O acaso (conto) Parte II

Essa história começa aqui: O acaso


Muita gente não gosta de segunda-feira. O primeiro dia da semana provavelmente é o menos quisto de todos, considerando que há até quem experimente uma espécie de depressão, já na noite de domingo, cujo gatilho é a musiquinha do Fantástico. O som de certa forma simboliza o término do final de semana e o início da sequência de cinco longos dias úteis, permeados de labutas de todos os tipos. Quer dizer, isso para quem “bate cartão” apenas de segunda a sexta.

Mayara simplesmente amava segunda-feira, seu único dia de folga na semana e um dos mais corridos, justamente por isso. Era quando ela saía para resolver todos os pepinos, principalmente os relacionados ao carro, seu instrumento de trabalho. Hoje mesmo sua primeira providência foi lhe dar um belo de um banho, embora não fosse seu dia oficial de limpeza (geralmente terça e sexta), mas precisaram parar no posto antes de resolverem qualquer outro BO.

Mafalda era o nome do carro e Mayara a tinha como sua colega de trabalho – para não dizer “sua amiga”, quase confidente. Já se iam seis anos ganhando a vida oficialmente como motorista e deste total, dois tinham sido exclusivos na companhia de Mafalda, que ia com ela para cima e para baixo, ao sabor dos ventos, traduzidos em passageiros com compromissos nem sempre revelados, que definiam seus destinos a cada chamado.

A ideia hoje era sair do lava rápido do posto e passar no banco para depositar o dinheiro das corridas da semana, porque ainda tinha quem pagasse em espécie. Como precaução, Mayara guardava todas as cédulas numa bolsinha dentro do porta-malas, debaixo do estepe, bem escondido. Depois, passaria no mercado porque já estava quase sem nada na geladeira e antes de voltar para casa, pararia numa loja de materiais para construção lá na Marginal para comprar uma resistência para o chuveiro, queimado na tarde anterior.

Mas assim como ocorria em sua vida diária, nem nas folgas Mayara tinha pleno domínio de seus roteiros. Constatou isso quando se viu parada na fila da lojinha, do outro lado de onde Mafalda estava sendo higienizada, depois de depositar o dinheiro no banco, ao lado do posto. Achou propício já comprar a resistência e por um breve instante se perguntou se voltar direto para casa, mais tarde, implicaria alguma mudança em sua vida. Não deu sequência ao pensamento porque chegou sua vez de pagar e se distraiu com a conversa breve que teve com a caixa, uma morena bonita de sorriso cativante. “Esfriou, né?”. Aquele papo bem clichê.

A mudança de planos a fez pegar um caminho diferente na volta, um atalho que a faria chegar na Marginal mais adiante, depois da loja onde inicialmente pararia. Isso até a faria chegar em casa mais rápido, mesmo que parecesse contraditório, considerando que o caminho envolvia um trecho da Avenida Rebouças que era sempre engarrafada. Antes de se decidir por completo, puxou a manga da camisa para olhar no relógio, preso no pulso direito de maneira estratégica. O que a convenceu a seguir com o plano foi o fato de ainda ser horário de almoço. Imaginou que a avenida estaria minimamente esvaziada porque o movimento maior agora se concentrava nas ruas mais acima, sentido Pinheiros, onde ficam os restaurantes.

Mafalda estava com um perfume ótimo, bem diferente de quando amanheceu, vomitada por um estranho. Mayara não teve muito o que fazer na noite anterior, a não ser jogar água no tapete, já dentro da garagem do prédio, numa vã tentativa de colaborar em algo. Entretanto, a sujeira maior estava no encosto do banco, que ela não teve como limpar àquela hora, o que a fez ir dormir se sentindo um pouco derrotada. Nessas horas tinha vontade de morar em casa, com garagem e mangueira. Se não fosse tão perigoso, Mafalda não teria dormido suja.

O carro, parecendo brincar com a cena, antes de desligar tocou no rádio “Dom de iludir”, na voz da Gal Gosta, e Mayara subiu cantarolando no elevador. “Não me venha falar na malícia de toda mulher... Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é...”. Só ela mesma sabia de seus dramas e por isso Mayara deu o comando para a canção tocar de novo, horas depois, quando listava mentalmente as coisas que precisava comprar no supermercado, sua última parada.

Estava aguardando o sinal abrir, espremida entre duas motos, distraída, refletindo que sua ex tinha o dom de iludir. Feiticeira que era, tinha dobrado Mayara tantas vezes que ela decidiu mudar o pensamento apenas para não associar Gal à Cibele, porque seria um insulto à Gal. Foi quando viu uma moça ser atropelada na esquina, seu corpo arremessado na praça por uma bicicleta, que seguiu rua acima. Quem avançou o semáforo, ainda vermelho, e estacionou fora da faixa, foi Mafalda. Mayara só decidiu esperar pela tia da jovem acidentada, instantes mais tarde, quando já estavam nas Clínicas.

Em partes, além da reação natural de ajudar alguém em situação vulnerável, enquanto estava na calçada aguardando a chegada de Tácia, o que Mayara pensava é que tudo parecia ter ocorrido para que ela se encontrasse com Taís, de alguma forma. Não conseguiu pensar em nenhuma outra circunstância que as fizesse se esbarrarem, depois de tanto tempo, do que um acidente de trânsito, considerando os ofícios delas duas. Ficou aliviada por ter sido apenas a acompanhante e não a acidentada.

“Sem coincidências, Mayara”, ela se disse, em voz alta, num breve momento em que permaneceu sozinha, próxima ao poste, que mesmo durante o dia estava aceso. Às vezes era bom falar com ela mesma em voz alta e pelo nome, para que se convencesse dos acasos variados que permeavam seus dias.

Até agora, nenhuma coincidência tinha trazido para perto alguém tão agradável quanto Taís. Por que mesmo tinham parado de se falar?

Tácia chegou com um perfume suave e uma presença imponente. Tinha olhos sagazes, parecia uma mulher experiente, vivida, do tipo que tem muitas histórias. Sem dúvida nenhuma se tratava de ótima companhia para um café, bem-vindo para tirar da boca o gosto do cafezinho ruim vendido na banca em frente ao hospital. Mas Mayara tinha outro dever a cumprir e Mafalda avançava o caminho sentido Barra Funda como se já conhecesse a Agência Rubi.

Ah, foi por causa de Cibele, ela se lembrou. A ex provocou a ruptura na boa relação que Mayara e Taís tinham, de anos, já, sempre exclusivamente no campo da amizade. Jamais avançaram nenhuma linha desse ponto. Não que Taís não merecesse, ao contrário. O problema é que nunca coincidiam suas solteirices, sempre estavam namorando outras pessoas quando eventualmente poderiam se envolver, assim, de maneira romântica. Se acostumaram então a serem boas amigas, daquelas que se veem ocasionalmente, mas que parece que foi ontem. Tinham química. Cibele tinha ciúmes.

Afastou o pensamento porque avistou Rita e Preta, na calçada da agência, Preta amparada pelo segurança engravatado. Mayara parou o carro meio de lado, com um pneu em cima da calçada, e ajudou a embarcar a mulher, que estava com o corpo mole.

Rita a olhou de um jeito curioso ao sentar-se no banco da frente, quando ouviu que Mafalda tocava Bethânia, “Olhos nos Olhos”. Mayara não quis desligar para não ser desrespeitosa, mas abaixou o volume porque no banco de trás Preta se apresentava com um comportamento estranho, respirando de maneira ruidosa, gemendo como se sentisse dor.

– Não está com frio? – Rita pergunta, passando a ponta do dedo na pele do braço de Mayara, que se arrepiou com o toque.

Rita tinha um olhar diferente quando estava sóbria, Mayara definitivamente a preferia assim. Era uma mulher sagaz e sabia ser provocativa. Prova disso era o sorriso malicioso que mantinha no rosto, por um momento parecendo se esquecer da amiga, logo atrás.

– Estou com frio, mas deixei minha camisa com uma moça... – Mayara responde, mas se cala quando Preta geme mais alto – O que houve, afinal? – ela aponta com o polegar para o banco traseiro.

– Não sei, um mal súbito – Rita levanta os ombros e dá uma olhada para a colega – Não vai ser nenhuma surpresa se for algo relacionado a estresse. As pessoas à minha volta estão adoecendo, a Preta, minha chefe... acho que a vida não deveria se resumir a bater cartão, pagar boleto e se embebedar nas horas vagas – complementa, como se pensasse em voz alta – Deixou a blusa com uma moça, hein? – emenda, voltando com o sorriso safado e o toque suave no braço de Mayara – Deve ter valido, fez você ficar com frio. Olha aí, toda arrepiadinha.

                Rita deu uma risada alta quando Mayara pareceu ficar sem graça diante do comentário, mas se conteve logo em seguida, olhando para Preta por cima do ombro.

– Eu socorri uma moça que foi atropelada – Mayara responde, quando ganha a audiência de Rita, que ergueu as sobrancelhas ao ouvir aquilo – Pois é, mas acho que não foi nada grave. Bom, espero que não tenha sido... Ela está no hospital agora, estou aguardando notícias.  

– Mayara, a socorrista – Rita sorriu para ela, sem saber o que a menção provocava na mulher ao lado.

– Só a acompanhei na ambulância – ela desconversa.

– Sei – Rita retruca, quando o carro para na entrada da emergência – Se eu te emprestar uma blusa você espera só eu dar entrada com ela? Por favor – insiste, vendo que a motorista quase fez uma careta.

– Tá, vai – Mayara diz depois de um tempo, ao pegar o casaco que Rita tirou de dentro da mochila – Vou parar no estacionamento, encontro com você aqui. Arranja um café, Ritinha.

– Arranjo dois, linda – Rita responde, piscando para ela.

                Rita realmente a encontrou, 15 minutos depois, com dois copos de café, um em cada mão. Mayara a aguardava na calçada com os braços cruzados, mais por costume, porque o casaco cinza flanelado com o cheiro de Rita era bem eficiente. Até para esquentar.

– Toma, seu café – ela lhe entrega o copo mole e fumegante – Grata por nos trazer aqui e por me esperar – Rita encosta o copo no dela, como se brindasse – Faço questão de pagar todos os custos, a viagem, o estacionamento e os cafés. Eu, não. A Rubi – se corrige, rápida – Vai ter uma festa daqui uns dias, se quiser te coloco lá dentro.

– Não sou de festas, mas valeu – Mayara sorri para ela. Rita a cativava de alguma maneira. Consideraria a proposta, por ela.

– Cê que sabe, é num restaurante famosinho, a dona é lésbica – Rita comenta, acompanhando-a em direção ao estacionamento, logo ao lado – Se chama O Bistrô, conhece?

– Bistrô... – Mayara repete.

Entregou o tíquete do estacionamento para o manobrista e bebericou um gole do café. Era de péssima qualidade, quis jogar fora, mas contraditoriamente bebeu todo o restante de uma só vez. Se lembrou de Tácia, do café não tomado com a tia de Nicole, e pensou em Nicole, a treinadora de São Silvestre atropelada por uma bicicleta.

Puxou o celular para ver se havia alguma mensagem. Não havia nenhuma.

– O Bistrô – Mayara repete, agora com mais certeza no tom – Fica ali perto da Paulista, né? Um restaurante bonito, está sempre cheio – ela entrega o copo de café vazio ao funcionário que lhe entregava a chave do carro, que reluzia à sua frente. Passou o dedo no capô, limpinho.

– Isso, um que tem várias plantas na fachada – Rita diz, embarcando e afivelando o cinto de segurança. Ainda não estava claro se ela voltaria para o trabalho.

– Sei. Conheço quem fez o projeto paisagístico. Quer dizer, conheço a namorada de quem fez, melhor dizendo.

Ao se lembrar de Gisele, Mayara lembrou também que Gi foi quem a levou uma vez até O Bistrô, no dia em que a pediu para irem até o restaurante, para ela devolver as coisas da ex. Mas isso bem antes de Gisele começar a namorar Alessandra.

– Dona Mayara e seus contatos – Rita ri.

– Uhum, altos contatos – Mayara resmunga. Só ao parar no semáforo algumas quadras adiante é que notou que estava iniciando o trajeto de casa, sem perceber – Onde você quer que eu te deixe?

– Credo, é assim? – Rita se fez de ofendida, mas riu – Não sei, não pensei bem para onde ir... Não vou voltar para a agência, sem cabeça para o trabalho – ela descarta, movendo uma das mãos, mas com a outra pegou o celular, parecendo verificar se alguma mensagem não lida a faria mudar de ideia. Pelo visto, não – Vou fazer hora até o horário de visita da Preta, não sei para onde posso ir...

– Sei – Mayara responde, se perguntando se deveria encostar ou até mesmo parar em algum lugar enquanto a mulher pensava.

– Você ia buscar uma blusa e depois trabalhar? Vai em algum lugar? – Rita questiona, no rosto uma expressão de cachorro abandonado em dia de mudança.

– Hoje é minha folga – Mayara responde e na breve olhada que deu, viu o rosto de Rita se transformar – Preciso ir ao mercado, era para onde eu ia, antes de me agasalhar em casa.

– Que mulher! – Rita falou, em tom diferente. Alisou mais uma vez o braço de Mayara, agora coberto – Deixa eu ir com você? É sério! – ela se antecipou, quando Mayara a encarou com uma careta – Estou à toa, deixa eu te acompanhar nas suas compras.

– Até parece, Ritinha – Mayara rebate, sem nem pensar na proposta. Onde já se viu?

– Vai, boba. Depois eu me viro, você nem precisa me levar embora.

                Mayara a encara por um instante, aproveitando a pausa do trânsito. Rita sorria para ela, daquele jeito que a fazia ter vontade de cancelar as compras e só levá-la para casa, deitá-la nua em sua cama e lambê-la inteira, a tarde toda.

– Ou cancelamos o rolê do mercado e vamos para a sua casa – Rita propõe, maliciosa, como se lesse os pensamentos dela.

– Minha casa? – Mayara repete, pensando brevemente nas condições do apartamento, quando saiu mais cedo. Mantinha tudo sempre organizado, mas o problema é que não morava sozinha e os dois meliantes que dividiam teto com ela não respeitavam muito as regras da boa convivência.

– Sua casa, sim – Rita dá uma mordidinha no lóbulo de sua orelha, arrancando um gemido de Mayara. Sentiu imediatamente a pele se arrepiar debaixo da roupa – Hum, que cheiro bom que você tem aqui...

– Ritinha...

Mayara geme de novo, mas não diz mais nada. Rita se afastou porque alguém atrás buzinou, mas continuou a provocação, agora afiando as unhas curtas no jeans em cima da coxa. Sua atenção estava inteiramente focada na mulher dirigindo e ela nem via o trajeto que Mayara fazia de maneira quase automática. Mesmo com a missão de trocar os pés de pedal e mudar as marchas, ela abriu um pouco as pernas porque eventualmente os dedos de Rita esbarravam no meio.

Rita só voltou a olhar para fora quando o carro deu uma leve inclinada, ao subir a rampa da garagem do prédio, localizado ela nem sabia onde. Os pneus cantaram conforme avançaram até a vaga, bem à esquerda, e estacionaram em uma baliza de duas voltas.

O saguão estava quase todo vazio e a porta do elevador ficava meio escondida, ainda que Mayara tenha caminhado certeira até lá, segurando firme a mão de Rita. Deu um beijo nela depois de apertar o botão de número 9 no elevador e na subida torceu para que Pix e Darthinho não tivessem feito muita bagunça.

– Você tem gato! – Rita fala, assim que Mayara abre a porta do apartamento. Sua fala pareceu uma pergunta, mas ela afirmou, dando um espirro. E depois outro, que se emendou a um terceiro.

– Você tem alergia! – Mayara pareceu decepcionada, a boca um pouco retorcida em um dos cantos – Eu tenho dois gatos...

Ela fez menção de se abaixar e puxar um dos bichos, que entrava na sala com um caminhar sereno, como se desfilasse em passarela, mas desistiu. Puxou a mochila de Rita e a apoiou no sofá, provocando a curiosidade no gato e dois espirros na mulher.  

– Você aceita, sei lá, um antialérgico? – Mayara pergunta.

Não esperou pela resposta e deixou Rita na sala, com Darthinho, o gato mais comportado do bairro, que seguia indiferente às reações que provocava, todo dono do lugar. Mayara retornou depois de um breve instante, segurando uma caixinha com estampa de unicórnio e foi tirando de dentro vários remédios, diversas cartelas com comprimidos pela metade.

Rita tampou o nariz com a gola da camiseta, secando na manga as lágrimas que caíam involuntariamente. Não passou pela sua cabeça, em nenhum momento, dar meia-volta e sair. Estava adorando a oportunidade de conhecer a casa de Mayara, que tinha o cheiro dela. Deu pra sentir, antes que suas narinas se entupissem, ao respirar pelos de gato. Por isso, tomaria qualquer comprimido que ela oferecesse, se junto houvesse a promessa de conseguir aproveitar aquele encontro, tão inesperado, em plena segunda-feira.

Pegou o copo comprido com água até a metade que Mayara ofereceu e engoliu o remédio sem nem ver sua cor. Embora fosse só a terceira vez que se viam, Mayara não parecia ser do tipo que provocava ou se aproveitava de vulnerabilidades alheias. Ao contrário, era tão cortês que o primeiro encontro delas, de verdade, só aconteceu quando Rita estava sóbria, no dia seguinte de quando se conheceram.

Manteve os olhos fechados e ouviu Mayara abrindo as janelas. Sentiu um vento gelado invadir de repente o apartamento, vindo também por correntes liberadas pela abertura de janelas lá para dentro, que rangeram com o movimento dela.

Demorou pouco tempo até que conseguisse respirar direito novamente e Rita suspirou fazendo um ruído quando sentiu de novo o cheiro de Mayara – e direto da fonte, sua casa. Viu que a caixinha de remédio permanecia por ali e só então reparou que a estampa continha apenas um chifre de unicórnio.

Notou o celular de Mayara bem do lado, quando o aparelho acendeu a tela, e longe de querer ser indelicada ou bisbilhoteira, sem querer acabou reparando que tinha um monte de mensagem não lida, de contatos distintos. Não deu tempo de ver se era tudo mulher porque logo Mayara voltou para a sala, tirando o moletom que lhe caía tão bem, deixando à mostra seus braços lapidados pela rotina e um decote que parecia mais chamativo agora.  

– Você parece melhor. Está melhor? – Mayara pergunta, rapidamente. Puxou a caixinha de remédio para o colo, apoiando o celular em cima, quando sentou no sofá. A tela acendendo não chamou sua atenção, pois manteve os olhos em Rita – Não tenho muito o que te oferecer, mas você aceita um café? Quer mais água? Acho que ainda tenho chá.

– Já melhorei, sim. Não quero nada, agradeço. Não imaginei que tivesse gatos, me surpreendi... Digo, não senti o cheiro em você antes e é um cheiro que meu nariz sente de longe! – Rita senta ao seu lado, parecendo um pouco receosa.

– É, costumo sempre manter os terroristas bem longe das minhas roupas – Mayara sorri, porque seu comentário despertou um miado no gato preto e peludo – Especialmente no irmão desse daí, que foi tirado das ruas, mas as ruas não saíram dele. Dois trombadinhas – ela manda um beijinho para o gato, que ainda parecia ofendido.

– E o outro?, cadê? – Rita só então reparou na arrumação da sala de Mayara, que tinha poucos móveis. Nas paredes, em vez de quadros havia nichos de madeira e pontes interligando as caixas, penduradas literalmente até o teto.

– Não sei. Está escondido em algum lugar. Ele não é muito acostumado com visitas.

                Rita ergue uma das sobrancelhas, mas Mayara não vê.

– ... agora é que ele está se acostumando comigo – Mayara continua, alheia às observações de Rita, que já estava inteiramente curada da crise alérgica. Sentia um relaxamento muito gostoso, que amolecia todo o seu corpo e por isso se recostou no sofá – Pobrezinho, resgatei o bichinho de dentro do bueiro, no começo do ano.

– Você... tirou um gato do bueiro? – Rita pergunta, com a voz mole. Não gostava de felinos por motivos óbvios, mas achou o comentário fofo. Mayara era fofa.

– Uhum, mas não estava no fundo. Eu tive que deitar no chão para enfiar o braço lá dentro, mas consegui puxá-lo. Era filhotinho!

– Você deitou na rua, na sarjeta, e tirou um filhote de gato de dentro de um bueiro? Tentei mentalizar a cena, mas não consegui – Rita riu antes de beijá-la.

– Ué – Mayara estava com os olhos brilhando quando pausaram o beijo, linda! Jogou a franja para o lado antes de continuar a falar – Ia deixar o bicho lá? Para ele morrer?

– Agora entendi seu desprendimento em salvar uma estranha na rua e deixar com ela uma roupa sua – Rita tinha a voz pastosa e os olhos eram só dois triscos entreabertos. Não à toa; sonolência era um dos efeitos colaterais do antialérgico que tomou.

– Não sei quanto tempo levaria até que alguém chamasse a ambulância para a menina atropelada. Tampouco sei se o Pix sobreviveria dentro daquele bueiro cheio de lama.

– Pix – Rita repete, os olhos se fechando de vez. Tinha nos lábios um sorriso que foi se desmanchando, segundo a segundo.

– Vem cá, não dorme aqui não – Mayara a puxa pela mão, sem que Rita oferecesse algum tipo de resistência.

                As duas foram para o cômodo que, na opinião de Rita, era o mais cheiroso do apartamento. O quarto de Mayara era simplesmente de onde de fato vinha o cheiro dela, mas Rita não procurou por seu perfume e nem fez nenhum comentário porque ao reconhecer a cama, na penumbra provocada pela veneziana fechada, tudo o que fez foi se atirar ali, abraçando o travesseiro de fronha clara que tinha o aroma do cabelo dela.

                Mayara a cobriu com uma manta verde e antes de sair do quarto se certificou de que Pix não estava por ali. Não encontrou o gato, mas o fato de ele não estar visível era um bom sinal. Escondido, se mantinha longe de Rita, que já parecia dormir.

Inevitavelmente, voltou para a sala pensando que jamais poderia imaginar que um dia traria Rita à sua casa e que quando viesse, ela dormiria. Riu da situação, mas com respeito, e pegou o celular na sala antes de ir para a cozinha. Tinha roupa para lavar e também um pouco de louça dentro da pia, mas foi checar as mensagens se perguntando se a máquina de lavar roupa faria barulho suficiente para acordar Rita. Seria arriscado ir ao mercado e deixá-la sozinha em casa?

A primeira mensagem que clicou para ler foi de Nicole, que em poucas linhas agradecia de novo pelo auxílio de mais cedo e dizia estar bem, só tinha levado alguns pontos na testa. Se referiu ao acidente como “contratempo” e finalizou o texto com o pedido de se encontrarem para um café, em um local que Mayara escolhesse.

A segunda mensagem a ler foi de Tácia, que também agradecia novamente pelo socorro prestado à Nicole, igualmente repetia as informações médicas e, assim como a sobrinha, antes de se despedir escreveu sobre tomarem um café. Porém, Tácia indicou um local para o encontro, nos Jardins, e também uma data e horário, se fosse conveniente para Mayara.

Ao voltar para a lista das mensagens principais, Mayara viu que sua amiga Jackeline também tinha entrado em contato. Apostava que pelo menos metade das ligações não atendidas indicadas no sinalzinho no topo do celular era dela e já sabia o que responder antes mesmo de ler a mensagem – que apenas dizia “Nhai, cabeção?”.

– Oi, Jacke! Mana, me desculpa, não deu para ir aí, como você deve ter notado, acabei me enrolando aqui, esqueci de te avisar. Socorri uma menina que foi atropelada e isso mudou todos os meus planos. Mas ela está bem, assim como estou. Espero que você também esteja. Não deixe de me amar por isso, te amo, beijos.

                Mayara enviou o áudio e antes de sair do aplicativo, viu o que ainda poderia ser interessante, dentre as mensagens não lidas e nada pareceu merecer a sua atenção. Havia uma meia dúzia de número desconhecido falando com ela, que só mais tarde veria do que se tratava. Folgar envolvia ficar distante do celular, afinal, por pelo menos um dia. E era o que pretendia fazer, embora já tivesse trabalhado e até demais.

                Enfiou a roupa suja dentro da máquina, primeiro as escuras, e deixou enchendo antes de encostar a porta do quarto. Rita parecia embalada no sono do remédio, que Mayara já conhecia porque Cibele também era alérgica a gato e sempre que tomava o medicamento já capotava, na sequência. Era bom porque dormindo ela não reclamava de Darthinho, que sempre foi um verdadeiro lorde.

Só por isso considerou de novo a ideia de ir ao mercado e deixar Rita dormindo em seu quarto. Podia escrever um bilhete, sei lá, só para ela não se assustar, caso acordasse. Mas Mayara duvidava que ela fosse acordar pelas próximas horas, então era seguro ir e voltar, rapidinho, o mercado era próximo. Enfiou o celular no bolso da calça, escreveu o bilhete e deixou ao lado do travesseiro, antes de sair.

Como previsto, Rita não acordou. Não teve seu sono interrompido quando a máquina começou a bater a roupa sacolejante de Mayara, na hora de centrifugar, nem despertou com o pequeno caos que se instaurou de repente entre Pix e Darthinho, depois que o primeiro finalmente saiu de seu esconderijo, debaixo do sofá. Mayara voltou do mercado, arrumou todas as compras, fez faxina trocou a resistência do chuveiro, e Rita permaneceu dormindo.

Acordar pessoas estava em seu “top 10 – coisas que mais odeio”, possivelmente porque Mayara tinha ojeriza de ser acordada. Convivendo com a insônia durante muitos anos, sabia que cada cochilo valia muito, mesmo que a dorminhoca em questão não fosse ela. Em outras palavras, prezava pelo sono – inclusive o alheio e pareceu que Rita estava precisando daquilo. Não porque tivesse dificuldades para dormir, elas jamais tinham conversado a respeito; mas porque Mayara achou que Rita tinha no rosto uma expressão de pleno descanso, dava até a impressão de estar sorrindo.

Depois do banho, Mayara se deitou com cuidado ao lado de Rita, se perguntando quando uma cena do tipo tinha acontecido pela última vez. Só porque a mulher mais recente a dormir em sua cama tinha sido Cibele, afastou o pensamento ressaltando para si mesma que com Rita era diferente. Primeiro porque elas não namoravam, segundo porque nem tinham transado.

Manteve apenas o abajur aceso e puxou seu livro, que ficava estrategicamente ao lado da cama. Mas aí se perdeu nos pensamentos assim que abriu onde o marcador estava, encostando as páginas perfumadas perto do nariz. Depois se distraiu com o marcador sendo esfregado na sobrancelha sem ela nem mesmo perceber. Aí abriu como se enfim fosse ler, mas nem mesmo moveu os olhos. Não teria condições de ler naquela noite, tinha muita coisa desviando seu foco.  

A começar Rita, ressonando ao seu lado, dormindo numa tranquilidade pacífica, bem distante do perigo que ela, no fundo, representava. Mulher que determina limite de encontros, como Rita, que no caso eram três, no mínimo é insegura. Claramente com defeito no quesito se relacionar, mas igualmente insegura. Cilada, Bino!

Depois, pensou em Tácia, a tia bonitona da moça atropelada. Não foi só impressão o fato de que ela parecia interessada em algo além do café, oferecido de maneira até meio imposta. Mayara gostava de mulheres assim, metidas a dominadoras. Achava um tesão, embora pudesse se mostrar cansativo com o tempo. Disso, seu pensamento rumou facilmente para Nicole e desejou que ela estivesse bem.

Por fim, quando o livro já estava apoiado todo aberto em cima do peito, Mayara se lembrou de Taís. Que coincidência encontrar com ela hoje! Taís não estava em seu radar há tanto tempo! Estaria namorando? Se não estivesse, e eventualmente se envolvessem, que tipo de relacionamento teriam? Mayara sabia o quão problemático era se envolver com alguém, seus poucos namoros tinham sido bastante conturbados e desgastantes, em partes por causa dela, do seu trabalho. Mas Taís trabalhava em horários diferenciados também e, ao que se lembrava, em mais de um emprego.

“Que bobeira, pensando em namorar alguém que encontrou por acaso na rua”, Mayara pensou, mas no mesmo instante outra voz sua já dizia “Taís está tão linda!”.       

Desistiu de ler porque definitivamente estava sem cabeça para isso e apoiou o livro de volta ao mesmo lugar onde guardava todas as noites – nas noites que lia e nas que não lia também, que eram a maioria. Mayara se deixava levar facilmente pelos pensamentos, deitar era quase um sinônimo de organizar os pensamentos e os eventos do dia, numa espécie de faxina mental.

 Mas nesta noite em específico, Mayara estava mais dispersa do que de costume, talvez porque tinha passado o dia inteiro sem conversar com a melhor amiga, que provavelmente estava aborrecida com ela, mas principalmente porque Rita estava ali. Dormindo de maneira inofensiva, é verdade, mas presente ainda assim, deitada em sua cama. Teria ligado para Jackeline, até para falarem disso, mas a ligação acabaria despertando Rita e no horário mais impróprio: a hora de dormir.

Mayara apagou a luz, bloqueando todos os pensamentos que a faziam se lembrar de que havia mais gente em sua cama. Teve que lutar contra a sensação ruim de ter sua privacidade invadida, mesmo por alguém como Rita, com quem tinha minimamente uma intimidade. Tentou se lembrar se Cibele sempre dormia tão logo após tomar o remédio, mas não conseguiu resgatar da memória. Talvez porque demorasse mais, talvez porque pensar em Cibele estava saturando e aí Mayara já estava boicotando as memórias que a envolviam.

Já prestes a pegar no sono, sentiu falta dos gatos junto com ela. Ronronar de gato é eficaz contra insônia, decerto Mayara dormiria se um dos dois se encostasse nela, mas ambos estavam bem arredios, nitidamente incomodados com a presença de Rita. Pegou no sono, finalmente, concluindo que estava ficando tão bicho do mato quanto Darthinho e Pix.

Foi no decorrer da noite que as duas se encaixaram, tanto Mayara quanto Rita ainda dormindo. Naturalmente uma das duas se virou e a outra se encaixou numa conchinha perfeita, naquelas que são tão quentinhas e aconchegantes que se tornam irresistíveis e o sono, presa fácil. Mantiveram a sincronia a cada virada na cama e o que mudava era que quando Rita abraçava Mayara por trás, sempre dava uma fungada em seu cangote. Ficaram nessa até o amanhecer.

Quando despertou, meio perdida sem se lembrar de onde tinha passado a noite, Rita se sentia plenamente descansada, como se tivesse tido um sono de rainha. Não era nem de perto o tipo de date que apreciava, mas ao acordar reconheceu de que havia tido uma noite reparadora de sono e descanso, na companhia da mulher mais cheirosa que ela conhecia.

Como Mayara dormia um sono profundo, Rita saiu do quarto na ponta dos pés, a manga do casaco tampando o nariz ao passar pela sala, porque a correria dos dois gatos se escondendo dela provocou espirros. Como tinha prometido, não faria Mayara levá-la embora, e no elevador se localizou de onde estava, antes de chamar o Uber.

Horas depois, quando Mayara acordou, havia um recado de Rita no verso do bilhete deixado por ela na noite anterior, perto do travesseiro. A mulher agradecia por, novamente, Mayara não ter abusado dela em um momento de fragilidade. Aquilo a fez rir.

Ao puxar o celular e finalmente conferir as mensagens deixadas de lado no dia anterior, sem ler, Mayara constatou que um dos números desconhecidos era de Taís, que num áudio todo meloso disse que estaria de folga na noite anterior, que se Mayara estivesse livre poderiam fazer alguma coisa. Teria adorado!

Ainda estava na cama pensando que, se por acaso tivesse visto a mensagem a tempo, talvez tivesse acordado Rita e a levado embora. Ou não. Agora era muito fácil apontar o que teria feito.

O fato é que bobeou na primeira chance com Taís, após o reencontro, mas ficaria bem ligeira para não comer mosca duas vezes. O acaso definitivamente não a pegaria distraída novamente, ou ela não se chamava Mayara Cintra.


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