3xTPM – A visita (conto)
Essa é a sétima história da segunda temporada da Novelinha <3
Se ainda não leu a sexta, "Mudança de plano", clique aqui.
É muito subjetivo definir em qual momento do dia, exatamente, o dia começa.
Há quem defenda que é quando o despertador dispara e saímos da cama, deixando
entre os lençóis todo o resquício do dia anterior, numa renovação de ciclo
imperceptível, quase. Outras dizem que o dia começa até primeiro que isso,
naquela breve retomada de consciência, nos segundos antes de acordarmos de fato.
Para quem sofre de insônia, o dia pode começar quando a pessoa se deita, na
noite anterior, ou apenas quando chega ao trabalho, no dia seguinte. Fica ao
gosto da freguesa.
Para Tatiana, Patrícia e Mariana o dia começava oficialmente quando elas se
encontravam na cozinha pela manhã, porque cada uma acordava num horário. Como tinham
rotinas completamente diferentes, o desjejum rapidamente se transformou nos
momentos primeiros de interação matinal.
Tatiana era a primeira a acordar. O expediente na escola em que
trabalhava se iniciava às sete e isso a fazia pular antes da cama, de
preferência, primeiro que o sol. Gostava de fazer tudo sem pressa então fazia
questão de ligar o despertador para bem cedo, só para ativar o modo soneca, sem
pudor. O ato de se levantar era vagaroso e só acontecia depois de esfregar o
nariz no cangote de quem estivesse mais perto dela – quase sempre Mariana, que dormia
no meio.
Patrícia, do outro lado da cama, também ganhava uma fungada quando
Tatiana vinha até ela, depois de se espreguiçar. Acostumada a chegar ao
trabalho só por volta das nove, Patrícia enrolava nos minutinhos em que a
esposa lavava o rosto e escovava os dentes. Se enroscava em Mariana, que na
moleza do sono cedia facilmente e se encaixava nela. Aí reunia todas as suas forças
e se levantava porque gostava de preparar o café, a marmita de Tatiana e todos
os lanchinhos que a prô de Artes precisava para o seu dia.
Em geral, o cheiro de café era o que despertava Mariana lá em cima, quando
ela percebia que estava só, em sua cama gigante. Surgia na cozinha quando a
mesa já estava posta e a última a chegar era sempre a mais falante. Mariana
acordava de bom humor, ao contrário de Patrícia, que demorava a despertar,
mesmo já em pé e realizando várias atividades, e diferentemente de Tatiana
também, que parecia pegar meio no tranco e por isso só “sorria e acenava” para
os causos que a esposa sempre tinha para contar, mesmo tão cedo. Depois do café,
quando seus sentidos desadormeciam, conseguia interagir um pouco mais, mas aí
já era hora de sair para o trabalho.
Patrícia e Mariana tomavam juntas o primeiro banho da manhã, sem pressa, com
tempo. Nesses momentos as duas colocavam o papo em dia, em conversas envoltas
em vapor de banho e aroma de xampu. Mariana adorava saber das fofocas dO Bistrô
e Patrícia se interessava por seus relatos, quaisquer que fossem. A despedida,
minutos depois, era breve porque elas voltavam a se ver à tarde, na pausa que a
chef fazia no restaurante.
Os encontros quase sempre eram no próprio O Bistrô, depois que os clientes
já estavam devidamente saciados e longe dali. As duas almoçavam a portas
fechadas, às vezes junto com os funcionários. Por trabalhar de maneira remota,
acontecia de eventualmente Mariana dar expediente à tarde no escritório de
Patrícia. Saía de lá só à tardinha, perto do horário que Tatiana chegava em
casa.
Então, aproveitava o trajeto da volta para resolver alguma pendência na
rua, comprar algo que estivesse precisando, visitar algum cliente. Ocasionalmente,
Mariana se encontrava com alguém de sua equipe, nem que só para uma conversa
rápida e um café. Sua predileção era por encontros que envolvessem cafeína. Se
não havia, ela os inventava.
Antes de ir para casa, fazia uma última parada numa padaria chique em
Moema, que moía o grão do café na hora. Secretamente, porque o assunto era meio
tabu com Patrícia, que encrencava com Tatiana, que não podia beber café,
Mariana comprava todos os dias entre 50 e 80g, especialmente triturados para o
seu lanchinho da tarde com a esposa. Evitava os pães e bolos, chamativos em
vitrines que brilhavam, embora tivesse vontade de comer tudo.
Encontrava Tatiana muitas vezes já de banho tomado e se não se cuidassem,
passavam horas na cozinha, conversando sobre assuntos diversos que se
emendavam. Algumas das histórias eram as mesmas debatidas mais cedo com a outra
esposa, mas cada conversa era de um jeito porque Patrícia e Tatiana eram mulheres
diferentes, com visões igualmente distintas. Sobre praticamente tudo. Também
porque os babados da escola muitas vezes superavam os bafões que aconteciam no
restaurante e Tatiana tinha uma narrativa toda própria, que prendia a atenção.
Mariana sempre ria com seus relatos.
Na sequência, quando ela se recolhia para preparar a aula do dia seguinte
e organizar seus materiais de acordo com os assuntos a serem abordados em
classe, Mariana se aproveitava do momento para trabalhar um pouco mais. Apreciava
a companhia silenciosa da esposa. Ficavam as duas juntas no escritório, cada
uma concentrada em seu afazer, até que Patrícia chegasse dO Bistrô, algumas
horas mais tarde, ou elas decidissem buscá-la (em geral às sextas-feiras).
O escritório, por isso, tinha um pouco da cara das duas. Das três, porque
quem decorou foi Patrícia, escolhendo desde o tom dos móveis, das cortinas e do
tapete, que combinava com as almofadas e o abajur de canto, comprido, ao papel
de parede, que cobria o ambiente com uma estampa sóbria, até o teto. Tudo havia
sido pensado e projetado, até a bagunça que se sabia que o local abrigaria.
O espaço era bem aproveitado com móveis planejados, que se resumiam a
armários, prateleiras e a mesa, embutida e em formato de L. Mariana trabalhava
embaixo da janela, num computador conectado a duas telas grandes, ao lado do
notebook, que ficava ligado também. O tampo se emendava à outra mesa, quase, um
pouco mais larga e de mesma cor, que vinha praticamente até a porta e abrigava
os materiais de Tatiana, com espaço suficiente para ela trabalhar.
Nas paredes havia fotografias emolduradas em porta-retratos de cores e
formatos diferentes, registrando momentos coloridos do trisal e de Percival,
que tinha ali um cantinho cativo, onde ficava uma de suas várias caminhas, esta
em formato de divã, ao lado de um arranhador frequentemente ignorado pelo gato.
Completava o ambiente um sofá retrô de tecido azul, que Patrícia gostava de
deitar para ler, quando acontecia de as três estarem juntas em casa. Havia
também uma poltrona marrom escura perto da porta, estilo chaise, que ninguém
usava.
Os dias terminavam praticamente da mesma maneira como começavam: quase
numa escala, com cada uma se deitando num determinado momento, mas encerrando a
noite oficialmente com um selinho, antes de dormirem. Tatiana comandava o
ritual diário de desfazer a cama, esticar as cobertas e afofar os travesseiros.
Era a que sentia mais sono, possivelmente por ser a primeira a acordar, mas
também porque trabalhava longe e os caminhos de ida e volta eram cansativos,
com o trânsito tipicamente paulistano. Patrícia vinha na sequência porque à
noite ficava ajeitando as coisas pela casa, não aguentava sequer pensar na possibilidade
de dormir com louça suja ou algo fora do lugar na sala (e sempre tinha algo
para fazer, serviço de casa parece que nunca tem fim). À caminho quarto, passava
pelo escritório atrás de Mariana, a última a parar de trabalhar, todos os dias
– inclusive aos sábados e eventuais domingos.
– Bora, amor –
Patrícia chama, encostada no batente da porta. Tinha no rosto um olhar cansado,
mas sorriu quando a esposa a encarou, por trás das lentes sujas dos óculos –
Quê?, está tarde! Chega de trabalhar, mulher, vem.
– Já vou já,
amorzinha – Mariana responde, mandando um beijo no ar antes de voltar rapidamente
sua atenção para a tela do computador. Mutou uma conversa no notebook, abaixando
um pouco a tela na sequência, saindo do alcance da câmera, que estava ligada.
– Você disse
isso ontem e eu dormi antes de você ir deitar – Patrícia boceja, fazendo ruído –
Antes de ontem também!
– Vou mais cedo
hoje, prometo.
Mariana se levanta e dá um beijo nela. Após um abraço breve, deu a mão
para Patrícia e foram juntas para o quarto, uma porta ao lado. Tatiana desviou
os olhos do celular quando o rosto da esposa entrou em seu campo de visão.
– Ah não, Mari –
Tatiana resmunga, antes que Mariana dissesse algo – Não vai dormir com a gente
de novo? Está virando moda, é?
– Desculpa,
querida. Preciso terminar um trabalho, é coisa rápida – Mariana afirma, se
ajoelhando no chão, ao lado da cama. Encostou o rosto brevemente no rosto dela,
recebendo um afago na cabeça.
– Mentirosa –
Tatiana resmunga de novo, a beijando. Enlaçou o braço em seu pescoço e disse
mais alguma coisa que ninguém entendeu – Bom trabalho, coisa fofa. Estaremos te
esperando. Dormindo, mas à sua espera mesmo assim.
– Eu sei que sim
– Mariana dá um último beijo nela, antes de se levantar – Tenho sorte por isso e
reconheço, dia após dia – ela beija Patrícia, saindo do quarto – Prometo que
venho logo.
Antes mesmo de voltar para o
escritório, Mariana já sabia que aquela era uma promessa que ela não tinha a
menor condição de cumprir. Adoraria se deitar no quentinho entre as mulheres,
mas o trabalho estava longe de ser finalizado. Infelizmente, sua previsão era ir
madrugada adentro. Há dias tentava ajeitar um bug que parecia impossível
de ser consertado e que vinha afetando diretamente seu sono. Fosse porque
tentava resolver, horas a fio com a cara enfiada no computador, fosse porque depois
ficava se revirando na cama, pensando em uma solução para o problema aparentemente
sem fim.
Seguida por Percival, foi até a cozinha pegar um copo d’água e, já que
estava lá, faria bem um café. Precisava estar desperta se tinha a meta de vencer
quem a vinha nocauteando, impedindo que se deitasse com suas adoráveis esposas
e se valesse de uma merecida noite de sono. Ao acender a luz lá embaixo, Mariana
se surpreendeu ao encontrar sua garrafa térmica cheia e quentinha, e sorriu quando
não localizou o resto do pó de café moído, mucosado mais cedo atrás dos
macarrões, na despensa. Não dava mesmo para esconder nada de Patrícia,
principalmente dentro da cozinha que obviamente era dela.
Fechou a porta do escritório antes de voltar ao trabalho, embora possivelmente
àquela hora já não houvesse mais ninguém on-line, então não a chamariam no chat.
Para não correr o risco de acordar as esposas, trancou o gato lá dentro, junto com
ela. Percival pareceu se fazer de ofendido e se deitou na poltrona que jurava
que era dele para tomar banho e se livrar das digitais de sua humana.
Assim que Mariana se sentou, o celular começou a vibrar e ela viu na tela
um número desconhecido chamando. Como se fosse conveniente ligar para alguém
neste horário!, pensou, sem se ater ao fato de que o mesmo número já havia
feito outras tentativas, em horários diferentes, ao longo da semana.
Ainda assim, não atendeu. Nem desligou. Ficou só observando a tentativa
de contato de alguém que ela não fazia ideia de quem poderia ser, até que a
pessoa finalmente desistisse. Também não se demorou pensando que se fosse algo
urgente, mandariam mensagem, porque sua urgência dormia o sono das justas a
poucos passos de onde estava. Patrícia e Tatiana estavam bem e seguras no
quarto ao lado e, honestamente, Mariana não se importava com quem poderia estar
ligando, se quem era importante estava dormindo.
Por isso, puxou o fone de ouvido pelo fio. O objeto deslizou suavemente
pela mesa de madeira e ela ficou satisfeita ao tocar Guns N’ Roses no modo
aleatório. Imediatamente dedicou plena atenção ao trabalho, digitando rápido
comandos que faziam saltitar informações em uma das telas à sua frente, a perna
balançando num ritmo um pouco mais rápido que o da música, que escapava baixinha
pelo fone, apesar de tocar no volume máximo em seus ouvidos.
Começou refazendo o que já tinha refeito, na esperança de talvez ter
errado nas tentativas anteriores. Apagou tudo e refez a parte da programação
que vinha apresentando erro, linha por linha, código por código. Já tinha quase
decorado aquele trecho e talvez o problema estivesse aí: no excesso de segurança.
Algo estava passando sem que ela percebesse, o que era muito frustrante. A esta
altura já imaginava que só podia se tratar de algo simples, uma vez que as
soluções mais complexas já haviam sido testadas e também não tinham resolvido.
Nas breves pausas entre um comando e outro, bebericava um gole de café,
apertando uma bolinha antiestresse que Patrícia mandou fazer para ela, com o
logo dO Bistrô. O objeto verde-limão já estava quase sem estampa, de tanto que
Mariana o espremia. Tatiana até brincava, dizendo que ela ficaria com as mãos
musculosas por causa do gesto que quase parecia uma mania.
Na manhã seguinte, antes mesmo de acordar Tatiana notou a ausência da
esposa na cama. Sabia que não dormia só porque sentia um corpo junto ao seu,
mas reconhecia o cheiro de Patrícia de olhos fechados e nem precisou tatear o
colchão para perceber que Mariana não estava entre elas. Se virou para desligar
o celular um instante antes de o despertador tocar.
– Bom dia, meu
amor – Patrícia resmunga, se encaixando melhor na mulher às suas costas, quando
Tatiana volta a se virar na cama e a abraça – Dormiu bem? Cadê a Mari?
– Bom dia, querida.
Dormi bem, mas queria muito dormir mais – Tatiana esfrega o rosto no
travesseiro, antes de beijar a nuca da esposa – Não sei da Mariana, acho que
virou a noite trabalhando – ela boceja, fazendo barulho. Antes de se levantar,
se inclinou para dar um beijo no rosto de Patrícia – Não me lembro a última vez
que fiz isso na vida, mas me recordo que fiquei destruída por dias.
– Nossa, eu
também – Patrícia resmunga. Ao ficar sozinha na cama, apoiou-se nos cotovelos
para ver Percival, miando na porta aberta pela esposa. Voltou a deitar segundos
depois, se cobrindo até a cabeça – Não troco mais uma boa noite de sono por
nada nesse mundo...
– Bom dia, trabalhadora
– Tatiana entra no escritório, depois de duas batidas leves na porta
entreaberta. Mariana pareceu se assustar quando a viu, pois deu um pulinho na
cadeira – Não dorme mais não?
As telas do computador estavam
desligadas, assim como o notebook, que se apresentava em modo de descanso.
Mariana tinha puxado a poltrona marrom para o lugar de sua cadeira gamer
e movimentava uma moeda entre os nós dos dedos. Deu uma breve parada com a mão no
ar quando viu a mulher surgir na porta. Tinha no colo um caderno todo rabiscado
em caneta preta.
– Sim, eu já
estava indo – Mariana resmunga, espichando o pescoço para dar um beijo nela.
Escapava uma música agitada de seu fone, apoiado em volta do pescoço, que ela
tirou, atirando-o à mesa.
– Aham, você
disse isso ontem à noite – Tatiana retruca, verificando que a garrafa térmica
estava vazia, após chacoalhá-la. Sorriu por cima do ombro quando Percival a
chamou – Ó, o seu filho me escravizando.
Mariana riu e sem dizer nada
acompanhou Tatiana sair do escritório em companhia do gato, que exigia em
miados altos sua ração fresca da manhã. Jogou a moeda dentro de um copo vazio e
antes de se levantar, Patrícia apareceu.
– Senti sua
falta na cama... – ela resmunga, sentando no colo de Mariana e se aninhando
nela, passando o braço por trás de suas costas – Bom dia, meu amor.
– Oi, meu
benzinho. Bom dia – Mariana dá um beijo em Patrícia, a abraçando. Suspirou
fundo, sentindo o cheiro bom de seu cabelo – Grata por ter feito café ontem. Me
poupou alguns minutos de trabalho.
– Uhum –
Patrícia se manteve de olhos fechados – Imaginei que fosse trabalhar até mais
tarde de novo, achei que seria uma boa usar o pó que você escondeu lá no
armário. Café caríssimo, achei – ela abre os olhos e ergue a cabeça ao ouvir o
celular de Mariana vibrando, mas logo se enrosca de volta – Algum progresso no
trabalho?
– Não, nenhum...
Fiz e refiz a programação, linha por linha. Nada, continua dando erro... –
Mariana tinha vontade de gritar, mas se conteve – O café é moído na hora, gata.
Vale cada centavo. São grãos selecionados, vêm de uma plantação orgânica lá do
interior.
– E você dirige
até Moema só para comprá-lo?
– Isso – Marina
responde, esboçando um sorriso.
O celular voltou a vibrar em
cima da mesa, obrigando Patrícia a se esticar para pegar o aparelho. Virou a
tela na direção de Mariana, sem reconhecer o número que chamava.
– Vai atender?
– Não – Mariana balança
a cabeça em negativa – Muito cedo para me ligarem, não acha, não?
– Acho, um pouco,
sim – Patrícia se levanta. Reconhecia o humor das esposas nos pequenos
detalhes, por exemplo, as respiradas mais pesadas de Mariana e o tom de sua
voz, que ficava mais fino quando estava irritada – Quem quer que seja, já te
ligou várias vezes – ela se apoia na mesa, deslizando o dedo na tela do
celular, vendo inúmeras chamadas não atendidas do mesmo número desconhecido.
– Se fosse
urgente, ou importante, me mandaria uma mensagem. Mania de acharem que sou
obrigada a atender ligação. Não sou! Esse é o meu número pessoal – Mariana se
levanta, parecendo mal humorada – Não sou adivinha, as pessoas precisam
aprender de uma vez por todas a se comunicar na era digital.
– Puta merda,
cliquei sem querer – Patrícia diz, quase jogando o aparelho em cima da mesa.
– Mari, a ração está
acabando. Você traz mais no fim do dia? – Tatiana pergunta, ao mesmo tempo,
aparecendo de repente na porta do escritório. Tinha metade da escova de dentes
enfiada na boca e cerrou os olhos, ao sentir uma energia estranha no ambiente.
– Clicou em quê?
– Mariana pega o celular, sem prestar atenção em Tatiana – Ai, Pati...
– O que está
rolando? – Tatiana pergunta e Patrícia levanta os ombros.
Sem falar nada, Mariana lê a
mensagem recebida. Seus olhos foram deslizando rápidos pelas palavras digitadas,
por trás das lentes marcadas por suas próprias digitais, com a armação dos
óculos refletindo o brilho opaco da tela. Seu rosto não indicava nenhuma reação,
mas ao final contraiu um pouco a boca, como se fizesse um biquinho, parecendo aborrecida.
Sem olhar para as mulheres, puxou a bombinha de dentro do bolso da calça e
aspirou o remédio de asma.
– Desculpa, amor.
Não quis te obrigar a ler nada, cliquei na mensagem sem querer. Vou fazer café
– Patrícia diz, parecendo sem graça, fazendo um gesto para Tatiana antes de
sair.
– Quem é, Mari?
– Tatiana volta a escovar os dentes, levantando a cabeça para a espuma da pasta
não cair no tapete, colocando a mão desocupada debaixo do próprio queixo.
– É uma prima
minha... Não sei, mil anos que não falo com ela – Mariana resmunga.
Leu a mensagem de novo, quando Tatiana voltou para o banheiro que ficava
no corredor, ouvindo dali os sons que a esposa fazia. Achou curioso que Elis
não tenha se apresentado diretamente na mensagem, que não chegava nem a cinco
linhas de texto.
– E sua prima
quer o que com você, depois de mil anos? – Tatiana volta a surgir no escritório,
agora sem a escova de dentes e já de uniforme. Pegou uma pasta grande com zíper
de cima da cadeira e ofereceu a mão para descerem juntas – Você não está com
sono? – perguntou, bocejando.
– Ainda não –
Mariana responde, mas bocejou também – Não sei o que ela quer, disse que está
em São Paulo, perguntou se podemos nos ver.
– Quem? – Patrícia
questiona, ao vê-las chegarem na cozinha.
– A prima dela –
Tatiana responde, puxando a banqueta para Mariana se sentar – A que mandou a
mensagem.
– Tem uma prima
sua aqui em São Paulo? Sério? Nós vamos conhecê-la? – Patrícia entrega às
mulheres duas canecas com café. A de Tatiana estava notavelmente mais vazia. Na
sequência, colocou no meio delas uma bandejinha repleta de “pão de beijo”, um
pão de queijo vegano.
– Não sei nem se
eu vou vê-la – Mariana resmunga, bebericando o café. Quando voltou a falar,
usou outro tom de voz, mais ameno – Ela
teria que vir aqui em casa para a gente poder se ver, amor. Do jeito que eu ando
trabalhando igual uma camela...
– É uma ótima
ideia – Patrícia senta ao seu lado, fazendo um movimento com o pulso para Tatiana,
que estava atrasada – Ou marca de encontrá-la nO Bistrô. Posso preparar algo
especial para vocês.
– Não, gata, eu
estava brincando – Mariana quase ri. Jamais imaginou alguém de sua família interagindo
com as esposas, ou no ambiente delas. Mesmo Elis – Eu tenho até domingo para
resolver o xabu lá do trabalho. Preciso trabalhar – ela enfia um pão de queijo
na boca e se levanta, depois de beijar Tatiana e Patrícia, na sequência.
– Mari, toma cuidado
com esse excesso de trabalho, hein – Tatiana recomenda, se levantando também.
Colocou a caneca vazia dentro da pia – Tem que se cuidar, garota. A vida não é
só trabalho, não. Tem que dormir, tem que descansar... Tem que ver os parentes,
quando eles estão na cidade e te mandam mensagens...
– Eu vou
descansar, amor. E dormir. Só preciso resolver esse pepino – ela apoia a caneca
na pia e se vira para as duas, antes de deixar a cozinha – Vocês fazem mesmo
questão de conhecê-la, né? Minha prima –
Mariana se emenda, quando as mulheres olham para ela – De todo mundo, é
a mais civilizada. Quiçá a única. Além de mim, claro.
– Respeitamos a
sua decisão de se manter à parte, gatinha – Patrícia afirma, ainda sentada.
Manteve entre os dedos a alça da caneca – Eu sei bem que família pode ser
bastante problemática, pode ser tóxica e tudo mais... Mas adoraria conhecer sua
prima, sim. Me interesso por tudo que seja relacionado a você, sabe disso.
– Claro, eu
também, com certeza – Tatiana se apressa em dizer, concordando com Patrícia –
Desde que você fique confortável, Mari – ela beija Mariana – Preciso ir. Bom
trabalho, nos vemos à noite – ela se despede, beijando Patrícia desta vez.
– Tchau, amor. Bom trabalho, se cuide no
trajeto – Mariana fala.
– Beijo, Tati.
Até de noite. Vê se come direito, hein? – Patrícia fala, piscando na sequência
para Mariana – Vai me acompanhar no banho? Não?, hum... – ela resmunga, diante
do silêncio da mulher. Se levantou sem tirar a toalha da mesa e a puxou pela
mão.
– Não sei mais o
que fazer para resolver esse problema, amor... – Mariana reclama, subindo as
escadas abraçada à Patrícia – Isso está acabando comigo. Me sinto esgotada,
já...
– Pede ajuda
para alguém.
– Pedir ajuda para
quem, se todos me chamam quando acontece algo do tipo?
– Então chame a
si mesma. Peça a sua própria ajuda – Patrícia rebate, parando no corredor, em
frente ao escritório – Às vezes, ajuda se você se afastar um pouco e voltar
depois com a cabeça mais tranquila, a mente mais calma. Não tem gente que
resolve problema até dormindo, enquanto sonha?
– Sei não –
Mariana resmunga, coçando os olhos. O cansaço da noite não dormida pareceu a
abater de repente.
– Vou tomar
banho e antes de ir trabalhar preparo uma garrafa do café que você gosta –
Patrícia lhe dá um beijo, a abraçando em seguida, por alguns segundos – Você
vai conseguir resolver essa bucha, amorzinha. Tenho certeza, você é foda.
Confia!
Mariana vira os olhos. Adoraria
ter a confiança de Patrícia! Puxou sua cadeira de volta para o lugar, sentando-se
em frente ao computador, depois de pegar a bolinha antiestresse. O primeiro
apertão pareceu conter raiva, porque ela fez uma cara feia, esmagando o objeto com
a força de sua mão esquerda. Empurrou com o pé a poltrona marrom, imediatamente
ocupada por Percival, que se deitou depois de dar três voltas em torno do
próprio corpo.
Não havia absolutamente nada que pudesse fazer que já não tivesse tentado
antes e por isso nem se deu ao trabalho de ligar o computador. Se ateve ao notebook,
se conectando ao WhatsApp. Pretendia ver se alguém do trabalho tinha dito algo
no grupo quando se lembrou de Elis, ao ver ali sua mensagem lida e não
respondida. Então pensou na prima e no fato de ela estar em São Paulo.
A última vez que se viram, tinham
por volta de 16, 17 anos. Primas de primeiro grau, se encontravam só algumas
vezes por ano porque Elis conseguia morar ainda mais longe da civilização que
Mariana, que cresceu isolada dos grandes centros urbanos, no interior do
Paraná. Ambas sempre se deram muitíssimo bem, tinham boa sinergia e contavam praticamente
as mesmas reclamações nas confissões que se faziam, às escondidas, nesses
encontros familiares. Se sentiam vítimas do mesmo problema, que parecia
genético, mas era só religioso. Contudo, Mariana reconhecia que a vida agora
era outra, a começar que, além de lésbica assumida, era também assumidamente
casada com duas mulheres. O tipo de coisa que deixaria sua família horrorizada.
Talvez até Elis.
Mas Tatiana tinha razão quando
dizia que a vida não era só trabalho e Patrícia estava correta ao afirmar que
encontrar a prima ali, em casa, podia mesmo ser uma ótima ideia. Fazer um
social poderia, com muita sorte, distraí-la o suficiente para depois retomar o
trabalho com a solução para o seu problema, quem sabe.
Só por isso marcou com Elis de
tomarem um café naquela tarde: por desespero. Porque Mariana ainda não tinha
tentado se distrair; ao contrário, tinha passado os últimos dias 100% focada.
Não tinha nem dormido por causa desse assunto!
Mandou uma mensagem de áudio para
a prima seguida de outra, escrita, informando seu endereço. Não entrou em
detalhes, por exemplo, dizendo com quem morava, porque não sabia até onde
contaria disso tudo. Elis só informou que estava na cidade para uma entrevista
de emprego, não seria ela a aprofundar a conversa. Não neste momento, pelo
menos.
– Amor –
Patrícia surge no escritório, perfumada de banho. Ameaçou entregar a garrafa
térmica com café, mas quando Mariana foi pegar, puxou de volta – Você precisa comer também – ela volta a fazer o movimento de entrega e
recuo – Estou falando sério, Mari. Se não se cuidar, vai acabar tendo gastrite.
– Tá, Pati –
Mariana acompanha a esposa apoiar a garrafinha na mesa, com o cuidado de usar
um porta-copos que tinha estampa de bolacha maria – Vou almoçar por aqui mesmo,
marquei com a minha prima de ela vir no começo da tarde.
– Que bom, fez
bem. Tem fruta lá embaixo, lancha, amor. Descongela alguma coisa para almoçar,
tem bastante comida no freezer – Patrícia continua, alisando o rosto da mulher
– E se divirta com a sua prima! Vai ser
bom você se distrair.
– Uhum –
Mariana resmunga, dando um beijo nela –
Bom trabalho, querida. Nos vemos mais tarde.
Patrícia se despede com um beijo. Ainda ficou alguns minutos arrumando
algo lá embaixo, Mariana só ouviu o som do portão da garagem se abrindo depois
de um longo instante.
Deixou o projeto que a vinha perturbando de lado e se focou em outros
programas até que a campainha tocou, perto das três da tarde. A esta hora o
café já tinha acabado há muito tempo e ela ainda não havia almoçado. Se
distraiu, concentrada no trabalho. Tanto que nem viu a hora passar.
– Pois não? – Mariana
pergunta, as sobrancelhas arqueadas ao encontrar um rapaz alto parado na porta.
Esperava encontrar a prima.
– Mari – ele
sorri, as covinhas aparecendo mesmo debaixo da barba espessa – Guria, você não
mudou nada!
Ela escaneia seu rosto, atrás de
alguma pista. Seus olhos eram familiares, mas só. Não fazia ideia de quem era.
Não até que ele voltasse a falar algo, que foi quando Mariana o reconheceu,
antes mesmo que a informação fosse processada.
– Sou eu... –
ele diz.
– Elis – Mariana
interrompe. Foi a primeira vez que sorriu, mas ainda parecia bastante surpresa.
– É, mas pode me
chamar de Elias.
– Uau – ela diz
e só então o abraça. Pareciam dois estranhos, muito mais do que imaginou, mas
eram também duas almas conhecidas e isso ficou claro quando encostaram seus
corações, no abraço – Nunca imaginei te encontrar assim! Que bonito que você está!
Que você é!
– Capaz! Você que
está linda! Eu disse que não mudou nada por isso! – Elias volta a abraçá-la,
quando a prima o puxa de novo – Que bom te ver! Estava morrendo de saudade!
– Muito bom, sim
– Mariana concorda, dando passagem para o primo entrar – Faz muito tempo, Eli.
Senti saudade também.
– É, a última
vez... – ele se cala. Não havia a necessidade de falarem a respeito – Que linda
sua casa! – Elias comenta, mudando de assunto.
– Sim, aqui é
uma delícia. Essa é a sala, vem cá que vou te mostrar a cozinha – Mariana caminha
na frente e por isso o primo não vê seu sorriso, ao chegar no cômodo e
encontrar em cima do fogão duas panelas com o almoço descongelado e preparado por
Patrícia, mais cedo – Senta aí, você já comeu?
– Sim, uma
besteira na rua. Fui mais cedo numa entrevista, que acabou demorando... Saindo
de lá, parei num boteco.
– Ótimo, não
almocei também – ela diz, parecendo não ter prestado atenção à resposta do
primo. Acendeu o fogão e misturou a comida das duas panelas com o mesmo garfo –
Entrevista de quê?
– É numa agência
de publicidade. A melhor da cidade, fica lá para os lados da Barra Funda. Se eu
conseguir a vaga, me mudo para cá.
– Espero que
consiga, então! – Mariana sorri – Desculpe não ter te atendido. Você me ligou
várias vezes e eu ignorei todas as chamadas, foi mal. Estou com um problemão no
trabalho... E eu não sabia que era você ligando, nem que...
– Nem que eu sou
um piá – Elias sorri também, quando ela se cala – Tudo bem, não tem problema. Eu,
por minha vez, não sabia que tinha se casado – ele aponta para a sua mão
esquerda – Parabéns! Aqui, foi com uma mulher, né? Me conta, como foi que sua
família reagiu?
– Eu ia te
perguntar a mesma coisa! – Mariana ri,
colocando dois pratos fundos em cima da bancada.
– Nunca entrei
em detalhes. Não volto para casa desde aquele incidente – Elias usou um tom
magoado, que mudou depois de um suspiro profundo, ressentido – Quem perde são
eles.
– Com certeza –
Mariana senta ao seu lado e segura brevemente em sua mão – Não dei detalhes para
ninguém também. Mas sabem que me casei, meus pais sabem. Eu avisei por alto, na
época. Também não volto lá desde o ocorrido. Casei com mulher, sim – ela ri,
servindo os dois pratos com macarronada vegana – Tem coisa que não muda.
– Ou muda. Você vivia
dizendo que nunca se casaria – Elias ri, piscando para ela.
– É – Mariana concorda,
mastigando uma garfada generosa de comida. Quando voltou a falar, foi com a
boca cheia – Meu exemplo em casa nunca foi muito inspirador. Eu associava
casamento à prisão.
– O que te fez
mudar de ideia? Qual o nome dela? – Elias ri. Era óbvio que Mariana tinha se
apaixonado. Isso sempre nos faz reconsiderar qualquer questão.
– Patrícia –
Mariana continua mastigando. Engoliu para terminar de responder – E Tatiana.
– Não me
surpreende – Elias diz, depois de um momento rápido de reflexão – Que comida
maravilhosa! Você que fez? O que tem nesse molho?
– Não, foi a
Pati. Ela trabalha num restaurante. O molho é vegetariano.
– Além de se casar
com duas mulheres, uma delas te alimenta assim todo dia? Caramba, Mariana!
Mariana ri do comentário. A
comida de Patrícia era mesmo divina, sempre bem temperada. E havia também o
cuidado de ela se preocupar em deixar pronta, o que tornava tudo muito mais
gostoso.
Os dois passaram a tarde
conversando, colocando em dia todas as novidades acumuladas em mais de uma
década. Nem saíram da cozinha porque depois do almoço Mariana preparou duas
garrafas de café, enquanto batiam papo, os assuntos fluindo e se emendando
naturalmente. Foram horas esquecida dos problemas do trabalho. Distraída, só notou
que estava escurecendo quando precisou se levantar para acender a luz.
Ao chegar em casa, Tatiana
estranhou por encontrar Mariana em altos papos com um estranho, mas ao bater o
olho no sujeito reconheceu alguns traços da mulher. Os olhos se pareciam e o
nariz era igual.
– Oi, amor – Mariana se levanta e a beija –
Tati, esse é Elias, meu primo. Eli, essa é Tatiana, minha esposa.
– Muito prazer –
Elias aperta a mão da mulher – Ouvi falar muito bem de você.
– O prazer é
meu! É bom tê-lo aqui – Tatiana responde, cortês – Não posso dizer o mesmo
porque a Mariana é muito reservada com questões de família.
– Compreensível,
nem tem muito o que falar – Elias rebate, vendo a prima entregar uma caneca de
café para a esposa, que usava um uniforme de escola respingado de tinta guache
em uma das mangas – Nosso pessoal não é muito civilizado...
– Ah, isso eu já
ouvi – Tatiana ri, bebericando o café – Esse é aquele que você traz lá daquela
padaria?
– Não, amor. A
Pati descobriu meu esconderijo. Esse é o café normal – Mariana responde,
olhando na sequência para o primo – A Tati não pode tomar café – ela explica,
vendo seu celular vibrar em cima da bancada.
Mariana se afasta para atender à
ligação, deixando a esposa e o primo numa conversa que acabou se alongando,
porque ela demorou a retornar. Precisou subir até o escritório e ver alguns
dados no computador, o que acabou lhe tomando tempo.
– Amor – Tatiana
a chama, da porta do escritório – Desculpa, não quero te atrapalhar... mas ainda
demora? Vou levar seu primo para conhecer O Bistrô. Quer vir junto? Você
consegue?
– Hum... –
Mariana faz uma careta, pensando no assunto – Queria, mas não se devo.
– Não tem
problema. Trabalha e logo estaremos de volta – Tatiana manda um beijinho no ar.
– Ei – Mariana a
chama, indo atrás dela no corredor – Assim, não. E meu beijo?
– Não quis te
incomodar – Tatiana se justifica, sendo abraçada pela cintura antes de ser
beijada.
– E desde quando
me dar amor me incomoda? – Mariana se finge de ofendida, vendo o primo lá
embaixo, no pé da escada – Cuida dela, tá?
– Pode deixar,
Mari – Elias acena para ela, saindo da sala na companhia de Tatiana.
Mariana voltou ao trabalho, se aproveitando
do silêncio para rever o programa com erro. Algumas possibilidades de solução
tinham sido levantadas por dois funcionários e agora ela precisava testar.
Embora nem tudo fizesse sentido,
o erro também era um ponto fora da curva e só por isso Mariana tentou até o que
já sabia previamente que não ia funcionar, por desencargo de consciência. Ao
final, todas as tentativas terminaram com o mesmo erro persistente. Frustrada,
desistiu porque se deu por vencida. Desligou todos os computadores e foi tomar
banho. Esperaria as esposas já com a cama arrumada.
Cansada, há horas sem dormir,
acabou pegando no sono com facilidade e nem ouviu quando Patrícia e Tatiana
chegaram da rua, depois das 11 da noite, acompanhadas por Elias. Soube só no
dia seguinte que as esposas convidaram o primo para ficar na casa delas, quando
acordou e viu que alguém havia dormido no sofá do escritório.
– Bom dia, amor
– Patrícia a cumprimenta, ao vê-la entrar na cozinha – Dormiu bem? Descansou? –
ela a enlaça para um beijo e um abraço na beira do fogão.
– Oi, querida. Bom
dia. Nem te ouvi chegar ontem... – Mariana resmunga, esfregando o nariz no
pescoço da mulher – Descansei, sim. E você? Oi, Eli! Dormiu bem?
– Bom dia, Mari.
Muito bem, sim – Elias responde, vendo a prima agora abraçar e beijar Tatiana.
Tomava café numa caneca em que estava escrito “Saboreie escondido” – Suas
esposas são muito gentis, me convidaram para passar a noite aqui.
– Claro, não
tinha o menor cabimento você ficar em hotel – Patrícia comenta, entregando para
ele uma panqueca com mel – Em hotel da rede Lux, ainda por cima. Caríssimo, a
diária custa os olhos da cara.
– Bobagem,
seriam só algumas noites – Elias ri – Na segunda-feira já começo a definir meus
rumos, se der tudo certo. E acho que vai dar. O resultado da entrevista é para
sair já de manhã.
– Estamos na
torcida, Elias – Tatiana afirma, puxando uma banqueta para que Mariana sentasse
ao seu lado – Amor, o seu primo nos contou cada história ontem! Um monte de
informação nova, vários causos de quando vocês eram crianças...
– Ah, é? –
Mariana pergunta, não parecendo muito interessada. Pegou o café oferecido por
Patrícia e embaçou a lente dos óculos, antes do primeiro gole, ao assoprar.
– É, mas nem ele
quis nos dizer o que foi que te fez sair de casa, quando você era mais nova –
Patrícia complementa, sentando ao lado delas – Ou por que você nunca mais quis
voltar.
– Passado, é
passado – Elias sorri, sem graça, evitando encarar os olhos da prima.
– É passado isso
aí – Mariana diz, ao mesmo tempo. Ela, ao contrário, olhou para ele, séria.
– Muito mistério
envolvendo a família Souza – Tatiana ri – Você disse que seus pais nem sabem
que você é trans, né? Fico pensando em como deve ser difícil esconder esse tipo
de coisa!
– Jamais! –
Elias responde, a voz saindo mais fina que de costume, seu sotaque parecendo
sair mais carregado de repente – Imagine só eu ensinando a linguagem neutra
para papai e mamãe, Mariana! – ele ri, como se aquela fosse uma boa piada.
– É... – Mariana
resmunga – Porra, sim! É isso, Eli! – ela bate as mãos, se levanta e sai, sem
dizer mais nada.
Subiu correndo até o escritório, seus pés fazendo um barulho apressado
nos degraus da escada, deixando para trás a conversa na cozinha. O tempo todo
estava tentando consertar o programa em linguagem errada; por isso o erro!
Ligou o computador na expectativa de solucionar o problema que enfrentava
há dias, só percebendo o passar do tempo porque primeiro se despediu de Tatiana
e depois de Patrícia, que saiu para o trabalho perto das nove. Elias ficou com ela
a manhã inteira no escritório, assistindo algo pelo celular, deitado na
poltrona de Percival. Mariana quase chorou quando o programa rodou, sem erros,
já perto da hora do almoço.
– Eli, você me
salvou! – Mariana tinha o semblante diferente, muito mais leve – Se eu soubesse
que sua visita seria tão valiosa, teria te chamado para vir antes.
– Que bom que
pude ajudar, Mari – Elias ri, abaixando o celular para encará-la. Hoje se
parecia com a pessoa que Mariana tinha conhecido no passado – Se eu soubesse
que você tinha se casado com mulheres tão legais, eu teria vindo antes.
– Elas são, né?
– Muito! Duas
queridas! E o pessoal dO Bistrô também. O restaurante é lindo, me apaixonei. Adorei
tudo e todo mundo, uma energia ótima. Principalmente sua amiga Lola.
Mariana ri. Não era nada
surpreendente o fato de Elias e Lola terem se dado bem. Preferiu não o alertar
para o perigo que a amiga representava para não ser maldosa, mas ficaria de
olho para que ela não partisse o coração de seu primo ao meio.
As chances de isso acontecer eram monstruosamente grandes, a considerar o
passado de Lola. Porém, Mariana seria a última pessoa no mundo a jogar a amiga
em uma fogueira deste tipo.
– E agora? –
Elias questiona, erguendo o queixo no final da pergunta – Ainda precisa
trabalhar?
– Sim, mas posso
fazer isso do restaurante. A gente almoça nO Bistrô e eu termino as coisas de
lá mesmo. Voltamos perto da hora de a Tati chegar.
– Por mim, perfeito
– Elias faz um gesto e Percival vem até ele, sem hesitar.
– De manhã
fiquei preocupada... – Mariana comenta, mas se cala por um momento – ... com as
histórias que você contou para a Tatiana e a Patrícia.
– Não disse nada
que fosse te comprometer, prima. Relaxa.
– Eu nunca
contei para elas sobre a briga...
– Tudo bem.
– ... nunca
falei sobre o que motivou a briga, Eli – Mariana reforça, olhando para o primo
– Nunca achei necessário, na minha cabeça jamais haveria uma interação entre
elas e algum parente meu.
– Até eu.
– Principalmente
você! – Mariana quase ri, mas se mantém séria – Digo, considerando tudo o que
aconteceu.
– Foi só um
beijo, Mari. A gente nem ficou de verdade.
– “Só um
beijo”... – Mariana repete, com desgosto, aspirando o remédio da bombinha de
asma – Isso quase acabou comigo. Meu pai quase me matou quando nos pegou no
meio daquele beijo.
– Sim, o meu
também – Elias tinha um olhar complacente – Mas foi o evento que mudou minha
vida. Me transformou em quem eu sou hoje.
– Sim, com
certeza, digo o mesmo – Mariana desanuvia a expressão do rosto – Grata por não
ter dito nada sobre esse assunto mesmo assim.
*
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