Mudança de plano (conto)

 Essa é a sexta história da segunda temporada da Novelinha <3

Se ainda não leu a quinta, "O plano", clique aqui.


Nem todas as pessoas estão preparadas para enfrentar o processo natural de envelhecimento, típico da vida. Há muita gente que não aceita, ou tem dificuldade de trabalhar o fato de que o tempo todo estamos trilhando um caminho fatal que, raras exceções, chega ao fim quando já estamos bem velhas. Amadurecer, então, não deixa de ser se tornar experiente ao passo em que o corpo padece. E isso não é segredo para ninguém, o que torna curioso esse impasse em digerir e se aceitar o óbvio. Ao menos era o que Bruna acreditava.

A vida toda se considerou uma pessoa prática e pessoas práticas não têm tempo para as firulas que envolvem os dramas. Não. Ela estava sempre ocupada com o que realmente deveria consumir sua atenção, no caso, decisões importantes e constantes que envolviam a movimentação de milhares de dinheiros, de diferentes moedas, e que da maneira mais sapiente possível, Bruna as tomava sempre se valendo das boas condições de seu corpo, mas especialmente das boas condições de sua mente. Essa ela fazia questão de manter saudável.

Criada apenas pelo pai, um homem puramente dos negócios, desde cedo Bruna aprendeu a arte de aceitar a naturalidade da vida: nascemos, crescemos, envelhecemos e morremos. E, segundo seu genitor, no meio do caminho, construímos impérios. Não à toa ele entregou à filha, ainda muito nova, o comando de uma rede de hotéis de luxo que, na época, contava com cinco unidades, todas em São Paulo. Foi a maneira que Enrique Toledo encontrou de mantê-la focada para que nenhum assunto banal a desviasse de seu verdadeiro foco, pois acreditava que a moça tinha tino comercial.

Sempre dedicada ao trabalho, e também à arte de agradar ao pai, Bruna passou boa parte de sua juventude bem alheia aos relacionamentos amorosos, que no seu entendimento não se encaixavam em sua rotina. Tinha um casinho aqui, outro ali, mas só.

Sinceramente não tinha tempo para namoricos, pretendia se manter solteira por mais alguns anos e não teria sido difícil se no meio do caminho não tivesse esbarrado com Célia que, do alto de uma verdadeira montanha de racionalidade, conseguiu tocar seu coração como mais ninguém havia sido capaz. De um jeito que ela nem imaginava ser possível, na verdade.

Se apaixonar foi comprovar que não temos o menor controle sobre nossas ações quando a “flecha do cupido” nos acerta. Porque foi assim que Bruna se sentiu: atingida, de repente, envolta numa magia que tirou seus pés do chão e pela primeira vez a fez se questionar sobre qual era seu real objetivo na vida: ser bem-sucedida nos negócios ou ser feliz no amor. Por sorte, Célia foi sua parceira fundamental, desde o começo, porque era uma pessoa bastante pragmática e ambiciosa, e nunca a deixou fraquejar em nada que envolvesse a Etur Lux. Com seu apoio e incentivo, inclusive, Bruna ousou ao lançar o primeiro hotel carioca da rede, com o pai ainda em vida, que viu também a marca chegar com sucesso em Recife e ao Rio Grande do Sul.

Numa época em que o machismo imperava e cagava regras, muito mais do que nos dias de hoje, onde tudo era tabu, especialmente questões relacionadas à sexualidade e homossexualidade femininas,  Bruna e Célia assumiram o relacionamento que tinhamapós quase dois anos, enfrentaram o apedrejamento do preconceito, que veio de todos os lados, e naturalmente passaram a trabalhar juntas, depois que Enrique morreu. Se o Sr. Toledo tivesse dado apenas uma chance, teria constatado que a nora escolhida por Bruna também era muito sagaz para o mundo dos negócios, tradicionalmente comandado por homens, e como CEO fez contribuições valiosas para a lucratividade da Etur Lux. Mesmo antes de perder o pai, Bruna percebeu que só podia contar com a esposa, e se sentia feliz porque Célia compartilhava com ela o gosto pelas negociações envolvendo os hotéis da rede.

Mas como tudo na vida se transforma, a relação delas obviamente sofreu alterações com o passar do tempo. Cresceu, é claro, não tinha como ser diferente, mas de maneira paralela e quase sincronizada também se corroeu, porque a rotina tem esse poder de lapidar as coisas às vezes de um jeito ruim. Sempre houve amor entre elas, isso é inegável, mas ao longo dos anos, devido a todos os enfrentamentos necessários por conta da união entre as duas, pode-se dizer que a relação foi solidificada igualmente por esses momentos dificultosos; se posto na balança, no fim das contas o companheirismo das horas difíceis acaba até pesando mais do que só o amor. Mas o desgaste disso tudo também tem o seu peso.

Sem falar nas dificuldades internas, que sabemos que existem e que funcionam fazendo o papel de ferrugem nos relacionamentos. Embora prática, Célia tinha lá suas questões a resolver, como Bruna também as tinha, só que com o tempo as da esposa pareceram pesar mais. Ao contrário de Bruna, a CEO da Etur Lux nunca se preparou exatamente para o seu processo de envelhecimento e aí virou presa fácil de seu próprio ego, que em dado momento se recusou a aceitar o óbvio: a cada dia envelhecemos mais e depois de certa idade vivemos com a impressão de que descer essa ladeira fica cada vez mais fácil, porque é um caminho sem volta e porque a gravidade nos empurra mesmo lá para baixo. É uma bola de neve que se avoluma e nos engole, e sua preferência é por pessoas desavisadas, como Célia.

Obviamente a crise de meia-idade que baixou do dia para a noite consequentemente afetou a cabeça de Célia no trabalho. Ineditamente, é verdade, mas de maneira perigosa porque sua função envolvia a responsabilidade de tomar muitas decisões importantes. De repente Bruna viu sua mulher perder o foco, ficar completamente incapaz de se concentrar e por causa disso firmou um contrato que ela própria condenaria, em estado normal.

Mas orgulhosa que era, Célia como sempre não pediu ajuda e meteu os pés pelas mãos numa negociação relativamente simples que causou um prejuízo, na época, estimado em R$ 1,8 milhão. Fora a queda do valor das ações da empresa e o impacto negativo na imagem da Etur Lux, acusada de ser inimiga do meio ambiente depois disso.

Não foi uma ou duas vezes que Bruna precisou enfrentar a ira dos acionistas, a cobrança dos investidores ou um aperto da diretoria, mas quando os problemas envolveram Célia, mesmo que pela primeira vez depois de quase duas décadas de um trabalho árduo que todos viam, o peso imposto sobre ela foi quase insuportável. Não havia concessões que pudesse fazer para salvar a pele da esposa quando todos lhe cobravam a demissão imediata da CEO. As críticas vinham também de fora, da imprensa e dos clientes, que nessas horas se mobilizam rapidinho para um boicote em massa, organizado e sincronizado, que causa prejuízos em outras áreas, num efeito cascata.

Por sorte, sua palavra final como presidente contava, muito, e com jeitinho e jogo de cintura Bruna conseguiu colocar os devidos panos quentes, acalmando os nervos e afastando Célia praticamente na calada da noite.

Depois de uma semana inteira atrás dela, tentando conversar com a esposa, primeiro só no ambiente de trabalho, depois até dentro de casa, Bruna apelou para o único momento em que Célia realmente teria que prestar atenção. Não se orgulhou de sua ação, mas foi no escuro do quarto delas que a presidente finalmente conseguiu elencar seus motivos e razões para afastá-la, listando nos dedos as garantias de algo meramente provisório e afirmando que a medida era muito melhor que uma demissão. Antes de dormirem, Bruna fez questão de dizer que daria um jeito com relação ao prejuízo e à imagem de Célia, bastante arranhada após o episódio.

De alguma forma, sem que obviamente a esposa soubesse, tentaria repassar parte da culpa para a assistente dela, Marta, que nunca fazia nada – nada direito e nada de errado, por consequência. Célia tinha uma ótima assistente, como adorava se gabar, e há anos Bruna se mantinha de olho porque muito facilmente a moça caiu em sua graça, desde o início. Ainda hoje, anos depois, movida um pouco pelo ciúme, Bruna não entendia o porquê de Célia não envolver mais a assistente nos assuntos do trabalho, já que era tão eficiente assim. Agora lhe parecia bastante razoável culpar Marta pelo prejuízo milionário, em vez de só responsabilizar a CEO por seus próprios atos.

A contratação de uma empresa picareta para gerenciar a construção do primeiro resort da rede no Pantanal, por exemplo, podia ter contado com uma pesquisa básica da assistente, num momento em que Célia já aparentava sinais de que o cansaço a abatia, considerando que pulou etapas básicas de concorrência, quebrando regras bobas que todo mundo conhece. Regras primordiais, como assegurar que a contratação será eficiente e que, numa área de preservação ambiental, todos os cuidados serão realmente tomados (o que não ocorreu).

Mas verdade seja dita: o problema de Célia começou muito antes de acontecer o prejuízo do resort. Os sinais foram tão claros que elas até conversaram a respeito. Foram horas de conversa!, dias! Bruna tentou de tudo: ofereceu de terapia à licença-médica, de mudança de endereço à mudança de área, de emprego. Ofertou até mesmo a alteração no formato do casamento delas, quando deu carta branca para a esposa arranjar uma amante. Tudo pelo bem de Célia.

Sua cartada final foi começar a buscar por ocupações que pudessem de alguma maneira desanuviar a mente cansada da mulher. Com ela tinha funcionado, anos atrás, quando decidiu cursar Artes Visuais só pelo prazer de estudar, pela alegria em aprender coisa nova.

Foi inclusive assim que conheceu Tatiana, sua colega de curso, e a esposa, Patrícia, pessoas tão queridas que até hoje ela tinha como suas amigas; quem sabe a esposa tivesse uma sorte parecida! Mas Célia, sisuda, permanecia irredutível. Em sua postura, pelo menos, na negativa diante de qualquer oferta recebida, porque com o tempo Bruna começou a perceber que havia algo diferente em seu semblante, que ficou mais leve de repente. Como se Célia tivesse encontrado o antídoto para sua cara azeda.

O combinado entre elas era que fossem sempre transparentes. Não importasse o motivo, o assunto ou a questão. Na proposta de se arranjar uma amante, Bruna foi enfática quando pediu para ser a prioridade na vida da esposa. Achou que era o mínimo, nesses casos, Célia não cometer o vacilo, o desatino, a sandice de se apaixonar.

O problema é que Célia não cumpriu com sua palavra e Bruna tampouco soube desempenhar seu papel nessa dinâmica em que, ironicamente, a mais inocente parecia ser justamente a amante, que em teoria nada sabia sobre os acordos envolvendo Bruna e Célia. E a primeira só descobriu os desacordos da segunda justamente porque falhou de sua parte, quando a liberou para ter um caso e depois se enciumou e até se arrependeu por ter priorizado o prazer de Célia em detrimento do seu. Pela primeira vez, Bruna desviou o foco de Marta, somente para direcionar a mira em Miriá.

A menos errada nessa história toda talvez só mesmo a amante, mas no segundo encontro ela já sabia que Célia era uma roubada e mesmo assim quis encontrá-la, então é injusto fazer tal afirmação. Este definitivamente não parece ser o tipo de história em que há inocentes e, caso houvesse, Miriá não seria exatamente quem desempenharia esse papel. Mas o fato é que na equação envolvendo as três, sem saber ela foi de caça à presa e depois elevada à potência de caça novamente.

Bruna passou a caçá-la logo que soube quem era a mulher que tinha curado o mau humor de sua esposa. Ciúmes faz a gente agir de formas bem estranhas! No seu caso, Bruna sentiu que ficou até um pouco obcecada, a princípio. Quis saber tudo sobre a amante de Célia: onde trabalhava e morava, o que fazia nas horas vagas, com quem se relacionava, onde ia. Decidiu ela mesma ir atrás das respostas que Marta demonstrou não ter – a assistente lhe pareceu na verdade sinceramente surpresa quando Bruna a sondou atrás de algo que envolvesse Miriá.  

Então descobriu sozinha, com um mínimo de investigação, que a amante era uma mulher jovem e bonita, que trabalhava demais e bebia às sextas-feiras com amigas que, assim como ela, eram solteiras. Publicitária responsável pelo núcleo criativo da Agência Rubi, não foi surpresa para Bruna constatar o que fez Célia se atrair por ela. Havia a questão estética, incontestavelmente, mas Miriá ia além do rótulo, além dos muros simples da aparência e os prêmios conquistados em sua carreira eram só o detalhe mais óbvio de sua vida.

Miriá ser workaholic também um fato que servia como isca para a esposa se atrair. Célia era declaradamente adepta de rotinas, metódica até as tampas, ter uma amante era algo que mexia com sua agenda toda certinha e alguém com pouco tempo disponível certamente era vista como vantajosa. Bruna conhecia a mulher há muitos anos, sabia ler nas suas entrelinhas.

Se bem que esta era uma certeza cada vez mais remota, considerando que Célia parecia ter se transformado em outra pessoa depois da crise de meia-idade, após seu aniversário de 50 anos. Bruna sentia, inclusive, que foi perto dessa ocasião que Célia e Miriá começaram a se envolver. Naquela noite, ao sair do trabalho ela foi atrás da esposa, que sumiu da vista, deixando o carro lá fora.

Casamento definitivamente não é um negócio fácil. Envolve basicamente ceder e se adaptar, com discussões que muitas vezes Bruna tinha a impressão de serem quase monólogos, pois Célia era bastante fechada, muito reservada, principalmente quando o assunto envolvia suas emoções e sentimentos. Bruna entendia a chateação da esposa na época; além de completar meio século de vida, se viu afastada à força do trabalho, que sempre foi seu foco de dedicação. Mas chamou sua atenção o fato de Célia não ter se abalado tanto assim. Outro indício que a fazia crer que foi nessa ocasião que Miriá entrou em cena, fazendo a esposa ganhar um novo fôlego, um singular impulso. Era o que explicava, considerando que embora tenha sido uma fase atribulada, nada mais de grandioso ocorreu no período.

O curioso dessa história é que Bruna se sentia refém de suas próprias decisões, injustiçada porque lhe parecia que tudo tinha sido decidido com base nas opções disponíveis no momento e Célia nem sempre a deixava com boas escolhas. Isso valia desde a sua licença no escritório à liberação para ter uma amante. Bruna foi impelida a agir como agiu. Ou se convencia disso apenas como capricho, motivada meramente pelo ciúmes, nas várias horas em que ficava ruminando esse assunto sem fim.  

Mais curioso ainda só mesmo os contornos que semanalmente fazia, blindando a terapeuta dos assuntos que envolviam a amante de sua esposa. Sim, Bruna poupava Giovana, sua psicóloga, de detalhes que a faziam se envergonhar só de pensar, que dirá dizer em voz alta! Já bastava ter de compartilhar essa história toda com Mayara, que a levou de Uber para cima e para baixo atrás de cada passo de Miriá. Por sorte, a motorista era de longe uma das pessoas mais discretas que conheceu na vida. Ainda assim, o que Bruna dizia na terapia girava sempre em torno de sua dificuldade em não se preocupar com o que os outros estariam pensando a seu respeito. Como Mayara.

Se preocupava bastante, é claro, teve dias que se sentiu uma maluca, perseguindo carros estranhos como se estivesse em algum filme de ação barata, sem a menor ideia de para onde estavam indo. Ficava imaginando o que a motorista pensava disso tudo, qual imagem fazia dela antes e agora, com essa cena toda, tão passional. Só que Bruna notava que além de não julgar, Mayara dava a impressão de até se divertir. Não era segredo que ela adorava dirigir pelas ruas de São Paulo e já tinha revelado que em todos os anos trabalhando como motorista, esta era a primeira vez que perseguia alguém, como na ficção. Como o desejo de Bruna em saber mais sobre a mulher que tinha conquistado a esposa era mais forte que o embaraço, no começo só fingia não ver Mayara a encarando pelo espelho retrovisor, ao término de uma perseguição; era mais fácil para ignorar o julgamento que ela própria projetava naqueles bonitos olhos cinzas.

Obviamente que, com o tempo, passaram a conversar sobre o assunto. Era um grande elefante branco diante delas, não tinha como ser diferente. Só que propositalmente Bruna não contou todos os detalhes e omitiu o fato de que a liberação para Célia ter uma amante partiu dela. Achou que desta forma era mais fácil Mayara compreender parte do que sentia e que a motivava a ir atrás de uma desconhecida.

Muito discreta, a cada corrida Mayara tinha um comentário pertinente para fazer, sempre na hora certa. Conhecia muita gente (conhecia até Giovana!) e tinha um repertório vasto de histórias reais, a maioria dramas de sapatão. No fim, Mayara era mais terapêutica que a própria terapeuta, que permaneceu escudada da verdade.

Provavelmente por isso, por não ter o embasamento teórico necessário, os conselhos de Mayara beiravam sempre o apaixonado, permeados do otimismo típico das mais jovens, que rumam em direção ao bom senso do amor.

Mayara fazia questão de dizer que não estava “passando a mão na cabeça” de ninguém, revelou em certa ocasião que até conhecia a dor da traição, mas ainda assim sempre reforçava o óbvio; falava que mais importante do que perseguir a amante, Bruna precisava era conversar com a esposa. Dizia ela que cozinhar ciúme no banho-maria da raiva pode ter um final bastante desastroso e indigesto.

Mas incontrolavelmente, além de não conseguir intimar Célia para uma conversa honesta e sincera (e necessária!), Bruna criou em sua mente um dramalhão, uma verdadeira novela mexicana envolvendo Célia, Miriá e um amor correspondido que a faria perder a esposa. E aí ficou simplesmente impossível largar a rotina masoquista de stalker.

A primeira prova de que Célia e Miriá se gostavam foi que em pouquíssimo tempo, em questão de meses, abandonaram de vez os motéis e passaram a se encontrar exclusivamente no apartamento de Miriá, que morava sozinha no quinto andar de um prédio avarandado, com grades onde ela costumava se encostar para fumar. O cigarro, inclusive, foi o segundo alerta a acender no painel obsessivo de Bruna. Célia detestava cigarros, nicotina, fumaça, mas abria exceções ao se encontrar com a amante fumante. Em sua história inventada, a esposa se apaixonou logo de cara e este era o mais claro de todos os indícios.

Por causa disso passou noites em claro, pensando se teria o caso entre as duas motivado Célia a fechar o contrato com a Agência Rubi, na época em que a Etur Lux investiu rios de dinheiro na campanha publicitária que teve como intenção limpar a imagem da empresa, após o incidente com o resort. E isso era o que mais lhe doía: imaginar que a esposa poderia ter escondido dela essa informação por muito mais tempo do que imaginava, em tempos em que Bruna ainda nem reparava se Célia estava mais ou menos irritada.  

Parecendo querer apenas consolar, ao surgir essa possibilidade Mayara disse acreditar que o caso envolvendo Célia e Miriá provavelmente surgiu só depois de acontecer todo o rolo com o resort, não antes. Sua alegação para isso era que, afinal, Bruna não poderia ter sido tão distraída e certamente teria notado as risadinhas que a esposa passou a dar para o celular, a repentina suspensão do mau humor, suas bochechas mais coradas nas noites em chegou mais tarde em casa... Na hora, Bruna concordava, mas depois se perguntava: teria mesmo reparado? A incerteza a consumia e o caldo era engrossado com a teoria de que por causa de Miriá é que Célia estava tão avoada, com a cabeça no mundo da lua, e a consequência disso foi o prejuízo com o resort.

O detalhe com certeza mudaria todo o cenário, que já não era dos melhores quando só envolvia uma soma alta de reais, um prejuízo incalculável a uma reserva ambiental e uma mancha sem precedentes à imagem da Etur Lux, que após o breve afastamento da CEO entrou em uma grave crise, agravada por um declínio nas hospedagens.

Vale dizer que essa encanação de Bruna surgiu no começo, quando o assunto do resort ainda estava fresco na imprensa e, por isso, fedia muito. Foi a primeira vez que Bruna precisou montar um comitê de crise na empresa e se sentiu derrotada só de ter que fazer isso sem a sua companheira, seu braço direito também nos negócios, que pareceu encarar a punição da licença compulsória como um bônus, considerando que foi se consolar no meio das pernas de outra mulher.

Foi um período difícil por causa do trabalho, da cobrança que vinha de absolutamente todos os lugares e do dia a dia que envolvia ir atrás da esposa quando ela transava com outra. Foi a primeira vez em muitos anos que Bruna experimentou uma rotina sem Célia, mas considerou que se saiu muito bem, obrigada.

Ao contrário da empresa, a reputação da esposa ganhou apenas um arranhão, quase só um borrão. Com as ferramentas certas do marketing, somadas a uma quantia volumosa de dinheiro, é possível responsabilizar até o capeta, num momento de crise. No caso da rede de hotéis, o vilão virou quem realmente teve mais responsabilidade com o descarte incorreto de resíduos durante a construção do resort numa região pantaneira: a empresa picareta contratada pela CEO. Por isso, foi questão de dias até que Célia voltasse a dar expediente e por ser casada com a presidente, muito rapidamente o assunto caiu num quase esquecimento. “Quase”, porque grupos de ambientalistas ainda protestavam semanalmente devido aos irreversíveis danos causados pela empreitada, que só não foi embargada graças à liberação de outra vultuosa quantia, desta vez em dólares e duas barras de ouro.

Foi somente com o retorno dela que finalmente se sentaram para conversar, desta vez num diálogo iniciado e finalizado por Célia, que falou por minutos ininterruptos, contando com a integral audiência da esposa. Na conversa, revelou ter conhecido Miriá por acaso, disse que os encontros eram em sua casa por uma questão de praticidade, apenas, e por algum motivo fez questão de mostrar a cópia da chave, que ganhou da amante com a alegação de que assim agilizaria sua entrada no prédio. Em sua própria defesa, Célia alegou que não havia revelado nada sobre o assunto porque os dias estavam corridos para a esposa e porque não era uma exigência entre elas esse tipo de revelação.

Ao ser questionada se no acordo de arranjar uma amante também estavam valendo encontros permanentes e constantes com a mesma mulher, por meses, agora se sabia oficialmente, Célia apenas desconversou e mudou o rumo da conversa, sem se importar com os protestos de Bruna, que no caso se limitaram a apenas um suspiro ruidoso e uma virada de olhos meio debochada.

Estrategicamente, Bruna não disse que já sabia, nem que perseguia Miriá, muito menos que falava disso abertamente com uma motorista de aplicativo, que no processo acabou virando sua amiga e quase investigadora particular. Bruna se fez de rogada e depois fingiu acreditar quando Célia garantiu que em breve deixaria de se encontrar com Miriá, que era só uma novidade, “fogo de palha”, como chamou. Deliberadamente decidiu não insistir porque o tom da esposa era de ofendida – mais até do que quando foi questionada, anos atrás, se tinha algo acontecendo entre ela e sua assistente (e na época já pareceu um despropósito, considerando todas as circunstâncias). Não insistiu também porque Mayara a informava dos passos de Miriá, quando estava muito ocupada para ir atrás desse assunto.

Sim, porque passado um tempo Bruna viu que estava priorizando o lado errado de sua vida. Amava a esposa, de verdade!, Célia era sua amiga de muitos anos, antes até de ser sua mulher, mas existia um amor que precedia tudo isso chamado Etur Lux. A última coisa que queria era seu pai se revirando no caixão, vindo puxar seu pé à noite, então tratou de se dedicar ao trabalho, que exigia naquele período muito de sua competência e expertise.

Passada essa época atribulada, Célia e a amante diminuíram os encontros, mas porque Miriá começou a ficar quase todos os dias presa no trabalho até tarde da noite (e Célia gostava de dormir cedo). Mas nem contava muito porque as amantes se encontravam às vezes no almoço, no cinema, ou iam até a praia só para beber água de coco.

Olhando de fora, até parecia que tinham um relacionamento relativamente estável e isso motivou Mayara a engolir todos os seus conselhos bonitinhos. Ninguém se encontra às escondidas com alguém por tanto tempo se não existir amor, mas Bruna não merecia ouvir isso, então se calava.

Sem que Bruna soubesse, seu longo relacionamento com Célia, e especialmente todas as complicações que estavam envolvidas, serviam como valiosas lições para Mayara, que nunca se cansava de aprender sobre a natureza humana e os meandros que enlaçam os relacionamentos.

No fundo, depois de ter acesso a essa história, Mayara passou até a achar que a ideia de estabelecer um limite máximo de três encontros nem era mais tão absurda assim.

– Boa noite, há quanto tempo! – cumprimenta, assim que Bruna entra em seu carro. O relógio no painel marcava 19h37 em números neons – Trabalhou até mais tarde hoje?, seu carro quebrou de novo? – Mayara emenda as perguntas, vendo a passageira afivelar o cinto de segurança no banco do carona, ao seu lado.

– Boa noite! Fui até mais tarde, sim. Deixei meu carro estacionado aí mesmo, não estou com a menor condição para dirigir – Bruna dá um suspiro, abrindo o vidro ao acionar um botão. Era perigoso, mas queria sentir um pouco a brisa fresca da noite para quem sabe espairecer – Só quero ir para casa e me esquecer dessa noite, dessa vida...

– Xi, problemas no trabalho de novo? – Mayara questiona, com sua usual discrição, avançando pelas ruas escuras que ladeavam o escritório central da Etur Lux. Ameaçou levar a mão até o rádio para abaixar o som, mas Bruna fez um gesto para que ela mantivesse o volume. Tocava The Cars, na Rádio Antena 1.

– É, aquilo de sempre – ela responde, depois de um tempo, sem especificar na resposta ao que se referia exatamente. Apoiou a bolsa com o notebook entre os pés e manteve o rosto virado para o lado de fora, então era impossível ler suas expressões – É aquela máxima: nada que já está ruim que não possa piorar.

– Hum, me parece mal... – Mayara resmunga.

Ela estava com os olhos focados no trânsito e torceu a boca por um breve instante, sem imaginar o relato que ouviria. Tamborilou os dedos no volante sem perceber, desligando na sequência uma chamada que fez o celular, preso no painel, piscar e iluminar todo o interior do automóvel por um momento.

– Sim, é mal. Pode ter certeza de que é péssimo – Bruna finalmente olha para ela. Achou a moça diferente, parecia ter cortado o cabelo, mas não estava com cabeça para falar de amenidades – Já ouviu aquela história de alguém que mexeu onde não devia?

– No sentido de “cutucar a onça com a vara curta”? – Mayara tinha os olhos divertidos, mas tratou de olhar de novo para a frente, antes de esbarrar no olhar pesado da mulher ao seu lado.

– Não, não. No sentido de invadir a privacidade alheia, mesmo, de ler conversa de WhatsApp, esse tipo de coisa.

– Ah – Mayara responde, a voz saindo do fundo da garganta, junto com uma respiração mais pesada. Suspirou no breve instante em que se manteve quieta – Sim, já ouvi várias histórias nesse sentido – agora ela riu – Todas horríveis, com péssimos finais.

– Pois é – Bruna retruca, cruzando os braços em cima do peito, numa postura defensiva.

– Você invadiu a privacidade da sua esposa?, leu alguma conversa dela?

– Não, eu fiz pior: fui lá e li duas conversas. Porque como diria meu pai, “desgraça pouca é bobagem”. Então já meti, de uma só vez, os dois pés na lama. Se é para tombar, chafurdei – completa, criando sua própria versão para o bordão.

– Hum – Mayara faz uma careta, parando num semáforo fechado.

Bruna se cala de repente e enquanto aguardava a continuação, a motorista abaixa o volume do rádio porque Roxette surge cantando numa animação desproporcional com o momento e a música atrapalha a breve organização de seus pensamentos. Tomava sempre o máximo de cuidado para não parecer estar julgando ninguém, especialmente Bruna.

– Não foi de propósito – a mulher se justifica, enfim, balançando a cabeça, quando voltam a acelerar após o semáforo abrir – Digo, não foi nada premeditado, não planejei ser invasiva e nem ler nada. Eu só fui ver a agenda da Célia, ao ligar o computador dela uma coisa acabou levando à outra, enfim.

– Sei – ela diz, mas não parecia saber. Porque realmente não sabia e também porque a explicação de Bruna foi extremamente evasiva.

– Vai ter um congresso, uma espécie de convenção no final do mês, com uns figurões importantes do mercado que vão palestrar sobre sustentabilidade. Com muito custo, mas totalmente dentro das regras permitidas pelo jogo de influência, consegui que o nosso resort sediasse o evento. Aquele, sim – Bruna diz, sem que Mayara se manifestasse – O resort envolvido no escândalo, esse mesmo... – complementa, num tom mais baixo, combinando com os braços que caíram em direção ao colo, meio derrotados – Inicialmente a Célia ia sozinha, mas aí eu decidi ir junto... só que quis fazer uma surpresa. Que só daria certo se antes eu dissesse que a ida dela tinha sido cancelada.

– Hum – Mayara volta a resmungar e faz outra careta. Histórias assim nunca acabavam bem e essa já tinha o spoiler de saberem que havia um terceiro elemento no casamento entre as duas mulheres, então em boa coisa obviamente que não poderia dar.

– Eu fico numa situação complicada porque é a Miriá de um lado e a Marta de outro! – a voz de Bruna saiu um pouco fina. Pareceu estar no limiar do choro.

– A Marta? – Mayara estava confusa, ao encará-la. Não esperava por esse desvio na narrativa – Você já não tinha descartado essa história?

– Tinha – Bruna suspira e olha para o teto do carro. Puxou o que pareceu ser um tufinho de pelo de gato – A Célia originalmente ia viajar com a Marta. A assistente iria junto, caso ela fosse neste evento.

– Sim, mas e aí?

– Aí que cancelei a passagem da Marta, logo que decidi aproveitar a ocasião para descansar, e mantive a passagem da Célia. A ideia era depois da convenção emendar umas férias... tenho trabalhado direto, ando me sentindo muito cansada... – Bruna pareceu só pensar em voz alta e deu outro suspiro ruidoso – Este resort é envolvido em tanta polêmica, me pareceu propício, sei lá. Aí decidi hoje que seria justo avisar à Célia dos meus planos, até porque ela teria que ficar alguns dias longe do escritório, pelo menos uma semana, para valer a pena.

– Certo. Porque é longe, né. Você disse que para chegar em Bonito precisa desembarcar em Campo Grande, não é isso? – Mayara fala, porque Bruna se manteve calada por vários segundos. Seu comentário foi apenas um estímulo para que ela retomasse a conversa.

– É, e o lugar é maravilhoso, ficar menos que uma semana seria até um pecado – Bruna volta a suspirar – Enfim... Hoje eu tive um dia muito cheio, mil pepinos para resolver... Quando fui até sala dela, umas cinco e pouco, poque só consegui me liberar no fim da tarde, ela já tinha saído, já tinha ido embora. A Célia nunca sai mais cedo. Nem na época da crise lá de meia-idade ela deixava o trabalho antes do horário. Nem quando conheceu a Miriá, lembra?

– Ela saiu mais cedo do trabalho com a Marta? – Mayara ainda estava tentando entender em que parte dessa história a assistente entrava.

– Oh, não. Não, não – Bruna repete, balançando a cabeça com veemência, de uma maneira um pouco exagerada – A Marta estava lá, parecendo um vaso, sentada atrás do computador. Não duvido nada que estivesse jogando paciência. Quando perguntei, disse que não sabia onde minha esposa tinha ido, mas aposto que é mentira. Víbora do jeito que é... Aí a dispensei e a mandei embora.

– Você demitiu a Marta? – Mayara pareceu sinceramente surpresa – Sério?

– Não – Bruna quase riu. Se não tivesse contido, muito possivelmente teria saído uma risada daquelas bem maquiavélicas, típicas de vilã – Nossa, seria maravilhoso demiti-la, mandá-la para a puta que pariu, para a casa do caralho!, mas não. Ainda não – ela complementa rápido, levantando um dedo no escuro, como se firmasse algum compromisso secreto – Não sei ainda o que vou fazer com a Marta. Nem o que vou fazer com a Célia. E com a Miriá... – sua voz sai mais fraca no final da frase – Eu mandei a Marta para casa, só. A chefe não estava lá, o que a assistente ficaria fazendo sozinha? Cumprindo hora, gastando energia, jogando Freecell? Não tem nem cabimento... Falei que ela podia ir, esperei ela sair e fui ver a agenda da Célia. No computador, sabe?

– Sei.

– O WhatsApp web agora fica logado no computador o tempo todo – Bruna diz. O comentário pareceu inocente, mas era claro que tinha relação com seu relato – Não precisa mais daquele esquema todo de validação, de ter que ler um código via celular para acessar, não. Nada disso. Você clica lá e no próprio navegador já está salvo. Não gera nem uma notificação, nada.

– É, fiquei sabendo – Mayara responde, fazendo uma curva à esquerda, suavemente.

A avenida que se apresentou à frente delas estava inteira salpicada de faróis vermelhos, com diversos carros parados no trânsito, absolutamente congestionado. Mayara tomou o cuidado de virar o volante em direção à guia, as levando mais para o canto, para não correrem o risco de serem atropeladas por nenhum motoqueiro. Então fez um gesto para Bruna e fechou a janela, ligando o ar-condicionado na sequência, ao observar uma movimentação suspeita mais adiante, de dois homens que caminhavam entre os veículos parados, supostamente vendendo alguma coisa.

– Com essa última atualização, diz que dá até para fazer o download das conversas, um perigo – Mayara continua, atenta a tudo o que se passava à sua volta, mas também bem distante dali, pensando em todas as privacidades que estavam em risco por conta de conversas que agora podem ser facilmente devassadas por quem tenha um mínimo de acesso.

– Ah, isso eu não sabia – Bruna pareceu arquitetar algo, pois ficou quase um minuto sem dizer nada, depois de ouvir o comentário. Quando voltou a falar, sua voz veio toda carregada de mágoa e ressentimento – Sem querer, acabei lendo que tão logo eu “cancelei” a viagem de Célia no fim do mês, ela já estava marcando de dormir com a amante. Dormir, Mayara!, você acredita? Claro que não seria naquele apartamento imundo dela! A Célia não dorme fora de casa por nada desse mundo!, acredite: eu tentei, mil vezes ao longo desses anos. Nossa, mas achei de uma audácia!, levar vagabunda para dormir na minha cama! – Bruna foi emendando sua fala, como se estivesse munida de uma metralhadora carregada de palavras.

– Elas combinaram isso?

– Não combinaram, mas falaram a respeito, o que acaba sendo a mesma coisa, convenhamos. Muita cara de pau, achei! A viagem aconteceria bem no período que vai ter uma tal festa em comemoração ao aniversário lá da agência que a Miriá trabalha, então não viajar seria justamente a liberação para isso tudo acontecer. Aposto que foi por isso que a Célia não insistiu em ir ao evento, quando eu disse que iria em seu lugar. Ela está de olho nessa festa!

– Sei – e desta vez, Mayara sabia mesmo. Recentemente havia se encontrado com Rita e na ocasião foi convidada para o evento. Mas não disse nada porque, até ali, nem havia revelado para Bruna o fato de conhecer Miriá de vista, pois aí teria que entrar no mérito de sua relação com Rita, que nem era exatamente uma relação.

– Ao que parece, a festa vai ser temática, uma coisa meio “baile a fantasia”. A Célia sugeriu, provavelmente por isso, de elas irem juntas. Célia e Miriá. Com o anonimato das máscaras não seria mesmo nada muito difícil de se gerenciar, mesmo que o evento em questão vá acontecer no restaurante da minha amiga! Humilhação completa! – Bruna parecia um animal ferido – Mas aí, não satisfeita, a Célia também propôs de dormirem juntas – seu tom agora foi de total pesar – O plano era esse: fazerem papel de casal em público e depois dormirem de conchinha. Que chacota.  

– E o que você pretende fazer? – Mayara pergunta, vendo os olhos de sua interlocutora brilharem no escuro – Ainda não entendi a treta com a Marta nessa história toda.

– Não sei ainda o que vou fazer, são tantas possibilidades! Posso me vingar de tantas formas!, tantas, tantas! – Bruna repete. Notavelmente estava bastante zangada – A treta com a Marta você vai entender lá no final, quando eu souber de que forma vou interferir nessa mudança de plano. Me aguarde!


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