A malabarista (conto)

Essa é a terceira história da segunda temporada da Novelinha <3

Se ainda não leu a segunda, "O acaso", clique aqui.


Metrópoles que reúnem grande e diversificada concentração de pessoas costumam, por consequência, colecionar diferentes estilos de vida. É comum que nesses lugares não existam horários pré-determinados para se viver, ou para realizar as atividades básicas do cotidiano. Decerto por isso é que há supermercados 24h, por exemplo, academias e tantos outros estabelecimentos que simplesmente nunca se fecham. Existe uma demanda para isso.  

“São Paulo, a cidade que nunca dorme”, provavelmente é insone porque muitos moradores definem suas rotinas ao sabor de seus empregos, dos mais distintos possíveis, e por isso “dia útil” pode ser literalmente qualquer um. Para quem inverte as horas de sono a cidade se desvenda diferente, com o agito dando lugar ao silêncio bucólico das ruas, criando uma falsa sensação de tranquilidade. Porém é quase consenso que depois que o sol se põe as ruas paulistanas ganham um ar sombrio, quase bélico. Diferentemente do que ocorre em muitas cidades mundo afora, aqui no Brasil, estar lá fora quando o dia é noite pode ser bastante perigoso. Mais ainda sendo mulher.

Mas nos últimos dias, Lola evitava pensar nisso, por mais que sua irmã a assombrasse o tempo inteiro com histórias de terror da vida real, no intuito de precavê-la. Mesmo obrigada a ouvir os testemunhos de Stephanie, que todo dia chegava da rua com um relato novo, um mais cabeludo que o outro, ainda assim Lola vinha mandando currículo para tudo quanto é canto, sem discernimento nenhum e com uma só meta: conseguir um emprego, não importa em que período, nem fazendo o quê. Valia qualquer um.

Suas opções iam de babá a bartender; de professora de yoga à professora de inglês. Então aguardava retorno de vagas que definiriam se ela dormiria durante o dia ou à noite, e torcia apenas para que fosse breve.

Era muito agradecida à irmã caçula, que lhe deu guarita na casa em que morava, na Cidade Universitária. O local era pequeno e dividido com outras três meninas, mas ao retornar de repente de sua longa estada nos Estados Unidos, foi o melhor que Lola conseguiu. Era provisório, sabia. Agradecia sempre pelo quartinho espremido bem ao lado da cozinha, onde dormia já há um mês e meio, e era grata até mesmo à hospitalidade das demais moradoras da república, apesar de elas não serem muito fãs de interação.

Ao acordar naquela quarta-feira, Lola precisou de alguns instantes para se localizar onde estava. Embora de volta ao país já há algumas semanas, seu cérebro bugava um pouco em algumas manhãs e tinha dias em que ela ainda se sentia na gringa, como hoje. Era um pouco frustrante constatar que não estava mais lá; nessas horas sentia quase um choque que se despejava em seu corpo, como se fosse uma descarga elétrica, enrijecendo seus membros e ruborizando seu rosto. Mas aí se lembrava dos motivos que a tinham feito voltar e isso a consolava. Um pouco.

Se espreguiçou fazendo barulho e ao colocar um dos pés no chão, puxou uma garrafa de refrigerante de maçã, adormecida aos pés da cama. Era o seu preferido no quesito “quente e sem gás” e Lola bebeu o restante do líquido em longos goles, que fizeram seu olho lacrimejar sem querer. Não havia tubaína nos arredores de onde morava, em San Diego, na Califórnia, e por isso foram mais de cinco anos sem sentir aquele sabor, tão único. Beber café também ficou fora de sua rotina nesse período, porque quase teve uma úlcera, devido à má alimentação, e sentir o aroma vindo da cozinha ao lado a fez se levantar. Saiu do quarto de pijama e descalça.

– O melhor cheiro vem acompanhado pela melhor cena – Lola dá um beijo no rosto da irmã – Bom dia, Fani.

– Bom dia, Lola – Stephanie retribui o comprimento dando um beijinho no ar – Eu te acordei? Desculpa, quis aproveitar esses minutinhos antes de ir para a faculdade para tomar um café. Me acompanha?

– Acompanho, sim, claro – ao se sentar em volta da mesa quadrada, Lola boceja, vendo as horas no relógio pendurado em cima da pia: quase 17h – Não me acordou não, maninha. Relaxa. Já estava na hora mesmo de levantar, tenho uma entrevista de emprego daqui a pouco.

– Ah, que bom! – Stephanie coloca duas canecas em cima da mesa, que escorreram molhadas em cima do tampo de madeira, já todo manchado. Depois ela as serviu, quase até a borda, e não pareceu se importar quando a garrafa térmica pingou na mesa também – Boa sorte, é emprego de quê?

– É uma vaga de bartender – Lola assopra o café e toma um generoso primeiro gole. A bebida desceu rasgando quente pela garganta e ela só voltou a abrir os olhos após suspirar.

– Hum, trabalho à noite... – Stephanie faz uma careta, mas depois acrescentou mais açúcar ao café, então Lola não soube dizer ao que exatamente a irmã reagia. Mas era meio óbvio.

– É, não, mais ou menos. Não é bem em um bar, então não é nada que vá madrugada adentro.

– Sei... – a moça diz, mas não parecia saber, de verdade – E aquela entrevista lá que você fez naquela escola de inglês? Nada ainda?

                Lola tomou mais um gole da bebida cheirosa, encarando Stephanie da beira da caneca, com os olhos retraídos. Reconhecia o tom de preocupação em sua voz, que não era mais da mesma garotinha que tinha ficado aqui quando Lola resolveu partir para os EUA, mas parecia haver outras coisas ali também.

– Eu prometo não demorar a sair daqui, Fani – Lola finalmente diz, apoiando a caneca em cima de um guardanapo fechado. Ela mesma o tinha dobrado no dia anterior, quando as duas sentaram ali e tiveram praticamente o mesmo diálogo.

– Não estou te acelerando para sair, Lorraine – Stephanie rebate, mas o simples fato de chamá-la pelo nome parecia um sinal de que aquilo não era bem a verdade – Eu jamais te colocaria para fora se fui eu mesma quem te convidou para ficar aqui.

– Tá certo, Stephanie – Lola diz, na defensiva. Cutucou com o dedo a  ponta do guardanapo, já marrom por causa do café escorrido da caneca – De coração eu sinto que em breve tudo vai se resolver, tenho entrado em contato com muita gente, conversado com algumas amigas. Uma hora ou outra alguma coisa vai virar.

– É, eu acredito que sim. Afinal, você sempre foi tão popular. Sempre conheceu tanta gente...

                Lola teve a impressão de que Stephanie virou os olhos com o comentário, mas não estava prestando muita atenção então achou que podia ser coisa da sua cabeça. Sua mente a esta altura estava longe, pensando no que diacho tinha feito com a própria vida. E em que momento a irmã caçula virou aquela mulher tão... estranha.

– Bom, não sei o que andam ensinando hoje em dia na faculdade, mas o fato de se conhecer pessoas não garante que elas vão fazer algo por você – Lola diz, tentando não soar briguenta. Até porque sua frustração era com ela mesma, não com a irmã.

– Lola, eu faço faculdade de Letras – Stephanie dá um sorriso, o corpo se desmontando com o gesto. Era óbvio que ela também não queria briga – E tenho certeza de que em breve você vai se ajeitar. Você se virou em outro continente, sem saber falar uma só palavra do idioma!

                Stephanie dá uma piscadinha, termina de beber o café e se levanta. Lola continuou sentada, refletindo que em momentos assim a irmã se parecia um pouco com o ser humano que a admirava tanto no passado, mas que definitivamente não parecia ser quem Stephanie era agora, depois de crescida. Teria Lola mudado tanto assim também? Ou aquilo era só uma brisa errada que estava tendo?

                Era comum nos últimos dias entrar sem querer em espirais quase sem fim de pensamentos que nem sempre sabia se faziam sentido. Lola era atropelada por um caminhão de autocobrança e autocomiseração que a julgava por ter passado tanto tempo longe, sem se preocupar em saber como Stephanie estava. Agora isso soava tão egoísta que ela se envergonhava.

– Bom, preciso ir – Stephanie pendura a caneca lavada de volta ao lugar, alheia aos pensamentos da irmã – Hoje tenho prova, quero passar na biblioteca antes da aula. Boa sorte na entrevista, Lola. Me avisa se for chegar tarde. Por favor. É perigoso ficar na rua à noite.

– Pode deixar, Fani – Lola termina o café e finalmente se levanta – Boa sorte na prova – complementa, mesmo sem saber que não precisava. A irmã era o orgulho da família, desde sempre.

– Grata. Não esquece de guardar, tá?, depois de lavar. A caneca, Lola – ela aponta para a caneca que Lola tinha apoiado dentro da pia.

– Boa sorte na prova – Lola repete, sem mover um músculo. Ficou acompanhando a irmã sair para só então lavar a caneca usada.

                Foi tomar banho e se lavou determinada a tirar qualquer zica que pudesse estar impregnada em sua pele, se limpando também de qualquer mau olhado que eventualmente estivesse travando sua vida. Sempre foi uma mulher independente e destemida, não seria agora que vacilaria. A crise dos 30 anos não seria tão impetuosa assim.

                Sabia que nenhuma das nerds estaria no apartamento àquela hora, então desfilou nua do banheiro até seu quarto, espremido atrás da parede da cozinha, tão cheia de regras. Passou o creme, agora importado, pelo corpo cheio de tatuagens, os braços coloridos ganhando uma textura brilhosa com a hidratação. Sabia que sentiria falta de muitas coisas de sua antiga vida e definitivamente os cosméticos estavam entre os principais. No Brasil tudo custa uma pequena fortuna, mas se olhando no espelho do canto, Lola se prometeu sempre se cuidar, inclusive não deixando de se mimar com produtos que gosta. Foda-se se fosse caro.

                Mais do que nunca, dependia apenas dela para sobreviver, mas de um jeito diferente que das vezes anteriores porque agora, pela primeira vez na vida, Lola tinha o coração partido.

Abriu uma das malas não desfeitas no chão, perto do pé da cama e foi passando a pilha de roupas até o fundo, até encontrar a camiseta que queria. A vestiu depois da cueca e se contemplou no espelho mais uma vez. Aquela era uma blusa cheia de história e que Lola precisava urgentemente ressignificar, como faria com muitas roupas, se desejasse continuar usando – e desejava, ou além de sem emprego e sem dinheiro, ficaria também sem ter o que vestir. E aquela regata era demais, não pretendia deixar de usá-la tão cedo.

A calça jeans ela encontrou já perto de desistir do look, depois de ter revirado a mala inteira, duas vezes. Ficou satisfeita por só ter uma opção de calçado, ultimamente: um all star marrom, de couro e cano alto, que simplesmente combinava com qualquer modelito, inclusive este, que esperava ser seu visual de conquista de sua nova vida. Lola já tinha feito altos rolês calçando os tênis, ido em vários picos com eles, sempre muito confortáveis e estilosos, mas desviou o pensamento, pois “ressignificar” era de fato a palavra do momento.  

Viu no Google quais ônibus teria que pegar, verificou os trechos que contavam com a escassa cobertura do metrô e antes de sair de casa traçou seu roteiro até o restaurante que, por acaso, soube que estava com uma vaga temporária de bartender. Embora trabalhada em outro discurso, conhecer gente abria mesmo portas que até então Lola nem sabia que existiam. Essa vaga era um bom exemplo; ela só soube porque foi beber uma cerveja no Largo do Arouche.

Já tinha passado pela seleção de currículos e conversado por telefone com a gerente, que disse gostar de suas referências e fez algumas perguntas sobre os cursos que Lola frequentou no exterior. Agora o encontro seria com a chef, dona do lugar. Ao que tudo indicava ela era casada com outras duas mulheres. Assim, no plural. Lola torceu pelo trabalho só por isso. Imagine só ter um emprego com esse tipo de atração! Tinha certeza de que jamais ia faltar, sequer se atrasar.

Tentou não pensar a respeito durante o caminho até lá, porque isso era apenas um detalhe diante da situação em que se encontrava. Precisava urgentemente de dinheiro, de um serviço, fosse em restaurante de trisal ou não. Precisava deixar a república da irmã o mais breve possível, antes que sua estadia lá desgastasse a boa relação que sempre tiveram, a distância.

Sentada na janela do ônibus, Lola se manteve bastante atenta às ruas por onde passava, acompanhando no mapa do celular seu progresso em direção ao destino final. Precavida que era, saiu de casa com folga e a tela apontava que chegaria cedo porque o trajeto foi feito sem nenhum tipo de contratempo. Além de ainda não ser horário de rush, Lola seguia no sentido do contrafluxo, em direção à Avenida Paulista e seus numerosos prédios, cartão postal de São Paulo.

Decidiu descer dois pontos antes do indicado, para caminhar. Se tomasse cuidado, poderia ser um bom passeio.

Não há lugar no mundo que se assemelhe à Paulista. Lola já tinha visitado várias cidades diferentes ao longo da vida, sempre levada pelo embalo de amigos e também por pessoas que conhecia em festas e eventos completamente aleatórios. Do alto de seu passaporte carimbado, podia afirmar: nada se compara a São Paulo, que tem uma energia toda própria. Até o cheiro que vem no ar é característico!

Enquanto caminhava, sinceramente sem muita pressa, seus fones davam o acorde como se a playlist melancólica fosse a trilha sonora de algum filme saudosista. Ela não se lembrava de quando tinha sido a última vez que tinha passeado por ali e durante os anos em que morou fora, percebeu que em nenhum momento se imaginou de volta à região por onde agora caminhava. Estar ali era bom e ruim.

Nunca foi do tipo que se planeja, que estabelece planos e metas em médio e longo prazo. Lola sempre viveu no agora, no presente, focada nesse breve instante que é quando realmente temos a chance de fazer algo; de fazer história. Era desprendida ao ponto de não se arrepender de nada, acreditava que sempre tinha tomado as melhores decisões, nos momentos mais conflitantes. Se apegava a isso mesmo que o resultado fosse agora um presente tão incerto, de volta a um lugar com tantas oportunidades, mas também tantas portas fechadas. Parecia, quando Lola batia em algumas, sem obter resposta.

Endireitou o corpo quando se viu numa postura derrotista, se esforçando para rever a confiança de que necessitava. Estava indo para uma entrevista de emprego, afinal, não à forca. Tudo podia se resolver em questão de minutos! Meio que para provar isso, seu celular vibrou, ao receber uma mensagem que Lola só leu quando chegou aO Bistrô, instantes depois. Stephanie tinha falado tanto de uma suposta gangue de trombadinhas que praticavam arrastão por ali que ela é que não seria besta de sacar o celular no meio da avenida. 

                O restaurante tinha uma fachada bonita, discreta, apesar de igualmente chamativa. Ela considerou como de bom gosto porque apreciava plantas e o imóvel parecia inteiramente abraçado por uma espécie de cerca viva, com flores. Lembrava um pouco as tatuagens que tinha nos braços, com a diferença do perfume. Lola parou perto do estacionamento, ao lado da porta giratória da entrada principal, e puxou o celular de dentro da mochila. Teve que ler a mensagem duas vezes, porque depois da primeira não acreditou no que leu.

Ficou tão emocionada que se atrapalhou e chamou por Zezé, em vez de Patrícia, ao bater na porta do restaurante. Enquanto aguardava, releu o e-mail da escola de inglês, sobre a entrevista da semana anterior: tinha conseguido o emprego. O salário combinado pagaria as contas fixas e o pagamento das horas extras garantiria seus rolês. Se preocupou tanto nos últimos dias à toa... Toma essa!

– Olá, Lola – Zezé cumprimenta, no rosto uma cara de poucos amigos – Prazer em conhecê-la, seja bem-vinda aO Bistrô. Acho que nós não marcamos nada hoje, né? Você vai conversar com a Patrícia, não foi isso o que combinamos?

                A mulher era um pouco mais alta que ela, seu cabelo estava preso debaixo de uma toca preta e tirou os óculos depois de falar. Se fosse chutar uma idade, Lola diria que tem uns 20 e poucos, não mais que 25. Vestia um uniforme bonito, azul marinho, só com o logo dO Bistrô estampado no peito. Lola percebeu que ela a olhou de cima a baixo, se detendo primeiro em seus braços, passando pelo decote, muito rapidamente, subindo até seu cabelo, que Lola sabia não ser dos mais tradicionais. Estava acostumada a ser encarada assim.

– Ah, sim – Lola gagueja, sorrindo, enfiando o celular no bolso de trás da calça – Isso, desculpa, Zezé! Estava com você na cabeça, acabei me confundindo! Mas o prazer é todo meu, que lindo que é aqui!

                Lola tentou parecer gentil e foi fácil porque foi sincera. Ao entrar no restaurante vazio, viu que lá dentro tudo se encontrava impecavelmente organizado, as várias mesas parecendo arrumadas com régua. Observou as paredes nuas e a ausência de enfeites, com exceção de um relógio grande, moderno, em um dos lados do salão. Nos fundos, avistou uma treliça com plantas, combinando com o que havia lá fora, mas em quantidade muito menor. Achou bonito! Ia fazer um comentário, mas Zezé foi mais rápida.

– Vem, vou te mostrar o bar – ela aponta para os fundos, para onde Lola estava olhando. Foi caminhando no corredor entre as mesas, conforme falava – Como te disse no telefone, essa vaga de bartender é temporária... Nós estamos com uma demanda urgente por conta de um evento que vai acontecer em breve. Mas há chances de efetivação porque quem fica atualmente no bar começou de maneira provisória e acabou ficando... Quem sabe a gente já põe um fim nisso.

                Os fundos dO Bistrô se iluminaram quando Zezé acendeu as luzes, o balcão preto e reluzente parecendo um convite para um drinque. Em volta havia algumas mesas, diferentes das que tinham no salão principal, com cadeiras com encosto muito mais baixo. Um som de piano vinha de algum lugar que contava com a acústica do espaço para ecoar de um jeito agradável e preenchia todo o ambiente.

Sem esperar que a gerente dissesse algo, Lola foi para trás da bancada e puxou uma das taças que ficava pendurada, logo acima. Abriu duas portas dos armários até achar o que precisava, girando uma faca antes de cortar alguma coisa, na pia dentro do balcão. A atitude pareceu agradar a Zezé, que deu um sorriso para ela, antes de se sentar na banqueta alta à sua frente.

– Então, você disse que está de volta ao Brasil desde quando mesmo?

– Voltei não tem dois meses – Lola responde, não parecendo fazer muita questão de conversar sobre aquilo.

A bartender conseguiu desviar o foco da conversa ao misturar algo na coqueteleira, o gelo triturado fazendo um ruído ritmado, que combinava bastante com seu sorriso bonito. Obviamente fazia parte do show de Lola cativar a atenção das espectadoras de suas bebidas; a preparação de um simples drinque era a prova disso. Zezé reconheceu que a bartender sabia ter presença, tudo o que fazia parecia coreografado, numa demonstração óbvia de quem sabe o que está fazendo e tem total conhecimento de que agrada quem está vendo.

Com a audiência integral da gerente, Lola fez uma série de movimentos com as mãos, rodando a coqueteleira entre os dedos, já sem tampa, com destreza, sem derramar nenhuma gota. Seus braços coloridos refletiam a luz branca que vinha do chão, criando um efeito de sombras que combinava com seus gestos, ágeis e precisos. Serviu a bebida fazendo uma graça, despejando o líquido lá do alto, e empurrou a taça comprida na direção de Zezé. Tinha agora um sorriso mais bonito do que antes.

– Imagine, estou trabalhando, não posso beber – ela disse.

– É sem álcool. Eu juro!

Lola deu um sorriso de canto que acabou por convencer Zezé. Ao bebericar, primeiro só um golinho, a gerente constatou que realmente não era alcóolico. Na verdade, achou bastante saboroso, muito refrescante e por isso bebeu mais um pouquinho. Ao encarar Lola novamente, viu que a mulher ainda sorria.

– É muito bom. O que você pôs aqui dentro? – Zezé bebe outro gole, mais generoso que o anterior. Pareceu sorrir no final – Reconheço a água de coco, o limão e...?

– Coloquei também um temperinho secreto que eu só te conto se você me contratar – Lola responde, piscando para ela de um jeito sexy, sem nem imaginar que aquela era uma fala comum no restaurante.

Estava tão aliviada por ter conseguido o emprego como teacher que até se permitia seduzir nesta entrevista. Que nem era exatamente uma entrevista, considerando que se não fosse sua distração, ela e Zezé não estariam conversando agora e também porque parecia que a vaga já era dela.

– O que foi que te fez voltar, Lola? – Zezé pergunta, de supetão – Não lembro se cheguei a te perguntar isso, quando falamos por telefone...

– Então... – Lola pigarreia – Eu fui para os Estados Unidos uns anos atrás para aprender inglês. A ideia era só ficar uns meses e voltar, mas aí...  

– Olá, você deve ser a Lola! – alguém interrompe, vinda não se sabe de onde – Seja bem-vinda aO Bistrô, eu sou a chef, Patrícia.

                A chef usava um uniforme típico de cozinheira, um dólmã elegante, azul marinho com botões brancos que se destacavam pelo dorso, dividindo atenção com o logo dO Bistrô, bordado no peito. Assim como a gerente, Patrícia também usava uma proteção que escondia os cabelos e não trazia adornos nas orelhas, apenas os furos. Tinha no rosto um olhar afiado e uma expressão de quem já viveu muita coisa. Talvez por isso parecesse cansada.

– Olá, Patrícia. Muito prazer em conhecê-la e também ao seu restaurante – Lola aperta a mão estendida em sua direção. A chef tinha um cumprimento firme – É uma satisfação estar aqui.

– Vejo que já está com a mão na massa – Patrícia pisca para Zezé, meio cúmplice – Pensei em te falar para pôr uma touca, mas não sei se daria... – a chef sorri, apontando para os dreads da bartender.

– Tudo bem, chef. Não há nenhum perigo de cair cabelo.

Lola gira o pescoço, mostrando que com exceção do coque feito de dread pink, todo o restante de sua cabeça estava raspado. Com o movimento, deu para ver que ela tinha tatuagem até na nuca.

                Entregou para a chef um drinque igual ao de Zezé, aguardando que a oferta a fizesse se sentar ao lado da gerente, que não se moveu. Lola esperou que Patrícia experimentasse a bebida, escaneando suas reações. Sabia que era possível ganhar muita gente pelo paladar e a chef parecia ser do tipo que também acreditava nisso.

                Patrícia manteve seu rosto impassível, imperturbável, nenhum traço denunciando nada do que pensava, como se soubesse que Lola aguardava por algo e só por isso fizesse questão de não lhe entregar. A mulher tinha bonitos olhos verdes, que à meia-luz do bar pareciam brilhantes de tão afiados, visíveis à beira da taça de suporte fino.

– É muito bom – ela finalmente diz, a boca desfazendo um biquinho com o último gole – Senti um fundinho de hortelã, você macetou uma folhinha? Meia folha? – ela confirma com a cabeça, quando Lola acena, assentindo – A Zezé comentou que há chances de efetivação com esta vaga, certo? Você teria essa disponibilidade?

                Lola refletiu, antes de entregar a resposta de bandeja. Era bem possível conciliar as aulas de inglês com o expediente dO Bistrô, embora cansativo porque seria o dia inteiro trabalhando, até de noite. Possivelmente, se fosse em qualquer outro lugar ela declinaria, ou mesmo se O Bistrô não tivesse alguém como Patrícia, seria muito fácil recusar. Mas a chef tinha uma postura marcante, sabia se impor no ambiente, que era claramente seu habitat natural. Lola achava um tesão mulheres como ela, donas da porra toda, que sabem o que estão fazendo, no controle de tudo. Aceitaria só por causa dela.  

– Eu teria disponibilidade, sim – Lola finalmente diz, piscando para Patrícia de um jeito até um pouco impróprio, porque pareceu sedutor – Vocês vão ter um evento daqui alguns dias, né? Eu posso apresentar algumas sugestões hoje mesmo, o que você acha? Fica como um teste.

                Patrícia deu uma breve olhada para Zezé, que permaneceu muda, antes de olhar para Lola, que sentiu ser dissecada por ela. A chef saltou do seu rosto para o cabelo, deslizou o olhar pelas tatuagens dos braços da bartender, analisando por uma fração de segundos seu decote, e voltou a olhar para o cabelo, antes de encará-la nos olhos mais uma vez. Demorou para responder, mas o quase sorriso que a gerente tinha nos olhos foi o prenúncio do que Lola ouviria da chef.

– Acho ótima ideia – Patrícia fala, cruzando os braços, apoiando o indicador sobre a boca. Ficou olhando para a roupa da bartender – Ia falar para você pôr um uniforme, mas se não se importa eu gostaria que ficasse assim. A Zezé te dá um avental, se quiser.

– Posso amarrar um na cintura, sim, como o seu – Lola aponta em direção às pernas da chef, escondidas atrás da bancada. O comentário ressaltou seu senso de observação – Não corro o risco de me sujar, se esta é a sua preocupação.

– Perfeito, Lola – Patrícia fala, empurrando a banqueta à sua frente, depois de ver sobre o ombro quem entrava pela porta giratória – Bem-vinda aO Bistrô mais uma vez. E bem-vinda ao time.

                Ela se despede das duas com um breve aceno de cabeça, indo em direção à mulher que chegava. Lola viu que as duas trocaram um beijo rápido, um selinho sem graça que nem combinava com o mulherão que Patrícia era.  

– Parabéns, Lola – Zezé complementa, se levantando – Não sei o que te ajudou mais: sua iniciativa ou sua regatinha cor-de-rosa.

                Lola ri, olhando para a estampa da blusa: um ursinho carinhoso com o símbolo lésbico brilhando na barriguinha. Era mesmo sua camiseta da sorte, ela sabia, por isso a caçou com tanto empenho mais cedo. Também porque o decote favorecia o formato de seu corpo, chamando a atenção até da mais puritana entre as mais discretas. Lola despertava o olhar até de mulher hétero, às vezes sem querer.

                Antes de sair, Zezé deu algumas instruções, coordenadas e direcionamentos para o trabalho da noite, que se iniciaria em breve, com a chegada dos primeiros clientes que vinham muitas vezes direto para o bar, segundo a gerente. Enquanto acompanhava às explicações, prestando bastante atenção, Lola viu com o canto dos olhos a mulher que havia chegado numa espécie de discussão com Patrícia, no meio do salão. Não que ouvisse algo dali, mas reparou no trejeito das duas que não se tratava de uma conversa amigável.

Sem se prolongarem, porém, caminharam juntas para os fundos do salão, com a chef na frente. Uma dobrou para a cozinha e a outra sentou no bar, acenando antes para Zezé, num cumprimento.

– Olá, tudo bem? Me chamo Tatiana – a mulher se apresenta, julgando que só aquilo já bastava.

– Oi, Tatiana! Tudo bem? Sou Lola – a bartender responde, no mesmo tom, sorrindo para ela – Posso te oferecer algo para beber?

                Lola ficou com vontade de perguntar se Tatiana era a esposa de Patrícia número um ou a esposa número dois. Sabia que uma delas não bebia porque na primeira conversa com Zezé, a gerente mencionou algo relacionado a uma restrição alimentar em uma delas, o que a impedia de beber. A informação chamou sua atenção porque Lola considerou que seria fácil se manter sóbria se por acaso tivesse também duas mulheres em sua cama.

– Grata, querida, eu não bebo. Aceitaria um café, mas não posso também – Tatiana resmunga, a boca retorcida em um dos cantos. Tamborilou os dedos no balcão, mas parecia frustrada por outra coisa.

                Então esta era a esposa número um. Lola a olhou com outros olhos, agora de posse dessa informação. Na cabeça, montou um casal entre Tatiana e Patrícia e achou uma delícia porque as duas eram lindas. A mulher à sua frente tinha uma postura um pouco combativa, talvez apenas porque Lola ainda era uma estranha ou porque estava zangada por outros motivos, vai saber. Por sorte, a bartender sabia o que precisava fazer para conquistar a mulher da chefe. Brevemente, Lola pensou em como seria a sortuda da terceira mulher daquele trisal, que já começava ornando tão bem.

– Vou fazer algo que não te prejudique – Lola diz, puxando a coqueteleira, que deslizou pelo balcão preto e bem lustrado – Água de coco, tudo bem? Limão? Hortelã? Uma pitadinha de gengibre? – ela foi perguntando e diminuiu o volume da voz no final dos ingredientes, o que fez Zezé sorrir, antes de sair em direção à cozinha.

– Grata, você é muito habilidosa – Tatiana diz, pegando a taça que a bartender oferecia. Antes de beber, sentiu um cheiro bem gostoso – É muito saboroso, grata de novo.

                Tatiana bebe mais um gole do drinque, se virando levemente na banqueta, deixando o corpo meio de lado. Parecia aguardar alguém porque ficava olhando toda hora em direção à porta. Não falou nada até que Zezé retornasse ao bar, entregando para a moça atrás do balcão um avental preto, com o logo bonito dO Bistrô.

– Ela vai ficar de camiseta regata? – Tatiana pergunta para Zezé, como se Lola tivesse desaparecido de repente. O tom de sua voz foi diferente, bravo.

– A Patrícia falou que tudo bem, Tati... – a gerente responde, meio se defendendo.

– Eu não me importo – Lola responde, ao mesmo tempo. Só então percebeu que, assim como a vestimenta da chef, o uniforme da gerente era com mangas compridas. Instintivamente olhou para seus braços coloridos e se sentiu imediatamente mais pelada.

– É, acho que... – Tatiana fala, seus olhos varrendo Lola de cima a baixo – Pensando bem, acho que combina mesmo. Suas tatuagens são muito bonitas, Lola – complementa, como se concordasse com algo que Patrícia não disse – Mesmo assim eu prefiro que você use uniforme, mesmo que seja regata. As pessoas precisam chegar, bater o olho em você e reconhecer que você é da casa – completa, e antes de continuar, se vira para a gerente – Já tenta encomendar ainda hoje, Zezé, pega as medidas dela certinhas... – o som da porta lá na frente chama sua atenção – ... para que amanhã mesmo, se der, ela já esteja preparada.

Tatiana rodou em cima da banqueta antes de se levantar e sem nenhuma cerimônia caminhou até Mariana, que olhava na direção do bar, lá da frente, com os olhos retraídos, do jeito que sempre fazia quando estava sem óculos. Elas se beijaram no meio do salão, numa cena um pouco novelesca porque foi instantes antes de a porta giratória rodar, com a chegada dos primeiros clientes, que interromperiam o momento delas se não fosse o timming perfeito.

As duas caminharam de mãos dadas em direção ao bar, Mariana repousando brevemente a cabeça no ombro de Tatiana durante a passagem, antes de ela dizer algo que a fez rir. Lola reconheceu que eram um casal ex-cep-cio-nal! Não conseguiu pensar em outra palavra, a cabeça estava muito ocupada assimilando quem era quem nessa história. Especialmente porque em nenhum momento imaginou que o trisal envolvesse alguém como Mariana.

– Mari! – Lola chama, sorrindo, desacreditada. Viu como o som de sua voz despertou os olhos míopes da amiga de tantos anos, que na mesma hora virou a cabeça em sua direção.

– Não! – Mariana ri alto, batendo palma três vezes – Mentira, não! – ela repete, praticamente correndo para trás do balcão. Ao chegar, puxou a bartender para um abraço apertado – Mentira que é você! – ela repete, incrédula, se afastando um pouco só para olhar para o seu rosto, voltando a abraçá-la em seguida – Quando foi que você voltou, sua piranha? Por que não me avisou, Lola?

– Mulher e o tanto que eu pedi nessa cidade para te encontrar! Até fui lá no seu antigo endereço, mas não consegui te falar que estava de volta – Lola consegue se soltar do abraço, mas logo é puxada para outro – Saudades de você, Maripower!

                Tatiana estava com a sobrancelha erguida quando a esposa se virou para ela. Era uma expressão conhecida, mas Mariana não quis dar bola; estava feliz por reencontrar a amiga sem querer e nO Bistrô. Quem diria que algo assim seria possível?

– Me conta tudo, vai – ela senta na banqueta alta e bate a mão no banco ao seu lado, convidando a esposa para acompanhá-la. Mariana não pareceu se importar que Lola estava ali trabalhando – Quando foi que você voltou? Por quê? Onde você está morando?

– Ahn... – Lola resmunga, parecendo um pouco sem graça. Olhou para Tatiana, logo ao lado, mas ela não pareceu se opor em ouvir às novidades de uma completa estranha e possível nova funcionária do restaurante – Estou passando um tempo com a minha irmã.

– Até parece – Mariana ri de novo. Balançou a cabeça num gesto que pareceu um cumprimento, quando alguém se sentou perto delas – A Fani é só uma criança, como seria possível? Por que você voltou?

                Lola anota o pedido de dois clientes perto dali e começa a preparar as bebidas solicitadas. Girou no pequeno espaço atrás do balcão, pegando as garrafas desejadas nas prateleiras mais altas. Prendeu o dosador entre dois dedos da mão esquerda, que girou rápida na preparação dos drinques, no sentido anti-horário. Mariana bebericou no copo de Tatiana enquanto admirava a amiga, que parecia diferente, depois de tanto tempo, mas ainda era exatamente igual, apesar de estar preparando bebidas, ao invés de bebê-las, como era usual.

– Eu senti saudade de você. Devia ter me avisado que tinha voltado, Lorraine! – Mariana reclama e ri de um jeito diferente, quando a bartender a fuzila com o olhar – É sério, Lolinha... Nem sabia que você estava trabalhando aqui!

– Eu sei, Mari. Eu tentei, mana, eu juro. É que mil coisas aconteceram... Para ajudar, ainda perdi meu celular, meus contatos todos foram para o ralo – Lola serve dois copos arredondados com um líquido alaranjado. O contato com o gelo fez um ruído dentro do vidro, que teve a borda limpa pela bartender, que usou um guardanapo de pano – Senti saudade também – ela finalmente sorri, antes de pegar dois canudos coloridos e se virar para entregar as bebidas prontas – E ainda estou em fase de teste – ela diz, ao retornar – ... oficialmente, ainda não trabalho aqui.

– Certamente já passou nesse teste – Mariana responde, piscando para a esposa ao seu lado – Quanto a perder o celular, não te julgo, amiga. Perdi meus óculos hoje de manhã.

– Ah, eu ia mesmo te perguntar se você tinha perdido ou só parado de usar – Lola comenta, rindo da cara da amiga – Se bem que esses seus olhinhos contraídos deixam bem claro que a resposta correta é a primeira opção.

– Perdeu como? – Tatiana pergunta, não conseguindo se manter à parte da conversa.

Sua vontade foi perguntar um monte de coisa. Quis saber se Mariana se lembrava de ter saído com eles, pela manhã, se não havia a chance de estarem em algum canto perdidos pela casa, como já tinha acontecido outras vezes, se a esposa por acaso tinha checado dentro das milhares de caixinhas que ela tinha para justamente guardar os óculos... Mas Tatiana se manteve quieta, aguardando o que já sabia que a esposa responderia.

– Não sei, amor... Perdi! – Mariana diz, cabisbaixa, mas sorriu abertamente quando a bartender colocou à sua frente um copo com a borda cheia de sal – Hum, margarita, que delícia – cantarola. Tatiana vê que Lola canta junto com ela, atrás do balcão.

– E você ainda dá álcool para ela? – a mulher pergunta, contrariada, parecendo realmente zangada. Embora sua brabeza fosse direcionada à bartender, Tatiana olhava feio era para Mariana – É tão perigoso você dirigir sem óculos, Mari...

– Mas eu tomei cuidado. Amor... – Mariana a chama, quando Tatiana se vira e sai, pisando fundo.

Não foi atrás porque conhecia a esposa e ali nem era o tipo de lugar que dava para discutirem, também. Mas certamente retornariam àquela conversa depois, porque Mariana não achava certo que se descontasse nela os aborrecimentos provocados por outros motivos. Ela percebeu que Tatiana estava irritada no instante em que se viram.

– Xi, deu ruim! – Lola ri – Desculpa, Mariloca. Me conta isso, mulher, você se casou? Como assim? Você?, casada? – ela ri de novo, agora de maneira mais demorada – Dona Mariana de Souza... num trisal! Pensando bem, é sua cara se meter em algo assim, não tradicional.

– Não foi nada planejado, aconteceu... – Mariana pareceu se defender, mas sorriu no final.

– Que delícia, eu acho é ótimo! Esfrega mesmo na cara da sociedade! Pá! – Lola parecia sinceramente satisfeita com aquilo – Se eu soubesse teria vindo para a festa do seu casório, pô.

– Não avisei ninguém, amiga. Nem teve festa...

– E aí, você está feliz? – Lola se debruça no balcão, apoiando a cabeça sobre os braços. Piscou várias vezes, se fingindo apaixonada.

– Estou sim, é claro – Mariana responde, bebendo margarita, sorrindo com os olhos. Parecia uma jovenzinha enamorada.

– Está sim, é claro – Lola repete, cumprimentando gentilmente uma cliente que parou no balcão para fazer um pedido – São duas minas, afinal, e gatas – diz, na sequência, quando elas voltam a ficar sozinhas.

– Lolinha... – Mariana dá uma olhada rápida para os lados, um pouco incomodada – Amiga, a gente evita chamar muita atenção – ela quase cochicha – Sabe?, esse assunto atiça a curiosidade das pessoas... A Patrícia não gosta muito, Tatiana e eu respeitamos.

– Ah, perdão. Tudo bem, ok – Lola dá um tapinha em seu braço, reforçando seu pedido de desculpas.

– Onde você está morando, garota? – Mariana sorri do jeito que sempre fazia suas covinhas aparecerem, graciosamente. Ao encará-la, com os olhos contraídos, Lola se lembrou de quantas vezes a amiga perdeu os óculos no rolê. Centenas, se duvidar.

– Estou morando com a minha irmã, garota, te falei. Ela não é mais criança, Mariana, se liga. A Stephanie já está no terceiro ano da faculdade. Ela cresceu.

– Mentira, Lola!

– Te juro, é sério. Tá estudando lá na USP, faz Letras, ano que vem já se forma. Estou um tempo morando lá na república dela. E agora estou muito contente por poder sair de lá – Lola resmunga, como se estivesse falando sozinha – Preciso do meu canto, sabe, amiga? Preciso ajustar minha vida. Todo o mundo resolvido e eu aqui, morando com a Fani...

– Por que você voltou, amiga? Não é por nada, mas achei que nunca mais nem te veria, amada – Mariana segura sua mão em cima do balcão – Ou então achei que precisaria atravessar o oceano para isso acontecer. Da última vez que nos falamos você parecia tão bem, estava até namorando! O que foi que rolou, afinal?

– A maré da vida às vezes enfrenta umas tempestades, Marilena... Das bravas! – Lola solta a mão da amiga, desconversando rápido. Fingiu se ocupar, lavando dois copos na pia baixa, como se Mariana não a conhecesse – Mas estou feliz por estar de volta, se quer saber, mesmo que tanta coisa esteja tão diferente. Ou melhor, tudo está muito diferente! A começar por você: minha grande parça das baladas, minha fiel parceira das putarias, está casada – Lola diz e Mariana ri com o comentário – Cadê Perla?

– A Pê casou também, já tem uns dois anos. Foi morar para o interior, está criando gato e galinha. Ela vai gostar de saber que você voltou!

 – Vamos marcar algo. Se as esposas de vocês não se importarem, né!

                Mariana acompanhou a risada de Lola, mas ficou pensando no que diria para Tatiana e Patrícia, caso eventualmente saísse para uma noitada com as amigas. Com Lola, melhor dizendo, porque duvidava muito que Perla saísse de onde estava para ir em balada com Mariana e Lola. Nem antigamente ela tinha pique para acompanhar as duas!, que dirá agora, que tinha vida de roceira.

                Mas não disse nada porque ainda era cedo para se manifestar nesse sentido e também porque sinceramente não sabia se ainda tinha pique para sair à noite. Seus interesses agora eram outros, completamente diferentes: Mariana se sentia uma vencedora quando conseguia ir para a cama antes da meia-noite. Até porque, se demorasse muito, perigava se deitar e as esposas já estarem dormindo e ela achava muito desagradável quando isso acontecia. Seu hobby preferido na vida ultimamente era pegar no sono com os carinhos de Tatiana e Patrícia. Deitava no meio das duas e só faltava ronronar.

                Perto dali, Tatiana estava ajeitando mesas que insistiam em se manter em desalinho. Ainda não havia grande movimentação então era um momento que ela apreciava circular pelo salão. Geralmente era nessas ocasiões que punha em dia as fofocas com Zezé, que sempre sabia de simplesmente tudo o que ocorria por ali.  

– E aí?, e a bartender nova? – Tatiana pergunta, sem querer soar interrogativa – De onde ela veio hein, Zezé?

– Chegou sozinha, Tati – a gerente responde, se apoiando no balcão que ficava próximo à entrada. Ficou uns segundos distraída, olhando o trânsito lá fora, o céu que já estava escuro – Profissional qualificada, tem uma boa experiência, fez vários cursos no exterior. Conquistou dona Patrícia Figueiredo... – Zezé mudou a voz no final, como se aquilo fosse suficiente para a contratação. Deixou para listar por último de propósito.

– É, percebi – Tatiana fala, demonstrando que não era boba – Quando foi a última vez que nós abrimos exceção para braços descobertos no restaurante? Nunca.

– Nunquinha – Zezé fala, ao mesmo tempo – Mas combinou com o bar, convenhamos. A moça em si, né, as tatuagens coloridas, o estilo dela...

– É... – Tatiana faz um muxoxo. Não tinha o que dizer com relação a isso porque ela também concordava com a exceção. Lola não combinaria com o uniforme fechado dO Bistrô – E você já sabia que ela e a Mariana se conheciam?

– A Lola e a Mariana se conhecem? – Zezé indaga, um decibel acima do que pretendia.

– Não sabia... – Tatiana suspira, levantando os olhos. Viu a gerente dar um passo para o lado, nada discreto, e espichar o pescoço em direção ao bar, lá no fundo.

– Ela estava fora, nos Estados Unidos – Zezé informa, sorrindo para os clientes que entravam no restaurante. Acompanhou toda a família até uma mesa e quando voltou, continuou falando como se não tivesse interrompido a prosa – No telefone me disse que aceitaria até lavar prato... eu estranhei porque ela tem um currículo bom, é gabaritada e tal. Fiquei pensando que seria um desperdício não aproveitarmos o talento que ela tem para preparar drinques. E seduzir – completou, baixinho.

– Uhum – Tatiana resmunga, sorrindo para mais duas pessoas que chegavam para o jantar – Bom, o movimento já está aumentando, vou subir. Qualquer coisa você me chama.

– Pode deixar – Zezé se despede com um aceno de cabeça – Te aviso de qualquer novidade – complementa, mas Tatiana não vê a cara que ela faz.

                O salão se encheu rapidamente, como sempre foi uma noite com muitos pedidos, vários clientes chegando famintos e saindo satisfeitos. No geral, houve muitos elogios à comida, como de costume, e vários outros direcionados à nova bartender, a mais colorida do bar sóbrio dO Bistrô.

Toda fora do padrão, cheia de atitude, a mulher passou a noite equilibrando garrafas com uma destreza digna de circo, como as malabaristas que se equilibram lá no alto do picadeiro, com pratos giratórios na ponta de um cabo de vassoura, apoiado em cima do nariz – cheio de piercing, que era o caso de Lola.

Mas mais artística do que circense, a mulher também sabia ser gentil; sorria no momento certo, piscava toda charmosa, quando queria ser mais sedutora, falava gracinhas que faziam as pessoas rirem. Muito eficiente, a bartender conseguiu surpreender até os clientes mais críticos, os mais chatinhos, mesmo não tendo dedicado atenção integral ao trabalho, porque seu foco esteve constantemente desviado por Mariana, que passou horas sentada na banqueta alta em frente ao balcão do bar.

As amigas conversaram animadas quase o tempo inteiro e riram muito também. Houve momentos, em contraponto, em que tiveram longos diálogos em voz baixa, sussurrada, quase cochichada, em confidências que só elas ouviram. Se alguém observasse também repararia que houve muita coisa dita sem que dissessem uma única palavra, como ocorre quando se tem intimidade com alguém.

                Lola voltou para casa de Uber naquela noite, se sentindo feliz após um expediente inesperado, com aquele cansaço típico após horas de labuta em pé. Seus braços também doíam, desacostumados de movimentos que há tempos não fazia.

Desistiu dos ônibus depois que Mariana a atualizou de como estava a vida na selva de pedras, o que acabou sendo uma prova de que Stephanie não estava exagerando em seus relatos. Ser mulher em uma cidade como São Paulo poderia mesmo ser fatal, então achou por bem se precaver, mesmo que o motorista do aplicativo fosse um completo desconhecido, que igualmente poderia colocá-la em risco.

                O trajeto da volta foi diferente, além de muito mais rápido, porque havia comodidade dentro do carro, mas também porque Lola se sentia modificada, retornava agora mais confiante. Tinha saído de casa horas antes um pouco desamparada, perdida, refém da própria vida, e voltava agora com a segurança de um salário garantido, todo mês pingando na conta, bonitinho. Em dois empregos! E com o bônus de em um deles ter Mariana junto, nossa. Nunca imaginou encontrá-la hoje, e casada, e num trisal!  

                Lola estava certa de que em breve já estaria devidamente restabelecida no Brasil e merecidamente instalada em São Paulo, em paz e bem distante das encrencas que deixou para trás, ao partir de San Diego. Desejava que o anonimato que a cidade permite aos seus milhares de habitantes pudesse mascarar também a pessoa que era, em seu íntimo.

Gostaria de alguma forma de deletar suas atitudes do passado breve e de algum jeito suprimir seus erros, que acabaram machucando tanto quem tanto amava, colocando pessoas queridas contra ela – e com razão. Mas como não era possível, conseguir relevar tudo aquilo já estaria de bom tamanho. Ressignificar, afinal.

                Antes de dormir naquela noite, no quartinho improvisado ao lado da cozinha de sua irmã, Lola bebeu tubaína e agradeceu por ter conseguido preservar sua amizade com Mariana. Estava contente por tê-la reencontrado, e feliz porque a amiga parecia bem. Diferente, mas bem.

Lola ficou pensando que Mariana era a melhor pessoa para ajudá-la em um momento como este que vivia. Concluiu que há tempestades inevitáveis na vida; outras que nós é que provocamos. E dentre todas estas existem aquelas que não precisamos enfrentar sozinhas. Ter uma boa amiga é muito bom!


*

A Novelinha continua clicando aqui.

*


Sabia que ao comprar o livro físico da Novelinha, além de contribuir com esta autora, você tem acesso a uma história exclusiva?


Clique aqui para acessar o menu completo com todas as histórias.

Ajude esta escritora independenteclique aqui e faça uma doação
Você não precisa se identificar, se não quiser! 💙


Postagens mais visitadas