3xTPM – A visita (conto)

  Essa é a sétima história da segunda temporada da Novelinha <3

Se ainda não leu a sexta, "Mudança de plano", clique aqui.


É muito subjetivo definir em qual momento do dia, exatamente, o dia começa. Há quem defenda que é quando o despertador dispara e saímos da cama, deixando entre os lençóis todo o resquício do dia anterior, numa renovação de ciclo imperceptível, quase. Outras dizem que o dia começa até primeiro que isso, naquela breve retomada de consciência, nos segundos antes de acordarmos de fato. Para quem sofre de insônia, o dia pode começar quando a pessoa se deita, na noite anterior, ou apenas quando chega ao trabalho, no dia seguinte. Fica ao gosto da freguesa.

Para Tatiana, Patrícia e Mariana o dia começava oficialmente quando elas se encontravam na cozinha pela manhã, porque cada uma acordava num horário. Como tinham rotinas completamente diferentes, o desjejum rapidamente se transformou nos momentos primeiros de interação matinal.

Tatiana era a primeira a acordar. O expediente na escola em que trabalhava se iniciava às sete e isso a fazia pular antes da cama, de preferência, primeiro que o sol. Gostava de fazer tudo sem pressa então fazia questão de ligar o despertador para bem cedo, só para ativar o modo soneca, sem pudor. O ato de se levantar era vagaroso e só acontecia depois de esfregar o nariz no cangote de quem estivesse mais perto dela – quase sempre Mariana, que dormia no meio.  

Patrícia, do outro lado da cama, também ganhava uma fungada quando Tatiana vinha até ela, depois de se espreguiçar. Acostumada a chegar ao trabalho só por volta das nove, Patrícia enrolava nos minutinhos em que a esposa lavava o rosto e escovava os dentes. Se enroscava em Mariana, que na moleza do sono cedia facilmente e se encaixava nela. Aí reunia todas as suas forças e se levantava porque gostava de preparar o café, a marmita de Tatiana e todos os lanchinhos que a prô de Artes precisava para o seu dia.

Em geral, o cheiro de café era o que despertava Mariana lá em cima, quando ela percebia que estava só, em sua cama gigante. Surgia na cozinha quando a mesa já estava posta e a última a chegar era sempre a mais falante. Mariana acordava de bom humor, ao contrário de Patrícia, que demorava a despertar, mesmo já em pé e realizando várias atividades, e diferentemente de Tatiana também, que parecia pegar meio no tranco e por isso só “sorria e acenava” para os causos que a esposa sempre tinha para contar, mesmo tão cedo. Depois do café, quando seus sentidos desadormeciam, conseguia interagir um pouco mais, mas aí já era hora de sair para o trabalho.

Patrícia e Mariana tomavam juntas o primeiro banho da manhã, sem pressa, com tempo. Nesses momentos as duas colocavam o papo em dia, em conversas envoltas em vapor de banho e aroma de xampu. Mariana adorava saber das fofocas dO Bistrô e Patrícia se interessava por seus relatos, quaisquer que fossem. A despedida, minutos depois, era breve porque elas voltavam a se ver à tarde, na pausa que a chef fazia no restaurante.

Os encontros quase sempre eram no próprio O Bistrô, depois que os clientes já estavam devidamente saciados e longe dali. As duas almoçavam a portas fechadas, às vezes junto com os funcionários. Por trabalhar de maneira remota, acontecia de eventualmente Mariana dar expediente à tarde no escritório de Patrícia. Saía de lá só à tardinha, perto do horário que Tatiana chegava em casa.

Então, aproveitava o trajeto da volta para resolver alguma pendência na rua, comprar algo que estivesse precisando, visitar algum cliente. Ocasionalmente, Mariana se encontrava com alguém de sua equipe, nem que só para uma conversa rápida e um café. Sua predileção era por encontros que envolvessem cafeína. Se não havia, ela os inventava.

Antes de ir para casa, fazia uma última parada numa padaria chique em Moema, que moía o grão do café na hora. Secretamente, porque o assunto era meio tabu com Patrícia, que encrencava com Tatiana, que não podia beber café, Mariana comprava todos os dias entre 50 e 80g, especialmente triturados para o seu lanchinho da tarde com a esposa. Evitava os pães e bolos, chamativos em vitrines que brilhavam, embora tivesse vontade de comer tudo.

Encontrava Tatiana muitas vezes já de banho tomado e se não se cuidassem, passavam horas na cozinha, conversando sobre assuntos diversos que se emendavam. Algumas das histórias eram as mesmas debatidas mais cedo com a outra esposa, mas cada conversa era de um jeito porque Patrícia e Tatiana eram mulheres diferentes, com visões igualmente distintas. Sobre praticamente tudo. Também porque os babados da escola muitas vezes superavam os bafões que aconteciam no restaurante e Tatiana tinha uma narrativa toda própria, que prendia a atenção. Mariana sempre ria com seus relatos.

Na sequência, quando ela se recolhia para preparar a aula do dia seguinte e organizar seus materiais de acordo com os assuntos a serem abordados em classe, Mariana se aproveitava do momento para trabalhar um pouco mais. Apreciava a companhia silenciosa da esposa. Ficavam as duas juntas no escritório, cada uma concentrada em seu afazer, até que Patrícia chegasse dO Bistrô, algumas horas mais tarde, ou elas decidissem buscá-la (em geral às sextas-feiras).

O escritório, por isso, tinha um pouco da cara das duas. Das três, porque quem decorou foi Patrícia, escolhendo desde o tom dos móveis, das cortinas e do tapete, que combinava com as almofadas e o abajur de canto, comprido, ao papel de parede, que cobria o ambiente com uma estampa sóbria, até o teto. Tudo havia sido pensado e projetado, até a bagunça que se sabia que o local abrigaria.

O espaço era bem aproveitado com móveis planejados, que se resumiam a armários, prateleiras e a mesa, embutida e em formato de L. Mariana trabalhava embaixo da janela, num computador conectado a duas telas grandes, ao lado do notebook, que ficava ligado também. O tampo se emendava à outra mesa, quase, um pouco mais larga e de mesma cor, que vinha praticamente até a porta e abrigava os materiais de Tatiana, com espaço suficiente para ela trabalhar.

Nas paredes havia fotografias emolduradas em porta-retratos de cores e formatos diferentes, registrando momentos coloridos do trisal e de Percival, que tinha ali um cantinho cativo, onde ficava uma de suas várias caminhas, esta em formato de divã, ao lado de um arranhador frequentemente ignorado pelo gato. Completava o ambiente um sofá retrô de tecido azul, que Patrícia gostava de deitar para ler, quando acontecia de as três estarem juntas em casa. Havia também uma poltrona marrom escura perto da porta, estilo chaise, que ninguém usava.

Os dias terminavam praticamente da mesma maneira como começavam: quase numa escala, com cada uma se deitando num determinado momento, mas encerrando a noite oficialmente com um selinho, antes de dormirem. Tatiana comandava o ritual diário de desfazer a cama, esticar as cobertas e afofar os travesseiros. Era a que sentia mais sono, possivelmente por ser a primeira a acordar, mas também porque trabalhava longe e os caminhos de ida e volta eram cansativos, com o trânsito tipicamente paulistano. Patrícia vinha na sequência porque à noite ficava ajeitando as coisas pela casa, não aguentava sequer pensar na possibilidade de dormir com louça suja ou algo fora do lugar na sala (e sempre tinha algo para fazer, serviço de casa parece que nunca tem fim). À caminho quarto, passava pelo escritório atrás de Mariana, a última a parar de trabalhar, todos os dias – inclusive aos sábados e eventuais domingos.

– Bora, amor – Patrícia chama, encostada no batente da porta. Tinha no rosto um olhar cansado, mas sorriu quando a esposa a encarou, por trás das lentes sujas dos óculos – Quê?, está tarde! Chega de trabalhar, mulher, vem.

– Já vou já, amorzinha – Mariana responde, mandando um beijo no ar antes de voltar rapidamente sua atenção para a tela do computador. Mutou uma conversa no notebook, abaixando um pouco a tela na sequência, saindo do alcance da câmera, que estava ligada.

– Você disse isso ontem e eu dormi antes de você ir deitar – Patrícia boceja, fazendo ruído – Antes de ontem também!

– Vou mais cedo hoje, prometo.

Mariana se levanta e dá um beijo nela. Após um abraço breve, deu a mão para Patrícia e foram juntas para o quarto, uma porta ao lado. Tatiana desviou os olhos do celular quando o rosto da esposa entrou em seu campo de visão.

– Ah não, Mari – Tatiana resmunga, antes que Mariana dissesse algo – Não vai dormir com a gente de novo? Está virando moda, é?

– Desculpa, querida. Preciso terminar um trabalho, é coisa rápida – Mariana afirma, se ajoelhando no chão, ao lado da cama. Encostou o rosto brevemente no rosto dela, recebendo um afago na cabeça.

– Mentirosa – Tatiana resmunga de novo, a beijando. Enlaçou o braço em seu pescoço e disse mais alguma coisa que ninguém entendeu – Bom trabalho, coisa fofa. Estaremos te esperando. Dormindo, mas à sua espera mesmo assim.

– Eu sei que sim – Mariana dá um último beijo nela, antes de se levantar – Tenho sorte por isso e reconheço, dia após dia – ela beija Patrícia, saindo do quarto – Prometo que venho logo.

                Antes mesmo de voltar para o escritório, Mariana já sabia que aquela era uma promessa que ela não tinha a menor condição de cumprir. Adoraria se deitar no quentinho entre as mulheres, mas o trabalho estava longe de ser finalizado. Infelizmente, sua previsão era ir madrugada adentro. Há dias tentava ajeitar um bug que parecia impossível de ser consertado e que vinha afetando diretamente seu sono. Fosse porque tentava resolver, horas a fio com a cara enfiada no computador, fosse porque depois ficava se revirando na cama, pensando em uma solução para o problema aparentemente sem fim.

Seguida por Percival, foi até a cozinha pegar um copo d’água e, já que estava lá, faria bem um café. Precisava estar desperta se tinha a meta de vencer quem a vinha nocauteando, impedindo que se deitasse com suas adoráveis esposas e se valesse de uma merecida noite de sono. Ao acender a luz lá embaixo, Mariana se surpreendeu ao encontrar sua garrafa térmica cheia e quentinha, e sorriu quando não localizou o resto do pó de café moído, mucosado mais cedo atrás dos macarrões, na despensa. Não dava mesmo para esconder nada de Patrícia, principalmente dentro da cozinha que obviamente era dela.

Fechou a porta do escritório antes de voltar ao trabalho, embora possivelmente àquela hora já não houvesse mais ninguém on-line, então não a chamariam no chat. Para não correr o risco de acordar as esposas, trancou o gato lá dentro, junto com ela. Percival pareceu se fazer de ofendido e se deitou na poltrona que jurava que era dele para tomar banho e se livrar das digitais de sua humana.

Assim que Mariana se sentou, o celular começou a vibrar e ela viu na tela um número desconhecido chamando. Como se fosse conveniente ligar para alguém neste horário!, pensou, sem se ater ao fato de que o mesmo número já havia feito outras tentativas, em horários diferentes, ao longo da semana.

Ainda assim, não atendeu. Nem desligou. Ficou só observando a tentativa de contato de alguém que ela não fazia ideia de quem poderia ser, até que a pessoa finalmente desistisse. Também não se demorou pensando que se fosse algo urgente, mandariam mensagem, porque sua urgência dormia o sono das justas a poucos passos de onde estava. Patrícia e Tatiana estavam bem e seguras no quarto ao lado e, honestamente, Mariana não se importava com quem poderia estar ligando, se quem era importante estava dormindo.

Por isso, puxou o fone de ouvido pelo fio. O objeto deslizou suavemente pela mesa de madeira e ela ficou satisfeita ao tocar Guns N’ Roses no modo aleatório. Imediatamente dedicou plena atenção ao trabalho, digitando rápido comandos que faziam saltitar informações em uma das telas à sua frente, a perna balançando num ritmo um pouco mais rápido que o da música, que escapava baixinha pelo fone, apesar de tocar no volume máximo em seus ouvidos.

Começou refazendo o que já tinha refeito, na esperança de talvez ter errado nas tentativas anteriores. Apagou tudo e refez a parte da programação que vinha apresentando erro, linha por linha, código por código. Já tinha quase decorado aquele trecho e talvez o problema estivesse aí: no excesso de segurança. Algo estava passando sem que ela percebesse, o que era muito frustrante. A esta altura já imaginava que só podia se tratar de algo simples, uma vez que as soluções mais complexas já haviam sido testadas e também não tinham resolvido.

Nas breves pausas entre um comando e outro, bebericava um gole de café, apertando uma bolinha antiestresse que Patrícia mandou fazer para ela, com o logo dO Bistrô. O objeto verde-limão já estava quase sem estampa, de tanto que Mariana o espremia. Tatiana até brincava, dizendo que ela ficaria com as mãos musculosas por causa do gesto que quase parecia uma mania.

Na manhã seguinte, antes mesmo de acordar Tatiana notou a ausência da esposa na cama. Sabia que não dormia só porque sentia um corpo junto ao seu, mas reconhecia o cheiro de Patrícia de olhos fechados e nem precisou tatear o colchão para perceber que Mariana não estava entre elas. Se virou para desligar o celular um instante antes de o despertador tocar.

– Bom dia, meu amor – Patrícia resmunga, se encaixando melhor na mulher às suas costas, quando Tatiana volta a se virar na cama e a abraça – Dormiu bem? Cadê a Mari?

– Bom dia, querida. Dormi bem, mas queria muito dormir mais – Tatiana esfrega o rosto no travesseiro, antes de beijar a nuca da esposa – Não sei da Mariana, acho que virou a noite trabalhando – ela boceja, fazendo barulho. Antes de se levantar, se inclinou para dar um beijo no rosto de Patrícia – Não me lembro a última vez que fiz isso na vida, mas me recordo que fiquei destruída por dias.

– Nossa, eu também – Patrícia resmunga. Ao ficar sozinha na cama, apoiou-se nos cotovelos para ver Percival, miando na porta aberta pela esposa. Voltou a deitar segundos depois, se cobrindo até a cabeça – Não troco mais uma boa noite de sono por nada nesse mundo...

– Bom dia, trabalhadora – Tatiana entra no escritório, depois de duas batidas leves na porta entreaberta. Mariana pareceu se assustar quando a viu, pois deu um pulinho na cadeira – Não dorme mais não?

                As telas do computador estavam desligadas, assim como o notebook, que se apresentava em modo de descanso. Mariana tinha puxado a poltrona marrom para o lugar de sua cadeira gamer e movimentava uma moeda entre os nós dos dedos. Deu uma breve parada com a mão no ar quando viu a mulher surgir na porta. Tinha no colo um caderno todo rabiscado em caneta preta.

– Sim, eu já estava indo – Mariana resmunga, espichando o pescoço para dar um beijo nela. Escapava uma música agitada de seu fone, apoiado em volta do pescoço, que ela tirou, atirando-o à mesa.

– Aham, você disse isso ontem à noite – Tatiana retruca, verificando que a garrafa térmica estava vazia, após chacoalhá-la. Sorriu por cima do ombro quando Percival a chamou – Ó, o seu filho me escravizando.

                Mariana riu e sem dizer nada acompanhou Tatiana sair do escritório em companhia do gato, que exigia em miados altos sua ração fresca da manhã. Jogou a moeda dentro de um copo vazio e antes de se levantar, Patrícia apareceu.

– Senti sua falta na cama... – ela resmunga, sentando no colo de Mariana e se aninhando nela, passando o braço por trás de suas costas – Bom dia, meu amor.

– Oi, meu benzinho. Bom dia – Mariana dá um beijo em Patrícia, a abraçando. Suspirou fundo, sentindo o cheiro bom de seu cabelo – Grata por ter feito café ontem. Me poupou alguns minutos de trabalho.

– Uhum – Patrícia se manteve de olhos fechados – Imaginei que fosse trabalhar até mais tarde de novo, achei que seria uma boa usar o pó que você escondeu lá no armário. Café caríssimo, achei – ela abre os olhos e ergue a cabeça ao ouvir o celular de Mariana vibrando, mas logo se enrosca de volta – Algum progresso no trabalho?

– Não, nenhum... Fiz e refiz a programação, linha por linha. Nada, continua dando erro... – Mariana tinha vontade de gritar, mas se conteve – O café é moído na hora, gata. Vale cada centavo. São grãos selecionados, vêm de uma plantação orgânica lá do interior.

– E você dirige até Moema só para comprá-lo?

– Isso – Marina responde, esboçando um sorriso.

                O celular voltou a vibrar em cima da mesa, obrigando Patrícia a se esticar para pegar o aparelho. Virou a tela na direção de Mariana, sem reconhecer o número que chamava.

– Vai atender?

– Não – Mariana balança a cabeça em negativa – Muito cedo para me ligarem, não acha, não?

– Acho, um pouco, sim – Patrícia se levanta. Reconhecia o humor das esposas nos pequenos detalhes, por exemplo, as respiradas mais pesadas de Mariana e o tom de sua voz, que ficava mais fino quando estava irritada – Quem quer que seja, já te ligou várias vezes – ela se apoia na mesa, deslizando o dedo na tela do celular, vendo inúmeras chamadas não atendidas do mesmo número desconhecido.

– Se fosse urgente, ou importante, me mandaria uma mensagem. Mania de acharem que sou obrigada a atender ligação. Não sou! Esse é o meu número pessoal – Mariana se levanta, parecendo mal humorada – Não sou adivinha, as pessoas precisam aprender de uma vez por todas a se comunicar na era digital.

– Puta merda, cliquei sem querer – Patrícia diz, quase jogando o aparelho em cima da mesa.

– Mari, a ração está acabando. Você traz mais no fim do dia? – Tatiana pergunta, ao mesmo tempo, aparecendo de repente na porta do escritório. Tinha metade da escova de dentes enfiada na boca e cerrou os olhos, ao sentir uma energia estranha no ambiente.

– Clicou em quê? – Mariana pega o celular, sem prestar atenção em Tatiana – Ai, Pati...

– O que está rolando? – Tatiana pergunta e Patrícia levanta os ombros.

                Sem falar nada, Mariana lê a mensagem recebida. Seus olhos foram deslizando rápidos pelas palavras digitadas, por trás das lentes marcadas por suas próprias digitais, com a armação dos óculos refletindo o brilho opaco da tela. Seu rosto não indicava nenhuma reação, mas ao final contraiu um pouco a boca, como se fizesse um biquinho, parecendo aborrecida. Sem olhar para as mulheres, puxou a bombinha de dentro do bolso da calça e aspirou o remédio de asma.

– Desculpa, amor. Não quis te obrigar a ler nada, cliquei na mensagem sem querer. Vou fazer café – Patrícia diz, parecendo sem graça, fazendo um gesto para Tatiana antes de sair.

– Quem é, Mari? – Tatiana volta a escovar os dentes, levantando a cabeça para a espuma da pasta não cair no tapete, colocando a mão desocupada debaixo do próprio queixo.

– É uma prima minha... Não sei, mil anos que não falo com ela – Mariana resmunga.

Leu a mensagem de novo, quando Tatiana voltou para o banheiro que ficava no corredor, ouvindo dali os sons que a esposa fazia. Achou curioso que Elis não tenha se apresentado diretamente na mensagem, que não chegava nem a cinco linhas de texto.

– E sua prima quer o que com você, depois de mil anos? – Tatiana volta a surgir no escritório, agora sem a escova de dentes e já de uniforme. Pegou uma pasta grande com zíper de cima da cadeira e ofereceu a mão para descerem juntas – Você não está com sono? – perguntou, bocejando.

– Ainda não – Mariana responde, mas bocejou também – Não sei o que ela quer, disse que está em São Paulo, perguntou se podemos nos ver.

– Quem? – Patrícia questiona, ao vê-las chegarem na cozinha.

– A prima dela – Tatiana responde, puxando a banqueta para Mariana se sentar – A que mandou a mensagem.

– Tem uma prima sua aqui em São Paulo? Sério? Nós vamos conhecê-la? – Patrícia entrega às mulheres duas canecas com café. A de Tatiana estava notavelmente mais vazia. Na sequência, colocou no meio delas uma bandejinha repleta de “pão de beijo”, um pão de queijo vegano.

– Não sei nem se eu vou vê-la – Mariana resmunga, bebericando o café. Quando voltou a falar, usou outro tom de voz, mais ameno –  Ela teria que vir aqui em casa para a gente poder se ver, amor. Do jeito que eu ando trabalhando igual uma camela...

– É uma ótima ideia – Patrícia senta ao seu lado, fazendo um movimento com o pulso para Tatiana, que estava atrasada – Ou marca de encontrá-la nO Bistrô. Posso preparar algo especial para vocês.

– Não, gata, eu estava brincando – Mariana quase ri. Jamais imaginou alguém de sua família interagindo com as esposas, ou no ambiente delas. Mesmo Elis – Eu tenho até domingo para resolver o xabu lá do trabalho. Preciso trabalhar – ela enfia um pão de queijo na boca e se levanta, depois de beijar Tatiana e Patrícia, na sequência.

– Mari, toma cuidado com esse excesso de trabalho, hein – Tatiana recomenda, se levantando também. Colocou a caneca vazia dentro da pia – Tem que se cuidar, garota. A vida não é só trabalho, não. Tem que dormir, tem que descansar... Tem que ver os parentes, quando eles estão na cidade e te mandam mensagens...

– Eu vou descansar, amor. E dormir. Só preciso resolver esse pepino – ela apoia a caneca na pia e se vira para as duas, antes de deixar a cozinha – Vocês fazem mesmo questão de conhecê-la, né? Minha prima –  Mariana se emenda, quando as mulheres olham para ela – De todo mundo, é a mais civilizada. Quiçá a única. Além de mim, claro.

– Respeitamos a sua decisão de se manter à parte, gatinha – Patrícia afirma, ainda sentada. Manteve entre os dedos a alça da caneca – Eu sei bem que família pode ser bastante problemática, pode ser tóxica e tudo mais... Mas adoraria conhecer sua prima, sim. Me interesso por tudo que seja relacionado a você, sabe disso.

– Claro, eu também, com certeza – Tatiana se apressa em dizer, concordando com Patrícia – Desde que você fique confortável, Mari – ela beija Mariana – Preciso ir. Bom trabalho, nos vemos à noite – ela se despede, beijando Patrícia desta vez.

  Tchau, amor. Bom trabalho, se cuide no trajeto –  Mariana fala.

– Beijo, Tati. Até de noite. Vê se come direito, hein? – Patrícia fala, piscando na sequência para Mariana – Vai me acompanhar no banho? Não?, hum... – ela resmunga, diante do silêncio da mulher. Se levantou sem tirar a toalha da mesa e a puxou pela mão.

– Não sei mais o que fazer para resolver esse problema, amor... – Mariana reclama, subindo as escadas abraçada à Patrícia – Isso está acabando comigo. Me sinto esgotada, já...

– Pede ajuda para alguém.

– Pedir ajuda para quem, se todos me chamam quando acontece algo do tipo?

– Então chame a si mesma. Peça a sua própria ajuda – Patrícia rebate, parando no corredor, em frente ao escritório – Às vezes, ajuda se você se afastar um pouco e voltar depois com a cabeça mais tranquila, a mente mais calma. Não tem gente que resolve problema até dormindo, enquanto sonha?

– Sei não – Mariana resmunga, coçando os olhos. O cansaço da noite não dormida pareceu a abater de repente.

– Vou tomar banho e antes de ir trabalhar preparo uma garrafa do café que você gosta – Patrícia lhe dá um beijo, a abraçando em seguida, por alguns segundos – Você vai conseguir resolver essa bucha, amorzinha. Tenho certeza, você é foda. Confia!

                Mariana vira os olhos. Adoraria ter a confiança de Patrícia! Puxou sua cadeira de volta para o lugar, sentando-se em frente ao computador, depois de pegar a bolinha antiestresse. O primeiro apertão pareceu conter raiva, porque ela fez uma cara feia, esmagando o objeto com a força de sua mão esquerda. Empurrou com o pé a poltrona marrom, imediatamente ocupada por Percival, que se deitou depois de dar três voltas em torno do próprio corpo.  

Não havia absolutamente nada que pudesse fazer que já não tivesse tentado antes e por isso nem se deu ao trabalho de ligar o computador. Se ateve ao notebook, se conectando ao WhatsApp. Pretendia ver se alguém do trabalho tinha dito algo no grupo quando se lembrou de Elis, ao ver ali sua mensagem lida e não respondida. Então pensou na prima e no fato de ela estar em São Paulo.

                A última vez que se viram, tinham por volta de 16, 17 anos. Primas de primeiro grau, se encontravam só algumas vezes por ano porque Elis conseguia morar ainda mais longe da civilização que Mariana, que cresceu isolada dos grandes centros urbanos, no interior do Paraná. Ambas sempre se deram muitíssimo bem, tinham boa sinergia e contavam praticamente as mesmas reclamações nas confissões que se faziam, às escondidas, nesses encontros familiares. Se sentiam vítimas do mesmo problema, que parecia genético, mas era só religioso. Contudo, Mariana reconhecia que a vida agora era outra, a começar que, além de lésbica assumida, era também assumidamente casada com duas mulheres. O tipo de coisa que deixaria sua família horrorizada. Talvez até Elis.

                Mas Tatiana tinha razão quando dizia que a vida não era só trabalho e Patrícia estava correta ao afirmar que encontrar a prima ali, em casa, podia mesmo ser uma ótima ideia. Fazer um social poderia, com muita sorte, distraí-la o suficiente para depois retomar o trabalho com a solução para o seu problema, quem sabe.

                Só por isso marcou com Elis de tomarem um café naquela tarde: por desespero. Porque Mariana ainda não tinha tentado se distrair; ao contrário, tinha passado os últimos dias 100% focada. Não tinha nem dormido por causa desse assunto!

                Mandou uma mensagem de áudio para a prima seguida de outra, escrita, informando seu endereço. Não entrou em detalhes, por exemplo, dizendo com quem morava, porque não sabia até onde contaria disso tudo. Elis só informou que estava na cidade para uma entrevista de emprego, não seria ela a aprofundar a conversa. Não neste momento, pelo menos.

– Amor – Patrícia surge no escritório, perfumada de banho. Ameaçou entregar a garrafa térmica com café, mas quando Mariana foi pegar, puxou de volta –  Você precisa comer também –  ela volta a fazer o movimento de entrega e recuo – Estou falando sério, Mari. Se não se cuidar, vai acabar tendo gastrite.

– Tá, Pati – Mariana acompanha a esposa apoiar a garrafinha na mesa, com o cuidado de usar um porta-copos que tinha estampa de bolacha maria – Vou almoçar por aqui mesmo, marquei com a minha prima de ela vir no começo da tarde.

– Que bom, fez bem. Tem fruta lá embaixo, lancha, amor. Descongela alguma coisa para almoçar, tem bastante comida no freezer – Patrícia continua, alisando o rosto da mulher –  E se divirta com a sua prima! Vai ser bom você se distrair.

  Uhum –  Mariana resmunga, dando um beijo nela –  Bom trabalho, querida. Nos vemos mais tarde.

Patrícia se despede com um beijo. Ainda ficou alguns minutos arrumando algo lá embaixo, Mariana só ouviu o som do portão da garagem se abrindo depois de um longo instante.

Deixou o projeto que a vinha perturbando de lado e se focou em outros programas até que a campainha tocou, perto das três da tarde. A esta hora o café já tinha acabado há muito tempo e ela ainda não havia almoçado. Se distraiu, concentrada no trabalho. Tanto que nem viu a hora passar.

– Pois não? – Mariana pergunta, as sobrancelhas arqueadas ao encontrar um rapaz alto parado na porta. Esperava encontrar a prima.

– Mari – ele sorri, as covinhas aparecendo mesmo debaixo da barba espessa – Guria, você não mudou nada!

                Ela escaneia seu rosto, atrás de alguma pista. Seus olhos eram familiares, mas só. Não fazia ideia de quem era. Não até que ele voltasse a falar algo, que foi quando Mariana o reconheceu, antes mesmo que a informação fosse processada.

– Sou eu... – ele diz.

– Elis – Mariana interrompe. Foi a primeira vez que sorriu, mas ainda parecia bastante surpresa.

– É, mas pode me chamar de Elias.

– Uau – ela diz e só então o abraça. Pareciam dois estranhos, muito mais do que imaginou, mas eram também duas almas conhecidas e isso ficou claro quando encostaram seus corações, no abraço – Nunca imaginei te encontrar assim! Que bonito que você está! Que você é!

– Capaz! Você que está linda! Eu disse que não mudou nada por isso! – Elias volta a abraçá-la, quando a prima o puxa de novo – Que bom te ver! Estava morrendo de saudade!

– Muito bom, sim – Mariana concorda, dando passagem para o primo entrar – Faz muito tempo, Eli. Senti saudade também.

– É, a última vez... – ele se cala. Não havia a necessidade de falarem a respeito – Que linda sua casa! – Elias comenta, mudando de assunto.

– Sim, aqui é uma delícia. Essa é a sala, vem cá que vou te mostrar a cozinha – Mariana caminha na frente e por isso o primo não vê seu sorriso, ao chegar no cômodo e encontrar em cima do fogão duas panelas com o almoço descongelado e preparado por Patrícia, mais cedo – Senta aí, você já comeu?

– Sim, uma besteira na rua. Fui mais cedo numa entrevista, que acabou demorando... Saindo de lá, parei num boteco.

– Ótimo, não almocei também – ela diz, parecendo não ter prestado atenção à resposta do primo. Acendeu o fogão e misturou a comida das duas panelas com o mesmo garfo – Entrevista de quê?

– É numa agência de publicidade. A melhor da cidade, fica lá para os lados da Barra Funda. Se eu conseguir a vaga, me mudo para cá.

– Espero que consiga, então! – Mariana sorri – Desculpe não ter te atendido. Você me ligou várias vezes e eu ignorei todas as chamadas, foi mal. Estou com um problemão no trabalho... E eu não sabia que era você ligando, nem que...

– Nem que eu sou um piá – Elias sorri também, quando ela se cala – Tudo bem, não tem problema. Eu, por minha vez, não sabia que tinha se casado – ele aponta para a sua mão esquerda – Parabéns! Aqui, foi com uma mulher, né? Me conta, como foi que sua família reagiu?

– Eu ia te perguntar a mesma coisa! –  Mariana ri, colocando dois pratos fundos em cima da bancada.

– Nunca entrei em detalhes. Não volto para casa desde aquele incidente – Elias usou um tom magoado, que mudou depois de um suspiro profundo, ressentido – Quem perde são eles.

– Com certeza – Mariana senta ao seu lado e segura brevemente em sua mão – Não dei detalhes para ninguém também. Mas sabem que me casei, meus pais sabem. Eu avisei por alto, na época. Também não volto lá desde o ocorrido. Casei com mulher, sim – ela ri, servindo os dois pratos com macarronada vegana – Tem coisa que não muda.

– Ou muda. Você vivia dizendo que nunca se casaria – Elias ri, piscando para ela.

– É – Mariana concorda, mastigando uma garfada generosa de comida. Quando voltou a falar, foi com a boca cheia – Meu exemplo em casa nunca foi muito inspirador. Eu associava casamento à prisão.

– O que te fez mudar de ideia? Qual o nome dela? – Elias ri. Era óbvio que Mariana tinha se apaixonado. Isso sempre nos faz reconsiderar qualquer questão.

– Patrícia – Mariana continua mastigando. Engoliu para terminar de responder – E Tatiana.

– Não me surpreende – Elias diz, depois de um momento rápido de reflexão – Que comida maravilhosa! Você que fez? O que tem nesse molho?

– Não, foi a Pati. Ela trabalha num restaurante. O molho é vegetariano.

– Além de se casar com duas mulheres, uma delas te alimenta assim todo dia? Caramba, Mariana!

                Mariana ri do comentário. A comida de Patrícia era mesmo divina, sempre bem temperada. E havia também o cuidado de ela se preocupar em deixar pronta, o que tornava tudo muito mais gostoso.

                Os dois passaram a tarde conversando, colocando em dia todas as novidades acumuladas em mais de uma década. Nem saíram da cozinha porque depois do almoço Mariana preparou duas garrafas de café, enquanto batiam papo, os assuntos fluindo e se emendando naturalmente. Foram horas esquecida dos problemas do trabalho. Distraída, só notou que estava escurecendo quando precisou se levantar para acender a luz.

                Ao chegar em casa, Tatiana estranhou por encontrar Mariana em altos papos com um estranho, mas ao bater o olho no sujeito reconheceu alguns traços da mulher. Os olhos se pareciam e o nariz era igual.

  Oi, amor – Mariana se levanta e a beija – Tati, esse é Elias, meu primo. Eli, essa é Tatiana, minha esposa.

– Muito prazer – Elias aperta a mão da mulher – Ouvi falar muito bem de você.

– O prazer é meu! É bom tê-lo aqui – Tatiana responde, cortês – Não posso dizer o mesmo porque a Mariana é muito reservada com questões de família.

– Compreensível, nem tem muito o que falar – Elias rebate, vendo a prima entregar uma caneca de café para a esposa, que usava um uniforme de escola respingado de tinta guache em uma das mangas – Nosso pessoal não é muito civilizado...

– Ah, isso eu já ouvi – Tatiana ri, bebericando o café – Esse é aquele que você traz lá daquela padaria?

– Não, amor. A Pati descobriu meu esconderijo. Esse é o café normal – Mariana responde, olhando na sequência para o primo – A Tati não pode tomar café – ela explica, vendo seu celular vibrar em cima da bancada.  

                Mariana se afasta para atender à ligação, deixando a esposa e o primo numa conversa que acabou se alongando, porque ela demorou a retornar. Precisou subir até o escritório e ver alguns dados no computador, o que acabou lhe tomando tempo.

– Amor – Tatiana a chama, da porta do escritório – Desculpa, não quero te atrapalhar... mas ainda demora? Vou levar seu primo para conhecer O Bistrô. Quer vir junto? Você consegue?

– Hum... – Mariana faz uma careta, pensando no assunto – Queria, mas não se devo.

– Não tem problema. Trabalha e logo estaremos de volta – Tatiana manda um beijinho no ar.

– Ei – Mariana a chama, indo atrás dela no corredor – Assim, não. E meu beijo?

– Não quis te incomodar – Tatiana se justifica, sendo abraçada pela cintura antes de ser beijada.

– E desde quando me dar amor me incomoda? – Mariana se finge de ofendida, vendo o primo lá embaixo, no pé da escada – Cuida dela, tá?

– Pode deixar, Mari – Elias acena para ela, saindo da sala na companhia de Tatiana.

                Mariana voltou ao trabalho, se aproveitando do silêncio para rever o programa com erro. Algumas possibilidades de solução tinham sido levantadas por dois funcionários e agora ela precisava testar.

                Embora nem tudo fizesse sentido, o erro também era um ponto fora da curva e só por isso Mariana tentou até o que já sabia previamente que não ia funcionar, por desencargo de consciência. Ao final, todas as tentativas terminaram com o mesmo erro persistente. Frustrada, desistiu porque se deu por vencida. Desligou todos os computadores e foi tomar banho. Esperaria as esposas já com a cama arrumada.

                Cansada, há horas sem dormir, acabou pegando no sono com facilidade e nem ouviu quando Patrícia e Tatiana chegaram da rua, depois das 11 da noite, acompanhadas por Elias. Soube só no dia seguinte que as esposas convidaram o primo para ficar na casa delas, quando acordou e viu que alguém havia dormido no sofá do escritório.

– Bom dia, amor – Patrícia a cumprimenta, ao vê-la entrar na cozinha – Dormiu bem? Descansou? – ela a enlaça para um beijo e um abraço na beira do fogão.

– Oi, querida. Bom dia. Nem te ouvi chegar ontem... – Mariana resmunga, esfregando o nariz no pescoço da mulher – Descansei, sim. E você? Oi, Eli! Dormiu bem?

– Bom dia, Mari. Muito bem, sim – Elias responde, vendo a prima agora abraçar e beijar Tatiana. Tomava café numa caneca em que estava escrito “Saboreie escondido” – Suas esposas são muito gentis, me convidaram para passar a noite aqui.

– Claro, não tinha o menor cabimento você ficar em hotel – Patrícia comenta, entregando para ele uma panqueca com mel – Em hotel da rede Lux, ainda por cima. Caríssimo, a diária custa os olhos da cara.

– Bobagem, seriam só algumas noites – Elias ri – Na segunda-feira já começo a definir meus rumos, se der tudo certo. E acho que vai dar. O resultado da entrevista é para sair já de manhã.

– Estamos na torcida, Elias – Tatiana afirma, puxando uma banqueta para que Mariana sentasse ao seu lado – Amor, o seu primo nos contou cada história ontem! Um monte de informação nova, vários causos de quando vocês eram crianças...

– Ah, é? – Mariana pergunta, não parecendo muito interessada. Pegou o café oferecido por Patrícia e embaçou a lente dos óculos, antes do primeiro gole, ao assoprar.

– É, mas nem ele quis nos dizer o que foi que te fez sair de casa, quando você era mais nova – Patrícia complementa, sentando ao lado delas – Ou por que você nunca mais quis voltar.

– Passado, é passado – Elias sorri, sem graça, evitando encarar os olhos da prima.

– É passado isso aí – Mariana diz, ao mesmo tempo. Ela, ao contrário, olhou para ele, séria.

– Muito mistério envolvendo a família Souza – Tatiana ri – Você disse que seus pais nem sabem que você é trans, né? Fico pensando em como deve ser difícil esconder esse tipo de coisa!

– Jamais! – Elias responde, a voz saindo mais fina que de costume, seu sotaque parecendo sair mais carregado de repente – Imagine só eu ensinando a linguagem neutra para papai e mamãe, Mariana! – ele ri, como se aquela fosse uma boa piada.

– É... – Mariana resmunga – Porra, sim! É isso, Eli! – ela bate as mãos, se levanta e sai, sem dizer mais nada.

Subiu correndo até o escritório, seus pés fazendo um barulho apressado nos degraus da escada, deixando para trás a conversa na cozinha. O tempo todo estava tentando consertar o programa em linguagem errada; por isso o erro!

Ligou o computador na expectativa de solucionar o problema que enfrentava há dias, só percebendo o passar do tempo porque primeiro se despediu de Tatiana e depois de Patrícia, que saiu para o trabalho perto das nove. Elias ficou com ela a manhã inteira no escritório, assistindo algo pelo celular, deitado na poltrona de Percival. Mariana quase chorou quando o programa rodou, sem erros, já perto da hora do almoço.

– Eli, você me salvou! – Mariana tinha o semblante diferente, muito mais leve – Se eu soubesse que sua visita seria tão valiosa, teria te chamado para vir antes.

– Que bom que pude ajudar, Mari – Elias ri, abaixando o celular para encará-la. Hoje se parecia com a pessoa que Mariana tinha conhecido no passado – Se eu soubesse que você tinha se casado com mulheres tão legais, eu teria vindo antes.

– Elas são, né?

– Muito! Duas queridas! E o pessoal dO Bistrô também. O restaurante é lindo, me apaixonei. Adorei tudo e todo mundo, uma energia ótima. Principalmente sua amiga Lola.

                Mariana ri. Não era nada surpreendente o fato de Elias e Lola terem se dado bem. Preferiu não o alertar para o perigo que a amiga representava para não ser maldosa, mas ficaria de olho para que ela não partisse o coração de seu primo ao meio.

As chances de isso acontecer eram monstruosamente grandes, a considerar o passado de Lola. Porém, Mariana seria a última pessoa no mundo a jogar a amiga em uma fogueira deste tipo.

– E agora? – Elias questiona, erguendo o queixo no final da pergunta – Ainda precisa trabalhar?

– Sim, mas posso fazer isso do restaurante. A gente almoça nO Bistrô e eu termino as coisas de lá mesmo. Voltamos perto da hora de a Tati chegar.

– Por mim, perfeito – Elias faz um gesto e Percival vem até ele, sem hesitar.

– De manhã fiquei preocupada... – Mariana comenta, mas se cala por um momento – ... com as histórias que você contou para a Tatiana e a Patrícia.

– Não disse nada que fosse te comprometer, prima. Relaxa.

– Eu nunca contei para elas sobre a briga...

– Tudo bem.

– ... nunca falei sobre o que motivou a briga, Eli – Mariana reforça, olhando para o primo – Nunca achei necessário, na minha cabeça jamais haveria uma interação entre elas e algum parente meu.

– Até eu.

– Principalmente você! – Mariana quase ri, mas se mantém séria – Digo, considerando tudo o que aconteceu.

– Foi só um beijo, Mari. A gente nem ficou de verdade.

– “Só um beijo”... – Mariana repete, com desgosto, aspirando o remédio da bombinha de asma – Isso quase acabou comigo. Meu pai quase me matou quando nos pegou no meio daquele beijo.

– Sim, o meu também – Elias tinha um olhar complacente – Mas foi o evento que mudou minha vida. Me transformou em quem eu sou hoje.

– Sim, com certeza, digo o mesmo – Mariana desanuvia a expressão do rosto – Grata por não ter dito nada sobre esse assunto mesmo assim.


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