3xTPM - O trisal (1ª parte)
Esta é a décima história da Novelinha.
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Em três minutos, cinco aviões passaram no recorte de céu ao qual Mariana tinha acesso, todos voando no mesmo ângulo e direção, refletindo as últimas luzes do sol daquele dia. Sua cama posicionada bem debaixo da janela de seu quarto a permitia ver, meio de ponta-cabeça e através da grade, um fundo de céu azul salpicado de nuvens e aviões, provavelmente a caminho de Guarulhos.
Carregados de pessoas e com cargas
impregnadas de histórias, desembarcariam todos bem perto de seu endereço, o que
a deixava reflexiva porque não conseguia mensurar a quantidade de novas
interações que isso gerava, por segundo, só naqueles poucos minutos deitada na
cama, pensando no assunto. Bombeou o remédio de asma porque sempre ficava
ansiosa com contas que não conseguia calcular.
– Ué, ainda está aí? – Perla pergunta, parando na porta do quarto,
ao passar pelo corredor e ver Mariana deitada na cama, de pijama.
As duas moravam juntas há quatro
anos, após correrem juntas de um assalto, na praça da Sé. Viraram amigas e
colegas de quarto na mesma época e não se separaram mais.
– Achei que nem te encontraria mais em casa. Você não ia sair?
– Eu vou... – Mariana resmunga. Levou alguns segundos para desviar
os olhos do céu e olhar para a amiga, que tinha chegado da rua e usava um batom
bem vermelho, que combinava com o lenço que ela tinha amarrado no pescoço –
Marquei de me encontrar com a Gi. Nós vamos numa livraria e depois vamos
jantar.
– Sim, você mencionou sobre esse passeio, sobre o restaurante lá
da crítica do jornal e tal. Só estranhei que ainda não está vestida, já são
quase seis e meia... – ela continua, indo para o seu quarto, cuja porta ficava
de frente para o quarto de Mariana – Sua namorada não sai às seis e pouco do
trabalho?
A pergunta
faz Mariana respirar fundo, parecendo desolada. Ou desanimada. Virou a cabeça
para ver as horas no relógio quadrado que ficava ao lado da cama e suspirou de
novo, agora de maneira ainda mais ruidosa, porque no final gemeu, fazendo um som
de lamúria. Sim, Gisele tinha saído do trabalho há exatos 23 minutos, mas
“namorada” não era bem o rótulo que Mariana usava quando pensava nela.
– Amiga, me empresta aquela sua blusinha cavada? Sabe?, aquela que
é sem estampa? – Perla pergunta, entrando de repente no quarto, abrindo o
guarda-roupa antes de ouvir à resposta. Estava com um roupão rosa e felpudo e
chinelos que lembravam pantufas, da mesma cor – Pensei em usar aquela calça preta
que te mostrei ontem, você acha que combina? – ela foi passando os cabides, num
quase monólogo porque sempre falava muito mais rápido do que Mariana respondia –
Marquei de ir ao cinema com as meninas, a Fê e a Ju, depois vamos descer naquela
hamburgueria gay, na República. Quero ir confortável porque esse rolê de metrô
é cansativo, me sinto uma formiguinha fazendo aquela baldeação para a linha
amarela...
– Nossa, vocês vão naquele lugar lotado! Que coragem... – Mariana
resmunga, finalmente se sentando. Seu cabelo estava bagunçado atrás, mas ela
penteou com a mão apenas a franja – Sua calça nova combina com a blusinha, mas
depende do que você vai calçar, Pê... O que tem em mente?
– O tênis preto. A sapatilha. O sapato Oxford. O all star – Perla
foi falando, até que Mariana parasse de fazer careta.
– Linda! Arrasa! Usei um look parecido naquela reunião semana
passada, lembra?
– Claro que lembro, com a gravata. Estava muito gata! Deveria usar
mais vezes, amiga. Ia chover mulher na sua horta... Mais ainda!
Perla encontra a blusa que estava
procurando, depois de empurrar vários cabides para o lado. Foi até seu quarto e
voltou, já vestida, mas ainda descalça, parando em frente ao espelho grande para
contemplar seu visual. Mariana permanecia sentada no meio da cama e viu a amiga
fazer o biquinho que geralmente ilustrava suas fotos do Instagram, o que era um
sinal de aprovação. Na sequência, ela começou a ajeitar o cabelo, num processo
que levava vários minutos.
– Quero muito ter mais reuniões para poder usar gravata mais vezes
– Mariana finalmente se levanta e pega uma calça jeans, no encosto da cadeira. Tirou
o short do pijama com o pé, sem cerimônia, puxando a calcinha enfiada na bunda,
também sem se constranger com a presença de Perla, que ainda ajeitava o cabelo,
desfazendo os nós com um pente amarelo e uma careta. A mesa de trabalho estava
cheia de papéis e foi dali que Mariana puxou um sutiã branco – Quero de
preferência fechar os contratos depois desses encontros de negócios, e ganhar bastante
dinheiro – ela deixa os óculos na mesa e tira a camisa, caminhando de sutiã até
o guarda-roupa. Pegou a primeira camiseta, sem pensar muito. Até porque a vista
estava embaçada – No próximo ano, a minha empresa vai crescer, você vai ver!
– Vai sim, Mari! E aí você vai se mudar para longe de mim...
– Claro que não, Pê. Já te disse que só te largo quando você se
casar.
– Aham – Perla estreita os olhos para a sua roupa – Amiga, essa
sua camiseta está meio amassadinha...
– Ah... – Mariana olha para baixo – Faz de conta que foi o cinto
de segurança que amassou... – ela alisa o tecido, em direção à cintura, mas
logo para porque o movimento não altera a aparência da roupa – Já estou
atrasada e a Gi sempre reclama quando sai do trabalho e eu ainda não cheguei.
Ela nunca acredita que o trânsito me atrapalha!
– Atrapalha a todos... – Perla fala, rindo meio triste. Ela vai
até seu quarto e faz barulho de lá, mexendo nos sapatos. Volta depois de alguns
segundos, já com o visual completo, e se olha mais uma vez no espelho de
Mariana – Atrapalha especialmente quem precisa pegar a Marginal para ir a
qualquer lugar, como nós.
– Então, exatamente... – Mariana resmunga.
– Por isso que a gente sai mais cedo de casa, né, bonita – a amiga
ri, balançando a cabeça, divertida – Ué! Você vai usar essa correntinha? – Perla
pergunta, vendo Mariana puxar um colar, depois de trocar os brincos por outros,
menores.
– Ai, vou... Hoje é uma noite importante, preciso do meu amuleto –
Mariana fecha o colar atrás do pescoço, apoiando o pingente de gota entre os
seios.
– Você vai terminar com a Gi hoje? Já? – Perla parecia surpresa
porque era isso o que o colar significava: término – Ah, não, se bem que... –
ela levanta os olhos até o teto, fazendo conta nos dedos, balbuciando baixinho –
É, está certo, já deu sua cota de encontros – ela ri.
– Não gosto de compromissos... – Mariana resmunga, desta vez de
maneira quase inaudível. Mas Perla ouviu, porque a convivência a fazia ter o
poder de traduzir os seus resmungos.
– Sabemos, amiga! – ela ri de novo, caminhando em direção à porta.
Parou no portal e a olhou por cima do ombro – Você já está quase igual àquela
doida que conheceu no bar aquela vez, que só sai três vezes com a pessoa. Como que
ela se chamava mesmo?
– Rita – Mariana responde, mas a amiga respondeu junto com ela.
– Essa – Perla deixa o quarto, rindo mais alto – Está igual à
Rita. No quarto encontro, colar de amuleto nelas!
Mariana só
balança a cabeça. Segurou o pingente por um instante, mentalizando o cuidado que
deveria ter com a joia, que estava com o fecho quebrado. Era mais solto do que
ela! Mas pareceu seguro, então se comprometeu a só checar eventualmente se ele
ainda estava por ali, ao longo da noite. Perdê-lo seria um crime!
– Pê, tchau, estou saindo, nos vemos na volta. Venho dormir em
casa. Se divirta! E se cuida! – Mariana diz, de saída, se abaixando no sofá e
afagando Percival, o gato – Nonô, se comporte e não arranhe a mobília.
– Beijos, Mari! Boa janta e bom término para você! – Perla diz, lá
de dentro, a voz saindo abafada pela escova de dentes.
Mariana
sorriu, trancando a porta. Achava a amiga muito espirituosa quando não se
tratava de sua própria vida afetiva e amorosa. Depois sorriu de novo, ao
encontrar lá embaixo seu carro estacionado na vaga de garagem, no subsolo.
Entrar ali exigia um bom domínio de baliza, que ela aprendeu às custas de
arranhões na pilastra do estacionamento, disfarçados na funilaria – algumas
vezes.
Ao embarcar e
colocar o cinto, pegou a bombinha de asma que ficava no porta-luvas para
emergências e bombeou, guardando no bolso, sem perceber. Aspirou o remédio talvez
por hábito, talvez porque estava mesmo com falta de ar. Terminar nunca é legal,
afinal! O relógio no painel marcava 18h47 quando deu a partida e 18h49 quando
abriu o portão com o controle que ficava no quebra-sol, junto de um espelho que
mostrou seus olhos castanhos envoltos em sardas, sem maquiagem.
Gisele
estaria zangada, com certeza, e pensar nisso a convenceu de que terminar com
ela era mesmo a melhor solução para as duas. Mariana não gostava de ter que
cumprir horários e expectativas que eram criadas sem a sua participação.
Perla
brincava com essa história, mas a publicitária bêbada tinha razão quando dizia
que as mulheres se apegam com facilidade. Só que talvez fosse um pouco além
disso porque o apego era sempre a fantasias regadas a uma carência meio
absurda. E Mariana, assim como Rita, que conheceu por acaso numa noite, no bar,
tinha uma sincera preferência pela sua liberdade e fugia dos dramas alheios.
Com o tempo, se cansava até de ter que responder aos “bom dia” que lhe enviavam,
e este era quase sempre o primeiro indício de que o término com quem quer que
fosse já estava próximo. Não tinha saco para essas “conversas de porteiro”:
“Dormiu bem?”. “Almoçou?”. “Já jantou?”. “O que está fazendo?”.
Nessas horas
era impossível fugir da desculpa clichê de “o problema não é você, sou eu”,
porque ela reconhecia a sua parcela de responsabilidade em todas as relações
que não iam adiante – por sua causa, sim. O pensamento fez Mariana rir, entregando
a chave para o manobrista do estacionamento. Viu Gisele parada perto da
entrada, já a esperando, mas de passagem não soube identificar o seu nível de
brabeza ou humor.
– Oi, você está atrasada – Gi a cumprimenta, com um selinho rápido
– Foi o trânsito, eu sei, Mariana – se antecipa, antes que ela falasse isso.
– É, e eu saí um pouco tarde de casa. A Pê estava por lá e...
– Ah, sim – Gisele a interrompe. Virou os olhos, de um jeito
irritante, contraditoriamente entrelaçando seus dedos nos dela, ao dar a mão
para Mariana – Eu quero ir à livraria, e depois podemos ir a pé até o tal restaurante
que você sugeriu. Vi no Google que não é longe daqui – ela olha para os pés de
Mariana – Mas podemos voltar e pegar o carro.
– É, minha “sandália de Jesus” não é exatamente o calçado para
longas caminhadas... – Mariana resmunga, também olhando para seus pés.
Caminharam juntas sem dizer mais
nada. Isso era típico entre elas: sempre faltavam os assuntos, e aqueles poucos
que tinham em comum se esvaziavam rapidamente porque eram realmente escassos. O
relacionamento entre as duas era preenchido por uma falta de sintonia
totalmente oposta à que encontravam na cama, onde pegavam fogo quando tiravam a
roupa. Por sorte, durante o sexo elas não precisavam conversar.
Mariana ajeitou o cabelo, que
bagunçou ao entrarem debaixo do ar-condicionado da loja, e soltou a mão de
Gisele para tocar no pingente do colar dentro da blusa, se certificando de que
ainda estava ali. Pensou que talvez fosse melhor terminar com a mulher depois
de comerem. Estava com fome e o apetite pareceu aumentar ao pensar no
restaurante para onde iriam, saindo dali.
Ela se distraiu vendo os livros
empilhados bem na entrada da livraria, naquelas armadilhas deliciosas que nos prendem
e nos fazem perder tempo por puro prazer. Viu ali, com destaque, um
livro-reportagem sobre o café do século 21, que sabia ter sido escrito pela ex,
ainda que aparecesse outro nome assinando na capa. Não se demorou pensando em
Márcia, a ghost writer sigilosa, porque Gisele a chamou, ao parar na
fila do caixa. Ela ia comprar um livro de autoajuda – o que, para Mariana, era tão
grave quanto a mania que Marcinha tinha, de fazer vozinha de bebê. Não dá nem
para dizer “em horas impróprias” porque para isso, todas são.
– Esses dias eu atendi o autor daquele livro que você estava
folheando – Gisele fala, avançando um passo na fila.
– Hum? – Mariana pergunta, distraída. Empurrou os óculos,
pensativa – Ah! O livro do café? Cê jura? – ela dá uma risadinha, mas a
controla porque não podia jamais revelar a identidade de uma escritora fantasma
– Legal, Gi, ótimo relato.
O comentário
faz Gisele suspirar, irritada, mas ela não diz nada porque chegou sua vez de
ser atendida e porque achou que ainda estava cedo para uma cena. Pagou por sua
compra aborrecida com a desatenção de Mariana, que nunca parecia escutá-la, de
verdade. Um bom exemplo era agora: Gisele nem tinha relatado o ocorrido com o
autor do tal livro sobre café! O desinteresse parecia um traço intrínseco de personalidade
de Mariana.
Mas
curiosamente essa falta de interesse não era percebida quando o assunto era o
seu carro, por exemplo. Mariana sempre sorria quando o via parado nos lugares.
Sempre! Tinha um nítido apego pelo automóvel, maior a qualquer pessoa,
inclusive. Até mesmo à Perla, a amiga faladeira que dividia o aluguel com ela.
Mas Gisele jamais falaria isso porque este era um ponto nitidamente sensível
para Mariana, que defendia a amiga (mais que ao carro, que não se metia em
confusões), e agora seguia alheia aos seus pensamentos, guiando um automóvel perfumado
e com ronco alto por ruas indicadas pelo GPS do celular, preso no painel com um
lacinho preto.
Há quase uma
semana Gisele a ouvia falar empolgada sobre o tal O Bistrô. E por algum motivo,
alimentou esses dias todos a ideia de que Mariana a pediria em namoro durante o
jantar.
– Olha, que bonito! Já gostei! – Mariana diz, entrando devagar com
o carro no estacionamento. O espaço era iluminado por luzes que saíam do chão e
era todo cercado por um jardim vertical, que combinava com o paisagismo da
fachada do restaurante, que tinha bastante verde – Te falei sobre a crítica que
eu li sobre aqui, né? Muito, muito boa! A dona é lésbica!
– É impressionante como isso parece ser importante para você... –
Gisele vira os olhos, enlaçando o braço no dela, caminhando pelos pedriscos do
chão do estacionamento.
– Claro que é importante! – Mariana pareceu ofendida – Nós temos o
dever de fortalecer a cadeia sapatão, amada! Contratar e consumir serviços
lésbicos, os produtos. Fazer nossa parte!
Ela parou de
falar porque ao passarem pela porta a beleza do salão chamou sua atenção. Nem
todas as mesas estavam ocupadas, e as que permaneciam vazias eram arrumadas
exatamente iguais, num primor que até ela, distraída, percebeu. Viu uma mulher esticando
uma das toalhas e reconheceu que era quem mantinha a organização de tudo.
Provavelmente a gerente, porque ao contrário dos funcionários, todos muito bem
vestidos, ela estava com roupas normais e não havia o logo dO Bistrô em nenhuma
das peças que usava.
Ao se
sentarem, com Gisele à sua frente, Mariana permaneceu olhando para a mulher,
que ainda encontrava pelas mesas lá no fundo detalhes para ajeitar,
eventualmente conversava sorridente com algum garçom. Sabia não ser a chef
porque Mariana tinha visto uma foto de Patrícia no jornal. Inclusive a achou linda,
lhe pareceu ser aquele tipo de mulher destemida, acostumada a conquistar e
pegar tudo o que quer. Achava um tesão quem tinha atitude assim!
Não ouviu o
que Gisele dizia (alguma besteira sobre o menu) porque depois de um tempo a
mulher finalmente esbarrou em seu olhar. Impossível isso não acontecer, depois
de Mariana dissecá-la por longos minutos! Queria sorrir para ela, talvez para
agradecê-la em silêncio pelo seu bom trabalho prestado, talvez porque a achou
bonita dali, naquela postura de dona do lugar – qualquer que este seja.
Tatiana a viu
quando estava a caminho do escritório. O movimento no salão em breve já seria
intenso e ela não gostava de ficar ali nesses momentos, então sempre se
recolhia. Ora ficava na cozinha, ora no escritório, e transitava entre os
ambientes pela escada interna, que dava acesso à despensa, na parte de cima do
restaurante.
Na passagem, viu que Mariana
estava acompanhada de alguém que falava sem a sua atenção, focada nela, e
sorriu quando Tatiana não desviou o olhar.
– ... quero também uma água com gás, com limão, por favor – Gisele
termina de fazer o pedido e encara Mariana, aguardando, assim como a garçonete.
Estava com uma das sobrancelhas levantada, do jeito que fazia quando ficava
nervosa.
– Claro, aceito. O mesmo para mim, por favor – diz, distraída,
fechando o cardápio, como se o tivesse lido. Ajeitou a postura e colocou a mão
no peito, sentindo de novo a correntinha debaixo do tecido da blusa.
Essas encaradas de Gisele eram
cansativas. Mais um motivo para terminarem, Mariana pensou, chateada por ter
esquecido seu relógio, quando olhou no pulso e o viu nu. Sabia que não podia
pegar o celular para ver as horas porque isso era considerada falta grave pela
mulher, que dizia que o aparelho desviava o foco. Mariana trabalhava de casa,
era 100% dependente do celular, mas Gisele nunca queria ouvir suas
contestações. Outro motivo para querer terminar.
Mas seria discreta, escolheria muito
bem as palavras, talvez só tivessem a conversa durante ou depois da sobremesa.
O que menos queria para a sua noite naquele restaurante tão bonito era um
vexame, uma cena que sabia que Gisele tinha o potencial de fazer. Ela adorava
um drama! Mais uma razão para mandá-la passear.
Não que procurasse por isso, mas sem
querer, Mariana listava motivos para terminar seus envolvimentos sexuais –
porque dizer “envolvimentos amorosos” traz uma seriedade que ela própria não
empregava a nenhum dos relacionamentos que manteve. De repente se enjoava e aí
ela mesma se convencia dos motivos que a levariam àquela conversa que hora ou
outra sempre tinha.
Em sua defesa, sempre era honesta
e franca o suficiente para ser bem explícita com todas que se envolviam com
ela. Deixava os termos às claras, desde o primeiro beijo, quase. Mas muitas se
esqueciam disso depois da primeira transa. Aconteceu com Gisele, com Márcia,
que veio antes e outras. Mariana não contava, mas a lista era extensa.
Estava absorta nos pensamentos, já
começando a ensaiar mentalmente a conversa indigesta que teria em breve quando
viu no fundo uma porta se abrir e de dentro sair a chef.
– Alá, a dona da porra toda – Mariana diz, notadamente admirada, a
vendo atravessar o bar num passo determinado, bem vestida com seu uniforme, o
logo bonito do restaurante estampado no peito. Seu sorriso aberto enquanto a
observava deixava clara a admiração (interesse, talvez) que tinha pela mulher.
Gisele aprendeu a reconhecer esses
sinais nela. Os sorrisos que Mariana não controlava, as encaradas indiscretas e
sem perceber a mulheres que faziam o seu tipo, as piscadas nervosas que surgiam,
sempre quando ela não conseguia mentir, depois de ser intimada. Em partes, foi essa
transparência que a fez se apaixonar, mesmo ciente de que não podia. Mas quem
controla isso?
Patrícia curiosamente pareceu
atraída pelo seu olhar e seu sorriso, porque ao olhar para ela, sorriu também. Foi
um sorriso breve, mas cheio de significado. Pareceu, para Gisele, que a chef também
tinha algum interesse em Mariana.
– Eu li que ela é casada – Mariana revela, vendo Patrícia conversar
com um garçom. Mesmo distante delas, seu tom foi de quase cochicho – São um
orgulho para o vale, quase dez anos juntas, ela e a esposa.
– Poxa... – Gisele responde, notavelmente desinteressada.
– Estou ansiosa pela comida! – Mariana continua, sorrindo como uma
criança num dia de parque, indiferente à postura sisuda da mulher – A
propósito... o que vamos comer?
– O prato da casa. Você não ouviu, estava no mundo da lua como
sempre, mas pedi para providenciarem a versão vegetariana para você – Gisele
responde, um pouco seca. Virou os olhos ao responder.
– O prato da casa – Mariana repete, como se só tivesse escutado
essa parte.
– Oi, meninas. Com licença, boa noite – a chef surge de repente e
para na lateral da mesa. Tinha um avental na cintura que estragava um pouco o
visual, na opinião de Gisele, que fez questão de encará-la de maneira demorada,
inclusive desviando o olhar para a peça, amarrada com um laço – Vocês que pediram
a versão vegetariana do especial da casa, né? – Patrícia sorri, um pouco sem
graça, um pouco divertida.
– Sim, é possível? – Mariana pergunta, tirando os óculos para
limpar a lente, mas a barra da camiseta a deixou ainda mais suja, o que ela só
constatou ao colocá-los de volta no rosto.
– É que são frutos do mar... temperados com molho de camarão –
agora Patrícia sorriu.
– Ah – Mariana resmunga, decepcionada. Empurrou os óculos sujos de
armação grande, que deslizavam pelo nariz, ameaçando pegar o menu.
– Não temos nada exatamente vegetariano aqui nO Bistrô – Patrícia
se desculpa, mudando o peso do corpo para a outra perna, a vendo parar com a
mão no ar – É uma falha que nós vamos consertar, obviamente. Já no próximo ano –
ela se apressa em dizer.
– É, porque... – Mariana resmunga, com a cabeça baixa. Era nítido
que estava chateada – Eu estava super animada de jantar aqui e aí...
– Posso preparar algo especial para você. Tudo bem? – a chef
pergunta, tomando o cuidado de olhar em seguida para Gisele, e sorrir para ela
também – Farei algo que não está no cardápio, mas com o padrão dO Bistrô. Eu
asseguro.
– Perfeito! – Mariana sorri, as covinhas se marcando ao lado da
boca – Eu agradeço, Patrícia – diz, e vê a mulher inclinar a cabeça, surpresa
por ela saber seu nome – Eu me chamo Mariana, essa é a Gisele – ela aponta para
a mulher, que não retribui o sorriso – Agora estou ainda mais ansiosa pela sua comida,
grata!
– Ótimo! Fico feliz por conseguir isso, Mariana! Com licença! –
Patrícia se afasta.
– Acho impressionante como em todo lugar onde vamos as
mulheres se jogam em cima de você – Gisele reclama, vendo Patrícia passar de
volta pela porta que levava à cozinha.
Mariana não
diz nada. Só levantou os ombros, bebericando a água com gás que a garçonete
tinha servido, num timming perfeito para que permanecesse quieta. Se
emudeceu porque não queria brigar e também porque não era a primeira vez que
ouvia algo do tipo.
Ela não fazia nada, exatamente, e
em geral não acontecia nada também, ainda que adorasse flertar. Era fã desse
jogo “inocente” de sedução que envolve as trocas de olhares, os sorrisos, os suspiros.
Mariana adorava a emoção do primeiro beijo, a adrenalina de ficar nua no
primeiro contato antes do sexo. Era uma pena que depois a rotina sempre corroía
e este era o principal motivo para ela fugir de relacionamentos: todas as
mulheres que conhecia eram sempre muito ciumentas e muito possessivas, além de
monogâmicas. As poli que conheceu conseguiam ser ainda mais malucas porque se
negaram a ter um relacionamento aberto com ela.
A garçonete trouxe aperitivos que
não tinham pedido, o que provocou novas reclamações de Gisele, literalmente de
boca cheia. Mariana não prestou muita atenção no que ela dizia, de novo, porque
nas observações que fez desde que tinham chegado, mais ninguém tinha recebido
entradas semelhantes, como aquelas. Patrícia enviou para a mesa delas canudinhos
compridos feitos de pão e molhos como acompanhamento: cinco opções diferentes.
O jantar foi trazido pessoalmente
pela chef, acompanhado por mais um pedido de desculpas. Ela disse algo sobre o
novo cardápio, que seria apresentado já nos próximos dias, mas Mariana não
escutou porque se perdeu no verde dos olhos de Patrícia, toda compenetrada, explicando
detalhes que não ouvia.
Certamente, se Gisele não
estivesse ali ela lançaria algum galanteio para a chef depois dessa. Algo inocente,
só para fazê-la sorrir, descontrair. Mariana adorava fazer as mulheres rirem!
Mas se conteve, em respeito à sua acompanhante de jantar. Ainda assim, ganhou
um sorriso de Patrícia, antes de ela deixar a mesa, voltando à cozinha, desta
vez de maneira terminativa.
Mariana ficou de olho, mas não a
viu mais.
O jantar estava saborosíssimo. Mariana
tinha fome e vontade de comer, e antes de terminar já estava convencida de que
voltaria aO Bistrô. O tempero de Patrícia era único, nunca tinha comido nada
igual. Literalmente, porque não sabia o nome do prato que a chef tinha lhe
servido. E não soube nem depois, porque ele não foi listado na conta.
– Até mulher casada cai na tua lábia... Impressionante – Gisele
reclama, depois que pagaram a conta.
– Que lábia, Gi? Eu não disse nada, nem pedi nada! O restaurante é
que não tinha como me servir e a dona deu um jeito, ué.
– E nem cobrou... – Gisele vira os olhos, bufando – Foi o que eu te
falei mais cedo sobre você atrair as mulheres...
– É, isso acontece mesmo. Sinto muito, Gi! – Mariana falou num tom
diferente e fez uma careta que completou bem (ou mal) a sua fala, os ombros
levantando, em uníssono. Pôs a mão na bombinha, no bolso.
– O quê? – Gisele pergunta, a expressão demonstrando choque e
incredulidade – Você está terminando comigo? É isso, Mariana?
– Não quero causar transtorno para você, discórdia entre nós,
desgaste para mim... – ela responde, um discurso parecendo recorrente – Acho
que já chegamos num ponto em que não dá para avançarmos mais, então o melhor é
pararmos por aqui. Até para que não se machuque.
– Você já pretendia fazer isso hoje? – Gisele volta a perguntar,
mas não aguarda o tempo da resposta – Ora, é claro que pretendia. Provavelmente
até esperou o momento certo para me descartar...
– Desculpa – Mariana resmunga.
– Pelo quê? – Gisele questiona, um tom mais alto, a veia latejando
na têmpora – “Desculpa” por terminar comigo, por me frustrar, ou o quê?
– Te frustrar de quê? – Mariana quase cochicha, na tentativa de
sensibilizá-la, quem sabe de evitar um barraco.
– A semana inteira enchendo o saco para vir nesse restaurante –
Gisele bate as mãos fechadas contra a mesa e no chacoalhar os copos fazem um
ruído – Aceitou ir comigo à livraria sem reclamar, não disse um “a” sobre o
livro que eu comprei – ela bate as mãos novamente, como se socasse a toalha.
Com o gesto, as pessoas em volta olharam para elas – Não sei, nossa, pareceu
que estava querendo me agradar! Mas não! – Gisele grita, batendo os punhos agora
com mais força – Me trouxe aqui só para me dar o fora! E já estava cortejando
outra!
– Gi... Eu... – Mariana gagueja, sendo encarada por dois olhos
fuzilantes e contraídos – O que eu deveria falar sobre o seu livro? Que doida!
– Mariana! – Gisele se levanta ao gritar, mas ergue a mão como se
pedisse calma para alguém. Neste momento, o restaurante quase todo olhava para
ela. Manteve a posição enquanto a respiração saía rápida pelo nariz, fazendo um
barulho alto. Quando retornou a falar foi mais baixo, por sorte, e ficou com os
olhos fechados – Eu prometi para mim mesma que quando chegasse essa hora eu não
faria uma cena.
– Eu... – ela não soube o que falar. Pareceu que Gisele esperava
que dissesse algo, mas o que dizer numa hora dessas? Puxou o remédio de asma do
bolso. Sorte que estava à mão!, a discussão a deixou sem ar.
– Espero que tenha a decência de não demorar a ir buscar suas
coisas em casa. Já vou deixar separado – ela puxa a bolsa, vendo Mariana
bombear o remédio – Espero que sempre lembre de mim, quando vier aqui – Gisele
olha à volta, com desdém, no rosto uma expressão de quem cospe no prato que
comeu. Se virou e saiu, sem dizer mais nada.
Mariana não levantou
para ir atrás porque não adiantava e também porque não queria. Ainda faltava o
cafezinho, que veio em duas xícaras que ela bebeu sozinha. Tirou os óculos
quando a lente embaçou e porque assim era mais fácil de não reparar nas pessoas
que ainda olhavam para ela, algumas cochichando comentários.
Antes de ir
para casa, aproveitou a proximidade com o natal para ver os enfeites na Avenida
Paulista e deu uma volta curta pelo Parque Trianon, aberto até mais tarde por
conta das festividades. Adorava esse clima de fim de ano, de renovação, de boas
expectativas!
Achou que terminar com Gisele
agora foi bastante acertado, um bom momento no calendário. As pessoas ficavam
sempre mais emotivas no Natal então quanto antes resolvesse isso, melhor.
Comprou um milk shake num drive-thru
perto do prédio da Fiesp e voltou pelo outro lado da avenida, dirigindo sem muita
pressa entre locais, turistas e skatistas, que desviavam dos desavisados que
acabavam passando entre eles sem percebê-los. Uma cena bem dezembro, bem São
Paulo.
Fez questão de abrir os vidros para
que o cheiro de Gisele saísse. Nessas horas sempre sentia um misto de alívio e
culpa, mas o primeiro tendia a ser mais forte e era onde ela embarcava. Até
porque a autocomiseração dificilmente fazia morada em seu peito. Tanto que chegou
em casa distraída, pensando em assuntos do trabalho.
– Ué! – Mariana diz, assim que abre a porta da sala e encontra
Perla no sofá, com Percival aninhado em seu colo. O gato miou ao vê-la, como se
a cumprimentasse – Já está em casa, Pê? O que houve? – ela tranca a porta, a
fechando após um estalido.
– É, no fim desisti da tal hamburgueria – Perla responde,
demorando a desgrudar os olhos da tela da televisão – Estava muito cheio, credo.
Mas no fim, foi bom! Você acredita que as meninas foram assaltadas?, na saída
do metrô!
– Mentira! – Mariana acaricia o gato, que levantou para
cumprimentá-la – Roubaram o que, amiga? Que bosta!
– É... O de sempre, Mari: celular, a carteira da Ju. Foda é o
trauma, né! – Perla tira os pés do sofá, para Mariana sentar – Nessas horas
fico com vontade de ir embora. Meter o louco, foda-se, mudar de emprego, mudar
de vida... Quero vazar daqui...
– Ah, amiga... – Mariana a abraça – Sinto muito! De verdade! Mas
pelo menos você não estava junto.
– Ah, eu sei, mesmo assim. Foi livramento! Agradeço muito, mas...
– Eu sei – Mariana dá um tapinha no ombro dela – Eu vou entender
se você for embora, se por acaso voltar para o Amapá.
– Eu sei que vai – Perla puxa o pufe para apoiar os pés – E depois
de um tempo não vai nem mais falar de mim, que eu sei. As pessoas nem vão saber
que um dia eu existi.
– Ah! – Mariana ri, com a encenação de Perla, que riu também.
– Pedi uma pizza, no fim. Se quiser, está em cima do fogão.
– Não, agradeço, amiga. Eu jantei super bem! Fui naquele
restaurante maravilhoso, lindíssimo, ali para cima da Paulista. O Bistrô! Comi
algo que nem sei – ela sorri para Percival, ronronando em seu colo – O que
vocês estavam assistindo?
– Um documentário sobre serial killer, muito bom. Todo
assassino antes de matar gente, mata algum bichinho. Não falha! A gente tem que
ficar de olho nesses psicopatas! O mundo não é um lugar seguro – ela fala,
emendando o assunto depois de um suspiro lamentoso – E você e a Gi? Terminaram
mesmo? Seu amuleto mais uma vez te ajudou a quebrar um coração? – ela ri alto,
em contraste com a expressão que tinha no rosto, segundos atrás.
– Ninguém cai na minha de maneira desavisada. Sem inocentes nessa
história – Mariana tira a sandália e cruza as pernas em cima do sofá. Aí levou
a mão ao pescoço e com o movimento, os pés descalços foram de volta para o
chão, rápidos – Ah, não, que bosta! Perdi o meu colar! Não acredito!
– Ih, sério? – Perla exclama, pausando a tevê, compadecida – Será
que foi no restaurante?
– Não sei... – Mariana resmunga, um pouco desolada. Pareceu fazer
o movimento para ajeitar os óculos e só então reparou que estava sem.
– Perdeu seus óculos também? – Perla riu – Nossa, amiga, como deve
ser difícil ser você, perdendo sempre as coisas, esquecendo outras...
– É, é difícil mesmo...
– E é distraída até as tampas! Como não reparou que estava
dirigindo sem óculos? – pergunta, ainda rindo, e vê Mariana levantar os ombros.
– Será que o restaurante ainda está aberto? – ela vê as horas no
celular, que acendeu depois que o tirou do bolso de trás da calça – O colar eu
não sei se vou achar... Vou procurar no carro, sei lá... Mas os óculos me
lembro de tirá-los quando tomei o cafezinho, depois de pagar a conta, depois
que a Gi saiu.
– E saiu sem drama, amiga?
– Ai, bem que eu queria! Torci por isso, aí a levei num lugar
público, chique... Achei que, né, sensibilizaria – Mariana responde, se
encostando no sofá, já se preparando para fofocar com a amiga. Aí lembrou que
ia sair e se levantou, num pulo – Imagina só! A chef do lugar, lindíssima, Pê!
Pensa numa mulher... foda! Me faltam palavras – ela se abaixa para prender a
sandália – Vem ela lá com aquele uniforme belíssimo, bem passado, impecável, me
trazendo pessoalmente um prato todo especial que ela mesma fez para mim! E dona
Gisele fazendo escândalo depois da sobremesa...
– A chef levou o seu prato? E você vai sair sem me contar essa
história? Pega um Uber, Mari – Perla aconselha, vendo Mariana destrancar a
porta – É perigoso dirigir com miopia, sem óculos, à noite!
– Vou devagarinho, fica tranquila. Não é muito longe! Deu tudo
certo para vir, vai dar tudo certo para voltar. Aí te conto os bapho – Mariana
manda um beijinho no ar, antes de fechar a porta.
– Não vai devagar, não, que vão te assaltar! – Perla grita.
Na rua, Mariana
tomou realmente cuidado porque não queria arranhar seu carro por conta de um
vacilo, como dirigir sem enxergar direito, e os borrões que viu no caminho não
pareceram ameaçadores ao ponto de assaltá-la, então o maior perigo que correu
foi o que ela própria provocava.
Alguns minutos mais tarde parou na
mesma vaga que tinha escolhido mais cedo, ao lado do muro do restaurante, num
estacionamento agora vazio. Além do seu veículo havia ali só mais um, preto e
brilhante, mais no fundo do terreno.
Lá fora,
Mariana não teve como ouvir à conversa regada a álcool que ocorria lá dentro,
já com o restaurante vazio e trancado, entre Patrícia e a esposa Tatiana, que bebiam
com as amigas Bruna e sua esposa, Célia.
– É aquele papo, bem clichê – Bruna fala, com a voz um pouco
embargada – ...se depois de um tempo você não faz alguma coisa, qualquer coisa,
o casamento desanda. É de lei.
– É, mas não sei, não... Acho que somos muito tradicionalistas, em
alguns pontos – Patrícia rebate, nem se lembrando mais como tinham chegado
àquele assunto. Já estavam há um tempo debatendo sobre relações, sentadas em
volta de uma mesa, no bar do restaurante.
– Eu li sobre isso na internet, esses dias atrás – Tatiana
confessa, falando mole, depois de mais um gole na cerveja sem glúten que tinha
ganhado da amiga – Sobre apimentar e tal, mas as soluções modernas para isso atualmente
são muito... modernas!
– Exatamante! – Célia diz, dá um soluço e se corrige – Exatamente!
– Poligamia? Não quero, passo – Tatiana continua, mexendo as mãos
enquanto fala – Abrir a relação? Não!, muito menos, passo também!
– Não quero também. Te deixar com outra? Jamais! Sou muito apegada
para isso – Patrícia bebe um gole generoso de uísque, esvaziando o fundo do
copo – Só de imaginar, já fico zangada!
– É, vocês são muito fofinhas, não daria mesmo certo, nada disso.
Mesmo conversado, mesmo sendo consensual – Bruna ri, tomando um golinho de
vinho – Do jeito que vocês duas são, acho que até trazer uma terceira pessoa
para a relação seria um problemão.
– Não, talvez isso... – Patrícia resmunga, mas não termina a
frase. Sorriu para a esposa, sentada ao seu lado, dando a mão para ela.
– É, talvez uma mulher a mais na cama daria uma movimentada boa nos
nossos dias – Tatiana sorri também, pensando na ideia.
– Aham, até parece! Conta outra piada porque essa foi boa! – Célia
caçoa, se servindo de mais uísque, enchendo também o copo de Patrícia – Outra
mulher, para entrar na vida de vocês, teria que forçar a porta.
As quatro se
entreolharam, num primeiro momento assustadas, mas depois rindo, porque logo após
o comentário ouviram o som de alguém forçando a porta do restaurante, lá na
frente.
– Alguém da cozinha deve ter se esquecido de algo – Tatiana diz,
se levantando – Deixa que eu vejo, amor.
– A Tati parece muito a dona disso aqui, né – Célia comenta,
quando a mulher deixa a mesa.
– Ela é! – Patrícia retruca, bebendo mais.
– E se tivesse mais uma, seria a dona daqui também? – Célia ri
alto – Achei que tivesse mais consideração pelo Bistrô!
– Eu tenho! – Patrícia diz – Tenho apego por quem amo também!
Alguns passos
dali, Tatiana caminhava um pouco cambaleante até a frente do restaurante, que
estava quase todo na penumbra. Viu atrás da porta trancada uma silhueta
feminina; alguém com as mãos em concha ao redor dos olhos, tentando enxergar
algo lá dentro.
– Oi, desculpa! Ai, que bom
que ainda tem gente! Fiquei preocupada de não ter mais ninguém – Mariana diz, a
voz abafada do outro lado da porta fechada – Eu esqueci meus óculos aqui mais
cedo e acho que perdi uma correntinha também, enquanto jantava...
Tatiana
destranca a porta e dá passagem para a moça que tinha visto mais cedo. Ela
tinha o semblante mais leve agora, apesar de parecer preocupada, com a vista
contraída, provavelmente por conta da falta dos óculos perdidos. Parecia
diferente sem eles. Estava mais bonita, sem dúvida.
– Perdeu, é? – Tatiana fala, puxando uma caixa de madeira, da
parte de baixo do balcão da entrada. Foi tirando vários objetos de dentro,
inclusive os óculos de armação fina. Entregou para a mulher, que suspirou
aliviada, ao colocá-los no rosto – É, mas não vejo nada de correntinha. Você
perdeu aqui mesmo? – ela pergunta, guardando de volta os objetos esquecidos.
– Sim, provavelmente sim, mas não sei – Mariana responde, incerta –
É meu amuleto, poxa, não queria perdê-lo... – ela resmunga, a voz igual um
miado.
– Calma, nós vamos procurá-lo e tentar encontrá-lo – Tatiana fala,
indo até onde Mariana estava sentada mais cedo, no meio do salão – Às vezes,
acontece de cair aqui – ela passa a mão pelo vão entre o encosto e o assento fofo
da cadeira. Fez o mesmo movimento nas outras três cadeiras que havia em volta
da mesa, mas no final deu um sorriso triste para ela.
– Ah, que droga não acredito... – Mariana volta a resmungar – Eu
uso esse colar... desde sempre! É o meu talismã, uso em ocasiões importantes –
ela estava de cabeça baixa, mas levantou o olhar para encará-la – É meu amuleto
na hora de terminar os relacionamentos.
– Ah – Tatiana diz, a fala parecendo só um som vindo da garganta.
Não soube o que falar diante daquela informação.
– Grata mesmo assim. Ao menos volto para casa enxergando melhor – Mariana
aponta para si mesma, para os óculos de volta ao rosto.
– De nada, querida. Sinto muito não ter ajudado de verdade –
Tatiana responde, vendo a mulher ameaçar ir embora – Olha... Amanhã passa aqui,
umas 18h. Vou procurar nas outras cadeiras, às vezes acontece de durante a
noite as pessoas trocarem de lugar...
– Ah, você faria isso por mim? Que ótimo! Grata, com certeza eu
venho sim! Agradeço muito a sua atenção...
– Tatiana – ela diz, vendo que a mulher esperava pela apresentação
– Prazer, eu me chamo Tatiana – estendeu a mão para ela, que a cumprimentou,
num aperto firme.
– O prazer é todo meu, Tatiana! Meu nome rima com o seu: me chamo Mariana.
– Nos vemos amanhã, então, Mariana. Cuidado na volta para casa.
Mariana sorri
para ela, gentil, antes de sair do restaurante ouvindo a porta ser trancada, às
suas costas. Quando chegou no carro, estava se sentindo com esperanças em
encontrar o seu adorno, ainda que só no dia seguinte. Sorriu pensando que, de
perto, a suposta gerente dO Bistrô era ainda mais bonita. E cheirosa!
– Amanhã, às oito – ela diz, sozinha, dando a partida no carro.
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