O acaso (conto)
Essa é a segunda história da segunda temporada da Novelinha <3
Se ainda não leu a primeira, "De A a Zezé", clique aqui.
Anualmente, desde 1925, sempre no dia 31 de dezembro São Paulo sedia a
corrida de rua mais tradicional e famosa do país, a Corrida Internacional de São
Silvestre. Nesta data, dezenas de milhares de corredores, incluindo atletas
profissionais, percorrem 15 quilômetros de vias da capital paulista, fechadas
para o evento que é considerado atração turística da cidade. A prova, mista,
reúne muita gente de todo o mundo, cada pessoa com uma história. Diferentes
motivações atrás de cada laço de cadarço amarrado.
Entre essas diversas pessoas está Nicole, embora ela não seja exatamente
uma “corredora de São Silvestre” porque ainda está na etapa de treinamentos, se
preparando para a sua primeira experiência do gênero. Há três anos decidiu que
correria uma São Silvestre porque sim. Porque queria e especialmente porque
sentia que era capaz de um feito desta ordem. Acreditava que precisava
ser! Afinal, ao contrário do que muita gente imagina, esta corrida não é uma
maratona, que conta com 42 km de prova; não é nem mesmo uma meia maratona, que
precisa ter 21 km para ser considerada assim. “Quinze quilômetros eu consigo”
virou seu mantra, inclusive porque Nicole espalhou pela casa diversos post-its
com essa afirmação.
Dormia e acordava lendo os lembretes em papeizinhos coloridos, pregados
desde a cabeceira da cama até o espelho do banheiro; do puxador da geladeira à tampa
da máquina de lavar; do rack estilo vintage à porta que dava acesso à varandinha,
e também a que saía do apartamento, localizado num prédio alto de esquina, bem
no final da Avenida Ipiranga. A tela de abertura e a de descanso do notebook do
trabalho traziam a mesma mensagem.
Muito mais do que confiança em lei da atração, Nicole confiava era em si
mesma. E se tinha se determinado a correr os 15 km, então correria os 15 km.
Literalmente só dependia dela.
Então, há meses sua rotina incluía, em algum momento do dia, uma pausa
para a corrida. Ou para a caminhada, que ela intercalava dia sim, dia não, com
uma rigidez até maior do que quando corria. Seus passos eram sempre mais rápidos
quando andava, porque se exigia mais, as coxas doíam toda vez, sem falar no
joelho. Esse só entra na história para dar desgosto, mas Nicole estava longe de
ser alguém que reclamaria um dia de suas pernas. Não. Ela as amava, e era grata
por tê-las para transportá-la para lá e para cá, para cima e para baixo, principalmente
em seus treinos, antecedidos por uma quase oração. Respirando fundo aquele ar
poluído da região central de São Paulo, Nicole listava tudo a que era grata e o
primeiro agradecimento era sempre às suas pernas. Começava lá em cima, no
elevador, durava até chegar à calçada e ainda parecia pouco. Não fossem por suas
pernas, não chegaria nem ao térreo!
Seus treinos desde sempre eram feitos
em uma das ruas que mais amava, seu endereço há bastante tempo e que no seu
entendimento deveria se chamar “avenida”, mas não se chama. É Rua, da
Consolação. Seu quintal, praticamente, porque a Avenida Ipiranga desemboca justamente
na Rua da Consolação, bem na curva, do lado oposto à Praça Roosevelt. No 23º andar
de seu apartamento, Nicole tinha uma vista privilegiada da sala e outra
diferente do quarto. À noite era lindo, com tudo aceso, o movimento gerando uma
vida incessante de buzinas constantes.
Sabia que admirar cenários assim era algo tipicamente paulistano e ficava
horas debruçada na janela, vendo as pessoas pequenininhas lá embaixo, todas
apressadas não se sabe para quê. Uma de suas distrações preferidas era criar um
compromisso para cada gente que via lá de cima. Acendia um baseado e se
recostava no vidro, soprando a fumaça para dentro de casa, para nenhum vizinho
reclamar do cheiro. Perdia a noção do tempo fumando assim.
Fumava erva há bastante tempo, começou quase na mesma época que o
cigarro, cujo vício Nicole abandonou há cerca de cinco anos. Decidiu parar
quando constatou que somos todas reféns de muitas adversidades da vida, mas
igualmente responsáveis por várias outras. Não quis ser a causadora de um
agravo no futuro e sua força de vontade substituiu qualquer adesivo vendido em
farmácia. Em partes, vinha daí a autoconfiança que movia seus dias atualmente.
Porém, deliberadamente decidiu continuar com a maconha. Porque era
viciada, sim, mas principalmente porque sentia que lhe fazia mais bem do que
mal. Ajudava no controle da ansiedade e se soubesse dosar, auxiliava até nas
crises de pânico que surgiam de repente, quando o mundo interior do nada se
calava e o silêncio servia de gatilho para o desespero.
Mas, para controlar isso, julgava que a corrida era mais eficiente do que
qualquer boa brisa. Inclusive porque corria brisada.
Calçar o tênis significava o prenúncio da sua libertação. Achava
maravilhoso poder sair de casa sozinha, ter essa graça que é a liberdade de andar, o livre ir e vir,
desimpedido de qualquer perereco de hospital, que sempre nos força a uma
invalidez triste e a uma existência dolorosa. Não à toa foi num hospital que Nicole
decidiu treinar para correr a São Silvestre, num momento ainda em que a mera
intenção parecia algo muito, muito impossível. Quase inalcançável.
Mas se tem um conceito que Nicole adotou na vida é o da persistência. Ela
se considera uma mulher extremamente persistente. Determinada até nos dias de
chuva. Focada até nas épocas em que a frente fria chega de repente, jogando a
temperatura lá no chão. Mesmo nesses tempos ela calça os dois tênis e sai. Precisa,
porque para os “15 km eu consigo” é necessário muito treino, para não passar um
mínimo de vergonha no dia da corrida.
Mas hoje treinaria por outro motivo. Depois de uma manhã inteira lutando
contra um erro num programa que estava montando, decidiu sair, pois sabia que
lá fora estaria fresco, apesar do horário, porque tinha certeza de que as
calçadas estariam vazias, devido ao fato de ainda ser horário de almoço, mas
principalmente pelo motivo de estar se sentindo estressada. E frustrada, porque
naquela batalha, o bug ganhou de nocaute. Sair de casa serviria para
apaziguar suas emoções, acalmar seus sentimentos e quem sabe na volta, com
sorte, conseguiria resolver todos os xabus sem ter que recorrer à chefe.
O clima hoje era de um dia típico de começo de junho, quando as
temperaturas oscilam ao bel prazer dos ventos mais frios que vêm dos oceanos,
que chegam em ondas quase palpáveis de tão densas. Uma terça-feira gelada, com 20
graus no sol, mas sensação térmica de uns 16oC. O céu estava azul,
mas naquele tom como se usasse algum filtro do Instagram que o deixasse meio esbranquiçado,
característico do outono. E da poluição, claro.
Na sua escala de dias, este certamente podia ser considerado como bom, meteorologicamente
falando. Ao menos foi o que Nicole pensou, no momento em que pôs seu pé direito
na calçada e respirou fundo aquele ar metropolitano, satisfeita por poder fazer
isso. Livre é quem consegue respirar! Parece pequeno, mas Nicole certamente valorizava
a livre respiração. E agradecia por isso, por esta dádiva que é ter saúde.
Sentiu seus braços se arrepiarem quase automaticamente, por causa do
vento que balançou até seu cabelo amarrado, enfiado atrás, no buraco do boné. Instintivamente
ela se abraçou, as mãos se esfregando na pele eriçada, o tronco se inclinando
levemente para a frente. O gesto fez seu Isidoro, da banca de jornal, sorrir
para ela antes de cumprimentá-la, como fazia todas as manhãs.
– Que esta
disposição nunca te falte, menina! – o homem exclama, com seu sotaque arrastado,
o cigarro queimando na ponta da boca, deixando o bigode ainda mais amarelo.
Isidoro claramente era do time dos que não gostam de frio e estava usando
uma touca de lã marrom, com um pompom branco no topo que não combinava com seu
humor azedo. Os óculos de grau quadrados estavam como sempre apoiados na beira
do nariz e ele a olhava por cima das lentes.
– É, hoje está
bem friozinho, né – Nicole responde, com um sorriso rápido, no mesmo instante
ajeitando a postura e voltando a ficar ereta.
– Sim e a
previsão é de que até o final da semana a temperatura caia mais – Isidoro
informa, com uma expressão de desgosto estampando o rosto. O português
nitidamente preferia o verão – No frio a gente não sente disposição de fazer
muitas coisas.
Nicole apenas sorri, os olhos se contraindo atras dos óculos escuros.
Definitivamente ela preferia os dias frios aos quentes, que a faziam ter
vontade de sair pelada para correr. Sempre suava muito e mais ainda nos treinos,
mesmo no inverno, mas não disse nada porque não quis esticar o papo.
Cronometrou o relógio junto com o aplicativo do celular, guardado na
pochete, que contabilizava a quantidade de passos, a quilometragem percorrida,
seus batimentos cardíacos, o ritmo médio e ainda fazia análises que geravam
mapas e gráficos coloridos que Nicole adorava ver depois. Seu pace era
de 9 km/h nas caminhadas, o que a fazia acreditar ser muito veloz! Ficava tão
satisfeita que nem imaginava o que sentiria quando finalmente chegasse dezembro
e, com o mês, a São Silvestre. Imagine só a emoção! Mesmo se precisasse caminhar,
tinha certeza de que seria uma experiência incrível.
Mas, claro, a meta era correr no dia da prova. O máximo que conseguisse e
fosse capaz! Nos treinos, a caminhada vinha mais para fortalecer a perna,
estabelecer um ritmo e fazê-la sair de casa – e só por isso ela já sairia,
mesmo que nem estivesse focada em corrida nenhuma. Nicole acreditava que estar
na rua, fosse correndo ou caminhando, era uma prática não apenas física, mas igualmente
meditativa, então os benefícios eram muitos.
Além disso, achava que correr todo dia podia ser desgastante e até
prejudicial para o seu corpo. Então, para não ficar em casa simplesmente, enchendo
o cu de maconha, nos dias em que não corria ela saía para caminhar. Antes
fumava, é claro, mas esse fato é quase irrelevante porque Nicole fumava sempre.
Acenou com a cabeça para o vendedor da banca, que ainda mantinha os olhos
nela, com seu jornal meio dobrado em cima do balcão. Depois enfiou os fones bem
dentro do ouvido, isolando todo e qualquer ruído externo, inclusive de algo que
Isidoro disse e que ela não ouviu. Naquele momento, escutava apenas sua
respiração, que era seu som mais próximo, até que começaram a tocar os
primeiros acordes de um mantra, trilha sonora do dia. Ultimamente era só isso que
a jovem escutava: diversas repetições em looping.
Nesta manhã, usava uma calça de moletom cinza, uma regata preta com
tecido dry fit e um boné de mesma cor, que Nicole gostava de usar em
combinação com os óculos escuros, mesmo nos dias mais cinzentos, como hoje. Ficava
com um ar de suspense, achava. Meio espiã. Era um traje escolhido a dedo porque
se tinha algo que ela definitivamente não apreciava na vida era chamar a
atenção ou de alguma forma despertar compaixão. E as pessoas, especialmente as
estranhas, sempre achavam motivos para isso. Para não se esconder, se cobria o
máximo que podia e saía, ligeira como uma agente secreta.
Como sempre, subiria caminhando a Rua da Consolação até cruzar com a
Avenida Paulista, lá no topo, o mais rápido que conseguisse. Depois desceria a
Avenida Rebouças, que se emenda adiante, até o começo do túnel, lá embaixo, já
próximo do Shopping Eldorado, aproveitando o embalo da geografia, sentido
Marginal Pinheiros. O trajeto totalizava 10 km, com o esforço de subir a
Rebouças na volta, que é toda íngreme e com uma subidinha antes da Paulista que
exigia bastante de sua panturrilha. Mesmo cansada da caminhada, feita sempre no
mesmo ritmo, e ainda que nessa parte do trajeto usualmente praguejasse, era
justamente ali que ela se empenhava mais. Nicole sempre se esforçava diante das
dificuldades.
Mas ao começar a caminhada, nem pensava nisso; não na volta. Sua mente
estava envolvida com o trabalho e se viu imaginando tendo que ligar para a
chefe no final do dia, admitindo sua sincera incompetência. Foda!, se frustrava
quando acontecia esse tipo de situação, principalmente porque Mariana resolvia
tudo em um estalar de dedos. Não à toa era a dona da empresa.
Pausou a contagem do relógio ao parar no semáforo, vermelho para
pedestres, e mesmo só tendo andado poucos metros, sentiu um incômodo no joelho
esquerdo. Tentou não pensar que agora parecia que a dor vinha cada vez mais
cedo, como se a desafiasse para um duelo que somente Nicole acompanhava,
diariamente. Isso com certeza a frustrava mais do que qualquer outra questão e
ela suspirou fundo quando o sinal abriu, e foi a primeira entre as nove pessoas
à sua volta a chegar na calçada oposta.
Não que estivessem apostando corrida, mas aquela era uma mania antiga.
Nicole gostava de sempre ser a mais rápida entre os meros normais. Ou melhor,
mortais. Isso a destacava dos demais por motivos que ela sinceramente
apreciava.
Foi subindo na contramão, embora sempre se sentisse tentada a caminhar na
ciclovia, privilegiadamente localizada no meio da via. Nicole considerava as
calçadas mais seguras, mesmo quando as ciclovias se mantinham vazias, como
agora, e porque indo no contrafluxo tinha uma visão melhor na hora de
atravessar todos os cruzamentos que envolviam o seu percurso rotineiro. Sentiu
dor já no primeiro quilômetro e até mancou um pouco.
Irritada, puxou os fones com força, mas o mantra permaneceu tocando, num
volume bem menor, vindo abaixo de seus ombros, que eram o limite do fio. Para
muitas coisas a música ajudava a distrair, mas com dor é difícil mudar o foco.
Ainda mais porque ela não parava por causa de dor, nem desistia e voltava para
casa.
Esse incômodo, conhecido, era mais impeditivo que o (des)controle de sua
respiração, outro vilão de seus treinos. Mas ao contrário do fôlego, que Nicole
recuperava depois de um tempo em ritmo mais lento, a dor no joelho não
melhorava por nada. Ao contrário, ultimamente ela voltava das corridas e tinha
dias que até chorava durante o banho. De dor, mas de raiva também.
Para desviar a atenção, começou a contar quantas motos passaram buzinando
por ela. Quantas sirenes ligadas subiram ou desceram a rua (quantas de
ambulância e quantas vindas da polícia). Contou a quantidade de buzinas em
geral (a porcentagem de “bibi” versus o total de “fomfom”). Foi montando uma
curiosa equação, que se imaginou escrevendo em uma imensa lousa branca,
localizada numa sala acolchoada, é claro. Se sentia muito louca fazendo essas
contas, mas não se criticava porque as encenações mentais eram bastante
eficientes no sentido de distraí-la. Quando via, o pior já tinha passado: o término
da subida significava também o fim do incômodo no joelho latejante. Mas ainda
faltavam alguns passos até este momento.
Quando finalmente alcançou a Avenida Paulista, perto da virada do
primeiro para o segundo quilômetro, Nicole apelou e começou a contar quantas
pessoas via com roupa azul. Vermelha. Quantas de boné. Contou quem usava óculos
de grau. E escuros. Respirou aliviada quando se aproximou da pequena
aglomeração que aguardava o sinal de pedestres abrir e parou, já na Rebouças.
Daquele ponto em diante era mais fácil se distrair porque perto de onde o
CEP muda, se altera também o relevo, que deixa de ser subida e se transforma
graciosamente em linha reta, e depois numa ladeira, que sempre embalava seus
passos. “Para descer, todo santo ajuda”, já dizia o dito popular. Havia igualmente
a vantagem de que, sem o esforço da subida, seu joelho doía consideravelmente
menos.
Ali havia também o bônus de ela sempre precisar fazer essa pequena pausa,
porque no local existem muitos semáforos que vão se abrindo e se fechando, no
meio de diversos prédios coloridos, com grafites distintos. Seu preferido era
um que dizia, na lateral, em letras garrafais: “(R)EXISTIR”. Nicole resistia,
sempre, e naquele ponto geralmente suspirava, grata pela oportunidade de mais
um dia de exercícios físicos. Talvez nesse momento a endorfina “batia” e isso lhe
dava mais agilidade, junto com a redução da dor.
Desceu animada, até pôs de volta os fones, que entoavam “om”, acompanhado
pelo som de flautas. Cronometrou sua respiração no ritmo do som e sinceramente
se distraiu, se sentindo consciente do momento presente, totalmente dona de seu
próprio corpo e de suas vontades. Que no caso incluíam chegar até lá embaixo na
avenida e depois voltar, sã, e salva, e suada, de posse de mais uma conquista
diária, às custas do seu próprio esforço. Conseguir concluir todas as metas a
que se propunha equivalia a pequenos, mas importantes, pódios, onde subia sempre
que obtinha êxito.
Foi com o canto dos olhos que percebeu alguém desviando dela, um dos pés
perigosamente pisando na sarjeta, ao ultrapassá-la. Nicole se assustou, de
imediato, porque estava mesmo absorta em seu próprio mundinho e com o susto deu
um pulo para o lado, indo para dentro da calçada. Quase balbuciou um “me
desculpe” sem querer, talvez por reflexo. Mas não disse nada porque não havia
motivos para tanto e porque, com o mantra tocando no volume máximo, não teria
muita noção do volume de sua voz, ao se desculpar à toa com um estranho. Ficou
quieta, vendo o homem caminhar.
O sujeito seguiu ligeiro à sua frente, quase correndo, alguns dos passos
atropelando os próprios pés, de uma maneira muito desnecessária, mas como se
competisse com ela. Foi o que pareceu, considerando que Nicole se achava bem
rápida, em especial naquele trecho, onde quase não sentia dor alguma. Por isso
acelerou o passo, avançando para um ritmo que não era usual e que com certeza
ia querer checar no mapa do aplicativo depois, quando já estivesse descansada do
esforço, de banho tomado, merecidamente com um baseado aceso na boca, recostada
em sua cama perfumada.
A aspirante a atleta viu o homem olhar para trás algumas vezes, como se
estivesse mesmo competindo com ela!, que audácia! Mas Nicole só alcançou o desconhecido
no semáforo lá embaixo, já no cruzamento da Rebouças com a Avenida Brasil, à
esquerda, e Rua Henrique Schaumann, à direita. Aquela era uma esquina bastante
tentadora até para ela, vegetariana há alguns anos, porque a espera pelo sinal
verde envolvia ficar respirando um cheiro de McDonald’s que era um verdadeiro
martírio. Mas hoje seu pensamento não envolveu as teorias da conspiração que
sempre vinham à tona nesse momento porque ela estava bem atenta ao semáforo de
pedestres, no canteiro da avenida, que permanecia com o bonequinho parado e
vermelho, impassível, enquanto os carros e motos cruzavam à frente.
Quando a imagem finalmente mudou e na caixinha do semáforo piscou o
homenzinho verde com as perninhas se mexendo, Nicole movimentou suas perninhas
também e por vários metros se manteve à frente do babaca, quer dizer, do macho.
Até que de repente ele simplesmente passou correndo por ela! Correndo!, porque
obviamente não era páreo para ela na pernada da caminhada. Que imbecil...
A cena inevitavelmente desencadeou uma série de pensamentos e julgamentos
e xingamentos que Nicole não conseguiu controlar, a levando à rápida (e óbvia!)
conclusão de que o ego masculino é mais frágil que bolha de sabão. Os caras se
doem por qualquer coisinha, por exemplo, até ser ultrapassado por uma mina na
rua, notavelmente mais rápida que eles.
Estava absorta, distraída, viu só que o sinal estava fechado para os
carros e nem percebeu a aproximação veloz da bicicleta à sua esquerda, que ao dobrar
a esquina para virar na Rua Pinheiros, a atropelou, a jogando perto da moita
malcuidada da Praça Portugal, onde Nicole ficou estirada. Ela não captou mais
nada porque deu uma desmaiadinha – ou foi apenas seu cérebro que parou de
registrar, porque pareceu que ficou com os olhos abertos. Viu quando alguém se
aproximou, segundos depois de um carro preto acelerar e na sequência frear de
maneira brusca, estacionado meio torto.
– Moça – uma
mulher falou, se abaixando ao seu lado. Tinha no rosto uma expressão meio apavorada,
que desanuviou quando Nicole de fato abriu os olhos, a encarando – Ai, que bom!,
está viva!
“Viva”, Nicole pensou. “Claro
que estou!”, ela quase disse. Tentou entender porque estava deitada na calçada,
mas não conseguiu a compreensão necessária para aquilo. Tampouco soube de onde surgiu
a mulher cheirosa, que a olhava com preocupados olhos cinzas.
Nicole levou a mão à testa. Um
filete de sangue escorrendo fez cócegas na lateral do rosto e ela colocou os
dedos sujos no foco dos olhos, diante do rosto, bem perto do nariz. Sua vista
estava meio turva.
– Não se mexe –
a mulher diz, puxando o celular do bolso da calça jeans – Vou ligar para a emergência.
Eu te levaria para o hospital, mas pode ser perigoso te remover – ela torce a
boca ao olhar para suas pernas – Espero que cheguem logo – ela complementa,
segurando a mão de Nicole, a outra mantendo o celular perto da orelha.
A estranha deu as coordenadas de
onde estavam, ressaltando que não conhecia Nicole, vítima de atropelamento. Só
estava por acaso passando por ali no momento exato do acidente. Seu tom era
diferente no telefone, muito mais aveludado quando voltou a falar com ela.
– O socorro já
está vindo – a mulher anuncia, guardando o celular de volta no bolso, se
abaixando um pouco mais, para ficar mais perto. Puxou os óculos escuros da gola
da camiseta, levando-os para o alto da cabeça como se fosse uma tiara,
impedindo que o cabelo caísse sobre o rosto – Por favor, não se mexa – pede,
vendo Nicole puxar o joelho esquerdo, como se estivesse desmontado. A posição em
que estava deitada era conflitante com a direção de sua perna.
– Grata, moça –
Nicole balbucia, os olhos se fechando com o peso da tranquilidade por ser
socorrida; já tinha desistido de entender o que havia ocorrido. O importante
agora era só ficar bem para voltar logo para casa. Ainda tinha um trabalho para
entregar, afinal, e a mera lembrança a fez abrir bem os olhos, por uma breve
fração de segundos.
– Eu me chamo Mayara
– ela se apresenta – Fica acordada, por favor. Conversa comigo – a mulher insiste,
apertando sua mão, forçando Nicole a abrir os olhos novamente – Me diz, você
costuma sempre caminhar por aqui?
– Eu, sim. Sim –
Nicole, piscou demoradamente e sentiu Mayara tocar seu braço gentilmente, como
se a estimulasse a continuar falando – Eu caminho sempre aqui, sim, dia sim,
dia não. No dia não eu corro – fala, limpando novamente o sangue que escorria quente
do supercílio rasgado. Se sentia um pouco tonta e por isso falava bem devagar,
com longas pausas entre as palavras – Mas quando eu corro é na Paulista, que é
mais reta. Vou até o Paraíso e volto – ela dá uma risadinha.
– Ah, que legal –
Mayara diz, mas não parecia prestar muita atenção ao relato ouvido. Tirou a
camisa de flanela que vestia, listrada de azul e preto, e estancou na testa de
Nicole. Tinha os braços torneados, quase musculosos – E você faz isso há muito
tempo? – pergunta, tirando o pano para ver se ainda sangrava, retornando-o
quando viu que sim – Você mora por aqui? Ei?, qual o seu nome?
As perguntas pareceram se atropelar, mas talvez porque Nicole estava com
uma sensação do tempo um tanto distorcida. Mayara a encarava com o rosto sério,
mas tinha um olhar ameno, que transmitia confiança.
– Nicole – ela
responde, estreitando os olhos, após abri-los mais uma vez. Se sentia com um
cansaço que tomava conta de tudo, de cada célula de seu corpo, mas percebeu que
Mayara não a deixaria dormir – Moro no final da Ipiranga, num prédio de frente
para a Consolação – Nicole faz uma careta e segura a camisa perto do olho,
ouvindo ao fundo a sirene de uma ambulância – Faz três anos que venho treinando
para correr a São Silvestre.
– Ah, que legal –
agora Mayara parecia atenta ao que escutava – Eu admiro muito quem faz isso!
Geralmente fico cansada só de ver o povo correndo, pela televisão – ela ri,
parecendo acessar alguma lembrança específica – Três anos é bastante tempo. Já
se sente preparada?
– Hum – Nicole resmunga, levantando os ombros
como resposta – Achava que sim, agora já não sei – ela chora, fungando, olhando
triste para sua perna retorcida no chão.
– Calma, está
tudo bem – Mayara diz, claramente apenas para tranquilizá-la. Ela não parecia
ser médica e deu um meio-sorriso quando enfim ganhou a audiência de Nicole –
Provavelmente hoje mesmo você recebe alta, não acredito que te deixem
internada. Você parece estar bem!, está até conversando comigo, não é verdade?
Numa reação retardatária, Nicole
quis correr, fugir no sentido oposto de onde vinha a sirene e para longe de onde
seria levada, depois de enfiada dentro da ambulância. Não queria, não gostava
de hospital, tinha trauma. Tentou se levantar, mas foi contida por Mayara.
– Ei, Nicole –
ela chama, tentando trazê-la de volta à razão – Está tudo bem, mas você precisa
ver esse machucado na sua testa, fazer alguns exames e acho que sua perna
quebrou.
Aquela menção foi como querosene
atirado em fogo e Nicole quis correr mais do que antes. Mas de novo não
conseguiu se levantar porque desta vez Mayara deixou as duas mãos sobre seus
ombros.
– Quem eu posso
chamar? – ela pega seu celular de dentro da pochete – Desbloqueia seu aparelho,
Nicole. Quem eu posso chamar? – insiste, vendo a tela acesa, procurando o ícone
de contatos.
Mayara vê a jovem balançar a
cabeça, uma lágrima deslizando do olho destampado. Parecia mais triste do que
com dor e seus lábios tremeram antes que respondesse, depois de pensar por um
instante.
– Tácia, minha
tia – sua voz sai num fio, junto com o som da ambulância finalmente se silenciando,
ao parar ao lado delas, despertando rapidamente a curiosidade de quem passava
por ali.
Nicole foi colocada na maca e só
não surtou de vez, ao encarar a contragosto aquele teto gelado, porque Mayara
entrou no seu campo de visão, o cabelo cheiroso deslizando para baixo, antes de
ela se sentar ao seu lado. Embora fosse uma completa estranha, a mulher
transmitia segurança e Nicole não se sentiu mais tão desamparada quando voltou
a segurar em sua mão.
Tão logo o carro deu partida,
religando sua sirene estridente, um protetor foi colocado em seu pescoço,
imobilizando-o, e Nicole nem pôde ver de onde veio a agulha que injetou um
bem-vindo analgésico, que a relaxou quase de imediato. Os músculos, retraídos, se
desabrocharam sem nenhuma resistência, embora ela ainda resistisse à ideia de
ir para o hospital. Mas àquela altura se sentia rendida, impotente, quase.
Percebeu que ainda chorava quando a mão de Mayara apertou carinhosamente seu
ombro, num gesto tão simples, mas também tão cheio de significados. Quando tudo
passasse, com certeza retribuiria a ajuda desse anjo que apareceu na hora exata.
Nicole de repente se sentiu tão
relaxada, tão entregue que nem conseguiu prestar atenção na animada conversa que
se estabeleceu entre Mayara e a socorrista, chamada Taís. As duas pareciam se
conhecer há bastante tempo e tudo indicava que não se viam há anos. “Culpa
dessa rotina fodida” uma delas disse. Ou pareceu dizer. Dentro da ambulância
fazia muito barulho, conforme se sacolejavam a caminho da emergência do
Hospital das Clínicas, e nem tudo era compreensível para os ouvidos de uma quase
dopada Nicole.
Ela não fez questão de se manter
desperta, assim como não deu audiência para o pânico, que congelava seus
braços, eriçando todos os pelos para cima, de um jeito que até doía. Nicole não
fez nada, principalmente não alimentou os assombrosos pensamentos que a
assaltaram enquanto avançavam rua após rua.
Só percebeu que haviam chegado porque despertou depois de um tempo com o
solavanco da maca sendo retirada de dentro da ambulância, os sons metálicos substituídos
pelo barulho das rodinhas deslizando no chão branco hospitalar. Mayara e Taís
se despediram com um beijinho e promessas de se encontrarem.
– Eu já falei
com a sua tia – Mayara informa, colocando o celular dentro de seu boné, que
estava nas mãos de Nicole. A moça parecia estar com os dedos moles, talvez por
efeito do remédio aplicado durante o trajeto, mas ainda segurava a camisa listrada
de Mayara – Ela disse que já está vindo, vou esperar até que chegue. Estarei
aqui, tá bom?
– Tá bom –
Nicole repete, baixinho – Agradeço. Grata por me salvar, Mayara.
– Está tudo bem –
ela sorri, antes que a maca avançasse agora por corredores que não podia entrar
– Você vai ficar bem, corredora. A São Silvestre te espera!
Mayara ficou um tempo parada
diante da porta, agora fechada, pensando em como a vida era curiosa. Aquele não
era um trajeto que costumava fazer e por acaso passava no local no momento em
que viu Nicole ser atropelada. Também por acaso tinha decidido, na noite
anterior, lavar seu carro logo que acordasse, depois que um passageiro bêbado
vomitou no banco de trás, na última corrida antes de ela encerrar o expediente.
Só por isso pôde socorrer Nicole.
Sem
querer, Mayara se lembrou de uma passageira que uma vez lhe disse que o acaso
não era exatamente algo aleatório, pensamento recorrente desde então. Parecia
mesmo que sempre havia algo por trás de cada acontecimento, dos mais sérios aos
mais bobos, mesmo que em muitos ela não conseguisse ter exatamente essa
compreensão. Mas parecia mesmo haver algo conectando tudo.
Saiu até a calçada do hospital,
aquele não era bem um ambiente que apreciava, então preferiu esperar por Tácia
lá fora. Teria que pedir uma carona para a tia de Nicole para buscar seu carro,
estacionado de qualquer jeito, na cabeceira da praça. Só então se perguntou se
teria ligado o alarme ao trancá-lo. Esperava que sim.
Puxou o celular do bolso no
instante em que Tácia enviava uma mensagem, informando ter chegado. A viu
quando ergueu os olhos, após ler o que dizia a notificação que fez seu aparelho
vibrar.
– Olá, Mayara,
né? – a mulher pergunta. Era uma pessoa alta, com cabelos ondulados que emolduravam
seu rosto de maneira graciosa. Sorriu também com os olhos, quando Mayara
assentiu – Olá, minha querida – elas se abraçam, brevemente – Gratidão desde já
por ter cuidado da minha sobrinha.
– Olá, Tácia. Prazer
– Mayara se afasta um passo, apenas o suficiente para olhá-la – Imagina, não
precisa agradecer. Fiz só o que gostaria que fizessem por mim, se fosse eu a
acidentada.
– Ah, menina,
mas o mundo anda tão maluco, né? As pessoas parecem estar perdendo o interesse pelo
próximo. É um tal de desamor a dar com pau – elas caminham devagar dois passos
em direção à porta de entrada da emergência – Será que consigo vê-la?
– Não sei...
acho que iam fazer alguns exames. Certamente ela precisa de um curativo na
testa. Acho que também quebrou a perna.
– Ah, mentira! –
Tácia tinha uma decepção na voz mais notável do que quando soube que Nicole
tinha sido atropelada por uma bicicleta, minutos atrás – A perna direita ou a
esquerda?
– A...
esquerda...? – Mayara responde, mas perguntando. Que diferença fazia?
Aparentemente muita, pelo tom da pergunta.
As duas pararam juntas, na
metade da escadinha que dava acesso ao hospital. Pareceu que só então Tácia
compreendeu que não conseguiria ver a sobrinha neste momento, e por isso travou.
– Ela está bem –
Mayara afirma – Os médicos daqui são muito bons, confia.
– É... – Tácia
resmunga, parecendo descrente, destampando os olhos da proteção dos óculos escuros.
Suas írises eram de um tom azul bem profundo, brilhante.
– Você me
levaria até lá? – Mayara pergunta, vendo sua interlocutora se desgarrar dos
pensamentos, pousando o olhar nela – Até a praça onde a Nicole foi atropelada.
Eu deixei meu carro lá.
– Oh, minha
querida, é claro. Claro que sim, vamos lá – Tácia repete, fazendo um gesto para
a direção em que seu carro estava.
Mayara embarcou assim que as
portas foram destravadas, o som do alarme ecoando do outro lado da rua. Talvez
se Tácia não fosse mulher ela não se sentiria à vontade para o pedido e antes
de partirem agradeceu por não se colocar em risco apenas por querer ajudar
alguém.
– A Nicole
comentou que ela está treinando, né. Para a São Silvestre – Mayara complementa,
quando a mulher ao seu lado a encara.
– É, ela
inventou essa história depois do incidente da Sé... Nicole é muito teimosa.
Muito persistente – Tácia se corrige, como se a sobrinha pudesse escutá-la de
alguma forma. A correção deixou claro o amor entre elas – Quando enfia algo na
cabeça não há quem tire.
– Incidente na
Sé?
– É – Tácia faz
uma careta, triste – Nicole se acidentou, três anos atrás.
– No metrô? –
Mayara insiste, porque a mulher não parecia querer falar a respeito, embora ela
é que tenha levantado a questão.
– É, no metrô.
Teve um dia que a estação estava muito cheia, começou um empurra-empurra não se
sabe por quê. E minha sobrinha, que estava próxima à plataforma de embarque,
acabou sendo empurrada. Bem na hora em que o trem estava vindo.
– Ai... – Mayara
fecha os olhos e leva as duas mãos ao rosto.
– É... No
acidente ela perdeu uma parte da perna. Amputou na altura do joelho esquerdo.
– Putz... –
Mayara resmunga. Não esperava um relato do tipo e não sabia muito o que falar –
Que bosta!
– É, mas hoje
ela está bem. Adaptada – Tácia se apressa em dizer – Quer até correr a São
Silvestre!
– E você acha
que ela consegue? – Mayara foi sincera com a pergunta.
– Não sei...
Você disse que ela talvez tenha quebrado a perna, né? – Tácia a encarou com um
olhar um pouco gélido. Parecia desolada, em nítido sofrimento – Nicole é muito
distraída, ainda bem que foi uma bicicleta... – complementou, parecendo falar
sozinha.
– Não sei se ela
quebrou a perna, Tácia. Eu não sabia que ela tinha perna mecânica – Mayara
desfivela o cinto de segurança, quando o carro parou. Viu seu automóvel limpo
estacionado onde o tinha deixado, instantes atrás – Talvez só tenha saído do
lugar, não sei. Ela não parecia estar com dor. Não assim. Não sei.
– É, bem... –
Tácia suspira – Saberemos em breve. Você está muito ocupada? Aceita tomar um
café? Quero retribuir a gentileza de acompanhar minha sobrinha durante o
resgate.
– Claro... – Mayara
responde, no mesmo instante em que seu celular vibra. Inclinou levemente a cabeça
ao ver inesperadamente uma mensagem de Rita – Eu adoraria... – ela completa,
mas seu celular vibra de novo. A mensagem exibida na tela era na verdade um
pedido de socorro. Algo tinha acontecido com Preta na agência e ela precisava
ir para o hospital.
– O dever te
chama? – Tácia tinha humor nos olhos, mas parecia decepcionada também.
– É, parece que
hoje é dia de hospital – Mayara guarda o aparelho de volta no bolso, antes de
abrir a porta – Mas adoraria o café, sim. Vou te dar meu contato – ela lhe
entrega um cartão sóbrio, preto com letras brancas – Me avise assim que tiver
novidades da Nicole, por favor. E aí combinamos o café.
– Combinado,
Mayara. Agradeço mais uma vez – Tácia diz, piscando um olho antes que ela desembarcasse.
– Nos falamos.
Até breve – Mayara se despede, fechando a porta com pouca força. O vento gelado
a fez cruzar os braços, sem perceber.
Desligou o alarme do carro, que tinha
se lembrado de ligar, no mesmo instante em que, não muito longe dali, Nicole
recebia o último dos cinco pontos, perto da sobrancelha. Aquele era todo o
cuidado de que necessitava e caminhou sozinha até a frente do hospital, depois
de enviar um áudio para a tia.
Só quando chegou à calçada é que
notou que o aplicativo continuava cronometrando seu tempo, como se ela ainda
estivesse praticando algum exercício. Nicole virou os olhos a contragosto quando
viu, ao desligar o app, a notificação que a parabenizava pela suposta atividade
mais longa de seu histórico.
*
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