A joia da Rubi (conto)
Esta é a oitava história da Novelinha.
Se ainda não leu a sétima, O encontro, clique aqui.
No mundo corporativo, competitivo e acirrado, não existe “trabalho ideal”.
Estamos adoecendo cada vez mais, em partes devido aos nossos ofícios, tão
desgastantes. Não por acaso, desde janeiro de 2022 a Organização Mundial da
Saúde (OMS) classifica a síndrome de Burnout, também conhecida como “síndrome
de esgotamento profissional”, como doença ocupacional, ou seja, resultante de
um processo de estresse crônico relacionado ao ambiente de trabalho. Antes, para
ilustrar, a síndrome era tida como problema de saúde mental e um quadro
psiquiátrico.
Numa agência de publicidade, provavelmente a função de maior estresse e
cobrança é a de Atendimento. Quem ocupa o cargo responsável por fazer a ponte
entre o cliente e a equipe interna, garantindo a entrega de projetos alinhados a
uma determinada proposta de valor, precisa necessariamente ter um perfil
específico, pois este é um trabalho que nem todo mundo consegue desempenhar. Afinal,
não se compra no mercado doses cavalares de paciência e de jogo de cintura; saber
ser política é quase um dom, que se aprimora, é verdade, mas que precisa ser
parte da essência da personalidade, para que a pessoa então faça toda a mágica
acontecer, sem enlouquecer.
Às vezes funciona.
A Agência Rubi foi fundada no final dos anos 1980 por Inácio J. Marzon,
um publicitário visionário, detentor de vários títulos e prêmios disputados na
categoria. Desde meados dos anos 2000, funciona em um prédio espelhado e de
esquina, na zona oeste de São Paulo, e nos três andares do imóvel atualmente se
acomodam 35 funcionários. Em 2013, a Rubi passou a ter o Atendimento realizado
por Preta, uma profissional competente formada em Relações Públicas, que se
encontrou no mundo do marketing e se aprofundou neste mercado, se especializando
na arte de lidar com o ego alheio.
Principal motivadora em manter funcionando a engrenagem da agência, não
à toa Preta é quem recebe um dos maiores salários da Rubi, ficando abaixo
apenas da folha de pagamento da diretoria e dos cargos de chefia. O papel
fundamental em suas atribuições como Atendimento, embora isso não esteja
definido em contrato, é colocar panos quentes sobre os ânimos da equipe de
criação e também apaziguar os humores de clientes afoitos, numa equação em que Preta
é a maior responsável pelo equilíbrio e, consequentemente, pelos bons
resultados. E essa conta só fecha quando são adicionados os donos da Agência
Rubi, que têm um peso todo especial.
– Preta! Era com
você mesmo que eu queria falar! – Ricardo diz, assim que a vê chegando na
recepção.
O diretor era um sujeito bem
apessoado, estava sempre bem vestido e acelerado, especialmente às segundas-feiras,
quando provavelmente cheirava uma carreira a mais de cocaína antes do trabalho.
Ele a aguardava andando agitado pelo chão brilhante de porcelanato da entrada
do prédio, que era sóbria; além do balcão da recepcionista, onde também ficava
o segurança, sempre de terno e gravata, ao lado da catraca tinha apenas um sofá
amarelo, de canto.
– Bom dia, Ric –
Preta dá um beijinho em seu rosto, cumprimentando.
– Bom dia,
querida! No fim, como ficou aquele contrato com a Flordiê? Preciso que você
agilize aquela reunião com o pessoal da VCC, e cobre da Criação pelo menos um
esboço para a gente apresentar para aquele prospect que te falei na sexta – os
dois entram juntos no elevador.
– O contrato
parou na mão do cliente. Cobrei, mas vou cobrar novamente. A reunião com a
agência de viagem foi marcada para quarta, como você tinha pedido, e a Miriá
pediu até o fim do dia para entregar a maquete da campanha do novo cliente.
– Ah, não, Preta...
– Ricardo resmunga, quando a porta do elevador se abre, no segundo andar.
Segurou com o corpo, para que não voltasse a se fechar, e enquanto ele ficou
ali o elevador permaneceu apitando, quase marcando o ritmo da agitação matinal do
diretor – Preciso disso até o almoço. “Até o fim do dia” é um prazo longo
demais. Cobra a Criação, por favor, vai lá, acelera a Miriá. Só quero uma frase,
é jogo rápido. Aproveita que vocês duas são amigas – o comentário a faz virar
os olhos, mas ele não vê – Ah! E não esquece do nosso almoço!
– Aham – Preta
resmunga, vendo a porta do elevador fechar, levando o diretor para a cobertura da
agência.
O segundo andar da Rubi era
praticamente um espaço inteiro sem paredes; era um grande salão, bem iluminado,
com janelas imensas, que contava apenas com divisórias entre as baias, que
separavam conjuntos de quatro mesas, agrupando os publicitários de acordo com
as funções, todos com um coordenador por grupo. O chão era de madeira e
cheirava a cera, um cheiro específico daquele local. A mesa de Preta era uma
das primeiras, ficava logo na entrada, perto do elevador, a única em formato de
L. Dali ela tinha uma visão geral de todo o salão, que ficava às costas de sua
cadeira de encosto alto.
Ao chegar, viu que muitos já estavam por ali, inclusive Miriá, a Diretora
de Criação, que ficava posicionada bem no centro do salão, atrás de uma mesa
larga que vivia bagunçada, cheia de papéis. A mulher não pareceu perceber sua
chegada, ou fingiu não a ver. Continuou conversando com Luana, num tom de voz
baixo, mas mexendo bastante com as mãos, como se estivesse zangada com alguma
coisa.
– Bom dia,
meninas – Preta cumprimenta, puxando uma cadeira para perto da mesa de Miriá e
sentando. Apoiou o tablet no colo e sorriu. Fazia parte de seu trabalho nunca parecer
estar de mal humor.
– Faz isso para
mim, Lu, por favor – Miriá pede, antes de olhar para ela – Bom dia, Preta! Tudo
bem?
– Dia! – Luana
cumprimenta, no mesmo instante se afastando delas, puxando para longe sua
cadeira de rodinhas – Vou fazer melhor de três, chefe – complementa, já
sentando de volta em seu lugar.
– Não precisa,
uma opção só já basta. Coisa rápida, Luana – Miriá responde. Voltou o olhar
para Preta, parecendo um pouco impaciente. Eram oito da manhã.
– É o texto para
o prospect? Aquele, que eu te falei na sexta-feira. A empresa de celular – Preta
diz, vendo que ela parecia não se recordar.
– Ah! – Miriá responde,
depois de um tempo – Já tinha me esquecido, você não colocou esse job no
sistema...
– Nunca
precisou... – Preta rebate, controlando todas as expressões de irritabilidade
que queriam brotar em seu rosto. Conteve também o suspiro de impaciência, que
quis vir junto. Fingiu ver algo no tablet, mas só escreveu qualquer besteira na
tela bloqueada.
– Outros tempos,
Preta. Agora são outros tempos... – Miriá fala, digitando alguma coisa no
computador. Permaneceu com apenas uma das sobrancelhas levantada – Lu, depois toca
esse que te enviei agora – ela olha para Preta, como esperando para ver o que
mais ela queria.
– Não dá para fazer
antes? Por favor, Miriá, é só um esboço, uma frase, para um prospect até que
fácil, vai. Encontrei há pouco com o Ric no elevador, e ele pediu...
– Ah, entendi! –
Miriá interrompe. Agora era nítido que estava irritada – Então o Ricardo
pediu...
– Não, eu
estou te pedindo – Preta afirma, vendo a ironia na fala dela.
Neste momento, se atentou até na piscada que deu; jamais transpareceria em
seu humor alguma reação, alguma emoção. Sabia que Miriá adorava ver qualquer vulnerabilidade
do tipo, e só por isso não dava a ela esse gostinho de vê-la de guarda baixa. Não
era à toa que Preta tinha o justo título de “a joia da Rubi”. Era uma exímia
profissional porque sabia bem deixar longe daquele endereço a sua vida pessoal.
Este era o segredo do seu sucesso, cuja rotina envolvia certa dinâmica com Miriá.
Mas Preta tinha em seu passado recente o que considerava uma brecha que,
embora já encerrada, ainda repercutia nos dias de hoje com algumas consequências, chatas.
Ela se aborrecia por ser a responsável por isso, por ter se permitido em algum
momento se envolver romanticamente com Miriá, que desde o término regava as
palavras matinais direcionadas a ela em uma acidez desagradável (só amolecia
quando bebia). Era um formato de relação bem cansativo.
– Por favor? –
Preta insiste, diante do silêncio de Miriá.
– Tá bom! Lu, toca
esse que te enviei antes, por favor. Passa para a Guta – Miriá complementa,
ainda olhando para Preta.
– Grata, Miriá –
Preta agradece, pronunciando bem cada sílaba – Ah! – ela volta, depois de levar
a cadeira para perto de outra mesa – Hoje vai ter um almoço... Não é trabalho,
mas sabe como é, coisa do seu Inácio... Você foi convocada.
– Ah, Preta... –
Miriá reclama, num tom mais baixo. Colocou uma das mãos na testa, e depois de
um tempo deslizou, suspirando e levando o cabelo para trás – Detesto esses
eventos sociais...
– Eu sei – Preta
usou um tom conivente – Mas não vai ser dos piores. Ele quer vincular o
aniversário da agência com a próxima edição do Guia Goodyear de Restaurantes.
No mínimo, vamos almoçar bem.
– Você também
vai? Ah, que ótimo! – Miriá suspira de novo, sinceramente aliviada – Já estava
pensando na tortura de ter que comer em companhia de Ricardo e seu Inácio...
– É, mas eles
vão também – Preta ri, mas logo volta a ficar séria.
– Sim, mas você
estará lá comigo.
– Se você me entregar
logo a ideia do prospect, posso até ser sua amiga durante esse almoço – Preta
provoca e se afasta. Não se virou para ver a cara que Miriá fazia.
Preta passou a manhã distraída, empenhada
na atualização do seu trabalho, dando baixa nas tarefas do sistema, de acordo
com o progresso de cada status, falando com alguns clientes, fingindo uma
simpatia que sempre parecia verdadeira, mas que se encerrava com a finalização
da ligação. Só perto do almoço é que voltou a pensar em Miriá, porque seu
cheiro chegou primeiro do que ela.
– Bora, Preta, o
dever nos chama – Miriá diz, parando ao lado de sua mesa. Parecia bem humorada,
mas estava com o rosto sério.
Ela era uma mulher bonita, sabia
se vestir bem e tinha um porte que combinava com o cargo que exercia. Preta tinha
consciência de que Miriá vivia sob intenso estado de estresse há bastante tempo,
e até acreditava que parte do que ela própria sentia vinha da colega. Ainda que
tivessem trabalhos completamente diferentes, eram complementares, e Preta era
uma pessoa bastante sensitiva.
Enviou o último e-mail e
desligou o computador de tela grande, sem muita pressa. No mesmo instante em
que guardou o inseparável tablet dentro da bolsa, a porta do elevador se abriu
logo à frente, e junto com Ricardo apareceu um Inácio bastante sorridente,
apoiado numa bengala marrom.
– Miriá, minha
querida – Inácio diz, com sua voz senil – Sempre uma satisfação encontrá-la –
ele a aguarda vir em sua direção.
– Seu Inácio, é bom
te ver também – Miriá o abraça, depois de um beijo no rosto. Ergueu a cabeça
brevemente, em seguida – Ricardo...
– Miriá... –
Ricardo responde, dando passagem para Inácio andar à sua frente – Preta – ele
dá uma piscadinha para ela, em cumprimento.
– Preta, querida
– Inácio a abraça, após ela se levantar e vir até ele – Que alegria te
encontrar!
– Igualmente,
seu Inácio. Parabéns desde já pelo aniversário da Rubi – Preta diz, um decibel
acima do seu tom de voz normal.
– Agradeço, minha
joia. Parabéns para você também, que faz tudo isso aqui funcionar tão bem, há
tantos anos – Inácio responde, sem ver as expressões de Ricardo e Miriá, após a
fala. Ficou segurando a mão de Preta até entrarem juntos no elevador,
caminhando devagarinho.
– O seu Inácio foi
quem escolheu o restaurante para nós irmos hoje. Provavelmente é onde vai ser a
festa de aniversário da agência, né pai?
– Vamos ver,
vamos ver... – o velho responde – As críticas são boas, mas precisamos ver se a
comida é tudo isso mesmo. Vocês conhecem O Bistrô? Fica ali próximo ao Paraíso.
– Não que eu me lembre...
– Miriá responde. Não viu que Preta a olhava, e parecia estar sendo sincera.
– Nós fomos lá
num happy hour, há alguns meses – Preta diz, ainda segurando o braço de
Inácio. Percebeu de canto que Miriá a encarou, e depois de olhar para o teto do
elevador, balançou a cabeça, pensativa – O restaurante é muito bonito, seu
Inácio, e os drinques são ótimos. Provavelmente a comida será boa também. “Se
está no Guia...”.
– “Se está no
Guia Goodyear, confia!” – Inácio sorri com a menção ao slogan da publicação que
era referência da gastronomia paulistana. Aquela era uma das milhares de frases
que o publicitário tinha inventado ao longo da carreira.
Desceram de elevador até o
subsolo do prédio da agência e entraram no carro de Ricardo, um modelo elegante,
brilhante e comprido. Inácio foi na frente com ele, depois de embarcar com
certa dificuldade, e Preta e Miriá sentaram-se atrás.
– Qual que é O
Bistrô? – Miriá cochicha, logo após fechar a porta – É aquele que a Ritinha deu
perdido e foi parar em outro bar?
– Não, esse é se
chama IKT. O Bistrô é aquele do banheiro bonito, que tem um espelhão... Que você
deu perdido, quando sumiu depois de sair para comprar cigarro. A gente foi lá
no dia que a Rubi fechou o contrato com aquela rede de hotéis de luxo.
– Ah... – Miriá
resmungou, parecendo se recordar, e sua resposta veio emendada em uma
respiração mais pesada. A lembrança de alguma forma acessou um ponto seu bem
reflexivo, porque ela permaneceu quieta durante todo o trajeto, até chegarem ao
destino.
Preta foi conversando com Inácio
e Ricardo no caminho até lá. Fazia parte de suas atribuições ser comunicativa,
mas ela gostava de Inácio, então suas conversas com ele eram sempre porque queria.
– Esse restaurante
está no Guia há alguns anos, já. Aqui é muito bem avaliado – Inácio comenta, assim
que chegam, depois de desembarcar, ajudado por Preta – Me lembro de vir aqui um
tempo atrás... Na ocasião, a chef era uma moça bonita, muito simpática, muito
educada.
– Acho que ainda
é a mesma, pai – Ricardo diz.
– Hein? – Inácio
pergunta.
– Ela ainda é a
dona do restaurante. Vou pedir para que venha à nossa mesa para a
cumprimentarmos – Ricardo responde, deixando que o idoso e as mulheres
passassem antes pela porta giratória dO Bistrô.
O salão do restaurante estava
praticamente lotado, e o garçom conduziu os quatro até uma mesa que ficava bem
no centro, mas era afastada o suficiente das demais, permitindo certa privacidade.
Preta achou que durante o dia o local tinha definitivamente uma energia
diferente, e lhe pareceu até ser um ambiente mais agradável para almoçar do que
para um happy hour.
Era notável que havia um cuidado
na arrumação, na decoração e na limpeza. Os funcionários se vestiam todos de
maneira igual, em uniformes impecavelmente limpos e bem passados, exibindo o
logo dO Bistrô em consonância com todo o resto, ilustrado de maneira igual. As
cadeiras tinham assento e encosto que pareciam de veludo, azuis, como a toalha
mais grossa que ficava abaixo de outra, branca, em todas as mesas arrumadas
milimetricamente iguais.
Nas paredes de tijolinho à vista
não havia quadros, mas Preta reparou em várias plantas espalhadas no ambiente, longe
de parecerem estar ali por acaso. Concluiu que o paisagista responsável pelo
restaurante, além de competente, tinha muito bom gosto.
– Vocês já
conheciam aqui? – Ricardo pergunta para Preta, gentil.
– Já, sim. Nós
viemos aqui comemorar o contrato com a Etur Lux.
– Ah, sim –
Ricardo responde, após uma pausa, balançando a cabeça – Já faz um tempo, já. Como
era mesmo o nome da CEO de lá?
– Célia – Preta
responde, junto com Miriá.
– Essa! –
Ricardo assente com a cabeça – Mulherzinha intragável... Lembro que colocou mil
exigências em contrato...
– Quem? – Inácio
pergunta.
– A responsável por aquela rede de hotéis, pai –
Ricardo responde, se inclinando na direção dele.
– Sim, sim – o
velho retruca, de um jeito que Preta sabia que ele dizia, na verdade, o oposto ao
que pensava.
– É aquela
campanha dos hotéis cinco estrelas, seu Inácio, que a gente fez no passado. Nós
ganhamos o Prêmio Inovação, lembra? – Preta pergunta, encostando de leve na mão
do homem sentado ao seu lado.
– Ah, sim, eu
sei, eu sei – agora ele parecia sincero – Célia... Dantas. É a CEO da rede. A
presidente se chama Bruna, Toledo. Elas são um casal! – Inácio completa,
mostrando que ainda tinha boa memória.
– Isso, elas
mesmas – Preta confirma, também com a cabeça.
– Hoje em dia
isso é natural, sabe – Inácio fala, no tom que usava quando as referências do
passado vinham à tona – Casal de homem com homem, de mulher com mulher. Às
vezes até casais de mulheres como vocês – ele aponta com o dedo para Preta e
Miriá, que se entreolham de relance – ...que nem parecem que são lésbicas.
– Pai... –
Ricardo chama, parecendo sem graça, entregando para ele o menu do restaurante.
– É verdade, Ric!
Antigamente as pessoas viviam dentro do armário, como se diz, e aí quem se
assumia tinha um estereótipo bem... característico – ele fala, depois de um
tempo buscando a palavra – A dona daqui era lésbica também. Ainda é a mesma?
– É sim, vou até
falar com o garçom... – Ricardo comenta, e faz um sinal com o braço – Opa, tudo
bem? Você pode, por favor, pedir para a chef vir até a nossa mesa? Diz para ela
que Inácio Marzon quer vê-la.
– Certamente,
senhor – o garçom responde e some de vista rapidamente.
– A chef aqui se
chama Patrícia Figueiredo, seu Inácio – Preta informa, baixinho.
– E a esposa?
Qual é o nome?
– O nome dela é...
– Preta desliza o dedo pela tela do celular, buscando a informação solicitada –
Tatiana. Não, se chama Mariana – ela coça a cabeça, um pouco confusa. Nem nas
suas anotações Preta tinha essa informação, porque nunca soube com quem
Patrícia era, de fato, casada. Esse dado não era público, embora os dois nomes
sempre aparecessem associados ao nome da dona dO Bistrô.
– Seu Inácio,
não vai dizer para a chef que ela não parece lésbica... – Miriá pede, tentando
ser gentil – Isso não é elogioso.
– Ah, sim, sim, minha
querida. Não vou nem mencionar o assunto, se você achar melhor.
– Acho, sim –
Miriá dá um sorriso, e estende o gesto para Preta, que a olhou, meio
contrariada – É verdade, ué! – ela se defende, baixinho. Desconhecia alguma
lésbica que gostasse de ouvir que parece mulher hétero. Ela mesma não gostava.
Antes que mais alguém dissesse
algo, Patrícia surgiu à vista, e caminhou depressa até onde eles estavam,
parando antes rapidamente só para cumprimentar alguém na mesa ao lado. A chef
usava um dólmã azul marinho, bem cortado, com botões brancos, que lembrava a
combinação das toalhas do restaurante. Tinha o logo na peça e no avental que
ela usava, amarrado à cintura. Chegou até eles com um sorriso amável no rosto,
e Preta reconheceu em seu olhar um indício de esgotamento. Via isso em seus
próprios olhos, toda manhã.
– Seu Inácio,
muito prazer em revê-lo! – Patrícia estende a mão, sem anéis, para um
cumprimento formal – Sou a chef, Patrícia...
– Figueiredo –
Inácio a interrompe, completando a frase
e segurando a mão da mulher – Olá, Patrícia, satisfação imensa te ver de novo,
e vir mais uma vez ao seu restaurante.
– O prazer é
todo meu – ela cumprimenta os demais presentes à mesa – Tudo bem? Ricardo, né?
– Isso, nos
falamos mais cedo pelo telefone – ele se levanta para cumprimentá-la, apertando
sua mão, cortês – Tudo bom, Patrícia? Muito prazer.
– O prazer é
meu. Espero que apreciem O Bistrô, a nossa comida, o nosso atendimento – ela
sorri para Miriá e Preta – ... e que saiam daqui satisfeitos, querendo voltar!
– Patrícia dá uma olhada em direção à porta, e sutilmente cumprimenta alguém
com uma piscada discreta. Fez um gesto menos discreto, chamando a garçonete que
passava por ali – Vou deixá-los em ótimas mãos. Esta é a Andreia, ela vai atender
vocês no almoço hoje. Vou pedir licença porque preciso... – Patrícia faz um
gesto para a entrada do restaurante.
– Claro, claro.
Nós queríamos mesmo era cumprimentá-la. Parabéns pelo ótimo trabalho, e pelo
seu restaurante. Está tudo muito bonito – Inácio diz, dando uma piscadinha para
ela, e depois para a garçonete – Boa tarde, Andreia!
– Grata. Fiquem
à vontade! E bom apetite! – Patrícia diz.
Ela caminha na direção oposta à cozinha e abraça brevemente uma mulher
que a aguardava, que disse algo antes de tirar o avental da cintura da chef. As
duas riram e entraram juntas em uma porta com acesso restrito, que ficava perto
da entrada do restaurante.
Ricardo fez os pedidos das
bebidas, apenas Miriá e Preta não quiseram vinho, mas aceitaram à sugestão da garçonete
para o prato do dia: legumes marinados com frutos do mar, uma das
especialidades da casa. Pediram bruschettas como entrada, que vieram rapidamente
e acompanhadas de potinhos pequenos com molhos coloridos que tinham a
consistência de manteiga. Cada um tinha junto uma faquinha, igualmente
colorida, com o logo do restaurante impresso no cabo.
Preta viu quando a chef e a
acompanhante retornaram ao salão, e observava a interação delas quando uma
terceira mulher chegou, e as cumprimentou. Coincidentemente, esta era a segunda
vez que Preta e Miriá iam aO Bistrô, e pela segunda vez, encontravam a CEO dos
hotéis no local, que acenou para ela, quando a viu.
Célia reconheceu Preta logo na
entrada, e também Inácio e o filho, Ricardo. Pediu licença para Patrícia e Tatiana,
para cumprimentá-los, e somente quando estava chegando próximo à mesa deles é
que viu que a quarta integrante era Miriá, que a olhou espantada quando a
reconheceu parada ali. As duas nunca se viam assim, à luz do dia e na frente de
todos.
– Seu Inácio! –
Célia cumprimenta, sorrindo bem formal para todos, depois de um abraço breve no
publicitário – Ricardo, tudo bem? – ela aperta a mão do diretor – Meninas, boa
tarde. Preta, tudo bom?
– Oi, Célia –
Inácio cumprimenta – Falamos de você há pouco! Como é que você está? Senta aqui
com a gente, vamos almoçar.
– Não, eu não
posso... – ela faz um gesto, apontando para nenhum lugar em específico, mas foi
interrompida por Ricardo.
– Por favor, só
um drinque, imagina... – ele puxa uma cadeira a mais, e a põe em volta da mesa,
entre Preta e Miriá – Acho que você não chegou a conhecer a nossa Diretora de
Criação... Miriá, essa é a...
– Célia – a
mulher interrompe, sentando e estendo a mão para Miriá, como se fosse uma
completa estranha – Muito prazer. O que estamos comemorando hoje?
Miriá a cumprimentou normalmente,
num aperto de mãos formal, mas Preta viu que sua postura repentinamente mudou.
Conhecia aquele brilho nos olhos da mulher, já eram muitos anos trabalhando
juntas e Preta tinha uma cota a mais de intimidade com Miriá, o que lhe conferia
esse poder de conseguir ler o seu gestual.
– Hoje estamos
comemorando a vida, apenas – Inácio bebe um gole de vinho – Mas viemos aqui
decidir se O Bistrô será o palco do próximo aniversário da agência. Queremos aproveitar
que a Rubi vai patrocinar o Goodyear novamente este ano.
– Ah, perfeito –
ela sorri para a garçonete, que lhe entrega uma taça e a serve com vinho – Este
é um ótimo restaurante, eu sou amiga da Patrícia há bastante tempo, minha
esposa fez faculdade com a Tatiana, esposa dela. O Bistrô está no Guia já há
muitas edições, certamente será uma escolha acertada. Sou testemunha da
dedicação de todos por este lugar, especialmente de Patrícia – Célia beberica o
vinho. Se estava incomodada com algo, disfarçou muitíssimo bem.
– Com licença,
eu vou ao toalete – Miriá diz, se levantando. Deixou a bolsa apoiada na
cadeira.
Preta reparou na tensão
estabelecida entre Miriá e Célia, mesmo esta não dando mostras de absolutamente
nada. Então resgatou na memória que já tinha visto algo parecido, exatamente
nesse mesmo restaurante, meses atrás. Célia e Miriá se conheciam, e Preta se lembrou
de ter flagrado as duas em atitude suspeita dentro do banheiro. Se recordou que
até desconfiou que as duas tinham transado. Estava embriagada na ocasião, mas
seu feeling não falhava.
Pediu licença e se levantou também. Aproveitou que o assunto entre Célia,
Ricardo e Inácio parecia bem engrenado na conversa e foi até o banheiro, atrás
de Miriá. Não se achava no direito de questionar muita coisa, mas elas tinham
um histórico, e não faria mal algum perguntar. No máximo, o que poderia
acontecer seria Miriá não querer responder, e tudo bem.
Lavou as mãos enquanto a aguardava, aproveitando para retocar o batom em
frente ao espelho. Se achou com cara de cansada, mas reconheceu que a maquiagem
sempre disfarçava bem. Viu Miriá pelo reflexo, quando ela abriu a porta da
cabine e pareceu surpresa ao vê-la ali.
– Se eu te fizer
uma pergunta você me responde? – Preta questiona, bem direta, ainda a encarando
pelo espelho.
– Não sei, não, Preta...
– Miriá responde, parecendo igualmente estafada. Lavou as mãos olhando
brevemente para si mesma.
– Só uma
pergunta! – Preta fala, e a vê levantar uma sobrancelha – Vai, você está muito
azeda hoje. Além do aceitável, Miriá.
– Tá, pergunta –
Miriá cruza os braços e a encara.
– Não com essa
atitude... – Preta resmunga, finalmente se virando, também cruzando os braços em
direção a ela.
– Não sei o que
quer de mim... Você é que me pediu para te tratar como colega! – Miriá se
justifica. Pareceu haver mágoa em sua voz, e talvez por isso mudou o tom, ao
continuar – Não tem atitude nenhuma, Preta. Só estou muito cansada, ultimamente
tem sido muito puxado, você é testemunha do tanto de tempo que eu tento tirar
férias...
– Eu sei... –
Preta volta a resmungar, mas agora de maneira condolente. Em outros tempos, a teria
abraçado, mas se conteve – Desculpe.
– Eu que peço
desculpas, não tenho sido muito gentil... – Miriá levanta os ombros. Parecia
mesmo exaurida – Pergunta o que você quer saber.
– Mi, você está
tendo um caso com a Célia? – Preta foi direta, de novo – Você não me deve
satisfação, não é por isso que estou perguntando.
– Por que
pergunta, então? Acha que isso interfere no nosso trabalho de que maneira? –
Miriá desconversa, parecendo aborrecida, ajeitando o cabelo em frente ao
espelho – Afinal, o nosso acordo é só falarmos de trabalho enquanto estamos no
trabalho...
– Tá, meu cu, não
precisa responder. Isso já foi uma resposta – Preta afirma, mas não se consola
com o silêncio dela – Mas perguntei porque essa Célia Dantas de Alencar é
casada, Miriá, há vários anos. E a esposa dela parece ser legal, faz várias
ações sociais... Você está se metendo no casamento de outra pessoa, e agora vai
almoçar do lado da sua amante, como se não fosse nada demais!
– Ai, Preta... –
Miriá suspira, impaciente – Agora, pronto. Mais uma coisa para você pesar na
minha mente...
– Não quero
pesar em nada. Só acho que...
– Não, Pretinha
– Miriá interrompe – Você não pode achar mais nada!
Preta balança a cabeça, em
concordância. Miriá estava certa, ela não tinha mesmo permissão para opinar em
sua vida pessoal. Isso fazia parte do acordo que tinham feito, para que o
trabalho delas não fosse prejudicado devido à relação pessoal e fracassada das
duas. Era uma resolução ingênua, ainda que decidida em comum acordo, pois se
mostrava sempre bastante difícil de ser colocada em prática. Especialmente
quando ambas estavam sóbrias, como agora.
– Sinto muito
que a gente não tenha dado certo – Preta diz, enfim, já prestes a sair do
banheiro.
– Eu também
sinto. Tentei fazer a gente dar certo... – Miriá lamenta.
– Eu sei, Mi...
– Preta toca na mão dela, mas logo tira, num gesto muito breve – Eu também
tentei...
– Eu sei, tudo
bem – Miriá desconversa. Suspirou fundo, segurando a maçaneta, antes de
continuar – É passado, foda-se – ela diz, repetindo uma frase que ultimamente
parecia ser o seu novo lema – Eu não queria, sabe – Miriá fala, antes que
saíssem ou antes que Preta dissesse algo – Me envolver com ela... foi sem
querer, mas aconteceu.
– Eu só me
preocupo de você se machucar – Preta responde, sincera.
– E a gente não
se machuca sempre, o tempo todo, Pretinha? Gostar de mulher tem um preço muito
alto, você sabe bem disso...
Preta não rebateu; sabia que era
verdade, o que poderia dizer? Ela mesma era a prova viva do quanto o amor pode ser
cruel – ou a sua falta. Em partes, seu namoro com Miriá não deu certo por causa
disso. Preta era quebrada em pontos essenciais para que uma relação pudesse dar
certo.
O falatório no salão as atingiu
logo que saíram do banheiro, Miriá à frente de Preta. Caminhou determinada até
a mesa, e seu corpo todo se desarmou ao chegar lá e encontrar apenas Inácio e
Ricardo.
– A Célia precisou
sair, disse que ia almoçar com a amiga – Inácio explica, assim que elas se
sentam. O homem sorri porque junto com as funcionárias, o almoço chegou – Agora
vamos à hora da verdade! – ele puxa os talheres, e dá uma piscadinha para
Preta, que sorriu para ele, antes de começar a comer.
– Hum, é muito bom
mesmo – Ricardo diz, depois da primeira garfada. Sorriu para Miriá, que não
retribuiu. Preta, sempre polida, correspondeu ao sorriso, quando ele a encarou.
Enquanto almoçava, tentou
digerir a história de Miriá ser amante de alguém. Parecia contraditório, ela
era uma mulher tão dona de si para se sujeitar a algo assim... mas Preta tentou
não a julgar. Se sentia era culpada por isso, se achando a responsável por
empurrar Miriá para uma situação de amante. Afinal, antes disso, Miriá tinha se
envolvido com ela, e foi Preta quem terminou tudo.
Acabou de comer se sentindo um
pouco estranha, o corpo estava meio esquisito e ela atribuiu o mal-estar ao
tempero da cozinha dO Bistrô, mas não quis comentar nada para que isso não
influenciasse na decisão de Inácio. Sempre que podia, Preta privilegiava
comércios e negócios comandados por mulheres, e se fossem mulheres lésbicas, aí
é que tomava partido mesmo. Achava importante fortalecer a rede sapatão. Seu
voto para o aniversário da Agência Rubi era para aquele restaurante, sem
dúvidas, mesmo com a comida dando certa gastura antes de iniciar o processo de
digestão.
Depois da sobremesa e do
cafezinho, já fazendo certo esforço para se manter sob o domínio do próprio
corpo, e até da mente, que começou a dispersar, Preta não viu que bem próximo a
ela uma movimentação tinha se iniciado, e por sua causa. Tatiana, que tinha
almoçado em companhia de sua amiga Bruna e a esposa, Célia, aproveitou que o
casal tinha ido embora para revelar à Patrícia a história que tinha ouvido no
banheiro, minutos atrás.
Sem querer, e devido a um
problema intestinal, Tatiana acabou descobrindo que a amiga estava sendo
traída, por alguém de nome Miriá. Patrícia, que era muito da ligeira, já estava
procurando informações sobre a mulher na internet, alheia ao fato de que a
tinha cumprimentado, mais cedo, e que ela inclusive permanecia por ali. Só a
reconheceu quando viu sua foto no Instagram, e também a amiga, mas ao
procurá-las no salão, Preta e Miriá já não estavam mais no local.
Quando chegaram de volta à agência,
Preta desabou em sua cadeira, mas não do jeito que geralmente se joga, quando
se está muito cansada. Ela pareceu desmontar de alguma forma, mas Miriá não
reparou, porque estava andando na frente, e logo que saíram do elevador, Luana
a interpelou, exigindo sua atenção. Rita, que vinha do banheiro, foi quem viu
que algo estava estranho.
Preta não conseguiu captar todos
os detalhes do processo que envolveu chamar um Uber para levá-la ao hospital,
quando Rita começou a gritar pelo salão, alertando que a colega não estava bem.
Pareceu que desmaiou, embora tenha ficado com a impressão de continuar ouvindo
tudo, só que de um jeito diferente, como se usasse uma máquina de triturar
sons, como a que usava para destruir documentos que Ricardo eventualmente mandava
dar um fim.
Ela não acompanhou também a conversa íntima que rolou entre Rita e a
motorista do Uber, durante todo o caminho até o hospital, mas reparou que em
alguns momentos, Ritinha parecia um pouco aflita, talvez por causa dela, que
estava derretida no banco de trás, ouvindo à sua volta os inconstantes sons do
tráfego urbano com ouvidos que não pareciam seus.
Quem deu entrada no hospital com Preta foi Rita, que geralmente era quem
precisava ser amparada nos momentos em que as duas interagiam, em geral às
sextas-feiras, quando Rita sempre passava do ponto, bebendo demais. E ela ficou
lá até que a colega fosse atendida e medicada, e aguardou o horário de visita,
que Preta não soube dizer quanto tempo levou, porque pela primeira vez, em
anos!, perdeu a noção do tempo. Se sentia tão em paz que a vontade de se
entregar a um sono profundo era quase incontrolável.
– Você se sente
bem? – Rita pergunta, assim que Preta abre um olho. Não soube dizer há quanto
tempo a mulher estava ali.
– Melhor, me
sinto me... – Preta não terminou a frase, mas na sua cabeça, pareceu que sim.
Teve até a impressão de ter falado mais coisa, mas só ficou quieta.
– O médico disse
que você teve uma crise de estafa, talvez de ansiedade... – Rita comenta, se
aproximando da cama. Pareceu que seu rosto estava mais corado do que
normalmente, mas podia ser efeito das medicações, que ainda pingavam direto na
veia de seu braço furado. Ela olhou para o acesso, parecendo confusa, e por
isso Rita se calou.
– Eu não
posso... eu preciso... – Preta tentou dizer, mas não conseguiu porque estava
chorando – Não posso me afastar do trabalho.
– Oxe, é claro
que pode – Rita quebra o protocolo hospitalar e senta ao seu lado, na cama.
Segurou a sua mão, antes de continuar – Você vai sair daqui de atestado, minha
filha. Precisa descansar, se recompor e se recuperar para daí, sim, retomar.
Até lá, é tipo férias, Preta, você vai precisar relaxar minha amiga. Posso te
ajudar com isso, se quiser.
Definitivamente, Rita parecia
mais corada.
– Há quanto
tempo você não tira férias? Eu nunca vi você sair de férias! – Rita parecia
chocada, com as duas mãos no rosto, e seu tom afastou um pouco o sono que Preta sentia. Um pouco – Eu entrei na agência, deixa eu ver... – ela contava nos
dedos, os lábios mexendo enquanto balbuciava sozinha – Vai fazer dez anos.
Caralho, tudo isso? Não... – Rita voltou a contar nos dedos – Dez anos,
putaqueopariu, o que eu estou fazendo com a minha vida?
– Eu não saio de
férias... – Preta resmunga, uma lágrima escorrendo.
– É, por isso
que está aqui agora – Rita volta sua atenção para ela, mas aperta sua mão, em
solidariedade – Você não é máquina! Tudo bem.
– Eu sou a joia da Rubi – Preta fala, com a voz embargada – A joia solitária – continua, no
embalo dos remédios – A que resolve tudo – ficou um instante quieta, antes de
continuar – Preta, a implacável. A incansável...
– É, só que...
– A Fran me dizia:
“tome cuidado”...
– Quem? – Rita
pergunta. Gostava muito da sinceridade que certos medicamentos despertavam nas
pessoas. Sua lembrança preferida da adolescência foi quando acompanhou uma
amiga em um exame de endoscopia. Naquele dia, descobriu que ela, além da amiga,
era lésbica, quando se beijaram na enfermaria.
– Franciele.
Minha esposa. Ex-esposa? Não, esposa. É minha esposa, eu ainda a amo. Mas ela
morreu... – Preta estava chorando mais agora – Fran me dizia que o trabalho me
mataria, dizia para eu tomar cuidado... Mas eu dizia que era imbatível. Preta,
a incansável! E sou. Eu era...
– Eu... – Rita
se cala, porque não sabia o que falar. Jamais tinha ouvido tal relato, nem
imaginava que Preta tinha um histórico! Estava bastante acostumada a vê-la na
agência, sempre toda elegante, bem vestida e ereta. Parecia uma mulher implacável,
mesmo.
– Fran não tomou
cuidado, mesmo trabalhando pouco. Ou tomou, não acho que foi culpa dela, menos
ainda que ela tenha querido isso... Mas é como dizia aquela campanha antiga: o
trânsito mata. Matou minha mulher e me quebrou em mil pedaços, como o carro
dela, que se partiu em várias partes.
– Eu sinto
muito, Preta – Rita aperta de novo sua mão.
– Eu também. O
trabalho pelo menos me distraía... O que faço agora?
– Não é para
sempre. E é necessário que olhe para você também, que se permita se curar disso,
e não só abafar o que sente com o trabalho – Rita fala, com o coração – Se a
sua casa te sufoca, se muda, vai embora.
– Como se fosse
simples... – Preta resmunga, mas pelo menos o comentário a fez parar de chorar
e quase sorrir.
– É simples. Mas
não precisa ser tudo agora. Primeiro, descansa. Vai para algum hotel, algum
lugar com uma paisagem bonita, com uma banheira grande para você relaxar. Depois
faz uma lista e vai colocando em prática. Comigo funciona.
– Listas?
– Sim, faço de
tudo! – Rita pareceu orgulhosa – Hoje mesmo vou fazer uma lista nova, para a
minha vida, porque... dez anos no mesmo emprego definitivamente não é o que eu
planejava para mim. Preciso definir os próximos dez, senão eles passam e eu nem
vejo. A vida está passando, estou envelhecendo...
Preta não prestou mais atenção
ao que Rita dizia, e ela falou mais algumas coisas, até o final da visita.
Preta não se lembrou depois se ela também disse algo, ou se só a ouviu. Se
entregou ao sono reparador sem culpas e sem julgamento, fazendo da cama de
hospital a maca do SPA que pretendia ir, saindo dali.
Na alta, no dia seguinte, depois
do período de observação, foi encaminhada para o psiquiatra. O atestado
designava a síndrome de Burnout como o motivo do seu afastamento, mas Preta
achou que poderia ser qualquer outro. No fim, reconheceu que sua vida era quase
uma bomba-relógio, e que ter essa pausa era importante para que depois ela não
explodisse antes da hora ou de maneira desprogramada. Descansaria, então.
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