A joia da Rubi (conto)

 Esta é a oitava história da Novelinha.

Se ainda não leu a sétima, O encontro, clique aqui.   


No mundo corporativo, competitivo e acirrado, não existe “trabalho ideal”. Estamos adoecendo cada vez mais, em partes devido aos nossos ofícios, tão desgastantes. Não por acaso, desde janeiro de 2022 a Organização Mundial da Saúde (OMS) classifica a síndrome de Burnout, também conhecida como “síndrome de esgotamento profissional”, como doença ocupacional, ou seja, resultante de um processo de estresse crônico relacionado ao ambiente de trabalho. Antes, para ilustrar, a síndrome era tida como problema de saúde mental e um quadro psiquiátrico.

Numa agência de publicidade, provavelmente a função de maior estresse e cobrança é a de Atendimento. Quem ocupa o cargo responsável por fazer a ponte entre o cliente e a equipe interna, garantindo a entrega de projetos alinhados a uma determinada proposta de valor, precisa necessariamente ter um perfil específico, pois este é um trabalho que nem todo mundo consegue desempenhar. Afinal, não se compra no mercado doses cavalares de paciência e de jogo de cintura; saber ser política é quase um dom, que se aprimora, é verdade, mas que precisa ser parte da essência da personalidade, para que a pessoa então faça toda a mágica acontecer, sem enlouquecer.

Às vezes funciona.

A Agência Rubi foi fundada no final dos anos 1980 por Inácio J. Marzon, um publicitário visionário, detentor de vários títulos e prêmios disputados na categoria. Desde meados dos anos 2000, funciona em um prédio espelhado e de esquina, na zona oeste de São Paulo, e nos três andares do imóvel atualmente se acomodam 35 funcionários. Em 2013, a Rubi passou a ter o Atendimento realizado por Preta, uma profissional competente formada em Relações Públicas, que se encontrou no mundo do marketing e se aprofundou neste mercado, se especializando na arte de lidar com o ego alheio.

Principal motivadora em manter funcionando a engrenagem da agência, não à toa Preta é quem recebe um dos maiores salários da Rubi, ficando abaixo apenas da folha de pagamento da diretoria e dos cargos de chefia. O papel fundamental em suas atribuições como Atendimento, embora isso não esteja definido em contrato, é colocar panos quentes sobre os ânimos da equipe de criação e também apaziguar os humores de clientes afoitos, numa equação em que Preta é a maior responsável pelo equilíbrio e, consequentemente, pelos bons resultados. E essa conta só fecha quando são adicionados os donos da Agência Rubi, que têm um peso todo especial.

– Preta! Era com você mesmo que eu queria falar! – Ricardo diz, assim que a vê chegando na recepção.

                O diretor era um sujeito bem apessoado, estava sempre bem vestido e acelerado, especialmente às segundas-feiras, quando provavelmente cheirava uma carreira a mais de cocaína antes do trabalho. Ele a aguardava andando agitado pelo chão brilhante de porcelanato da entrada do prédio, que era sóbria; além do balcão da recepcionista, onde também ficava o segurança, sempre de terno e gravata, ao lado da catraca tinha apenas um sofá amarelo, de canto.

– Bom dia, Ric – Preta dá um beijinho em seu rosto, cumprimentando.

– Bom dia, querida! No fim, como ficou aquele contrato com a Flordiê? Preciso que você agilize aquela reunião com o pessoal da VCC, e cobre da Criação pelo menos um esboço para a gente apresentar para aquele prospect que te falei na sexta – os dois entram juntos no elevador.

– O contrato parou na mão do cliente. Cobrei, mas vou cobrar novamente. A reunião com a agência de viagem foi marcada para quarta, como você tinha pedido, e a Miriá pediu até o fim do dia para entregar a maquete da campanha do novo cliente.

– Ah, não, Preta... – Ricardo resmunga, quando a porta do elevador se abre, no segundo andar. Segurou com o corpo, para que não voltasse a se fechar, e enquanto ele ficou ali o elevador permaneceu apitando, quase marcando o ritmo da agitação matinal do diretor – Preciso disso até o almoço. “Até o fim do dia” é um prazo longo demais. Cobra a Criação, por favor, vai lá, acelera a Miriá. Só quero uma frase, é jogo rápido. Aproveita que vocês duas são amigas – o comentário a faz virar os olhos, mas ele não vê Ah! E não esquece do nosso almoço!

– Aham – Preta resmunga, vendo a porta do elevador fechar, levando o diretor para a cobertura da agência.

                O segundo andar da Rubi era praticamente um espaço inteiro sem paredes; era um grande salão, bem iluminado, com janelas imensas, que contava apenas com divisórias entre as baias, que separavam conjuntos de quatro mesas, agrupando os publicitários de acordo com as funções, todos com um coordenador por grupo. O chão era de madeira e cheirava a cera, um cheiro específico daquele local. A mesa de Preta era uma das primeiras, ficava logo na entrada, perto do elevador, a única em formato de L. Dali ela tinha uma visão geral de todo o salão, que ficava às costas de sua cadeira de encosto alto.

Ao chegar, viu que muitos já estavam por ali, inclusive Miriá, a Diretora de Criação, que ficava posicionada bem no centro do salão, atrás de uma mesa larga que vivia bagunçada, cheia de papéis. A mulher não pareceu perceber sua chegada, ou fingiu não a ver. Continuou conversando com Luana, num tom de voz baixo, mas mexendo bastante com as mãos, como se estivesse zangada com alguma coisa.

– Bom dia, meninas – Preta cumprimenta, puxando uma cadeira para perto da mesa de Miriá e sentando. Apoiou o tablet no colo e sorriu. Fazia parte de seu trabalho nunca parecer estar de mal humor.

– Faz isso para mim, Lu, por favor – Miriá pede, antes de olhar para ela – Bom dia, Preta! Tudo bem?

– Dia! – Luana cumprimenta, no mesmo instante se afastando delas, puxando para longe sua cadeira de rodinhas – Vou fazer melhor de três, chefe – complementa, já sentando de volta em seu lugar.

– Não precisa, uma opção só já basta. Coisa rápida, Luana – Miriá responde. Voltou o olhar para Preta, parecendo um pouco impaciente. Eram oito da manhã.

– É o texto para o prospect? Aquele, que eu te falei na sexta-feira. A empresa de celular – Preta diz, vendo que ela parecia não se recordar.

– Ah! – Miriá responde, depois de um tempo – Já tinha me esquecido, você não colocou esse job no sistema...  

– Nunca precisou... – Preta rebate, controlando todas as expressões de irritabilidade que queriam brotar em seu rosto. Conteve também o suspiro de impaciência, que quis vir junto. Fingiu ver algo no tablet, mas só escreveu qualquer besteira na tela bloqueada.

– Outros tempos, Preta. Agora são outros tempos... – Miriá fala, digitando alguma coisa no computador. Permaneceu com apenas uma das sobrancelhas levantada – Lu, depois toca esse que te enviei agora – ela olha para Preta, como esperando para ver o que mais ela queria.

– Não dá para fazer antes? Por favor, Miriá, é só um esboço, uma frase, para um prospect até que fácil, vai. Encontrei há pouco com o Ric no elevador, e ele pediu...

– Ah, entendi! – Miriá interrompe. Agora era nítido que estava irritada – Então o Ricardo pediu...

– Não, eu estou te pedindo – Preta afirma, vendo a ironia na fala dela.

Neste momento, se atentou até na piscada que deu; jamais transpareceria em seu humor alguma reação, alguma emoção. Sabia que Miriá adorava ver qualquer vulnerabilidade do tipo, e só por isso não dava a ela esse gostinho de vê-la de guarda baixa. Não era à toa que Preta tinha o justo título de “a joia da Rubi”. Era uma exímia profissional porque sabia bem deixar longe daquele endereço a sua vida pessoal. Este era o segredo do seu sucesso, cuja rotina envolvia certa dinâmica com Miriá.

Mas Preta tinha em seu passado recente o que considerava uma brecha que, embora já encerrada, ainda repercutia nos dias de hoje com algumas consequências, chatas. Ela se aborrecia por ser a responsável por isso, por ter se permitido em algum momento se envolver romanticamente com Miriá, que desde o término regava as palavras matinais direcionadas a ela em uma acidez desagradável (só amolecia quando bebia). Era um formato de relação bem cansativo.

– Por favor? – Preta insiste, diante do silêncio de Miriá.

– Tá bom! Lu, toca esse que te enviei antes, por favor. Passa para a Guta – Miriá complementa, ainda olhando para Preta.

– Grata, Miriá – Preta agradece, pronunciando bem cada sílaba – Ah! – ela volta, depois de levar a cadeira para perto de outra mesa – Hoje vai ter um almoço... Não é trabalho, mas sabe como é, coisa do seu Inácio... Você foi convocada.

– Ah, Preta... – Miriá reclama, num tom mais baixo. Colocou uma das mãos na testa, e depois de um tempo deslizou, suspirando e levando o cabelo para trás – Detesto esses eventos sociais...

– Eu sei – Preta usou um tom conivente – Mas não vai ser dos piores. Ele quer vincular o aniversário da agência com a próxima edição do Guia Goodyear de Restaurantes. No mínimo, vamos almoçar bem.

– Você também vai? Ah, que ótimo! – Miriá suspira de novo, sinceramente aliviada – Já estava pensando na tortura de ter que comer em companhia de Ricardo e seu Inácio...

– É, mas eles vão também – Preta ri, mas logo volta a ficar séria.

– Sim, mas você estará lá comigo.

– Se você me entregar logo a ideia do prospect, posso até ser sua amiga durante esse almoço – Preta provoca e se afasta. Não se virou para ver a cara que Miriá fazia.

                Preta passou a manhã distraída, empenhada na atualização do seu trabalho, dando baixa nas tarefas do sistema, de acordo com o progresso de cada status, falando com alguns clientes, fingindo uma simpatia que sempre parecia verdadeira, mas que se encerrava com a finalização da ligação. Só perto do almoço é que voltou a pensar em Miriá, porque seu cheiro chegou primeiro do que ela.

– Bora, Preta, o dever nos chama – Miriá diz, parando ao lado de sua mesa. Parecia bem humorada, mas estava com o rosto sério.

                Ela era uma mulher bonita, sabia se vestir bem e tinha um porte que combinava com o cargo que exercia. Preta tinha consciência de que Miriá vivia sob intenso estado de estresse há bastante tempo, e até acreditava que parte do que ela própria sentia vinha da colega. Ainda que tivessem trabalhos completamente diferentes, eram complementares, e Preta era uma pessoa bastante sensitiva.

                Enviou o último e-mail e desligou o computador de tela grande, sem muita pressa. No mesmo instante em que guardou o inseparável tablet dentro da bolsa, a porta do elevador se abriu logo à frente, e junto com Ricardo apareceu um Inácio bastante sorridente, apoiado numa bengala marrom.

– Miriá, minha querida – Inácio diz, com sua voz senil – Sempre uma satisfação encontrá-la – ele a aguarda vir em sua direção.

– Seu Inácio, é bom te ver também – Miriá o abraça, depois de um beijo no rosto. Ergueu a cabeça brevemente, em seguida – Ricardo...

– Miriá... – Ricardo responde, dando passagem para Inácio andar à sua frente – Preta – ele dá uma piscadinha para ela, em cumprimento.

– Preta, querida – Inácio a abraça, após ela se levantar e vir até ele – Que alegria te encontrar!

– Igualmente, seu Inácio. Parabéns desde já pelo aniversário da Rubi – Preta diz, um decibel acima do seu tom de voz normal.

– Agradeço, minha joia. Parabéns para você também, que faz tudo isso aqui funcionar tão bem, há tantos anos – Inácio responde, sem ver as expressões de Ricardo e Miriá, após a fala. Ficou segurando a mão de Preta até entrarem juntos no elevador, caminhando devagarinho.

– O seu Inácio foi quem escolheu o restaurante para nós irmos hoje. Provavelmente é onde vai ser a festa de aniversário da agência, né pai?

– Vamos ver, vamos ver... – o velho responde – As críticas são boas, mas precisamos ver se a comida é tudo isso mesmo. Vocês conhecem O Bistrô? Fica ali próximo ao Paraíso.

– Não que eu me lembre... – Miriá responde. Não viu que Preta a olhava, e parecia estar sendo sincera.

– Nós fomos lá num happy hour, há alguns meses – Preta diz, ainda segurando o braço de Inácio. Percebeu de canto que Miriá a encarou, e depois de olhar para o teto do elevador, balançou a cabeça, pensativa – O restaurante é muito bonito, seu Inácio, e os drinques são ótimos. Provavelmente a comida será boa também. “Se está no Guia...”.

– “Se está no Guia Goodyear, confia!” – Inácio sorri com a menção ao slogan da publicação que era referência da gastronomia paulistana. Aquela era uma das milhares de frases que o publicitário tinha inventado ao longo da carreira.

                Desceram de elevador até o subsolo do prédio da agência e entraram no carro de Ricardo, um modelo elegante, brilhante e comprido. Inácio foi na frente com ele, depois de embarcar com certa dificuldade, e Preta e Miriá sentaram-se atrás.

– Qual que é O Bistrô? – Miriá cochicha, logo após fechar a porta – É aquele que a Ritinha deu perdido e foi parar em outro bar?

– Não, esse é se chama IKT. O Bistrô é aquele do banheiro bonito, que tem um espelhão... Que você deu perdido, quando sumiu depois de sair para comprar cigarro. A gente foi lá no dia que a Rubi fechou o contrato com aquela rede de hotéis de luxo.

– Ah... – Miriá resmungou, parecendo se recordar, e sua resposta veio emendada em uma respiração mais pesada. A lembrança de alguma forma acessou um ponto seu bem reflexivo, porque ela permaneceu quieta durante todo o trajeto, até chegarem ao destino.

                Preta foi conversando com Inácio e Ricardo no caminho até lá. Fazia parte de suas atribuições ser comunicativa, mas ela gostava de Inácio, então suas conversas com ele eram sempre porque queria.

– Esse restaurante está no Guia há alguns anos, já. Aqui é muito bem avaliado – Inácio comenta, assim que chegam, depois de desembarcar, ajudado por Preta – Me lembro de vir aqui um tempo atrás... Na ocasião, a chef era uma moça bonita, muito simpática, muito educada.

– Acho que ainda é a mesma, pai – Ricardo diz.

– Hein? – Inácio pergunta.

– Ela ainda é a dona do restaurante. Vou pedir para que venha à nossa mesa para a cumprimentarmos – Ricardo responde, deixando que o idoso e as mulheres passassem antes pela porta giratória dO Bistrô.

                O salão do restaurante estava praticamente lotado, e o garçom conduziu os quatro até uma mesa que ficava bem no centro, mas era afastada o suficiente das demais, permitindo certa privacidade. Preta achou que durante o dia o local tinha definitivamente uma energia diferente, e lhe pareceu até ser um ambiente mais agradável para almoçar do que para um happy hour.

                Era notável que havia um cuidado na arrumação, na decoração e na limpeza. Os funcionários se vestiam todos de maneira igual, em uniformes impecavelmente limpos e bem passados, exibindo o logo dO Bistrô em consonância com todo o resto, ilustrado de maneira igual. As cadeiras tinham assento e encosto que pareciam de veludo, azuis, como a toalha mais grossa que ficava abaixo de outra, branca, em todas as mesas arrumadas milimetricamente iguais.

                Nas paredes de tijolinho à vista não havia quadros, mas Preta reparou em várias plantas espalhadas no ambiente, longe de parecerem estar ali por acaso. Concluiu que o paisagista responsável pelo restaurante, além de competente, tinha muito bom gosto.

– Vocês já conheciam aqui? – Ricardo pergunta para Preta, gentil.

– Já, sim. Nós viemos aqui comemorar o contrato com a Etur Lux.

– Ah, sim – Ricardo responde, após uma pausa, balançando a cabeça – Já faz um tempo, já. Como era mesmo o nome da CEO de lá?

– Célia – Preta responde, junto com Miriá.

– Essa! – Ricardo assente com a cabeça – Mulherzinha intragável... Lembro que colocou mil exigências em contrato...

– Quem? – Inácio pergunta.

  A responsável por aquela rede de hotéis, pai – Ricardo responde, se inclinando na direção dele.

– Sim, sim – o velho retruca, de um jeito que Preta sabia que ele dizia, na verdade, o oposto ao que pensava. 

– É aquela campanha dos hotéis cinco estrelas, seu Inácio, que a gente fez no passado. Nós ganhamos o Prêmio Inovação, lembra? – Preta pergunta, encostando de leve na mão do homem sentado ao seu lado.

– Ah, sim, eu sei, eu sei – agora ele parecia sincero – Célia... Dantas. É a CEO da rede. A presidente se chama Bruna, Toledo. Elas são um casal! – Inácio completa, mostrando que ainda tinha boa memória.

– Isso, elas mesmas – Preta confirma, também com a cabeça.

– Hoje em dia isso é natural, sabe – Inácio fala, no tom que usava quando as referências do passado vinham à tona – Casal de homem com homem, de mulher com mulher. Às vezes até casais de mulheres como vocês – ele aponta com o dedo para Preta e Miriá, que se entreolham de relance – ...que nem parecem que são lésbicas.

– Pai... – Ricardo chama, parecendo sem graça, entregando para ele o menu do restaurante.

– É verdade, Ric! Antigamente as pessoas viviam dentro do armário, como se diz, e aí quem se assumia tinha um estereótipo bem... característico – ele fala, depois de um tempo buscando a palavra – A dona daqui era lésbica também. Ainda é a mesma?

– É sim, vou até falar com o garçom... – Ricardo comenta, e faz um sinal com o braço – Opa, tudo bem? Você pode, por favor, pedir para a chef vir até a nossa mesa? Diz para ela que Inácio Marzon quer vê-la.

– Certamente, senhor – o garçom responde e some de vista rapidamente.

– A chef aqui se chama Patrícia Figueiredo, seu Inácio – Preta informa, baixinho.

– E a esposa? Qual é o nome?

– O nome dela é... – Preta desliza o dedo pela tela do celular, buscando a informação solicitada – Tatiana. Não, se chama Mariana – ela coça a cabeça, um pouco confusa. Nem nas suas anotações Preta tinha essa informação, porque nunca soube com quem Patrícia era, de fato, casada. Esse dado não era público, embora os dois nomes sempre aparecessem associados ao nome da dona dO Bistrô.

– Seu Inácio, não vai dizer para a chef que ela não parece lésbica... – Miriá pede, tentando ser gentil – Isso não é elogioso.

– Ah, sim, sim, minha querida. Não vou nem mencionar o assunto, se você achar melhor.

– Acho, sim – Miriá dá um sorriso, e estende o gesto para Preta, que a olhou, meio contrariada – É verdade, ué! – ela se defende, baixinho. Desconhecia alguma lésbica que gostasse de ouvir que parece mulher hétero. Ela mesma não gostava.

                Antes que mais alguém dissesse algo, Patrícia surgiu à vista, e caminhou depressa até onde eles estavam, parando antes rapidamente só para cumprimentar alguém na mesa ao lado. A chef usava um dólmã azul marinho, bem cortado, com botões brancos, que lembrava a combinação das toalhas do restaurante. Tinha o logo na peça e no avental que ela usava, amarrado à cintura. Chegou até eles com um sorriso amável no rosto, e Preta reconheceu em seu olhar um indício de esgotamento. Via isso em seus próprios olhos, toda manhã.

– Seu Inácio, muito prazer em revê-lo! – Patrícia estende a mão, sem anéis, para um cumprimento formal – Sou a chef, Patrícia...

– Figueiredo – Inácio a interrompe,  completando a frase e segurando a mão da mulher – Olá, Patrícia, satisfação imensa te ver de novo, e vir mais uma vez ao seu restaurante.

– O prazer é todo meu – ela cumprimenta os demais presentes à mesa – Tudo bem? Ricardo, né?

– Isso, nos falamos mais cedo pelo telefone – ele se levanta para cumprimentá-la, apertando sua mão, cortês – Tudo bom, Patrícia? Muito prazer.

– O prazer é meu. Espero que apreciem O Bistrô, a nossa comida, o nosso atendimento – ela sorri para Miriá e Preta – ... e que saiam daqui satisfeitos, querendo voltar! – Patrícia dá uma olhada em direção à porta, e sutilmente cumprimenta alguém com uma piscada discreta. Fez um gesto menos discreto, chamando a garçonete que passava por ali – Vou deixá-los em ótimas mãos. Esta é a Andreia, ela vai atender vocês no almoço hoje. Vou pedir licença porque preciso... – Patrícia faz um gesto para a entrada do restaurante.

– Claro, claro. Nós queríamos mesmo era cumprimentá-la. Parabéns pelo ótimo trabalho, e pelo seu restaurante. Está tudo muito bonito – Inácio diz, dando uma piscadinha para ela, e depois para a garçonete – Boa tarde, Andreia!

– Grata. Fiquem à vontade! E bom apetite! – Patrícia diz.

Ela caminha na direção oposta à cozinha e abraça brevemente uma mulher que a aguardava, que disse algo antes de tirar o avental da cintura da chef. As duas riram e entraram juntas em uma porta com acesso restrito, que ficava perto da entrada do restaurante.

                Ricardo fez os pedidos das bebidas, apenas Miriá e Preta não quiseram vinho, mas aceitaram à sugestão da garçonete para o prato do dia: legumes marinados com frutos do mar, uma das especialidades da casa. Pediram bruschettas como entrada, que vieram rapidamente e acompanhadas de potinhos pequenos com molhos coloridos que tinham a consistência de manteiga. Cada um tinha junto uma faquinha, igualmente colorida, com o logo do restaurante impresso no cabo.

                Preta viu quando a chef e a acompanhante retornaram ao salão, e observava a interação delas quando uma terceira mulher chegou, e as cumprimentou. Coincidentemente, esta era a segunda vez que Preta e Miriá iam aO Bistrô, e pela segunda vez, encontravam a CEO dos hotéis no local, que acenou para ela, quando a viu.

                Célia reconheceu Preta logo na entrada, e também Inácio e o filho, Ricardo. Pediu licença para Patrícia e Tatiana, para cumprimentá-los, e somente quando estava chegando próximo à mesa deles é que viu que a quarta integrante era Miriá, que a olhou espantada quando a reconheceu parada ali. As duas nunca se viam assim, à luz do dia e na frente de todos.

– Seu Inácio! – Célia cumprimenta, sorrindo bem formal para todos, depois de um abraço breve no publicitário – Ricardo, tudo bem? – ela aperta a mão do diretor – Meninas, boa tarde. Preta, tudo bom?

– Oi, Célia – Inácio cumprimenta – Falamos de você há pouco! Como é que você está? Senta aqui com a gente, vamos almoçar.

– Não, eu não posso... – ela faz um gesto, apontando para nenhum lugar em específico, mas foi interrompida por Ricardo.

– Por favor, só um drinque, imagina... – ele puxa uma cadeira a mais, e a põe em volta da mesa, entre Preta e Miriá – Acho que você não chegou a conhecer a nossa Diretora de Criação... Miriá, essa é a...

– Célia – a mulher interrompe, sentando e estendo a mão para Miriá, como se fosse uma completa estranha – Muito prazer. O que estamos comemorando hoje?

                Miriá a cumprimentou normalmente, num aperto de mãos formal, mas Preta viu que sua postura repentinamente mudou. Conhecia aquele brilho nos olhos da mulher, já eram muitos anos trabalhando juntas e Preta tinha uma cota a mais de intimidade com Miriá, o que lhe conferia esse poder de conseguir ler o seu gestual.

– Hoje estamos comemorando a vida, apenas – Inácio bebe um gole de vinho – Mas viemos aqui decidir se O Bistrô será o palco do próximo aniversário da agência. Queremos aproveitar que a Rubi vai patrocinar o Goodyear novamente este ano.

– Ah, perfeito – ela sorri para a garçonete, que lhe entrega uma taça e a serve com vinho – Este é um ótimo restaurante, eu sou amiga da Patrícia há bastante tempo, minha esposa fez faculdade com a Tatiana, esposa dela. O Bistrô está no Guia já há muitas edições, certamente será uma escolha acertada. Sou testemunha da dedicação de todos por este lugar, especialmente de Patrícia – Célia beberica o vinho. Se estava incomodada com algo, disfarçou muitíssimo bem.  

– Com licença, eu vou ao toalete – Miriá diz, se levantando. Deixou a bolsa apoiada na cadeira.

                Preta reparou na tensão estabelecida entre Miriá e Célia, mesmo esta não dando mostras de absolutamente nada. Então resgatou na memória que já tinha visto algo parecido, exatamente nesse mesmo restaurante, meses atrás. Célia e Miriá se conheciam, e Preta se lembrou de ter flagrado as duas em atitude suspeita dentro do banheiro. Se recordou que até desconfiou que as duas tinham transado. Estava embriagada na ocasião, mas seu feeling não falhava.

Pediu licença e se levantou também. Aproveitou que o assunto entre Célia, Ricardo e Inácio parecia bem engrenado na conversa e foi até o banheiro, atrás de Miriá. Não se achava no direito de questionar muita coisa, mas elas tinham um histórico, e não faria mal algum perguntar. No máximo, o que poderia acontecer seria Miriá não querer responder, e tudo bem.

Lavou as mãos enquanto a aguardava, aproveitando para retocar o batom em frente ao espelho. Se achou com cara de cansada, mas reconheceu que a maquiagem sempre disfarçava bem. Viu Miriá pelo reflexo, quando ela abriu a porta da cabine e pareceu surpresa ao vê-la ali.

– Se eu te fizer uma pergunta você me responde? – Preta questiona, bem direta, ainda a encarando pelo espelho.

– Não sei, não, Preta... – Miriá responde, parecendo igualmente estafada. Lavou as mãos olhando brevemente para si mesma.

– Só uma pergunta! – Preta fala, e a vê levantar uma sobrancelha – Vai, você está muito azeda hoje. Além do aceitável, Miriá.

– Tá, pergunta – Miriá cruza os braços e a encara.

– Não com essa atitude... – Preta resmunga, finalmente se virando, também cruzando os braços em direção a ela.

– Não sei o que quer de mim... Você é que me pediu para te tratar como colega! – Miriá se justifica. Pareceu haver mágoa em sua voz, e talvez por isso mudou o tom, ao continuar – Não tem atitude nenhuma, Preta. Só estou muito cansada, ultimamente tem sido muito puxado, você é testemunha do tanto de tempo que eu tento tirar férias...

– Eu sei... – Preta volta a resmungar, mas agora de maneira condolente. Em outros tempos, a teria abraçado, mas se conteve – Desculpe.

– Eu que peço desculpas, não tenho sido muito gentil... – Miriá levanta os ombros. Parecia mesmo exaurida – Pergunta o que você quer saber.

– Mi, você está tendo um caso com a Célia? – Preta foi direta, de novo – Você não me deve satisfação, não é por isso que estou perguntando.

– Por que pergunta, então? Acha que isso interfere no nosso trabalho de que maneira? – Miriá desconversa, parecendo aborrecida, ajeitando o cabelo em frente ao espelho – Afinal, o nosso acordo é só falarmos de trabalho enquanto estamos no trabalho...

– Tá, meu cu, não precisa responder. Isso já foi uma resposta – Preta afirma, mas não se consola com o silêncio dela – Mas perguntei porque essa Célia Dantas de Alencar é casada, Miriá, há vários anos. E a esposa dela parece ser legal, faz várias ações sociais... Você está se metendo no casamento de outra pessoa, e agora vai almoçar do lado da sua amante, como se não fosse nada demais!

– Ai, Preta... – Miriá suspira, impaciente – Agora, pronto. Mais uma coisa para você pesar na minha mente...

– Não quero pesar em nada. Só acho que...

– Não, Pretinha – Miriá interrompe – Você não pode achar mais nada!

                Preta balança a cabeça, em concordância. Miriá estava certa, ela não tinha mesmo permissão para opinar em sua vida pessoal. Isso fazia parte do acordo que tinham feito, para que o trabalho delas não fosse prejudicado devido à relação pessoal e fracassada das duas. Era uma resolução ingênua, ainda que decidida em comum acordo, pois se mostrava sempre bastante difícil de ser colocada em prática. Especialmente quando ambas estavam sóbrias, como agora.

– Sinto muito que a gente não tenha dado certo – Preta diz, enfim, já prestes a sair do banheiro.

– Eu também sinto. Tentei fazer a gente dar certo... – Miriá lamenta.

– Eu sei, Mi... – Preta toca na mão dela, mas logo tira, num gesto muito breve – Eu também tentei...

– Eu sei, tudo bem – Miriá desconversa. Suspirou fundo, segurando a maçaneta, antes de continuar – É passado, foda-se – ela diz, repetindo uma frase que ultimamente parecia ser o seu novo lema – Eu não queria, sabe – Miriá fala, antes que saíssem ou antes que Preta dissesse algo – Me envolver com ela... foi sem querer, mas aconteceu.

– Eu só me preocupo de você se machucar – Preta responde, sincera.

– E a gente não se machuca sempre, o tempo todo, Pretinha? Gostar de mulher tem um preço muito alto, você sabe bem disso...

                Preta não rebateu; sabia que era verdade, o que poderia dizer? Ela mesma era a prova viva do quanto o amor pode ser cruel – ou a sua falta. Em partes, seu namoro com Miriá não deu certo por causa disso. Preta era quebrada em pontos essenciais para que uma relação pudesse dar certo.

                O falatório no salão as atingiu logo que saíram do banheiro, Miriá à frente de Preta. Caminhou determinada até a mesa, e seu corpo todo se desarmou ao chegar lá e encontrar apenas Inácio e Ricardo.

– A Célia precisou sair, disse que ia almoçar com a amiga – Inácio explica, assim que elas se sentam. O homem sorri porque junto com as funcionárias, o almoço chegou – Agora vamos à hora da verdade! – ele puxa os talheres, e dá uma piscadinha para Preta, que sorriu para ele, antes de começar a comer.

– Hum, é muito bom mesmo – Ricardo diz, depois da primeira garfada. Sorriu para Miriá, que não retribuiu. Preta, sempre polida, correspondeu ao sorriso, quando ele a encarou.

                Enquanto almoçava, tentou digerir a história de Miriá ser amante de alguém. Parecia contraditório, ela era uma mulher tão dona de si para se sujeitar a algo assim... mas Preta tentou não a julgar. Se sentia era culpada por isso, se achando a responsável por empurrar Miriá para uma situação de amante. Afinal, antes disso, Miriá tinha se envolvido com ela, e foi Preta quem terminou tudo.

                Acabou de comer se sentindo um pouco estranha, o corpo estava meio esquisito e ela atribuiu o mal-estar ao tempero da cozinha dO Bistrô, mas não quis comentar nada para que isso não influenciasse na decisão de Inácio. Sempre que podia, Preta privilegiava comércios e negócios comandados por mulheres, e se fossem mulheres lésbicas, aí é que tomava partido mesmo. Achava importante fortalecer a rede sapatão. Seu voto para o aniversário da Agência Rubi era para aquele restaurante, sem dúvidas, mesmo com a comida dando certa gastura antes de iniciar o processo de digestão.

                Depois da sobremesa e do cafezinho, já fazendo certo esforço para se manter sob o domínio do próprio corpo, e até da mente, que começou a dispersar, Preta não viu que bem próximo a ela uma movimentação tinha se iniciado, e por sua causa. Tatiana, que tinha almoçado em companhia de sua amiga Bruna e a esposa, Célia, aproveitou que o casal tinha ido embora para revelar à Patrícia a história que tinha ouvido no banheiro, minutos atrás.

                Sem querer, e devido a um problema intestinal, Tatiana acabou descobrindo que a amiga estava sendo traída, por alguém de nome Miriá. Patrícia, que era muito da ligeira, já estava procurando informações sobre a mulher na internet, alheia ao fato de que a tinha cumprimentado, mais cedo, e que ela inclusive permanecia por ali. Só a reconheceu quando viu sua foto no Instagram, e também a amiga, mas ao procurá-las no salão, Preta e Miriá já não estavam mais no local.

                Quando chegaram de volta à agência, Preta desabou em sua cadeira, mas não do jeito que geralmente se joga, quando se está muito cansada. Ela pareceu desmontar de alguma forma, mas Miriá não reparou, porque estava andando na frente, e logo que saíram do elevador, Luana a interpelou, exigindo sua atenção. Rita, que vinha do banheiro, foi quem viu que algo estava estranho.

                Preta não conseguiu captar todos os detalhes do processo que envolveu chamar um Uber para levá-la ao hospital, quando Rita começou a gritar pelo salão, alertando que a colega não estava bem. Pareceu que desmaiou, embora tenha ficado com a impressão de continuar ouvindo tudo, só que de um jeito diferente, como se usasse uma máquina de triturar sons, como a que usava para destruir documentos que Ricardo eventualmente mandava dar um fim.

Ela não acompanhou também a conversa íntima que rolou entre Rita e a motorista do Uber, durante todo o caminho até o hospital, mas reparou que em alguns momentos, Ritinha parecia um pouco aflita, talvez por causa dela, que estava derretida no banco de trás, ouvindo à sua volta os inconstantes sons do tráfego urbano com ouvidos que não pareciam seus.

Quem deu entrada no hospital com Preta foi Rita, que geralmente era quem precisava ser amparada nos momentos em que as duas interagiam, em geral às sextas-feiras, quando Rita sempre passava do ponto, bebendo demais. E ela ficou lá até que a colega fosse atendida e medicada, e aguardou o horário de visita, que Preta não soube dizer quanto tempo levou, porque pela primeira vez, em anos!, perdeu a noção do tempo. Se sentia tão em paz que a vontade de se entregar a um sono profundo era quase incontrolável.

– Você se sente bem? – Rita pergunta, assim que Preta abre um olho. Não soube dizer há quanto tempo a mulher estava ali.

– Melhor, me sinto me... – Preta não terminou a frase, mas na sua cabeça, pareceu que sim. Teve até a impressão de ter falado mais coisa, mas só ficou quieta.

– O médico disse que você teve uma crise de estafa, talvez de ansiedade... – Rita comenta, se aproximando da cama. Pareceu que seu rosto estava mais corado do que normalmente, mas podia ser efeito das medicações, que ainda pingavam direto na veia de seu braço furado. Ela olhou para o acesso, parecendo confusa, e por isso Rita se calou.

– Eu não posso... eu preciso... – Preta tentou dizer, mas não conseguiu porque estava chorando – Não posso me afastar do trabalho.

– Oxe, é claro que pode – Rita quebra o protocolo hospitalar e senta ao seu lado, na cama. Segurou a sua mão, antes de continuar – Você vai sair daqui de atestado, minha filha. Precisa descansar, se recompor e se recuperar para daí, sim, retomar. Até lá, é tipo férias, Preta, você vai precisar relaxar minha amiga. Posso te ajudar com isso, se quiser.

                Definitivamente, Rita parecia mais corada.

– Há quanto tempo você não tira férias? Eu nunca vi você sair de férias! – Rita parecia chocada, com as duas mãos no rosto, e seu tom afastou um pouco o sono que Preta sentia. Um pouco – Eu entrei na agência, deixa eu ver... – ela contava nos dedos, os lábios mexendo enquanto balbuciava sozinha – Vai fazer dez anos. Caralho, tudo isso? Não... – Rita voltou a contar nos dedos – Dez anos, putaqueopariu, o que eu estou fazendo com a minha vida?

– Eu não saio de férias... – Preta resmunga, uma lágrima escorrendo.

– É, por isso que está aqui agora – Rita volta sua atenção para ela, mas aperta sua mão, em solidariedade – Você não é máquina! Tudo bem.

– Eu sou a joia da Rubi – Preta fala, com a voz embargada – A joia solitária – continua, no embalo dos remédios – A que resolve tudo – ficou um instante quieta, antes de continuar – Preta, a implacável. A incansável...

– É, só que...

– A Fran me dizia: “tome cuidado”...

– Quem? – Rita pergunta. Gostava muito da sinceridade que certos medicamentos despertavam nas pessoas. Sua lembrança preferida da adolescência foi quando acompanhou uma amiga em um exame de endoscopia. Naquele dia, descobriu que ela, além da amiga, era lésbica, quando se beijaram na enfermaria.

– Franciele. Minha esposa. Ex-esposa? Não, esposa. É minha esposa, eu ainda a amo. Mas ela morreu... – Preta estava chorando mais agora – Fran me dizia que o trabalho me mataria, dizia para eu tomar cuidado... Mas eu dizia que era imbatível. Preta, a incansável! E sou. Eu era...

– Eu... – Rita se cala, porque não sabia o que falar. Jamais tinha ouvido tal relato, nem imaginava que Preta tinha um histórico! Estava bastante acostumada a vê-la na agência, sempre toda elegante, bem vestida e ereta. Parecia uma mulher implacável, mesmo.

– Fran não tomou cuidado, mesmo trabalhando pouco. Ou tomou, não acho que foi culpa dela, menos ainda que ela tenha querido isso... Mas é como dizia aquela campanha antiga: o trânsito mata. Matou minha mulher e me quebrou em mil pedaços, como o carro dela, que se partiu em várias partes.

– Eu sinto muito, Preta – Rita aperta de novo sua mão.

– Eu também. O trabalho pelo menos me distraía... O que faço agora?

– Não é para sempre. E é necessário que olhe para você também, que se permita se curar disso, e não só abafar o que sente com o trabalho – Rita fala, com o coração – Se a sua casa te sufoca, se muda, vai embora.

– Como se fosse simples... – Preta resmunga, mas pelo menos o comentário a fez parar de chorar e quase sorrir.

– É simples. Mas não precisa ser tudo agora. Primeiro, descansa. Vai para algum hotel, algum lugar com uma paisagem bonita, com uma banheira grande para você relaxar. Depois faz uma lista e vai colocando em prática. Comigo funciona.

– Listas?

– Sim, faço de tudo! – Rita pareceu orgulhosa – Hoje mesmo vou fazer uma lista nova, para a minha vida, porque... dez anos no mesmo emprego definitivamente não é o que eu planejava para mim. Preciso definir os próximos dez, senão eles passam e eu nem vejo. A vida está passando, estou envelhecendo...

                Preta não prestou mais atenção ao que Rita dizia, e ela falou mais algumas coisas, até o final da visita. Preta não se lembrou depois se ela também disse algo, ou se só a ouviu. Se entregou ao sono reparador sem culpas e sem julgamento, fazendo da cama de hospital a maca do SPA que pretendia ir, saindo dali.

                Na alta, no dia seguinte, depois do período de observação, foi encaminhada para o psiquiatra. O atestado designava a síndrome de Burnout como o motivo do seu afastamento, mas Preta achou que poderia ser qualquer outro. No fim, reconheceu que sua vida era quase uma bomba-relógio, e que ter essa pausa era importante para que depois ela não explodisse antes da hora ou de maneira desprogramada. Descansaria, então.


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