3xTPM - Ciclo longo (conto)

 Essa é a quarta história da segunda temporada da Novelinha <3

Se ainda não leu a terceira, "A malabarista", clique aqui.


Os dicionários definem “costume” como: 1. Hábito, prática frequente, regular. 2. Modo de pensar e agir característico de pessoa ou grupo social. Dito isso, vale comentar que uma sociedade qualquer, inserida em dada cidade, cotidianamente amarra hábitos que se misturam e vão se renovando, sem pressa e sem parar. O Brasil é um país de dimensões continentais, então não é nada muito difícil de se acontecer. Numa metrópole plural como São Paulo, por exemplo, composta por tão variadas culturas, assim como ocorre em organismos vivos, os costumes não são estáticos; são adaptáveis. E a atualização é constante, como não poderia deixar de ser.

O paradoxo da coisa é que, ao mesmo tempo, há muitas tradições que entram na rotina até das mais recém-chegadas. Um bom exemplo são os “pratos do dia” servidos nos restaurantes paulistanos, inclusive nO Bistrô, comandado pela chef Patrícia Figueiredo. Quem mora em São Paulo sabe que segunda-feira é dia de almoçar virado à paulista. Terça, bife à rolê. Quarta-feira se come feijoada. Na quinta é dia de massa. Sexta-feira o prato é peixe frito.

Sábado é dia oficial de lavar carro. Domingo se descansa e se lava roupa, no caso de Patrícia, Tatiana e Mariana. Esta última, como uma turista que se adapta à nova vida em outra cidade, ao se casar aceitou para sua rotina hábitos que já eram do casal original. Que ela incorporou porque era prático, porque era minoria entre as três e principalmente porque, neste relacionamento, havia mais vantagens do que desvantagens para ela.

Honestamente, Mariana nunca foi muito adepta de rotina, sua empresa ainda estava só no começo, o que a fazia trabalhar bastante, virava a noite, inclusive aos finais de semana. Antes, a falta do trabalho era o que a levava a alternar os dias, por pura diversão, muitas vezes trocando até o dia pela madrugada, deliberadamente.

A volta repentina de Lola, sua amiga de vadiagem, agora bartender dO Bistrô, fazia essa época parecer mais próxima do que de fato era. Mariana inclusive ficou dias pensando nisso, após reencontrá-la: em como se sentia diferente agora, mesmo ainda sendo tão igual. Sim, porque depois de pouquíssimo tempo ela constatou que organizar a agenda, como fazia a maioria dos mortais, era bastante prático e a permitia ter tempo para várias atividades além de só trabalhar, que já lhe consumia a maioria das horas. Mariana desejava ter esse tempo, tinha duas esposas, afinal, um relacionamento que demandava em dobro e que ela se regozijava em atender e satisfazer. Tinha a meta de prosperar profissionalmente, é claro, mas seu objetivo maior na vida sempre foi ser feliz.

A verdade é que no momento em que Tatiana e Patrícia entraram para sua vida, antes mesmo de começarem a namorar, Mariana já meio que entrou no ritmo delas. Precisou, porque as duas funcionavam mais ou menos em horário comercial e só os domingos eram livres. Patrícia, a mais metódica do rolê, tinha sérios problemas com quebra de rotina. Prova disso é que o segundo encontro oficial das três começou praticamente na lavanderia de onde elas moravam (foi num domingo, “dia de lavar roupa”). Mariana na ocasião achou aquilo curioso e só depois notou que era um indício de onde estava realmente se metendo. Decidiu seguir em frente porque a ideia de ser um trisal com Patrícia e Tatiana sempre soou deliciosa demais para recusar.

Ambas eram completamente diferentes entre si e Mariana tirava proveito disso: comprou um tênis e começou a caminhar todo final de tarde com uma, virou dondoca e passou a fazer a unha toda semana com a outra. Começava o dia bebendo café escondida com Tati, encerrava a noite tomando leite quente escondida com Pati. Em contrapartida, oferecia uma deliciosa quebra de paradigmas para um casal que já estava junto há bastante tempo.

A rotina de Tatiana a permitia folgar dois dias por semana, além das tradicionais férias escolares, todo mês de julho, dezembro e janeiro. Mas Patrícia tinha apenas um dia livre na semana para pôr em ordem as coisas de casa e de sua própria vida, e nunca tirava férias (a última vez foi antes de inaugurar O Bistrô, anos atrás). A mais velha do trisal ainda inventava de fazer um monte de curso e aí as horas que geralmente poderiam ser usadas para o descanso eram ocupadas com tudo, menos para relaxar.

As pausas, quando ocorriam eram devido à Mariana, que vinha até onde Patrícia estava e a distraía com extrema facilidade, se enroscando nela como uma gatinha em dia frio. Dizia sempre que não queria atrapalhar, que ficaria em silêncio, mas sua simples presença já a fazia querer mudar de foco. A esposa era claramente sua prioridade.

Se enroscar em Patrícia e Tatiana tinha virado o esporte favorito de Mariana nos últimos tempos e, não por acaso, domingo era seu melhor dia na semana, quando recebia ainda mais atenção de suas pessoas preferidas no mundo. Foi por isso que seu trabalho ganhou uma carga horária, um expediente com horário para terminar.

Aos sábados, por exemplo, ela ainda trabalhava bastante, mas menos porque tinha criado a rotina de neste dia buscar as esposas no restaurante. A primeira habitualmente passava o dia todo lá, há anos, já. A segunda comandava uma cozinha que fervilhava, principalmente, aos sábados. Então por costume era sempre levada pela esposa até o trabalho de manhã e aí voltavam juntas à noite, depois que O Bistrô fechava. Como parte dessa dinâmica, Mariana trabalhava umas dez, 12 horas no máximo, e então rumava até o restaurante de Uber, para mais tarde voltar junto com as duas. Quase sempre, era ela inclusive quem dirigia o carro de Tatiana, que por costume vinha sempre ao seu lado, enquanto Patrícia seguia atrás.

Os jantares nO Bistrô eram uma tradição à parte, embora Patrícia gostasse de cozinhar para elas quando estavam em casa. Não mudava muita coisa, só o local, porque a chef era quem preparava as refeições das três e já tinha dito que jamais abriria mão disso. Tatiana tinha restrições com uma série de ingredientes, Mariana era vegetariana e Patrícia acreditava ter o dever de alimentá-las, e gostava de fazer isso ali, no seu local. Era muito prático, depois ao chegar em casa bastava tomar banho e já iam direto para a cama.

Nenhum acordo entre elas jamais foi traçado, nunca definiram verbalmente os papéis ou posições de cada uma – no carro, na cama ou no casamento em geral. Mas depois de quase dois anos juntas, algumas regras já eram bastante explícitas e mesmo subentendido que todas eram passíveis de mudança, certos detalhes já tinham um tom de tradição. Como isso, de jantarem nO Bistrô aos sábados, de Mariana levá-las embora e de depois do banho já deitarem para dormir.

Desse jeito começavam os domingos: já na noite anterior. Como nas demais da semana, Patrícia ocupava um lado da cama, Tatiana o outro e o meio era sempre exclusivo de Mariana, que trepava no colchão pelos pés e ia deslizando até lá em cima, onde ficava seu travesseiro. As noites geladas eram de longe suas preferidas.   

Obviamente se compadecia das pessoas em situação de rua, que ficam ainda mais vulneráveis quando o clima vira e fica perigosamente gelado. Por isso, Mariana fazia questão de enviar pix mensalmente para o Padre Júlio e tinha bolado uma parceria entre O Bistrô e uma ong que distribuía sopa para desabrigados, e que passou a se valer das valiosas sobras do restaurante. Com a consciência tranquila por fazer sua parte, ela se permitia sentir um pouco de prazer quando os termômetros registravam temperaturas baixas, como nesta semana, que inclusive tinham batido recorde para a época do ano.

Ao se deitar, contente pela folga no dia seguinte, Mariana ficou feliz por ter um abrigo tão quentinho, que englobava sua casa, que a protegia tão bem, seu quarto, com paredes tão sólidas, vedando os ventos gélidos, seu edredom macio com flores, que tinha o cheiro delas, de amaciante e de segurança, e principalmente sentiu-se uma privilegiada por ter o aconchego dos braços de Patrícia e de Tatiana. Dali saía um calor que aquecia bem seu coração. Mariana pegou no sono como sempre embalada pelas carícias das duas, que enrodilhavam os dedos em seus cabelos de um jeito que era impossível não dormir. Os carinhos faziam sempre seus olhos virarem nessas horas, de tão gostoso. Seu primeiro sonho, registrado parcamente na memória, trouxe as esposas discutindo baixinho enquanto ela dormia.

Mariana não sabia, mas fazia parte de seu casamento rolarem algumas discussões que ela jamais tomava conhecimento, envolvendo Patrícia e Tatiana madrugada adentro. A maioria acontecia depois que a mais nova dormia porque as coisas já estavam desenhadas de uma forma que existiam assuntos prévios a ela, e que nenhuma das duas pretendia envolvê-la. Com o tempo, se provou que Mariana tinha o sono bem pesado, e desde que sua bombinha de asma estivesse acessível, debaixo do travesseiro, praticamente mais nada era capaz de acordá-la.

Na noite anterior, a discussão envolveu um assunto que há três dias Tatiana e Patrícia debatiam, cada uma defendendo seu ponto de vista ferrenhamente. Disso Mariana já tinha provado uma mostra, mas ainda desconhecia a capacidade de as esposas relutarem em ceder diante de uma briga. Que era sempre por motivos bobos, mas que como ferrugem, quando não são devidamente tratados correm o risco de corroer até a mais sólida das estruturas.

Mariana não sabia, mas seu nome era evocado nessas horas.

Ao acordar no domingo, espantosamente antes de Patrícia, que tinha o braço pesado dobrado em cima dela, e de Tatiana, que estava com o nariz praticamente encostado no seu, num ressoar gostoso de sono, Mariana desejou ter o poder de congelar cenas comuns do cotidiano, essas simples, que fazem parte do dia a dia, e guardar dentro de potinhos. Com certeza guardaria essa; sentiu prazer em acordar sendo quem ela era e no melhor lugar do mundo para despertar numa manhã gelada.

Quando puxou o pé, enrolado nas pernas das esposas, notou que estava sem uma das meias, mas nem precisaria porque o calor ali embaixo era propício até para dormir sem roupa, como estava Tatiana, a mais calorenta das três. Mariana achou uma delícia constatar a nudez da esposa e a puxou devagar, depois de deslizar a mão por suas costas. O gesto a acordou.

– Bom dia, coisa rica – Tatiana resmunga, com apenas um olho aberto – Já acordou, meu amor? Que foi, não teve uma boa noite? – ela abre os braços, convidando Mariana para um abraço. Deu um beijo em sua testa, quando a esposa cedeu.  

– Oi, querida. Bom dia, desculpa, Tati. Não quis te acordar – Mariana responde, enfiando o rosto em seu pescoço, respirando fundo – Gosto de passar a mão em você – complementa, baixinho.

– Eu sei que você gosta – Tatiana a beija, agora na boca – Eu amo te alisar também – continua, mas manteve a mão livre longe dela e puxou Patrícia para o abraço – Vem, dorminhoca. Está faltando você nesse abraço sanduíche.

                Patrícia resmunga e sem abrir os olhos comprime Mariana contra o corpo de Tatiana, fungando de maneira ruidosa em seu cangote.

– Queria dormir mais – Patrícia finalmente fala, a voz parecendo uma reclamação – Mas vocês são uma ótima razão para acordar – ela beija a nuca de Mariana e depois se espicha em cima dela para beijar Tatiana, mais atrás – Bom dia, meu amor.

– Dorme mais, Pati. Ninguém falou sobre acordar, gente – Mariana finge estar zangada. Puxou Patrícia por trás, a trazendo para ainda mais perto. Gostava de ficar espremida entre as duas.

– Não, gatinha. Preciso levantar, tenho um monte de coisa para fazer – Patrícia rebate, a voz mais desperta, apesar de ter bocejado – Preciso dar um jeito naquela cozinha, tem um monte de roupa para lavar e quero assistir uns vídeos que me indicaram essa semana no trabalho.

– Ah, achei que a gente podia folgar hoje – Mariana resmunga, a voz parecendo um miado. Esfregou o nariz no pescoço de Tatiana e a bunda na cintura de Patrícia – Hein, amor?

– Não sei, meu bem. Eu preciso preparar umas aulas – Tatiana fala, mole por causa das investidas da esposa – Pelo menos uma, Mari... estamos no mês da diversidade...

– Justo – Mariana rebate, se levantando de repente. O movimento descobriu as duas esposas ao mesmo tempo – Mas então eu vou trabalhar também.

– Não vale! Quando você se enfia naquele escritório, não sai mais de lá – Patrícia a puxou de volta para o colchão, desta vez virada para ela. Aconchegou Mariana em seu peito, do jeito como ela estava em Tatiana, segundos atrás.

– Mas...

– A Patrícia está certa. Você não sabe brincar disso, Mari – Tatiana ri, se ajeitando de conchinha atrás dela.

– “A Patrícia está certa...” – Mariana repete, com desdém, mas sem se mover um milímetro – Ah, lembrei aqui que essa noite eu sonhei que vocês duas brigavam. Por causa da Lola – ela diz e seu comentário automaticamente desperta reações nas duas – O quê?

– Ainda está muito cedo para esse assunto – Tatiana se afasta, se desencaixando dela antes de se levantar.

– Está muito cedo para começar a me aborrecer com isso – Patrícia diz, quase ao mesmo tempo, se levantando também.

– Ué – Mariana retruca, vendo cada uma sair por um lado diferente da cama – Ei, vocês vão me deixar sozinha aqui?

                Patrícia deu um beijinho no ar em sua direção, antes de entrar no banheiro e Tatiana mandou outro, ao abrir a porta do quarto e ser recepcionada por Percival. O gato, parceiro fiel, subiu na cama agora vazia ronronando, se esfregando feliz no rosto da dona, que permaneceu deitada mais alguns segundos.

Quando chegou na cozinha, instantes depois, Mariana encontrou Patrícia como sempre no preparo do desjejum e Tatiana sentada perto, tomando quieta seu café. Só que, ao contrário do que ocorria todas as manhãs, elas não estavam implicando uma com a outra por causa disso.

– Tá legal, quem é que vai me dizer o que é que está acontecendo por aqui? – Mariana questionou, sua voz séria chamando imediatamente a atenção das esposas. Notou que as duas tiveram um princípio de riso, contido, provavelmente porque sua autoridade era questionável quando usava pantufas cor de rosa.

– Que foi, meu amor? – Patrícia pergunta, como se escondendo atrás de uma bandeira branca invisível – Senta, já vou nos servir.

– Que, baby? – Tatiana falou junto com ela – Vem cá, toma seu café.

– Não gosto quando vocês ficam assim, evasivas – Mariana reclama, se sentando ao lado de Tatiana. Aceitou a caneca que ela lhe oferecia, cheia de café – Não gosto de me sentir à parte...

– Você não está – Patrícia deu um beijo nela, antes de lhe entregar duas torradas com geleia.

– Não está à parte – Tatiana diz ao mesmo tempo, bebendo mais um gole de seu café – Amor, você vai começar hoje com as roupas claras ou as escuras? Preciso lavar meu uniforme da escola separado, da última vez encheu de bolinha.

– Encheu de bolinha porque você enfiou uma toalha dentro da máquina – Patrícia vira os olhos, se sentando – Posso começar lavando suas roupas, é muita coisa? Mari, traz para cá depois as fronhas, por favor? Vou trocar tudo, pode tirar o lençol também.

– Eu não ia lavar uma toalha sozinha numa máquina inteira – Tatiana resmungou, mas Patrícia ouviu.

– Então não reclama que encheu de bolinha!

– Amor... – Mariana toca no braço de Patrícia – Tem uma lavanderia no caminho daquele escritório que eu visito toda semana. Posso começar a levar nossa roupa para lavar lá.

– Até parece – Patrícia pareceu ofendida – Não me oponho a cuidar das nossas coisas, amor. É só que quando se metem no processo eu não consigo garantir a qualidade.

– Que “se metem no processo”, Patrícia? – Tatiana quer saber, zangada – Está falando isso da caralha da toalha que eu lavei na semana passada? É isso?

– Amor... – Mariana agora toca no braço de Tatiana. Ficar entre as duas era ficar entre as farpas trocadas também.

– Só estou falando, Tatiana... – Patrícia rebate, mas não diz mais nada. Tomou um gole de café, fulminando Tatiana com o olhar, do jeito que fazia quando as duas discutiam sem dizer nada.

                Mariana já sabia que quando as esposas começavam a se chamar pelo nome era porque já estavam beirando aquele precipício perigoso, limítrofe das discussões. Mas não interferiu desta vez porque era preferível que elas finalmente brigassem a ficarem só se cutucando. Domingo era dia de lavar roupa suja, afinal.

– “Só estou falando” – Tatiana repete, nitidamente zangada. Se serviu de mais café, como para reforçar isso – Engraçado que o que é para falar mesmo, a senhora não fala.

– Tipo o quê?, de novo essa história, Tati? Achei que não discutiríamos isso junto com ela – Patrícia fala, emendando uma questão na outra. Sua fala saiu de um jeito como se Mariana não as estivesse escutando.

– Que história? – ela perguntou, porque foi inevitável.

– Não, você é quem disse que não discutiríamos isso com ela – Tatiana rebate, também ignorando a esposa no meio das duas – Porque ultimamente, Patrícia, tudo indica que você toma as decisões todas sozinha, faz as coisas tudo da sua cabeça.

– Isso não é verdade – Patrícia retruca, a voz saindo abafada de dentro da caneca de café.

– Então por que você decidiu sozinha o que deveria ser uma decisão compartilhada? Vai, me fala. Nem a Zezé você consultou, Patrícia – Tatiana dispara, jogando de uma vez o assunto na roda. Tinha na voz um tom magoado, ressentido.

– Amor, por favor, olha as coisas que você está dizendo! Não tem nem cabimento estar chateada por causa de uma bobagem dessas... – Patrícia tenta segurar sua mão.

– Não me diga o que tem ou não tem cabimento – Tatiana responde, escapando da mão da esposa, que cai no colo de Mariana.

– Está bem, Tati – Patrícia pareceu se dar por vencida – O que você quer que eu faça agora? Quer que eu descontrate a garota? É isso?

– Peraí, vocês estão falando da Lola? – Mariana pergunta, olhando primeiro para uma, depois para a outra, sem ter uma resposta imediata – Vocês estão discutindo por causa dela? Mas o que rolou?

– Não rolou nada – Tatiana afirma.

 – Rolou que a Tatiana ficou cheia de ciúmes – Patrícia diz, ao mesmo tempo – Ficou mesmo – continua, sendo fuzilada pela esposa – E agora estou vendo que vou ter que demiti-la para voltar a ter um pouco de paz na minha vida.

– Não estou falando que você tem que demiti-la...

– Amor, não faz isso – Mariana pede, intervindo a favor da amiga. Apesar do pedido, porém, falava era com Tatiana – A Lola é tão de boa, benzinha, não precisa ter ciúmes, não, Tati... E, amor – ela se vira para Patrícia – Você viu o sucesso que a Lola fez, nessas poucas noites trabalhando lá no bar. Não demite ela, não, por favor, Pati! Ela ficou tão feliz com a oportunidade, ainda podendo ser efetivada...

– Eu não disse que a demitiria. A Tatiana que quer isso.

– Não quero, não – Tatiana se defende.

– E quer o que, então? – Patrícia questiona, sem ter a resposta da esposa, que só a encarou com uma cara fechada.

– Gata, não tem porquê ter ciúmes, não – Mariana continuava com seu papel de advogada da amiga – Eu garanto para você que ela representa um risco zero.

– Eu não diria isso, Mari – Tatiana se levanta, levando a caneca até a pia. Suas discussões matinais nunca duravam muito porque depois do café ela sempre sentia dor de barriga – Fala para ela, Patrícia.

– Falar o que, amor? – Mariana pergunta, depois que Tatiana sai para o banheiro – Você também está com ciúmes dela? Mas a Lola é só minha amiga, Pati...

– Eu sei, querida. Não é isso – Patrícia se levanta também e joga dentro da pia tudo o que tinha sujado para a preparação do café – A Tatiana ficou enciumada porque eu contratei sua amiga sem falar com ela, sem consultar a Zezé. É só.

– Ah... – Mariana resmunga, agora tudo fazendo mais sentido.

Então era isso. Ficou um tempo quieta, observando a esposa lavar a louça. Patrícia era uma mulher muito bonita e Mariana se lembrou de como ela tinha chamado sua atenção na primeira vez em que a viu, na vontade que teve de beijá-la inteira quando a observou em sua postura toda imponente, dentro de um uniforme tão bonito. Gostava bastante de uniformes!

Aí o pensamento automaticamente migrou para Lola. A amiga, como Mariana, também tinha tesão em vestimentas assim, ela sabia – de fardas a dólmãs. Imaginou sua reação ao ver Patrícia nO Bistrô, quais certamente foram os pensamentos, inflamáveis e libidinosos, que teve com sua esposa e a mera menção a deixou muito incomodada, mesmo sem saber exatamente. Entendia melhor o aborrecimento de Tatiana porque compartilhava agora com a esposa um ciúme ardente que queimava forte a boca do estômago.

– Não vem você também, não – Patrícia reclama, vendo Mariana cruzar os braços, sem nem perceber, brava. Notou no mesmo instante a mudança de energia da esposa, embalada por pensamentos errados.

– E por que então a Tati está zangada com isso? – Mariana mantinha os braços em cima do peito, numa postura inquiridora.

– Sei lá, Mariana. Pergunta para a Tatiana – Patrícia rebate, colocando a louça no secador fazendo barulho.

– Perguntar o que para mim? – Tatiana questiona, de volta à cozinha. Trazia nas mãos as fronhas e lençóis, recém-tirados da cama delas.

                Mariana ficou quieta, observando as esposas interagirem mesmo estando bravas uma com a outra. Patrícia era estressada e Tatiana era quem colocava os panos quentes, em muitas brigas que passavam ao largo do seu conhecimento. Pela primeira vez o motivo do desentendimento estava sendo dividido com ela, e embora enciumada ficou tão feliz que, não fosse o climão, proporia um sexo a três com elas duas.

– Por que vocês brigaram no começo da semana? – Mariana pergunta, finalmente. Esperou Tatiana retornar à cozinha, depois de colocar parte da roupa para lavar dentro da máquina – Estão aí as duas se estranhando não é de hoje... eu não sou boba, galera – ela continua, fazendo as duas rirem – É sério!

– Até brava fica linda – Tatiana a beija. Ergueu as sobrancelhas antes de se servir de café, numa xícara pequenininha, e continuou falando sem olhar para Patrícia – Estamos com uma questão, Mari. Só isso. Um impasse.

– Hum... As bonitas empataram mesmo podendo contar com o meu voto de minerva? – Mariana reclama, notadamente aborrecida.

– Não é isso, meu amor – Patrícia se aproxima e a enlaça pela cintura, com os dois braços – É só porque tem umas coisas que não há a necessidade de te envolver. Por que não podemos te deixar só com a parte divertida da coisa?

– Porque seria irreal, Pati! Poxa... – Mariana responde de imediato, com um biquinho – A gente não se casou com a promessa de não ter  segredos?

– Mas você não é cheias deles, Mariana? – Patrícia tentou ser gentil e só continuou a falar quando a esposa voltou a olhá-la – Amor, só tem coisa que é besteira, que não precisa ser falado. Não queremos te poluir com picuinhas, por exemplo, briguinhas bestas por causa de roupas que ficam com bolinha depois de lavar na máquina.

– “Roupas”, não! Meu uniforme – Tatiana resmunga, recebendo o olhar de Patrícia como resposta.

– Eu não sou cheia de segredos – Mariana se defende. Ainda estava com os braços cruzados, apesar do abraço de Patrícia.

– Claro que é! Pegou meio mundo, passou o rodo, não diz um A dessas histórias – Patrícia diz e Tatiana ri – Fica agora toda noite de cochichinho com essa Lola, que voltou ninguém sabe o porquê...

– Ah, o ciúmes tem a ver comigo também? – Mariana ironiza. Descruzou os braços e envolveu Patrícia igualmente pela cintura, apesar do que dizia – Eu não gosto de me sentir de fora, você sabe.

– Eu sei, meu amor – Patrícia parecia sincera – Me desculpe por se sentir assim. O que você quer saber? Por que nós brigamos?

– É um começo... – Mariana responde. Virou para Tatiana quando ouviu o barulho da garrafa térmica – Amor, chega de café, ei. Está biruta? Ela acha que a gente não está vendo...

                Patrícia sorri diferente para ela, satisfeita por finalmente ter uma aliada nessa batalha. Mariana até então sempre foi de passar a mão na cabeça de Tatiana e depois contraditoriamente sempre se remoía em remorso, quando a esposa passava mal.

– Grata – ela diz, dando um beijo em Mariana, a soltando na sequência. Pegou a garrafa da frente da esposa e apoiou longe, em cima da pia – Bom, o que ocorre é que faz dias que a gente não se entende sobre o que fazer sobre a questão Célia e Bruna.

– A questão Célia, e amante, e Bruna? – Mariana corrige. Serviu café numa caneca e jogou o restante no ralo da pia. Balbuciou um “te amo” para Tatiana, sentada atrás do balcão.

– Isso – Patrícia suspira, se apoiando na pia – Eu acho que ela deveria saber. A Bruna. Me parece absurdamente errado a gente ter descoberto uma coisa desse tipo, grande assim, e não fale nada.

– E a Tati acha que vocês não devem contar?

– Claro que não, a gente está cansada de saber que em briga de casal não se mete a colher... – Tatiana retruca, com uma careta que sempre antecedia suas idas ao banheiro – Você não acha?

– Hum – Mariana resmunga – Sim e não. Eu acho que tem muita briga de casal que a gente tem mais é que se meter, sim. Um monte de relacionamento tóxico por aí, Tati, você nem imagina – ela se apressa em dizer, ao ver a cara que Tatiana fazia – Tem que meter a colher, o garfo, a polícia, tem caso que envolve Conselho Tutelar e o escambau. Porém... – Mariana quase sorriu, ainda olhando para a esposa sentada – Não é de uma “briga” que nós estamos falando. A Bruna nem sabe que é corna.

– Ai, amor – Tatiana reclama, mas ri.

– Credo, amor – Patrícia reclama também, mas ao contrário da esposa, permaneceu séria.

– É verdade. Briga elas provavelmente vão ter quando o caso vier à tona. Se vier – Mariana reforça, encarando Patrícia – Porque não acho que você deva falar nada, amorzinho.

– Mas, Mari... – Patrícia começa a rebater, mas Mariana a interrompe.

– Gata, você não sabe dos acordos que as duas podem ter... Sabe? Pois é, não sabe – Mariana retruca, balançando a cabeça – Tem muito casamento aberto por aí, muito relacionamento fora dos moldes. A começar pelo nosso!

– E se quando a Bruna descobrir, ela souber que nós sabíamos e não dissemos nada? – Patrícia pergunta.

– Você não é amante – Tatiana fala, ao mesmo tempo.

– Então parem de me tratar como uma, que tal? – Mariana diz, as surpreendendo. Ouviu o que Patrícia dizia, mas aproveitou a brecha que Tatiana dava – Não quero ser poupada das relações de casal, se nós somos um. Ou quase isso. Quero fazer parte até das brigas bestas. Faz meses que insisto nisso, mas parece que vocês não me escutam.

– Não é verdade – Patrícia responde, na defensiva.

– É verdade, sim – Mariana insiste – E se a Bruna descobrir que a Célia tem outra e eventualmente souber que vocês já sabiam, pode jogar a responsa para mim. Não ligo, eu assumo que fui eu quem sugeriu de não falarem nada. Não acho que vamos chegar a esse ponto, mas tudo bem se chegarmos. Prefiro admitir que estava enganada a ver vocês se colocando em saia justa sem motivo.

– Você tem implicância com elas – Tatiana sorri.

– Claro que tenho! Elas têm comigo! – Mariana responde, no mesmo instante – As únicas pessoas que aprovam o nosso relacionamento somos nós três.

– Ótimo, porque é quem deve aprovar, mesmo – Tatiana se levanta e a abraça por trás – Fodam-se os outros, amor. Somos nós por nós.

– Então compartilhem comigo os segredos – Mariana pede, dando a mão para Patrícia, que se aproximou mais delas – Eu amo tanto vocês – ela olha primeiro para uma, depois para a outra.

– Também te amo, coisa fofa – Tatiana a beija e depois dá um beijo em Patrícia – E de verdade eu não me oponho em compartilhar tudo com você, até as questões mais desconfortáveis ou bobas e cotidianas – complementa, mostrando de onde vinha a resistência.

– Tá, por mim tudo bem também – Patrícia fala, levantando os ombros – E não falo nada sobre a tal amante para a Bruna, espero que ela entenda e não me odeie quando tudo isso explodir e vier à tona.

– Não vai – Mariana afirma, piscando um olho – Agora me diz, você – ela olha de repente para Tatiana e ergue o queixo – Por que está enciumada com a Lola? O que rolou entre ela e a Patrícia?

– Não sei – Tatiana responde, surpresa. Não imaginou que a conversa inverteria para aquele lado assim, de repente, nem que Mariana perguntaria daquela forma – Mas não gostei do que senti ao vê-las juntas e eu confio bastante no meu feeling.

– Ah... – Patrícia resmunga, suspirando, mas é contida por Mariana.

– O que você sentiu?

– Não sei, esses pelinhos aqui se eriçaram – Tatiana passa os dedos pela própria nuca.

– Isso lá é argumento, gente? – Patrícia reclama, mas estava rindo.

– Ela contratou uma bartender sem consultar a própria gerente, Mari – Tatiana continua, porque Mariana mantinha o foco nela – Nada que a Patrícia faz naquele restaurante é sem o aval da Zezé, das coisas mais simples às mais complexas, por exemplo, a contratação de alguém.

– É só um contrato temporário... – Patrícia resmunga de novo, mas nenhuma das duas presta atenção.

– Não foi indicada por ninguém, chegou sozinha e ninguém sabia de onde – Tatiana continua, listando nos dedos os motivos que a levavam à desconfiança – Pati a deixou de camisetinha. Isso foi o auge.

– Para ela, isso foi o auge – Patrícia retruca, junto com ela.

– Claro que foi! – Tatiana rebate, chateada – Camiseta regata, um decote enorme... Nem a própria Vigilância Sanitária recomenda roupa assim quando se maneja comida, bebida – ela vira os olhos, em desgosto. Seu suspiro profundo complementou bem o que estava dizendo. Tatiana era a verdadeira personificação do ciúme – Parece que gostou tanto do corpo da mulher que contratou sem nem conhecer direito, abrindo exceção logo de cara, se arreganhando inteira... Eu sei que ela bem faz o seu tipo, te conheço, dona Patrícia...

– Não me “arreganhei” nada – Patrícia ri e a puxa para um abraço – Minha ciumenta linda – as duas se beijam, Tatiana resistindo um pouco no começo, mas logo cedendo – Não tem nada a ver isso de fazer o meu tipo. Eu tenho duas esposas, meu amor. Duas, por falta de uma. Olha bem para a minha cara e vê se pareço estar procurando mais uma – ela cerra os olhos, meio dramática – Tenho nem tempo para isso, eu hein. E agora sabemos que a bartender é amiga da Mari, que a história que ela contou é verdadeira, não é mesmo? Não há mais motivo para nenhuma desconfiança.

Agora a gente sabe – Tatiana ressalta.

– Não, sabemos disso desde a primeira noite, Tati – Patrícia a lembra, dando outro beijo na esposa – E desde então você está de bico.

– Vocês estão brigando por isso há três dias? – Mariana pergunta.

 – Não chamaria de “briga” – Patrícia desconversa.

– Há três noites, sim – Tatiana fala junto – A gente espera você dormir e discute. Toda noite pelo mesmo motivo.

– Mentira! – Mariana ri – Vocês duas, hein...

– É, mas passou – a esposa reforça – Se acontecer de novo, te falo.

– Sim e você tem que contar também, Mari. Tudo – Patrícia diz.

– Claro, amor. O que você quer saber?

– Tudo, Mariana – Patrícia repete – Inclusive o que tanto você conversa com a Lola, toda noite.

– Está com ciúmes de mim? – Mariana provoca, mas logo desiste por conta do olhar que Patrícia lhe atira – A gente conversa sobre tudo, Pati. Conheço a Lorraine desde a adolescência.

– E precisa ser cochichando? – a esposa insiste, apoiada pelo olhar de Tatiana, que parecia perguntar a mesma coisa.

– Precisa, porque ela tem vergonha de falar certas coisas em voz alta – Mariana ri, primeiro do jeito que ria quando tirava sarro da cara da amiga, depois riu diferente, ao se lembrar do motivo da vergonha – A Lola saiu meio fugida dos Estados Unidos.

– Ela se envolveu com alguma gangue? – Patrícia pergunta.

– Se envolveu com mulher casada? – Tatiana pergunta também.

– Se envolveu foi com homem. Se apaixonou e tudo – Mariana ri ao notar a reação das esposas diante da informação – Foi até pedida em casamento. Aí surtou com o pedido, disse “não”, fez as malas e voltou. O cara deve estar até agora querendo saber onde foi que ela se enfiou.

– Não sabia que ela era bi – Patrícia comenta, surpresa.

– Nossa, que história – Tatiana retruca.

– É, mas tudo bem, ela já está de rolo com outro – Mariana mexe a mão, descartando o assunto.

– Com outro homem? – Patrícia quer saber. Na mesma hora a máquina fez um barulho que a fez mexer a cabeça – Amor, você está lavando os lençóis no ciclo longo? Não, Tati... – ela emenda e vai até a máquina.

– Sua amiga está de rolo com outro homem? – Tatiana repete a pergunta, depois que a esposa sai.

– Não, isso eu inventei – Mariana ri, piscando para ela – Segredo nosso, Tati, shiu – ela ri de novo – Jamais acharia que a Lola faria algo com a Patrícia, assim como não acredito que a Pati nos trairia, mas... Me pareceu uma boa maneira de acabar com qualquer encanto que possa existir dela em relação à Lola.

– Que sagaz – Tatiana dá um beijo nela – E como vou saber se não tem segredinhos com a Pati também?

– Não vai – Mariana ri de novo – Assim como não vou saber se vocês continuam esperando eu dormir para brigar.

– Se isso acontecer eu te falo.

– Aham – Mariana ri mais uma vez – Preciso lavar meia, você tem alguma suja para juntar com as minhas? Não quero lavar com toalha e encher de bolinha...  


*
A Novelinha continua clicando aqui.

*


Sabia que ao comprar o livro físico da Novelinha, além de contribuir com esta autora, você tem acesso a uma história exclusiva?


Clique aqui para acessar o menu completo com todas as histórias.

Ajude esta escritora independenteclique aqui e faça uma doação
Você não precisa se identificar, se não quiser! 💙


Postagens mais visitadas