade enorme, muito maior que Curitiba, que na sua percepção sempre foi grande. Por sorte, Elias aprendeu cedo a arte de se virar sozinho e por causa disso a grandiosidade de uma metrópole desconhecida não tinha o poder de intimidá-lo.

Ainda assim, puxou o celular do bolso de trás da calça jeans e tentou, mais uma vez, ligar para Mariana. Não porque precisasse dela; não precisava. Já eram quase 15 anos sem vê-la, afinal, e tinha chegado à cidade por conta própria, com todas as devidas condições de se virar sozinho. Mas parecia tão propício estar próximo da prima novamente que só por isso vinha insistindo um contato nos últimos dias. Inclusive agora, já tarde da noite, porque ainda não tinha feito nenhuma tentativa neste horário.

Aguardou todos os toques até que a chamada fosse mais uma vez direcionada à caixa postal, mantendo o celular distante do ouvido, mas próximo do olho. Ficou observando o número na tela, que era só um aglomerado de dígitos que não tinham sido salvos na agenda de seu celular. Como nas vezes anteriores, não deixou recado gravado, pois acreditava que em pleno século 21 as pessoas nem ouviam mais esse tipo de coisa. Guardou o aparelho de volta ao bolso, soltando um suspiro frustrado. Tentaria só mais uma última vez, na manhã seguinte. Talvez enviaria uma mensagem no WhatsApp.

Elias sentia-se agitado, mas sua prima era sinceramente a menor de suas preocupações esta noite. Mariana, na verdade, representava neste momento quase uma válvula de escape, por assim dizer. Reencontrá-la significaria se distrair, também.

Ele encosta o queixo no gradil gelado da varanda, a mão esquerda deslizando pelo cabelo, mudando um pouco o penteado. Cogitou acender o cigarro só para sossegar, passar o tempo de outra maneira. Mas obstinado que era, descartou o pensamento tão rápido quanto chegou, evitando até encarar o filtro vermelho, que mantinha entre os dedos. Já eram o quê?, oito fucking dias! Mais de uma semana sem fumar, livre da nicotina, do cheiro do cigarro e do chiado no peito, que foi seu motivador para parar. Um deles, pelo menos. O outro, principal, se chamava Maxine Leone.

Mesmo sem querer, seus pensamentos sempre acabavam desembocando em Max. Sim, porque foi ela quem o chamou de “chaleira”, quando Elias riu de uma piada sem graça, despertando atenção para o fato. Ele riu e levou essa observação de brinde, o deixando preocupado. Tanto que decidiu largar o vício para trás! Os vícios, porque Max não era tóxica como um maço de Marlboro, mas tinha igual potencial de dano. O coração de Elias que o diga!

“O passarinho sem pescoço foi amarrar o tênis e deu uma cambalhota sem querer”. Foi essa a piada que mudou a vida de Elias, porque ele riu com o som de uma chaleira. Aí, decidiu parar de fumar e por causa disso todo o resto pareceu se encaixar e girar, como se a decisão fosse uma roldana faltante em um sistema complexo que comanda seus dias.

A obstinação sempre foi uma característica de sua personalidade. Muito mais por obrigação do que por uma questão de escolha, é verdade, mas Elias sabia tirar proveito disso, de sua alta capacidade de adaptação e principalmente de sua determinação, mais firme que rocha. A partir do momento em que se estabelecia algo, conseguia atingir o objetivo com êxito. Não importasse o que fosse: incluía até abafar o amor perigoso que nutria por Max.

Mas a decisão de parar de fumar acarretou mudanças que, naquele momento, Elias sequer imaginava. Irônico, porque provocou diversas situações que geraram ansiedade, logo, sentiu mil vontades de fumar, já de partida. E não à toa: foi aquela conversa no fumódromo da agência em que trabalhava que o trouxe até São Paulo, dias depois.

– Eu tenho a solução perfeita para os seus problemas – Max disse, na ocasião, os olhos miúdos brilhando do jeito que ficavam quando ela se empolgava. Elias nem sabia que tinha problemas, no plural, mas deu ouvidos à mulher, que além de ex, era também sua colega de trabalho.

                Max era uma mulher astuta, inteligente. Elias lhe dava audiência porque ela era também bastante prática e muito racional. Não à toa tinha alçado ao posto mais cobiçado da Agência Cinco, como Diretora de Criação: além de tudo era extremamente criativa e competente, detentora de diversos prêmios do meio publicitário. Então, se ela lhe dizia que tinha a solução para algo, ele acatava mesmo sem saber de qual questão se tratava.

                No caso, Elias queria inicialmente parar de fumar. Disse que ia começar a se exercitar. Largaria os refrigerantes, as carnes, as gorduras saturadas, diminuiria os industrializados e alguns carboidratos – começaria cortando o pão, o arroz e o macarrão. Quem sabe adotaria uma dieta vegana, low carb. Falou até em se mudar! Estava cansado das gemeções de seus vizinhos, o que mais havia era apartamento vago na cidade, muitos com aluguel até mais barato do que ele pagava. Podia morar mais próximo do trabalho ou perto de algum parque. Faria caminhadas, quem sabe arriscaria até umas corridinhas, sem camisa, no final da tarde. Uma coisa levaria à outra e, nessas, podia até voltar para a academia. Não tinha tendência para engordar, mas se não se cuidasse, uma gordurinha indesejada se instalava na região abdominal.

                Sua empolgação foi instantaneamente compartilhada com Max, que ouvia os desejos de mudança de alguém que gostava muito. Sabia que Elias tinha o dom da resiliência, era destemido o suficiente para alterar mesmo sua vida, a partir de uma mudança de hábito – que, no caso, ainda não tinha acontecido porque decidir parar o fez fumar um último cigarro naquela manhã gelada de quarta-feira.

– Você já pensou em morar em São Paulo? Já que quer mudar, que tal se mudar? – a pergunta de Max foi feita de um jeito absurdamente despretensioso. As palavras fizeram eco na cabeça de Elias, que sem querer, e automaticamente, pensou na ideia. Pela primeira vez na vida.

                Tudo o que sabia sobre São Paulo eram os clichês que chegavam até o sul: o trânsito caótico da cidade, as longas distâncias percorridas entre um ponto e outro qualquer, as pequenas multidões que se avolumam em praticamente todos os lugares que se vá. Em resumo, não, nunca tinha pensado em morar lá. Mas viver em Curitiba também não fez parte de um plano, exatamente, e foi a melhor coisa que aconteceu em sua vida, anos atrás.

                Com seu sorriso bonito, Max comentou que a Agência Rubi, na capital paulista, estava procurando alguém para o Atendimento e sua preferência era por quem chegasse via indicação. Nesse mercado as notícias sempre correm rápidas, especialmente se são informações relacionadas às pessoas que fazem a máquina girar, como Preta, “a joia da Rubi”, afastada do trabalho por motivos de saúde.

                Não havia muito tempo para pensar, ela disse. A vaga estava prestes a ser preenchida, até por uma questão de urgência, pois já fazia dias que a Rubi estava sem Atendimento. Uma indicação de Max e Elias chegaria à agência publicitária mais famosa do Brasil praticamente com a vaga garantida. Por isso, tudo foi feito meio às pressas, na correria, mesmo. Elias ainda tinha as toxinas do último cigarro fumado borbulhando em seu organismo quando teve marcada a primeira entrevista com o diretor da agência, Ricardo G. Marzon, filho do todo poderoso Inácio J. Marzon, criador da agência e de diversas peças e conceitos estudados em praticamente todos os cursos de Publicidade e Propaganda do país.

                Numa conversa fluida de quase uma hora, por Skype, Elias conseguiu uma mínima garantia de estabilidade, via Ricardo, mas a contratação precisava ser validada pela Diretora de Criação da Agência Rubi, Miriá Azevedo. Esta fazia questão de um encontro presencial e por isso foi marcada uma entrevista já para a próxima semana.

No dia em que decidiu parar de fumar, Elias perdeu o emprego porque ganhou outro, em outra cidade, num estado diferente. E só começou a pensar que Max pareceu tê-lo empurrado para bem longe quando já estava no aeroporto, sentindo os dedos dos pés suarem dentro da meia, diante do nervosismo com o voo e a expectativa pela nova fase de vida. Agora, apoiado na grade da varanda do seu quarto de hotel, pensava nisso mais uma vez. 

Rolou o cigarro apagado entre o dedo médio e o indicador, a palma da mão se coçando para acendê-lo. Sabia que a vontade era provocada pela abstinência, pelo vício, pela necessidade da sensação de tragar, muito mais do que pelo gosto da tragada, que sempre muda quando o fumante fica um tempo sem engolir a fumaça carregada de toxinas. Racionalmente, Elias analisou de maneira fria a ânsia de fumar fazer coçar sua garganta. Isso o fez passar a mão pelo pescoço e ele sorriu ao sentir os pelos da barba, que precisariam ser aparados antes da entrevista na manhã seguinte.

Elias literalmente tinha se transformado em quem era graças à sua força de vontade. Não seria um viciozinho que o faria sucumbir em mais uma determinação, tão importante. Por isso, enfiou o cigarro de volta ao maço amarrotado, que já estava com o formato do bolso da frente de sua calça jeans.

Apagou todas as lâmpadas do quarto espaçoso, acarpetado e bem decorado. Se deitou para quem sabe dormir, ciente de que esta seria uma missão quase impossível. Depois de uma semana agitada de trabalhos e planejamentos, repassando todo o serviço na Cinco antes de migrar para a Rubi, Elias tentou não pensar no que faria se por acaso Miriá não fosse com a sua cara. Max era uma querida, acima de tudo sua amiga, mas trabalhava regida pela lógica empresarial, onde ninguém é insubstituível. Prova disso é que no mesmo dia em que Max revelou que a indicação de Elias era uma espécie de “presente de aniversário” para a Rubi, que estava perto de comemorar 35 anos de atuação no mercado, ela contratou outra pessoa para o seu lugar. Nada pessoal, jogo que segue, mas e se desse errado?

Em tempos normais, Elias acenderia um cigarro. Dois, o segundo se emendando na bituca do primeiro. Mas em vez disso ligou a TV, que no fim acabou embalando o sono.

Na manhã seguinte, acordou assustado, preocupado, achando que tinha perdido a hora. Seu travesseiro estava molhado de suor, depois de uma noite intensa de um sonho só, onde ele se perdia de todas as formas e não conseguia de jeito nenhum conversar com Miriá. Suspirou com alívio ao puxar o celular debaixo do travesseiro e ver que ainda era bem cedo, mal tinha dado seis horas. A conversa com a publicitária estava marcada para às dez, mas Elias se propôs a sair do hotel perto das oito. Ficaria rondando a agência, procuraria alguma lanchonete ou sentaria em algum ponto de ônibus, qualquer coisa para não correr o risco de viver o pesadelo.

Ainda deitado, tentou ligar para a prima. Última tentativa. Bocejou enquanto ouvia os toques da chamada, sem muita expectativa de ser atendido. A mensagem automática da caixa postal o deixou determinado a enviar um zap, antes de desistir por completo de algum tipo de reaproximação. Honestamente, não tinha nenhuma intenção a não ser visitá-la, saber como ela estava; não almejava de nenhuma forma voltar em definitivo para sua vida, a não ser que isso acontecesse naturalmente. Gostava muito de Mariana, os dois sempre se deram muitíssimo bem e mesmo que a vida hoje fosse completamente diferente, partilhava com ela de várias partes do passado. Sem contar o óbvio, que era o fato de terem o mesmo sangue, praticamente a mesma genética.

Não pensou muito no que escrever e nem quis se prolongar na mensagem. A esta altura, desconfiava de que o número talvez nem estivesse correto, já começava a parecer ter sido muito fácil conseguir o contato da prima através de um site da internet. Então digitou: “Olá, Marimanha! Não sei se este número é seu, estou aqui em São Paulo para uma entrevista de emprego, adoraria te encontrar para um café, matarmos as saudades. Na torcida para que esta mensagem te alcance! Beijinhos!”.

Elias só viu a resposta de Mariana minutos mais tarde, depois de um banho merecidamente demorado e só após o delicioso café da manhã do hotel cinco estrelas. Sua hospedagem ali era um mimo oferecido pela agência, num gesto de agradecimento por sua agilidade e disposição em fazer parte do time Rubi. Uma espécie de “boas-vindas” de extremo bom gosto. O hotel era um luxo!

Sentiu o coração se agitar ao ouvir o áudio enviado por Mariana, antes de mandar seu endereço numa mensagem digitada, logo abaixo, contendo até o CEP. Ela não dizia muita coisa, mas a familiaridade despertada por sua voz provocou quase um choque, no bom sentido. Fez Elias acreditar que, no mínimo, sua ida até a cidade já tinha valido a pena. Se Miriá gostasse dele seria um bônus.

Por conta disso, foi com leveza que Elias chegou à Rubi. Quis ir de metrô, como se fosse um turista, e pegou um Uber ao desembarcar na última estação da linha vermelha. O trajeto do Terminal Barra Funda à agência não levou nem dez minutos. Elias chegou ao endereço sem dificuldades e, como previsto, com bastante folga de horário.

Parou num boteco lá perto e pediu um café para viagem. Por hábito, ao sair bateu a mão no bolso e tirou o cigarro de dentro do maço amassado. O gesto, no automático, só foi percebido quando Elias se lembrou que não fumava mais. Nove dias e contando! Manteve-o entre os dedos enquanto caminhava mesmo assim, porque embora apagado o cigarro parecia mais eficiente quando estava perto, à mão.

O prédio da Agência Rubi tinha três andares e ficava numa esquina pouco movimentada, perto de um cruzamento comandado por diversos semáforos, incluindo o de pedestres. Antes de atravessar a rua, Elias reconheceu na frente do imóvel a área próxima à entrada destinada aos fumantes. Se tem um lugar bom para se socializar é nos fumódromos – mesmo sem fumar, como era agora o seu caso.

O relógio marcava 9h15 quando chegou. Ficou satisfeito por encontrar um lugar fresco para matar o tempo, até que desse a hora de conversar com Miriá.

– Precisa de isqueiro? – alguém perguntou, assim que ele se sentou debaixo de uma das sombras.

                Tinha uma única mulher no local, que era aberto e ladeado por meia dúzia de árvores, formando uma espécie de pracinha particular. Além dos três bancos largos de madeira havia ali um cinzeiro alto, desses de bar, tudo parecendo fortemente cimentado no chão. Muito bem vestida, a mulher tinha um relógio de prata no pulso fino que parecia atrair a fumaça do cigarro, equilibrado entre dois dedos. O adorno combinava com o isqueiro que segurava, do mesmo material. Ela tirou os óculos escuros após a pergunta, seus olhos o escaneando de cima a baixo, com curiosidade.

                Era Miriá, com certeza. Elias tinha visto foto dela no Instagram da Agência Rubi e achou que pessoalmente era ainda mais bonita. Talvez porque nas imagens não sentiu seu perfume, que chegou até ele apesar do cheiro do cigarro, que competia injustamente com o aroma adocicado que vinha dela.

– Não, estou tentando parar. Agradeço – Elias sorriu para ela, depois de também olhar para o cigarro apagado que estava segurando. Alisou para desamassá-lo e esticou a mão para cumprimentá-la – Muito prazer, me chamo Elias. É uma satisfação conhecê-la.

– Ahn – Miriá fez um som com a garganta, em resposta. Levantou as duas sobrancelhas, sem revelar o que estaria pensando. Parte da fumaça saiu de seus pulmões pelo nariz – Muito prazer, Elias. Sou Miriá, agradeço que tenha vindo até aqui nos salvar – ela finalmente diz, tragando o cigarro sem pressa – Fez boa viagem? Chegou ontem?

– Sim, tudo tranquilo. Estou aqui desde ontem, sim. Minha primeira vez em São Paulo – ele comenta, como se pensasse em voz alta. Se recostou no banco e cruzou as pernas, olhando para ela.

– Hum, ainda é muito cedo para eu perguntar se está gostando – Miriá sorri, de um jeito que pareceu sexy, a mão puxando o cabelo para o lado, na sequência. Ao desnudar o pescoço, a fita de seu crachá se destacou, se movendo no ritmo da veia que pulsava logo embaixo – Então você é o famoso Elias. A indicação de dona Maxine Leone, da Agência Cinco – ela traga de novo, calmamente. Sua voz saiu melódica, sonora. Tinha um sotaque típico de paulistana – Ouvimos só elogios a seu respeito, Elias – ela volta a colocar os óculos escuros, apesar de estar nublado – A Cinco é uma parceira muito especial da Rubi, seu Inácio tem bastante carinho pela Maxine, pupila dele – Miriá dá um último trago, antes de apagar o cigarro no cinzeiro à sua frente – Mas você deve saber disso, é claro.

– Sim, estou na Cinco há bastante tempo. Quer dizer, eu estava – Elias se corrige, sorrindo para ela, descruzando as pernas. Ajeitou o cabelo só porque não soube o que fazer com a mão – Conheci a Max ainda na faculdade, ela sempre conta do quanto aprendeu com o seu Inácio.

                Miriá sorri, sem dizer nada, levantando-se ao mesmo tempo em que Elias também ficou em pé. Ela era um pouco menor, mas detentora da postura de uma gigante. Caminharam os poucos passos até a recepção da agência, que era bem iluminada e protegida por um segurança vestido de terno e gravata. O homem se limitou a apenas movimentar os olhos na direção deles, acompanhando-os enquanto atravessavam o saguão. Chegar ali na companhia de Miriá Azevedo foi diferente de absolutamente todos os cenários que Elias imaginou. Até porque sua entrada foi liberada pelo crachá dela, na catraca que havia ao lado do balcão da recepcionista.

                Todas as portas pareciam se abrir para Miriá – as automáticas da entrada da agência e as do elevador, mas também as de vidro da Criação, no segundo andar, abertas por uma moça sorridente que o cumprimentou com um beijinho no rosto, apesar de não o conhecer. O espaço era bastante amplo e inteiramente ocupado pela equipe da publicitária. Todo de vidro, lembrava um aquário gigante, só que sem água. Cerca de 20 funcionários trabalhavam numa espécie de linha de produção, que também se assemelhava a uma orquestra sinfônica, afinada, onde a maestra era, sem dúvida, Miriá. Da mulher emanava um senso de liderança, naturalmente.  

                Elias passou a manhã inteira acompanhando parte da rotina da  agência. Ficou colado na Diretora de Criação, que ocupava uma mesa grande no meio da sala, cercada por pessoas com ótima aparência. Eles próprios pareciam todos saídos de um comercial de TV! Elias tinha total consciência de que a vaga era para assistente, mas uma vez que Preta ainda estava afastada, sem previsão de retorno, sua responsabilidade seria assumir os jobs que ela vinha tocando. Procurou se inteirar das campanhas, conversando com pessoas-chave que Miriá foi indicando no decorrer das horas.

                O Atendimento é função desgastante dentro de uma agência publicitária. Para Elias, a maior dificuldade estava sempre em lidar com os clientes internos, com o ego dos publicitários, propriamente dito, que eram os mais difíceis dos stakeholders, em sua opinião. Fazer a ponte entre cliente, Comercial e Diretoria com a Criação era penoso, pois muitas vezes o fluxo emperrava onde não devia. Por isso era fundamental ter uma boa sinergia com quem comandava a área, a manda-chuva da Criação. Tinha funcionado com Max na Cinco e, se dependesse de Elias, funcionaria também na Rubi com Miriá.  

                Honestamente, pareceu que ela gostou dele.

                Elias acabou se demorando na agência mais do que o previsto, embora tivesse chegado sem a menor expectativa de ir embora. Saiu de lá depois do horário do almoço, após uma entrevista que nem podia ser chamada exatamente assim. Soou mais como um teste prático, mesmo, de afinidade, com conversas com membros da equipe que se entremearam ao trabalho, acumulado em cima da mesa de Miriá, que parecia cansada e sobrecarregada. Ao se despedirem, no mesmo lugar em que se conheceram, ela garantiu que até a próxima segunda-feira entrariam em contato.

                Ao ver as horas, Elias decidiu fazer uma pausa no boteco que havia parado mais cedo para tomar um café e escolheu o salgado menos feio da vitrine engordurada. Estava morrendo de fome. Comeu apressado, engolindo rápido com um refrigerante, acompanhando no celular a movimentação da motorista de Uber, que parecia estar longe, mas chegou incrivelmente rápido, com seu carro silencioso.

– Olá, boa tarde. Elias? – ela pergunta, abaixando o vidro da janela. Era uma moça jovem, bonita e com cara de desconfiada.

– Oi, boa tarde. Sou eu. Mayara, né? – ele confirma, abrindo a porta de trás do carro para embarcar.

– Isso, muito prazer. Você tem alguma preferência de caminho? – ela pergunta, ajustando no GPS do celular o endereço indicado em seu chamado. Tinha a unha pintada de laranja.

– Não, sem preferência. Pode fazer o caminho que tu escolher. Eu nem saberia chegar lá, de todo jeito – Elias prende o cinto de segurança e sorri para ela – Muito prazer, Mayara. Agradeço desde já por me levar.

– O prazer é meu. Que delícia de sotaque! – Mayara exclama, olhando para ele pelo espelho retrovisor. Pareceu se desarmar um pouco e abaixou o som do rádio, que já estava quase inaudível. 

– É, a gente sai do sul, mas o sul não sai da gente. Cheguei aqui ontem, praticamente. Quer dizer, foi ontem, literalmente – ele se corrige, rindo. Ainda se sentia perdido no tempo, depois de tantas noites sem dormir direito.

– Que beleza. E está gostando da cidade? – a motorista faz a pergunta que mais cedo foi economizada por Miriá.

– Olha, para ser sincero eu vi bem pouco até agora. Mas já ouvi muito! Como tem sirene nessa cidade! – Elias diz, fazendo Mayara rir. Não imaginava o gatilho que aquele inocente comentário disparava dentro dela – É o tempo todo, nossa!

– É, sabe que eu tenho uma amiga que diz que as sirenes fazem parte da música ambiente de São Paulo? Ela trabalha como socorrista de ambulância – Mayara volta a encará-lo brevemente pelo espelho, a mão apoiada no câmbio conforme avançavam por ruas que só ela conhecia.

– Misericórdia! – Elias exclama e a motorista ri de novo – Não que eu seja um ermitão e não quero que pense que em Curitiba não temos disso. Temos, só que menos.

– Sei – Mayara tinha um tom divertido. Combinava com seus olhos, que eventualmente esbarravam com os dele pelo espelho retrovisor – E pretende ficar por aqui até quando?

– Aí é que está! – Elias ri – Provavelmente alguns anos, se der tudo certo. Na segunda-feira vou saber com certeza, mas acredito que o emprego já seja meu. Acabei de sair da entrevista.   

– Opa, que coisa boa! Seja bem-vindo, então. Vou torcer para que dê tudo certo. E para que você se acostume com as sirenes!

– Só pela sua hospitalidade já me sinto bem-vindo, de fato. Grato.

– De nada. E olha que nem era para eu estar trabalhando agora, hein? Acho que eu precisava sair de casa para te levar ao seu destino, Elias.

– Ah, então quer dizer que a senhora está trabalhando em plena folga? Que coisa feia, dona Mayara.

– Não, não – a mulher ri, olhando de novo para ele, por um segundo – Eu só costumo trabalhar mais tarde, mesmo. Saí agora há pouco para lavar o carro, às vezes acontece de eu aceitar uma viagem ou outra, na volta, dependendo do destino. O seu fica meio que para o mesmo lado que o meu.

– Perfeito. Destinos cruzados com sucesso – Elias sorri, sua atenção sendo desviada para o lado externo do carro – Como é que a sua amiga consegue não enlouquecer com uma sirene berrando o dia todo dentro da cabeça?

– Diz ela que às vezes nem escuta – Mayara ri antes de responder. Será que falar de Taís com um passageiro podia ser considerado um bom motivo para mandar uma mensagem para ela depois?  

– É, taí um trabalho tenso – Elias comenta, vendo uma ambulância cortar o trânsito bem ao lado deles, tentando avançar entre os carros. Reparou que passavam por uma região bonita, bem arborizada. As ruas se pareciam com as que tinham em bairros residenciais de classe alta em sua cidade.

                Mayara seguiu por ruas que não necessariamente estavam indicadas no GPS do celular, preso no painel do carro perfumado, perto do volante preto. Foi avançando cidade adentro, como uma exímia conhecedora do local. Isso valia para este trecho do percurso, mas para o caminho feito no início também. Todo o tempo demonstrou conhecer bem a cidade e principalmente alguns valiosos atalhos, que economizaram bastante no tempo final da viagem.

– Prontinho. Aqui estamos, Elias – Mayara breca em frente a um portão fechado de madeira, pouco tempo depois. O número no muro indicava que estavam no endereço correto: 777.

– Agradeço muitíssimo, Mayara. Foi um prazer conhecê-la – Elias diz, com a mão parada na maçaneta do carro – Você tem um cartão? Posso te chamar quando eventualmente estiver perto do seu destino?

– Claro – Mayara sorri, pela primeira vez olhando para ele, por cima do ombro. Entregou em sua mão um cartão preto, com o seu telefone – Pode me chamar sempre que precisar. Se eu conseguir, vai ser um prazer te atender.

– Agradeço – ele coloca o cartão dentro do bolso da camisa, em cima do peito – Se cuide, Mayara! Até a próxima!

– Você também, Elias. Até! Seja novamente bem-vindo a São Paulo – ela se despede e vai embora, seu carro quase não fazendo barulho.

                Antes de chamar pela prima, Elias deu uma esticada na roupa, olhando seu reflexo no vidro de um veículo estacionado. Ajeitou o cabelo com a mão, passando em seguida os dedos pela barba, que pareceu estar despenteada perto do queixo. Então tocou a campainha e esperou, não ouvindo nenhuma reação até que o portão finalmente se abriu, depois de um estalido.

                Mariana era agora uma mulher crescida, passados tantos anos, mas mantinha no rosto alguns traços de sua juventude. Ainda tinha as sardas perto dos olhos e ao fazer uma careta, parecendo confusa ao vê-lo ali, Elias pôde ver que ela ainda tinha covinha nas bochechas. Isso o fez sorrir, antes que pudesse dizer algo, e pareceu nem precisar falar mais nada, porque já na sequência o reconheceu. E o abraço apertado que trocaram durante um instante deixou evidente que a saudade era genuína e igualmente recíproca.

                A prima abriu as portas de sua casa como se fossem mesmo velhos conhecidos, como se jamais tivesse existido um abismo de mais de uma década entre eles. Seu lar tinha cheiro de conforto, de café e de alecrim. Almoçaram juntos na cozinha e foi onde ficaram por várias horas, conversando sobre o presente e o futuro, como se o passado jamais tivesse existido. Ou como se o tivessem superado.

                Elias descobriu que a prima estava casada com duas mulheres, que tinha um gato, uma empresa que fazia aplicativos e miopia – que ela nem precisou dizer, bastou ver seus olhos comprimidos, diante da ausência dos óculos, quando uma das esposas chegou, no final daquela tarde. Tatiana era a que trabalhava na escola, a mais velha do trisal, e Elias achou que ela tinha uma aparência bastante jovial. A impressão inicial que a mulher passou foi a de que se tratava de uma pessoa calma e sensata, o que se confirmou logo depois, ao ficarem a sós na cozinha, numa conversa que fluiu sem dificuldades, quando Mariana saiu para atender uma ligação e não voltou a descer. 

                Tatiana era hospitaleira, foi quem mostrou para Elias onde ficava o banheiro e depois apresentou o resto da casa de dois andares, numa espécie de tour. O escritório em que a prima estava trabalhando foi o último cômodo a ser visitado e Elias parou na porta, para não atrapalhar.

                Mariana e a esposa davam a impressão de viverem envoltas em uma linha invisível de amor que as unia, as enlaçava. Pareceram, para Elias, aquele tipo de casal que de longe se nota a conexão, a parceria que existe. Os gestos entre elas e os carinhos trocados de maneira distraída ampliaram essa impressão. O fato de notavelmente dividirem o espaço que Mariana trabalhava também era mais um indício desta boa relação – mas não tanto quanto o brilho que Elias viu nos olhos da prima, quando a mulher a interrompeu no trabalho para perguntar se ela gostaria de acompanhá-los aO Bistrô.

– Olha, não sei se cabe a mim fazer esse tipo de convite, mas não acho certo você ficar em um hotel – Tatiana diz, a caminho do restaurante de Patrícia. Seguiam apenas os dois no carro dela porque Mariana não se desvencilhou do trabalho. Segundo a esposa revelou, há dias que a prima vinha se dedicando ao trabalho, horas a fio, tentando resolver um problema. A exceção foi apenas nesta tarde, ao que tudo indicava – Digo, não é certo também eu falar para você sair de um hotel, que tem todo o conforto, para ficar num sofá lá em casa, mas...

– Imagina, longe de mim atrapalhar a rotina de vocês – Elias afirma, vendo O Bistrô, quando o automóvel diminuiu a velocidade, antes da baliza. O hotel era mesmo muito confortável, mas ele o trocaria facilmente para dormir num sofá na casa da prima e das esposas. Porém, não disse mais nada – Uau, que lugar bonito! Adorei, que lindas essas plantas! E essa luz, favorecendo o paisagismo! Que arraso, gente!

                Elias não precisou ser forçado, embora estivesse preparado para ser gentil com Patrícia, quando a conhecesse. Mas achou mesmo que o lugar tinha uma fachada diferenciada.

– É, sabe que isso foi a primeira coisa que nós pensamos – Tatiana comenta, depois de estacionar o carro em frente ao restaurante – Anos atrás, quando surgiu a ideia dO Bistrô, definimos que a entrada seria assim – ela parecia orgulhosa daquilo, ao passar pela porta giratória e cumprimentar uma mulher – Zezé, este é Elias, um primo nosso.

– Olá, Elias – Zezé cumprimenta, gentil – Bem-vindo aO Bistrô, estamos contentes por estar aqui!

                O salão era bastante iluminado e parte das mesas estava ocupada por clientes que pareciam satisfeitos com seus jantares. Garçons ziguezagueavam entre as mesas, em uniformes bonitos.

– Grato, Zezé. Estou contente também – ele afirma e estava sendo sincero. Não achou que seria apresentado desta maneira. Tatiana era realmente uma pessoa bastante acolhedora – Nossa, mas aqui é ainda mais bonito do que lá fora.

– Não é? – Tatiana sorriu para ele. Foi caminhando à frente, abrindo caminho por entre as mesas alinhadas, passando por uma treliça cheia de plantas, que dividia os ambientes – Quem vem aqui, sempre volta. Nossos clientes são bastante fiéis.

– Consigo entender o porquê – Elias fala, quando chegam ao bar, nos fundos do salão.

Ali a iluminação se apresentava mais fraca, quase convidativa, com móveis majoritariamente escuros, predominantemente pretos. Uma música suave vinha de algum lugar, mas de maneira agradável, sem competir com as conversas do local, que estava com as mesas quase todas cheias. Elias viu uma bartender atrás do balcão preto lustroso antes que ela o percebesse e captou em seus olhos sua reação ao encará-lo, após a apresentação que foi feita.

– Lola, este é Elias, primo da Mari – Tatiana o apresenta de um jeito diferente e pisca para ele, antes de puxar uma das banquetas altas que ficavam em frente ao balcão e se sentar.

– Elias? – Lola aperta brevemente a mão estendida em sua direção, o cumprimentando por cima do tampo. O gesto veio acompanhado pela pergunta. Parecia que muitas mulheres da cidade tinham o olhar meio desconfiado, como o dela.

– A Lola é uma amiga antiga da Mariana. Se conhecem desde o final da adolescência, né? – Tatiana explica, como se explicasse também o porquê da apresentação nominal – Ela estava fora do Brasil, voltou tem pouco tempo.

– Ah, sim – Elias responde, entendendo o motivo de sua surpresa. Sentou-se ao lado de Tatiana, sem tirar os olhos da bartender – Muito prazer, Lola.

                A mulher era a única sem uniforme dentre todos os funcionários do restaurante, mas não eram só seus braços desnudos e tatuados que chamavam a atenção, nem o decote que deixava à mostra seus seios e o colo igualmente desenhado, tampouco os dreads cor-de-rosa só no alto da cabeça raspada. Havia algo nela que pareceu cativar Elias logo de cara; uma espécie de cumplicidade anunciada, ou algo do tipo, como o prenúncio de uma amizade colorida. Lola só ainda não sabia disso.

– Não me recordo de nenhum “primo Elias” – a bartender resmunga, no mesmo instante em que Tatiana se levanta, para cumprimentar Patrícia. Ela veio da cozinha como se adivinhasse que a esposa já se encontrava lá e Elias captou seu olhar interrogativo, antes de cumprimentar a chef.

– Seja bem-vindo aO Bistrô – Patrícia fala, dando um beijinho em seu rosto, num cumprimento breve. Seu perfume suave escapou por debaixo de sua indumentária bonita. Era a mais alta das três – Estamos muito contentes por conhecê-lo.

– Eu digo o mesmo – Elias sorri, educado. Se manteve em pé ao lado da banqueta, um dos braços apoiado no balcão, mantendo Lola na roda – Adorei seu restaurante. E sua casa! – ele emenda, sorrindo mais abertamente.

– A Mari não quis vir? – Patrícia pergunta, encostando a mão no braço de Tatiana, num gesto rápido.

                Elias percebeu que havia uma cumplicidade extra entre elas, um complemento a mais na interação em relação à Tatiana e Mariana.

– Não, ela ficou trabalhando. Não tem jeito, amor, enquanto não resolver aquele problema ela não vai sossegar. Trouxe o primo Elias para conhecer O Bistrô, na volta vou deixá-lo no hotel.

– Hotel? Por que não fica lá em casa? – Patrícia pergunta, a cabeça se virando em direção à cozinha. Saiu andando antes de ouvir a resposta – Deveria ficar com a gente – completa, antes de voltar ao trabalho, sumindo de vista.

– De onde mesmo você disse que era? – Lola questiona, passando um pano branco em cima do balcão limpo. Quando voltou a falar, olhou foi para Tatiana – Eu comentei com ele que não me lembro de a Mariana falar de nenhum “primo Elias”.

– Eu sou do interior do Paraná – Elias responde, primeiro olhando para Lola, depois para Tatiana, que também parecia curiosa – Cresci numa cidade pequena, chamada Pinhalzinho – a informação fez a bartender erguer as sobrancelhas.

– Foi lá que a Mariana cresceu? – Tatiana quer saber. Não parecia tão inquisidora quanto Lola, só curiosa.

– Não, a Mari morava mais para o norte, numa cidadezinha chamada Loanda. A gente se encontrava nos congressos. Minha família também é Testemunha de Jeová. Nossos pais são irmãos. Digo, meu pai é irmão do pai dela. Nossas mães são primas.

– Ah, isso eu já ouvi – Lola deu a impressão de se desarmar, juntando as peças que Elias fornecia.

– Digamos que saí da bolha da “síndrome de Gabriela” – Elias continua, encarando as duas mulheres – Não “nasci assim”, nem “cresci assim”. Acredito que a experiência de se construir é uma experiência de vida. Me transformei em quem sou. Eu sou Elias. Me reconheço assim.

                A explicação pareceu agradar às duas, especialmente Lola, que parou de olhar para ele com desconfiança e passou a tratá-lo com mais cordialidade. Tatiana também se deu por satisfeita e passou a perguntar histórias da infância deles, queria saber tudo sobre Mariana. Elias contou alguns causos, tomando o cuidado de não revelar nada sobre o dia em que ele e a prima foram expulsos da religião, depois de serem flagrados pelo pai dela, se beijando. Não mencionou também sobre a culpa que corroeu os primos durante anos, fazendo até com que perdessem contato, depois que a família inteira virou as costas para os dois. Não quis entrar no mérito do peso imposto por uma religião que tolhe tanto e separa as pessoas de um jeito tão irracional.

                Naquela noite, Elias foi convencido a trocar o hotel pelo sofá do escritório de Mariana. Tatiana o aguardou no saguão do hotel enquanto ele enfiava suas coisas de volta na mochila, pensando que jamais imaginou aquele desfecho pela manhã, quando saiu para falar com Miriá. Mas ficou contente de voltar para lá, mesmo que a prima já estivesse dormindo quando eles chegaram, perto da meia-noite.

                Na manhã seguinte, Mariana finalmente resolveu o problema que vinha lhe tirando o sono por dias. Pareceu que, de alguma forma, Elias ajudou na solução, embora não tivesse feito nada, realmente. A prima fez tudo sozinha, mas passou o fim de semana agradecendo por aquilo mesmo assim.

                Se na adolescência tivesse tido ao menos um vislumbre de que o futuro seria desse jeito, com ele bem e Mariana tão feliz, Elias não teria sofrido tanto. Certamente teria se culpado menos. Mas parecia mesmo que o passado não tinha espaço entre os dois, que preferiram não tocar no assunto, considerando que já era algo cicatrizado e devidamente superado. O mundo não acabou, afinal, não houve nenhum arrebatamento e nem punição para quem ainda vive na Terra.

                Chegar a São Paulo não foi tão marcante quanto chegar à casa de Mariana e suas esposas, que abriram as portas de seu lar e de seus corações, abrigando Elias de um jeito quase inédito, refletindo em partes a normalidade existente na cidade em relação às diferenças, às minorias em geral. O senso de união que habitava o trisal o deixou extremamente confortável, de uma maneira que nunca tinha se sentido, exatamente. Antes de domingo ele já torcia por um retorno positivo na Rubi, porque desejava ter em seus dias a companhia do trisal, sua (nova) família.

                Foi inevitável não pensar que, pela primeira vez desde a transição, alguns anos atrás, Elias se sentia várias coisas, e ser trans era só mais uma delas, não a principal. Sempre acreditou que ser é algo ontológico, diferentemente da sexualidade, que é performativa. Mariana, Tatiana e Patrícia pareciam partilhar dessa ideia porque em nenhum momento questionaram o porquê de sua mudança, ou quiseram saber detalhes que ele sinceramente nunca tinha muita disposição para dar. Partia do princípio de que gênero é uma construção intelectual a partir da qual as pessoas apreendem o mundo, mas não é só um referencial teórico. Nem assunto para ser debatido em conversas despretensiosas.             Por sorte, além do amor a discrição era outra característica marcante das TPM.

                Na segunda-feira pela manhã, antes mesmo das nove, o celular de Elias tocou. A vaga na agência era sua, como já sabia, e queriam que se possível ele começasse já naquele dia. Mariana se ofereceu para levá-lo e também para ajudá-lo a encontrar um apartamento que fosse perto do novo trabalho.

                Uma semana depois de chegar, Elias se mudou em definitivo para São Paulo. Patrícia foi quem o ajudou a decorar o apartamento, que ficava no mesmo bairro onde morava o trisal.


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