Conexões (conto)
Esta é a nona história da Novelinha.
Se ainda não leu a oitava, A joia da Rubi, clique aqui.
O primeiro gole de café da manhã é sempre o mais intenso e saboroso. A
bebida quente e amarga desce rasgando por onde passa, eletrizando todos os
sentidos, deixando na língua um sabor único e incomparável. Só mesmo um café forte
e bem passado, de preferência sem açúcar, para despertar os ânimos matinais!
Mas Márcia estava irritada. O relógio na parede mostrava que ainda não
eram nem oito da manhã e ela já se sentia à beira de um colapso nervoso, como
sempre. O café ajudava porque empurrava goela abaixo a frustração de ter
amanhecido, mais uma vez, sem internet, mas ajudava pouco. Só quem trabalha de
casa, dependendo da rede, sabe a frustração que uma situação dessas provoca.
Mesmo assim, se esforçou para se acalmar, tentando respirar fundo e
contar até dez. Afinal, ainda era muito, muito cedo, e se aborrecer assim não
faria a situação se restabelecer mais rápido – muito menos gritar no telefone
com o atendente da empresa, ela sabia, apesar de ter gritado, antes do café. A
previsão era de retorno até às 13h, então ou Márcia saía atrás de uma internet
emprestada, ou vadiaria pela casa a manhã inteira, mas sem se culpar por
isso.
A tarefa era bastante difícil para ela, que tinha verdadeiro asco de
procrastinações, se culpava horrores sempre que eventualmente tirava férias ou alguns
dias para descansar, mas estava disposta a levá-la adiante, pois já fazia mesmo
um tempo que queria dar um trato no apartamento. Ainda que a faxineira viesse
com certa frequência, tem coisa que só a dona da casa sabe fazer, e as questões
domésticas estavam sempre em último lugar na sua lista de prioridades, então o
que mais havia por ali eram atividades de limpeza e de organização,
principalmente. Não que fosse relaxada; só era uma mulher muito ocupada, com
outros focos e sempre com a sincera impressão de ter menos horas em seus dias,
tão corridos.
Bebeu o café em pé na cozinha, apoiada na pia, a mente divagando entre
diversos assuntos. Os barulhos externos do trânsito lá fora já invadiam sua
paz, e às 7h59 as marteladas de alguma reforma no prédio se iniciaram.
Inevitavelmente, seu pensamento imediato foi “começou o inferno!”, só porque
era o que sempre pensava nessas horas, porque sempre tinha alguma novidade onde
ela morava.
Lembrou-se de relance de Fabíola, que tinha um papo todo good vibes,
talvez só porque morava numa chácara, cercada de mato e afastada da
civilização. É fácil ser alguém zen quando não existe interferência!, difícil é
meditar no meio do caos!
Fabíola era uma pessoa legal, apesar do discurso irreal e utópico, mas
sempre que vinha nas lembranças era na cena da última discussão que tiveram,
quando Márcia acabou mandando-a enfiar a positividade no cu. Uma pena porque,
depois dela, teve poucas amigas – se é que as teve. Márcia era uma pessoa
difícil.
Colocou a xícara dentro da pia vazia e puxou a vassoura de trás da
máquina. Começaria varrendo e tirando o pó, depois viria com o pano, a cera,
lavaria a cozinha e o banheiro por fim. Almoçaria fora só para não sujar louça.
Mas, antes, precisava resolver a questão da internet porque seu último desejo
nesta vida era que manhãs como essa virassem rotina. Não dava mais para ser
refém de um serviço meia-boca que falhava dia sim, dia também, então puxou o
celular e sem pensar muito, mandou mensagem para a única pessoa que conhecia e
que poderia ajudá-la, sem julgá-la.
Tá, talvez julgando um pouquinho.
O texto foi simples, dizia apenas: “Bom dia, estou sem internet de novo,
tá foda viver assim. Preciso da sua ajuda, tem jeito?”. Enviou sem ler porque
se fizesse isso, perigava não mandar.
Ainda não tinha chegado na sala quando a resposta fez o celular vibrar. A
mensagem era um emoji rindo horrores, com lágrima e tudo, o que fez Márcia
suspirar de maneira impaciente, se perguntando se tinha sido uma decisão
acertada pedir por aquele socorro, para aquela pessoa. Hoje em dia no Google se
resolve qualquer problema, nem é mais preciso uma nerd para ajudar... Mas aí freou
os pensamentos porque a segunda notificação dizia: “É claro que tem jeito!”, e logo
na sequência o telefone começou a tocar.
– Não precisava me
ligar... – Márcia reclama, em tom de “alô”.
– Bom dia para a
senhora também – a mulher responde, do outro lado da linha, parecendo animada.
Certeza que estava rindo, porque sua voz soou daquele jeito, de quando ela
estava feliz – Muito cedo para tanto amargor, né não! – um tilintar de talheres
ao fundo fez um ruído na ligação, e deu para ver que ela se afastou da origem
do barulho, antes de continuar a falar – Vou precisar ver umas coisas na rua
agora pela manhã, passo aí para ver o que podemos fazer. Vai estar em casa?
– Não precisa
vir... só me fala o que eu devo fazer – Márcia retruca, parecendo irritada, mas
só estava frustrada com a situação.
– Eu quero ir, é
melhor, tudo bem. Não me custa. Você me dá um café daqueles que só você sabe
fazer e fica tudo certo. Umas dez?
– Tá, às dez...
Grata! – Márcia fala, antes de se despedir e desligar. Não era o exatamente o desfecho
que tinha imaginado para aquele pedido de ajuda, mas não era também de todo
ruim receber uma visita, depois de tanto tempo.
Controlou uma risadinha porque
ficar animada com isso era um completo despropósito. Ok que encontrar com ex dá
sempre um certo siricutico, mas ex que já está comprometida não pode vir
acompanhada desse tipo de ririri. Isso é cilada, Bino!
Márcia queria resolver seu
problema de conexão. De internet, não a pessoal ou a amorosa. Tinha um trabalho
para entregar no fim do mês e cada minuto longe das pesquisas que ainda
faltavam, atrasavam todo o seu dead line. Se convenceu de que estava
alegrinha porque, com sorte, mataria de vez esse assunto, e quem sabe até o
livro que estava escrevendo. Seria bom porque já estava às voltas com o próximo
contrato: ia escrever, como ghost writer, a biografia do publicitário Inácio
J. Marzon, o todo poderoso da Agência Rubi.
Mariana chegou pontualmente às
dez horas. Tinha trocado de carro. E de óculos. Márcia achou que ela estava
bonita, mas não mencionou nem uma letra a respeito. Nem quis reparar que ela
tinha emagrecido e estava com os braços mais torneados. Talvez depois perguntaria
se ela estava malhando, mas só para puxar papo.
– Me salvando,
sempre! – Márcia a cumprimenta com um beijinho no rosto e um abraço breve.
Prendeu a respiração para não sentir o cheiro dela nesse momento, que vinha
junto com o cabelo.
– Bom dia, dona
desconectada – Mariana a abraça, sorrindo – Espero conseguir te ajudar, né,
vamos ver – ela foi entrando, conhecedora que era daquele espaço. Colocou a
mochila em cima do sofá e sentou, sem cerimônia – E o café?
– Cruzes,
Mariana. Mal chegou... – Márcia fingiu estar zangada, e foi até a cozinha
buscar o café para a visita, depois de trancar a porta. Colocou uma colherinha
de açúcar porque sabia que era como ela gostava. Este já tinha sido tema de
discussão entre as duas, que não terminou em nenhuma conclusão sobre a maneira
certa de beber café.
– Posso mexer
aqui? Não tem nenhum nude não, né? – Mariana brinca, pegando o laptop de cima
da mesa – E aí, você está bem? No que está trabalhando?
– Estou
escrevendo uma história aí, sobre três machos aleatórios. Enrolada nisso já tem
quase um ano... – Márcia responde, entregando uma caneca para ela, cheia até a
borda – Estou nos ajustes finais, já, cheia de pesquisa para fazer e essa bosta
de internet não funciona, e...
– “Essa bosta de
internet” – Mariana repete, baixinho, e ri – Desculpa. Você não mudou nada!
Márcia quis dizer que Mariana,
ao contrário, estava muito diferente. Ainda mais bonita! Seu cabelo parecia
mais volumoso, mais brilhante. A pele mais corada. Mas só bebericou seu café.
– Bom, eu peguei
um projeto grande, grata por perguntar – Mariana continua, sem parecer
ofendida, apesar do que dizia. Novamente Márcia se calou porque sua vontade foi
perguntar: “projeto maior que o seu casamento com duas mulheres?” – Precisei
até contratar mais gente, para você ter uma ideia! Agora fazemos reuniões
semanais, só para alinhar as coisas. Eu lá, que nem patrão – ela ri.
– Que bom, Mari!
Parabéns, fico feliz por saber. Ainda está trabalhando só no esquema de home
office?
– Sim, mas agora
de maneira muito mais decente. Tenho um escritório bem espaçoso na minha casa
nova.
– Não tem
problema você falar – Márcia comenta, ao vê-la se calar e ficar um tempo quieta
– Eu sei que está casada, eu vi, lembra?
– É, eu me casei,
no ano passado – Mariana retruca, mordendo o lábio, do jeito que fazia quando
tentava controlar alguma expressão de alegria – Não sabia que você ia ao
restaurante naquele dia, Marcinha. Nem sabia que você conhecia a Pati!
– Pois é,
menina. Muitas coisas que você não sabia. E nem eu! Fui saber só naquela noite...
nunca tive jantar tão indigesto, credo.
– Você está
sendo injusta. A comida estava ótima naquela noite – Mariana reclama, mas como
olhava para a tela do computador, não viu Márcia virar os olhos, em desgosto ao
ouvir seu comentário – Não achei que deveria te ligar para te avisar que estava
me casando, desculpa...
– Não é questão
disso, Mari...
– Hum?, é questão
de que, então? – Mariana olha para ela, abaixando um pouco a tampa do laptop. A
encarou até que Márcia desviasse o olhar.
– Só foi um
choque, sei lá. Fiquei chateada, mas também já passou. Tanto que te chamei. Se
ainda tivesse algum problema com relação a isso, nem teria te mandado a
mensagem.
– Sei... –
Mariana volta a mexer no computador – Esse servidor que você usa é um lixo, é o
que tem a pior avaliação no Reclame Aqui.
– Era o que
tinha no prédio, quando me mudei.
– Eu sei, mas
você mora aqui há anos. A internet nem é mais discada!
– Ai, nossa, que
engraçadinha. Tinha esquecido dessas piadinhas tão engraçadas, rárá – Márcia
diz, mas era mentira. Como esquecer da principal característica de Mariana?
Isso, e o fato de ela ser distraída e avoada, eram as principais cores do seu
quadro.
– Está
escrevendo sobre sustentabilidade? – Mariana pergunta, vendo as abas abertas no
navegador. Com alguma mágica, ela já tinha feito a internet funcionar.
– Sim, é um
livro com cases de sucesso, envolvendo três empresários e uma
certificação específica – Márcia responde e vê a mulher fazer uma careta –
Grana boa, o problema sempre são os “autores”.
– É, o ser
humano fode com o rolê nesse planeta! – Mariana estava rindo. Bebeu um gole de
café e piscou para ela – Delícia! Seu café é muito gostoso. Você ainda mói o
grão aqui? – voltou a beber, desta vez fechando os olhos, atrás das lentes
embaçadas.
– Ainda, sim. É
por isso que é bom, é um café mais fresco. Fico feliz que tenha aprendido a
apreciar esta inigualável bebida! Ao menos alguém se valeu daquele livro...
– Sim, eu e mais
milhares de pessoas, né, Marcinha... Te vi na lista dos mais vendidos durante
semanas com esse livro. É uma ótima obra!
– Grata, que bom
que gostou. Me deu muito trabalho escrevê-lo.
– Eu sei –
Mariana sorri para ela – Eu acompanhei o processo.
Márcia assentiu. Mariana era a
testemunha dos seus estresses.
– Sua esposa
deixa você beber café? – Márcia ri – Desculpa, não deu para não perguntar.
– Minha esposa?
– Mariana parecia sinceramente confusa.
– É, a Patrícia
não tem uma coisa de não deixar a Tatiana beber café?
– Ah! – Mariana
empurra os óculos para cima do nariz – Sim, mas é só porque a Tati não pode.
Ela tem um negócio no intestino que fermenta.
– Eu sei.
– É, você sabe.
Você conhece as minhas esposas... – Mariana resmunga, digitando rápido alguma
coisa no teclado.
Márcia riu, só porque tinha se
esquecido de detalhes de Mariana que sempre foram marcantes, como resmungar. E
rir foi um bom sinal: comprovava que tê-la bloqueado de sua vida durante um
tempo tinha funcionado. Ela já tinha se esquecido de algumas coisas.
– Esses dias eu
passei naquela livraria que tem na esquina da Paulista... – Mariana diz,
completamente alheia aos pensamentos de Márcia – Vi na vitrine um livro que
assim que bati o olho, já pensei: “foi a Marcinha que escreveu”.
– Mentira.
– Tô te falando!
Era um livro sobre agronegócio. Se chamava... – ela olha para o teto e contrai
um dos olhos – O Agro...
– ... Tóxico.
Sim, fui eu que escrevi – Márcia sorri, satisfeita, mas durou só alguns
segundos, muito breves.
– Foda!, título
foda! – Mariana acena com a cabeça – Sabia que era seu! Até comentei...
– Com suas
esposas? – Márcia pergunta, depois que ela ficou quieta.
– É, mas na
época elas eram minhas namoradas, ainda.
– E elas duas
sabiam de mim? – Márcia parecia surpresa, com uma sobrancelha arqueada.
– Hum, o básico,
sim – Mariana resmunga – Não falo muito do passado, você sabe... Mas comentei que
namorei uma escritora que escrevia pelos outros. Acho o seu trabalho
fascinante, de um desprendimento incrível! Um desapego...
– Sua ex, a ghost
writer – Márcia a interrompe.
– É, eu te
chamava de “Marcinha Sigilosa” – Mariana ri, daquele jeito que a risada dava uma
voltinha na garganta. Era um dos seus charmes.
– “Sigilosa”...
dá até a impressão de que sou uma enrustida... – Márcia sorri, apesar do
comentário. Era um bom nome.
– Mas você é, um
pouco – ela ri mais alto.
– Aham... Como
você fez para a internet funcionar? Tão rápido? – Márcia questiona, apontando
com a cabeça para a tela do computador, estampada com a imagem do Google.
– Estou
compartilhando a minha internet com você – Mariana mostra o celular para ela.
Com o movimento, a tela acendeu e Márcia viu uma foto do trisal, sorridente,
como imagem de fundo.
– Ah, sim – levantou
os olhos, se sentindo um pouco burra.
– Vamos trocar o
seu servidor, já contratei um pacote que tem uma boa velocidade. Você está
livre amanhã, às duas?
– Para quê? – Márcia
se espanta com a pergunta. Não passou pela sua cabeça vê-la novamente no dia
seguinte.
– Para virem
instalar, ué – Mariana estava distraída no computador.
– Ah, claro – agora
ela se escondeu atrás da xícara de café.
– E aí, tem
visto sua irmã? Seu irmão vai ser pai, né? Eu vi no Instagram, achei muito
legal. Fiquei feliz por eles!
– Você segue o
meu irmão no Instagram?
– Sim, faz
tempo... – Mariana olha para ela, sem entender o porquê da pergunta – Sigo seus
irmãos, sua tia de Londrina, suas primas todas...
– Eita!
– Ué! A low
profile aqui é você! – Mariana ri e empurra os óculos – Todo o resto do
mundo tem perfil em rede social.
– Eu sei, só não
sabia que minha família ainda estava no seu radar.
– É “feed”,
o nome – Mariana comenta, distraída. Ergueu os olhos em sua direção na
sequência e riu – Mas você sabe, é claro.
– Sim, eu sei, é
claro – Márcia repete o tom dela – Minha família te segue de volta?
– Hum... –
Mariana empurra de novo os óculos, que ficavam deslizando para baixo – Não sei,
acho que sim...
– Posso ver? O
seu perfil – ela complementa, quando Mariana a encara – Quero ver o que eles
veem.
– Claro... –
Mariana balbucia, depois de pensar por um tempo, e entrega o aparelho para ela,
desbloqueando com a digital, atrás.
A tela de fundo também era uma
foto de Mariana com Patrícia e Tatiana, mas era diferente da imagem de
bloqueio. Nitidamente era um registro de outro dia, porque estavam as três
vestidas com outras roupas, e nesta, o gato de Mariana estava junto, usando um
chapéu. Márcia não se demorou olhando para a foto e clicou no ícone do
Instagram.
Primeiro, teve a reação natural
de ver o perfil de sua ex cheio de fotos do seu atual amor. Depois, lidou com a
questão de serem dois; eram duas mulheres junto com ela. Aí teve o momento de
assimilar essas pessoas ao casal que já conhecia, à Tatiana e Patrícia. Só
então refletiu como a família dela via aquilo tudo e mesmo sentindo vontade de
rir, talvez de nervoso, se manteve séria.
Percebeu Mariana olhando de relance para ela umas duas vezes, enquanto
rolava o dedo pela tela, descendo pelas imagens. Eram muitas fotos, quase todas
do trisal em momentos distintos, mas em nenhum dos registros estavam em alguma
pose que insinuasse algo. Sua tia de Londrina, por exemplo, poderia até achar
que se tratava de duas amigas, do jeito que era...
Márcia acabou reconhecendo que elas combinavam.
– E a sua família
com isso? – Márcia pergunta, entregando o celular de volta para ela. Viu
Mariana levantar os ombros, como resposta – Mas você avisou que ia se casar?
– Sim, para
depois ninguém jogar nada na minha cara... – resmungou. Deu um suspiro antes de
fechar a tampa do laptop – Mas não entrei em detalhes.
Márcia quis saber se os
“detalhes” envolviam o fato de ela ter se casado com duas mulheres, mas engoliu
a pergunta. Sabia que a família de Mariana era extremamente preconceituosa e
religiosa, achou que provavelmente ela nem tenha falado que se casou com uma
mulher (que dirá duas!). Estava subentendido.
– Mas eles devem
saber, né... Pelas fotos e tal.
– Não, minhas
fotos são fechadas só para meus poucos seguidores. Only fans, baby! Nada
disso. Minha família é toda bloqueada.
– Sei – Márcia
responde, reparando no excesso de negativas proferidas por Mariana. Ela sabia o
real motivo, mas não quis falar.
– Patrícia morre
de medo dessas coisas – Mariana diz, depois de um breve instante. Pareceu
pensar bem nas palavras, antes de dizê-las – De assédio e tal...
– É, essa sempre
foi uma neura dela, mesmo.
– É, ela fala...
que desde que eram só ela e a Tati, já era encanada.
– É, mas tudo
bem, “o ser humano é legal, ajuda na nossa evolução”... – Márcia diz,
sarcástica. Mariana ri no mesmo instante.
– Ah, que
saudades da Fabíola! Como ela está? – pergunta, entendendo a referência à amiga
de Márcia – É outra, que não aderiu às redes sociais... O que ela dizia mesmo?
– Que celular é
um sistema de aprisionamento e vigília – Márcia ri, ainda com ironia – Não sei
como ela está, nós cortamos relação.
– Ah, sério? –
Mariana parecia sentida – Ela é tão legal, Marcinha... Sua amiga de tantos
anos...
– Ai, mas tudo
tem uma hora que chega! Que cansa! Fabíola me cansa com esses papos otimistas, de
“jovem místico”... Sempre com essa de “vamos amar o próximo”... Amar o próximo
é o escambau! Olha quanta gente escrota por aí!
– É verdade –
Mariana estava rindo. Só agora terminava de beber o café. Apoiou em cima da
mesa, atrás do sofá, junto com o computador fechado.
– Eu parei de
dirigir – ela anuncia, meio enfática – Ah, já deu, não dá mais para mim, não.
Quer ver o egoísmo das pessoas é sair dirigindo por aí, sai fora. Os motoristas
são rudes, são mal educados, são grosseiros. Esses dias estava parada num
engarrafamento, dentro do táxi, vi um motoqueiro quebrar o espelho do carro da
mulher bem do meu lado e ainda gritar com ela! Fiquei com vontade de eu sair e
bater no sujeito! De uma audácia, Mari, que você tinha que ver!
– E a mulher?
– Uma lady! Não
fez nada, permaneceu olhando para a frente, mãos no volante, uma fineza só –
Márcia coloca sua xícara vazia ao lado do notebook – Não sei como consegue...
– Tem gente que
dirige pouco, daí é mais fácil. Quando sai nas ruas, sofre menos, vai saber.
– Hum, não sei
não. Essa eu acho até que era motorista, porque tinha um homem sentado no banco
de trás do carro dela. Que não fez nada para defendê-la do motoqueiro! Um
bosta!
Mariana ri, apesar de entender a
revolta de sua interlocutora. Ela mesma tinha seus limites testados diariamente,
no trânsito de São Paulo. Os arranhões no carro eram suas testemunhas.
– Eu troquei o meu
carro, peguei um modelo automático. Nossa, Marcinha... melhor coisa! Não tenho
problema com subida, com trânsito parado, não tem que ficar pisando na
embreagem o tempo todo... Olha, só benefícios!
– Nossa, você
demorou a se livrar daquele seu antigo!
– É, eu casei...
– ela fala, a voz saindo mais baixa – Naquela caminhonetinha só cabiam duas
pessoas...
– Ah, sim. E
vocês são um trisal – Márcia vira os olhos, sem querer.
– É. Isso te
incomoda, né – Mariana fala o óbvio.
Quis beber mais café, só para ter algo para segurar e bebericar, em
momentos mais chatos da conversa. Mas não quis pedir para não parecer que
queria ficar mais tempo que o necessário. Em breve já tinha que voltar para
casa, mesmo, para o trabalho, que a aguardava.
– Já incomodou
mais... – Márcia responde, sendo sincera – Como eu disse, foi uma surpresa.
Você, num trisal, e com a Tatiana e a Patrícia!
– Que você nem
gosta muito, né? Da Pati – Mariana arrisca perguntar. Era a impressão que
tinha, desde que começou a ouvir falar da tal da Márcia que anualmente
criticava a comida da sua mulher. De um jeito rude, segundo relatos de Tatiana,
que sempre dava as informações mais certeiras sobre o passado. Ela era ótima
para fofocas!
– Eu não gosto?
Da Patrícia?
– É, ué... –
Mariana se sentiu um pouco boba pela pergunta, e quase imaginou Patrícia
dizendo: “ai, Mari, olha as coisas que você fala...”.
– Ela disse isso? – Márcia pergunta, num tom
que confirmou um pouco o receio de Mariana. Talvez não devesse ter falado nada.
– Não, é só uma
impressão que eu tenho, pelas histórias que escuto, sobre você... Você
esculacha os pratos da Pati sempre que tem prova de cardápio dO Bistrô!
– Não
“esculacho”... – Márcia repete, parecendo magoada – Eu critico. E porque ela me
pede! Ou essa parte do relato você nunca escutou? Que audácia!
– Marcinha... só
falei...
– Você me perguntou
se não gosto da Patrícia. Não tenho nada contra ela, eu hein! Faz anos que ela
é quem faz questão de me chamar para a prova de cardápio, diz que se tem algo
que possa passar despercebido nos pratos que apresenta, eu consigo identificar.
Achei que estava fazendo um favor para ela!
– Então a
questão sou eu...
“É claro que é você!”, Márcia
quis gritar. Mas respirou fundo antes de responder, porque falar isso seria apenas
uma meia-verdade.
– A gente
terminou, passou pouquíssimo tempo e você me aparece casada, e com duas
mulheres! Como você reagiria, se fosse o contrário? – Márcia pergunta e vê um
sorriso querer brotar no rosto de Mariana, que ela conteve – Duvido que fosse
gostar, de imediato.
– Não foi tão
pouco tempo, vai – agora Mariana sorriu – Foi quase um ano, Marcinha! Você me
conhece...
– Não achei que
ia casar logo de cara! Pareceu que quis me provocar.
– Até parece...
ia casar para provocar – Mariana ainda estava sorrindo – Eu ainda saí um tempo
com a Gi, antes de conhecer a Tati e a Pati.
– Que Gi? –
Márcia pergunta, lembrando da mania que Mariana tinha de chamar as pessoas por
apelidos.
– A Gi, menina. Aquela
moça bonitinha que trabalha naquela padaria na esquina da Rua Pamplona com a
Alameda Santos.
– Você namorou
com aquela atendente que sempre ficava de sorrisinho para cima de você quando a
gente ia tomar café lá? – Márcia parecia mais ofendida agora do que com a
pergunta de Mariana, instantes atrás – Estou passada, mas não deveria estar tão
surpresa... ela só faltava se jogar em cima de você...
– É, você sempre
reclamava disso, mas toda semana queria ir lá mesmo assim... – Mariana
resmunga.
– Sim, porque lá
servem café coado! Não aquelas porcarias expressas que têm ali na região da
Paulista...
– É, o café lá é
gostoso mesmo. Nunca mais fui, porque, né... – Mariana diz, e Márcia vira os
olhos.
– E as suas
esposas não ligam para isso? Para esse assédio? Esse troca-troca de
mulheres na sua vida o tempo todo...? Eu me preocuparia! Quer dizer, me preocupei!
– Sim, tanto que
nem quis namorar comigo... – Mariana estava rindo, como se o evento já fosse
completamente sem importância para ela – Me apresentou como sua “amiga” no dia
que eu conheci a Fabíola... Nossa, esse dia foi foda! Fiquei muito brava!
“Amiga”...
Márcia não responde nada. Só
levanta os ombros, abaixando-os depois de alguns segundos. Mariana nunca
inspirou muita confiança no relacionamento que tinham, não ao ponto de fazê-la
se assumir para a amiga de infância. Era o tipo de informação que ela gostava
de preservar, era pessoal demais. Até para Fabíola.
– Aí depois de
um tempão, quando me encontra, fica brava! – Mariana continua, distraída nos
próprios pensamentos. Esta era outra característica sua: nem sempre percebia a
hora de parar de falar.
– Te encontrei
no meio de um trisal, Mariana! – Márcia retruca, brava – Pessoas que eu
conhecia há anos, que nem fazia ideia que tinham aberto o relacionamento! Muito
menos para casar com você! – ela quase gritou.
– Elas não
abriram o relacionamento.
– Sério que é
isso que você tem para dizer?
Márcia quis se levantar, quis se afastar de Mariana, quis mandá-la
embora. Tinha bastante trabalho para fazer, afinal, e passado é uma coisa que
não se deve ficar mexendo muito, porque tende a ferir. Mas sabia que se fizesse
isso a conversa então se encerraria, e elas não teriam mais a oportunidade de
concluí-la, pois Márcia jamais tocaria neste ou em qualquer outro assunto
íntimo com Mariana durante a prova de cardápios. Que ela já nem sabia mais se
ainda iria!
– Se não abriram
o relacionamento, foi o quê? – ela pergunta, finalmente. Viu Mariana encará-la,
levando um tempo para a vista se focar realmente nela.
– Foi... –
Mariana diz, e se cala. Empurrou os óculos e pigarreou – Foi outra coisa. Abrir
relacionamento é se envolver com outras pessoas. No plural. Eu sou uma só, foi
diferente.
– Faz anos que
conheço as duas, nunca deram nenhuma mostra de quererem se envolver com mais
gente. Nenhuma! – ela repete, levantando um dedo, para enfatizar.
– É que eu sou
especial – Mariana ri, em hora imprópria – O que você quer que eu diga?
– Nada, Mari –
Márcia suspira, parecendo um pouco triste – Grata por ter vindo, por ter
consertado e resolvido meu problema. Quer dizer, resolveu, né? Ou só amanhã?
– Resolveu, eu deixei
plugado um modem 4G, até que venham instalar sua internet nova você pode navegar
tranquila. Não dá para assistir filme, essas coisas, mas para as pesquisas que
precisa fazer, funciona bem. Você disse que já está terminando, né? O livro.
– Sim, e tenho
pressa porque já tenho um próximo para escrever – Márcia se levanta, e pega da
mesa as canecas de café – Uma “autobiografia”.
– Legal! Aquela biografia
que você escreveu da Clixa ficou maravilhosa! – Mariana sorri para ela – Terminei
de ler querendo ser amiga da tal influencer! Quem é a bola da vez?
– Um
publicitário, tiozinho. O livro foi ideia do filho, que é quem vai me pagar. A
agência fica lá para baixo da Lapa.
– Legal, boa
escrita! Tenho certeza de que será um sucesso, você escreve muito bem!
– Grata, Mari.
– No dia em que
você sentar para escrever romance sapatão, o mundo lésbico estará feito! Feito
e bem servido! – Mariana se levanta, demonstrando que sua visita estava
chegando ao fim.
– Não tenho
criatividade para esse tipo de história não – Márcia sorri, se sentindo lisonjeada
– Mas agradeço a confiança! E agradeço de novo por vir me salvar! Não queria ir
trabalhar em algum café, parecendo hipster...
– Sempre bom
poder ajudar – Mariana ri.
– Que a sua
empresa cresça e prospere – Márcia diz, da cozinha. Sua fala saiu abafada pelo
som das canecas sendo colocadas na pia.
– Grata,
Marcinha! Mas você sabe que eu trabalho com outra coisa, com desenvolvimento de
software e análise de sistemas, né? Digo... não tem exatamente relação com
internet.
– Ok, mas a
minha conexão com você resolveu meu problema de falta de conexão com a
internet, então sua empresa me ajudou, mesmo fazendo outras coisas – ela aponta
para o modem plugado na lateral do computador. O objeto, que parecia um
pendrive, tinha um adesivo da MjZ, que era como se chamava o CNPJ dela.
– Tá certo –
Mariana sorri, o corpo já todo em direção à porta – Se eu puder me valer dessa
conexão, de alguma forma, por favor, Marcinha, não deixa de ir ao restaurante
por minha causa, nem fica achando que a Pati acha isso ou aquilo. Eu só comentei
com você sobre algo que eu penso, ela jamais mencionou nada a respeito e...
– A Tatiana,
então – Márcia interrompe.
– Oi?
– Se a Patrícia
nunca disse nada, quem falou alguma coisa que fez você pensar que eu não gosto
dela foi a Tatiana – Márcia cruza os braços. Viu nas piscadas nervosas de
Mariana que tinha acertado em cheio! – A Tatiana disse que eu não gosto da
Patrícia? – Márcia insiste, porque Mariana permaneceu quieta.
– Eu só estava
dizendo que não é porque temos um passado que você deva mudar a sua rotina de
ir nO Bistrô todo fim de ano fazer lá as críticas que, como você disse, a Pati
pede que você faça.
– E eu te fiz
uma pergunta, Mariana! Agora, a pergunta é: por que a Tatiana disse isso?
– Ela não disse
nada, mas gente... – Mariana resmunga, pensando um pouco aflita na explicação
que teria que dar em casa depois. Quando saiu, não avisou para onde ia, porque passou
em vários lugares. Até na casa de Márcia.
– No começo, fiz
por pirraça mesmo – Márcia começa a contar, descruzando os braços, mas
estreitando os olhos – Procurava cada bobaginha, só para apontar a falha,
mesmo. Me julgue! Adorava ver a cara de decepção da Patrícia, que sempre achava
que estava arrasando, e eu sempre encontrava algum problema. Mas depois, quem
passou a gostar disso foi a sua mulher, foi a Patrícia. Ela foi quem
oficializou isso de eu ser a “fiscal” dO Bistrô, como ela dizia. “Fiscal de
menu”.
– Ela me disse
que começou a fazer a prova de cardápio por sua causa.
– Pois é.
– Mas não
precisa criticar de forma rude, precisa? – Mariana contesta, empurrando os
óculos para cima.
– Foi isso que a
Tatiana te contou? Hum, entendi – Márcia completa, diante do silêncio dela.
– Mas a Pati não
precisa que eu esteja aqui defendendo ela.
– Sim, não
precisa, mesmo.
– E a Tati não
disse nada demais... Só que você... comete sincericídio – Mariana diz, o fim da
frase quase inaudível.
– Ah... – Márcia
fez um som com a garganta, junto com um suspiro irritado – Prefiro Marcinha
sigilosa a sincericida... que horrível...
– Marcinha... –
Mariana pega no braço dela, que se afasta, inclusive dando um passo para trás.
– Não, tudo bem...
– ela diz. Seu rosto todo mostrava como estava chateada – Só acho curioso que a
Tatiana tenha sido tão observadora nas minhas críticas, mas nunca reparou que
eu era é a fim dela. Cutucava a Patrícia só porque era uma forma de atingi-la.
Talvez até de maneira mais direta porque a Patrícia sempre foi o ponto fraco da
Tatiana...
– Você era a fim
da Tati? – Mariana não sabia se tinha entendido direito. Como assim?
– Muitos anos
atrás. Muitos, nossa, foi em outra vida isso. Eu ainda nem escrevia. Tatiana e
Patrícia estavam começando a namorar, O Bistrô ainda nem existia. Na época, a Tatiana
ainda fazia faculdade de Administração, foi antes de ela virar professora...
– Que brisa. Eu
não sabia.
– É. Como eu
disse há pouco, há muita coisa que você não sabe, Mari – Márcia retruca,
destrancando a porta.
O relógio em seu pulso dizia que já tinha se humilhado demais por uma
manhã. Era melhor Mariana ir embora ou o preço por uma reconexão de internet ficaria
extremamente oneroso.
Se despediram com um abraço breve, sem combinar a devolução do modem.
Mariana dirigiu para casa sem nem pensar nisso, esquecida até do que foi fazer
na casa de Márcia. Se distraiu pensando nas conexões que existem entre as
pessoas, que as ligam de um jeitinho tão especial.
Ao entrar na garagem, se lembrou de como sua história no trisal começou e
a lembrança só foi afastada ao imaginar como é que ela contaria para as esposas
a patacoada que foi sua visita técnica à casa da ex, que certamente afastou
para sempre Marcinha dO Bistrô.
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