A Uber (conto)

Esta é a sexta história da Novelinha.

Se ainda não leu a quinta, 3xTPM (Ano novo), clique aqui.   


             Marginal Pinheiros, sexta-feira, 17h45. A avenida está com todas as pistas travadas, até a expressa, com o trânsito a se perder de vista. Para onde quer que se olhe o que se vê são intermináveis fileiras de carros e caminhões, espremidos entre faixas por onde se arriscam motoqueiros barulhentos e apressados. Uma garoa fina suja o vidro mais do que molha, e há um minuto e meio que nada se movimenta nem mesmo um metro sequer. No rádio do carro, o repórter informa com a voz rápida que um acidente com vítima fatal é o motivo para o congestionamento quilométrico, que afeta toda a região.

                Indiferentes, alguns motoristas buzinam ao redor, como se o som irritante acelerasse a remoção do corpo que, segundo notícias, permanece estirado no asfalto, à espera dos bombeiros. Mayara detestava isso. Se irritava ao sentir a impaciência das pessoas diante da morte de alguém. Era preciso um mínimo de respeito, acreditava, afinal podia ser qualquer um ali, até mesmo ela. Por isso, abaixou a cabeça em silêncio, em consideração ao ser que tinha perdido a vida no trajeto que por acaso ela também fazia. Voltou a acelerar quando alguém buzinou atrás, mas avançou apenas meio pneu, o para-choque quase encostando no carro da frente.

– Motorista, por favor, desliga o rádio – a passageira pede, num tom meio impaciente, do banco de trás do carro.

Ainda que tivesse embarcado há apenas alguns minutos, somente com o pedido é que Mayara se lembrou de que não estava sozinha. Acontecia, às vezes se esquecia, principalmente quando o passageiro era quieto, como era o caso da mulher que agora respirava de maneira pesada, parecendo ansiosa.

Mayara dá uma olhada rápida para o celular, preso no painel do veículo, e vê novamente o nome da passageira: Beatriz. Embarque no Itaim Bibi; desembarque no aeroporto de Congonhas.

– Claro, prefere ouvir algum estilo específico? – Mayara questiona, desligando o jornal da CBN com um comando no volante. No mesmo instante, o rádio silenciou, dando palco para o som da chuva, que estalava de maneira musical na lataria do carro.

Por precaução, aumentou o ar-condicionado. O calor era sempre um aliado da irritação, então era prudente prevenir. Como já estava quase escurecendo, e a chuva estava mais intensa, tirou os óculos escuros e encarou a passageira pelo espelho, por breves segundos. A mulher deu um suspiro antes de responder.

– Não, prefiro o silêncio. Por favor – ela se emenda, e depois resmunga, mais baixo – Péssimo horário para sair, péssimo horário para viajar...

– É, a essa hora é preciso paciência, mesmo – Mayara responde, olhando para a passageira de relance novamente, pelo espelho retrovisor – Seu voo está previsto para que horas?

– Sete e meia – a resposta veio junto de outro suspiro – Não sei se chegaremos a tempo... – ela olha para o relógio no pulso, desanimada.

– Chegaremos, sim. Ali na frente já tem a saída que é o nosso atalho. Não está muito longe.

Mayara arrisca um sorriso, mas mantém o rosto virado para o tráfego. Deu outra olhadela para a passageira, virando o volante e levando o carro para mais perto do canteiro. Tinha trocado o espelho retrovisor do lado direito há pouco tempo, depois de ter sido arrancado por um sujeito de moto. Não queria danificar o esquerdo.

Puxou o celular e ampliou o mapa na tela. Praticamente tudo estava vermelho, com tráfego intenso, e antes de voltar o aparelho à posição original e avançar alguns centímetros em primeira marcha, o tempo de percurso aumentou mais um minuto.

– Em geral, esse trajeto é rápido, mesmo neste horário, mas hoje parece que teve um acidente ali mais para a frente – Mayara explica. No fim da frase, um motoqueiro bateu no espelho lateral de seu carro e a xingou antes de acelerar, fazendo um barulho alto com o escapamento da moto – Porra, puta que... – ela se cala de repente. Cerrou os dentes com força e engoliu as palavras, controlando também a vontade instantânea de socar o volante. A mão subiu fechada, mas parou no ar, descendo em seguida lentamente para o colo.

– Controlou bem – a passageira comenta, sorrindo pela primeira vez. Aparentemente, o incidente a divertiu e ela não pareceu perceber a irritação da mulher que dirigia. Ou não se importou.

– É arriscado xingar – Mayara aciona o comando interno e ajusta o ângulo do espelho – Ainda mais motoqueiro, que parece que anda em bando. Se um resolve chutar o meu carro, todos os que virão na sequência vão chutar também. Mesmo que eu não tenha feito nada.

– E você não tem medo? Digo, por ser mulher...

                Mayara só levanta os ombros, como uma espécie de resposta, fazendo a passageira olhar para ela. Diminuiu o ar-condicionado porque seus dedos estavam congelando e virou a saída de ar para o teto. Deixou a marcha engatada, mesmo com o carro parado.

– Se a gente deixar de fazer as coisas por ser mulher, não sai mais de casa – Mayara finalmente fala.

– É verdade, mas não tira o seu mérito – a mulher rebate, atendendo na sequência o celular, que começou a tocar – Oi, amor. Tudo e você? Que nada, estou presa num congestionamento. Não, estou no Uber. É, mas a motorista disse que talvez dê tempo. Uhum. Claro, eu te aviso. Beijo, te amo também – ela desliga e guarda o aparelho na bolsa – Minha esposa ficou feliz por saber que você não é homem.

– Viu? Se bobear, mulher não consegue nem pegar Uber em paz – Mayara faz um som de desgosto com a boca.

– Sim, você está certa. Não podemos acuar. Te agradeço por ser minha motorista hoje.

– É um prazer. Vou te dar meu cartão. Quando estiver em São Paulo, me chame e farei questão de te atender – Mayara entrega a ela um cartão preto, por cima do ombro. O cartão tinha o seu perfume.

– Muito prazer, Mayara Cintra – a passageira lê o nome, no escuro – Eu me chamo Beatriz. Nogueira – completa, depois de um tempo.

– Prazer, Beatriz – Mayara sorri para ela, pelo espelho. Tinha o olhar gentil, emoldurado por sobrancelhas bem feitas.

– Costumo vir a São Paulo pelo menos duas vezes por ano, certamente vou te chamar quando estiver na cidade – Beatriz guarda o cartão.

– E fica sempre por essa região mesmo? – Mayara acelera, e desta vez engata a segunda marcha.

– Depende... – Beatriz olha para fora do carro, parecendo aliviada com a paisagem passando mais veloz pela janela molhada – Depende de onde palestro, onde é o evento que participo...

– Ah, que legal – Mayara vira numa rua estreita, quase despercebida, um pouco erma – Você palestra sobre o quê?

– Depende também. São assuntos variados, mudam conforme o que estudo. Eu sou psiquiatra, então estou sempre envolvida com algum tema diferente... depois me convidam para compartilhar os resultados das minhas investigações – ela diz, como se não estivesse acostumada a responder a este tipo de coisa – Geralmente meus questionamentos surgem em consultório – complementa.

– Que legal! – Mayara a encara pela primeira vez, virando o rosto para trás por um instante. Levantou uma sobrancelha, antes de continuar e se voltar para o trânsito à frente – Você deve ouvir altas histórias!

– Sim, assim como você! – Beatriz ri – E você ainda tem a vantagem de não ficar trancada dentro de escritório o dia inteiro. Seu cenário muda sempre o tempo todo.

– É, meu ambiente de trabalho é mais diversificado, mesmo – ela diminui a velocidade antes de o carro se chacoalhar inteiro numa rua bastante esburacada – E em geral trabalho mais à noite.

– Hum, que interessante. E corajoso também, mais uma vez – Beatriz diz – O seu dia começa quando o de muitos termina, então?

– Sim, senhora – Mayara a encara pelo espelho, e pela primeira vez vê a passageira a olhando de volta. Ela tinha um olhar penetrante – Quer dizer, mais ou menos. Meu serviço começa tarde, mas meu dia mesmo se inicia cedo. Eu tenho insônia – acrescenta, depois de um tempo. Não soube dizer o porquê. Talvez devido ao magnetismo do olhar da psiquiatra, a analisando pelo retângulo do espelho interno do carro.

– Sei. E o que você costuma fazer com o seu tempo acordada? Faz tempo que tem dificuldade para dormir? – Beatriz quer saber, reparando que o trajeto que a motorista fazia não seguia ao proposto pelo GPS do celular, que toda hora alterava a rota traçada.

– Está me analisando, doutora? – Mayara ri. Colocou a quarta marcha quando entraram numa avenida larga, toda iluminada. A esta hora, já estava escuro, quase noite.

– Talvez. Ainda temos alguns minutos até o aeroporto – Beatriz se estica para olhar o tempo estimado, exibido no celular, junto com o mapa – Você conhece bem a cidade, Mayara. É Uber há muito tempo?

– Sim, desde antes de ser chamado assim – ela vai diminuindo as marchas até parar completamente o veículo, num semáforo vermelho. Engatou a primeira e tamborilou as unhas pintadas no topo do volante, antes de voltar a falar – Sempre fui a “motorista da rodada” entre os meus amigos; nunca fui de beber. E gosto muito de dirigir, amo São Paulo, cada rua, cada bairro – ela parecia sincera. Voltou a acelerar quando o sinal ficou verde – Começar a viver disso foi um processo simples, na verdade, e não tenho muito do que reclamar. O que estraga o meu trabalho são as pessoas, sendo bem honesta.

– É, as pessoas sabem ser... surpreendentes! Mas os relatos que você ouve devem ser melhores que os que eu escuto – a mulher parecia pensar em voz alta – Bêbado é sempre muito sincero, muito intenso.

– E muito chato, também – Mayara deixa escapar, a fazendo rir.

– Sim, certamente. E ainda há também sempre o risco de vomitarem e sujarem o carro que você cuida com tanto zelo.

                Mayara não respondeu. Nem mesmo olhou a mulher pelo espelho, porque sentiu que encontraria seu par de olhos verdes pelo retrovisor. Aquela não era a primeira analista que transportava, e ficou pensando na capacidade de observação e diálogo que essa gente tinha; todas as conversas eram quase inofensivas, mas a levavam para becos que nem sempre frequentava. Se calou, pois sabia que ela continuaria.

– Seu carro é impecavelmente limpo – Beatriz comenta, percebendo o silêncio da motorista. Pelo tom, pareceu até gostar que ela tenha agido assim – Por dentro e por fora, até brilha. Dá para ver que você cuida.

– É, é o meu instrumento de trabalho. Aposto que o seu divã é limpinho também – Mayara ri, finalmente olhando para a mulher. Como imaginou, ela a encarava de volta, a olhando pelo espelho, e sorria também, com os olhos estreitos.

– Meu divã... – a médica repete, parecendo se divertir em ouvir aquilo – Existe toda uma questão em volta disso, as pessoas sempre acham que vão encontrar um divã – seu comentário pareceu envolver algum pensamento específico, que Beatriz não compartilhou. Ficou quieta por um tempo, antes de voltar a falar – É, pensando bem, prefiro ouvir as pessoas quando elas estão sóbrias, mesmo.

– Sim, eu também – Mayara sai da avenida por um acesso à direita e um avião passa baixo, bem acima do carro. Sinal de que estavam perto.

– Podia escrever uma história um dia – Beatriz mantinha no rosto uma expressão amena, mais leve do que a que tinha quando embarcou.

– Imagina, doutora. Que graça teria uma história minha? Só carrego as pessoas para cima e para baixo...

– Cada pessoa é um universo, quase, Mayara. Incluindo você – Beatriz puxa o celular de dentro da bolsa e envia uma mensagem de áudio – Oi, Fernanda. Cheguei agora no aeroporto, vou correndo fazer o check-in. Te mando mensagem quando embarcar. Beijo, te amo.

– Boa viagem, doutora Beatriz – Mayara se despede, parando o veículo com os pneus bem próximos à guia – Foi um prazer conhecê-la.

– O prazer foi meu, Mayara Cintra. Te desejo tudo de bom, tome cuidado por essas ruas. Se precisar, me procure.

– Pode deixar. Digo o mesmo – ela acena e engata a primeira marcha, vendo pelo espelho a passageira entrar no saguão do aeroporto.

                Ao dar a seta para entrar na Avenida dos Bandeirantes, o celular apitou e Mayara viu na tela que Beatriz a tinha avaliado no aplicativo com cinco estrelas. Havia também uma mensagem escrita que ela não leu, porque outro chamado de corrida piscou na tela, perto de onde estava. Aceitou o pedido e mudou de faixa.

                Ficou um tempo pensando no que ela disse, sobre ter medo. Era sempre algo que passava por sua cabeça, especialmente quando o passageiro era homem, como era o caso, agora. Mas o que se pode fazer? Homens existem, e nem todos são perigosos.

– Boa noite, André? – Mayara pergunta, estacionando próximo à calçada, abaixando o vidro pela metade. O rapaz acenou com a cabeça e entrou no carro.

– Boa noite, Mayara, né? – ele confirma, também parecendo um pouco desconfortável.

– Isso, eu mesma – ela o espera fechar a porta e prender o cinto de segurança – Vamos para a Avenida Paulista? – Mayara coloca o endereço no GPS, só por precaução, porque sabia chegar lá. De onde estavam, era quase uma linha reta.

– É, ali no Parque Trianon, por favor. Está uma noite super agradável para passear, não é? – o passageiro comenta, depois de um tempo em silêncio. Seu sorriso brilhava no espelho retrovisor.

– Sim, está bem fresco – Mayara responde, acionando o limpador de para-brisa. Ainda caía uma garoa insistente, típica para a época – Se importa se eu ligar o rádio? Quer ouvir alguma coisa? – ela o encara pelo espelho. O rapaz seguiu olhando para a vista fora da janela.

– Claro, pode ligar. O que você preferir – ele responde, parecendo sinceramente desinteressado.

                Mayara ligou na CBN e abaixou o volume, logo que as notícias voltaram a ecoar no interior do veículo. Gostava de passageiros silenciosos, eram os seus preferidos. Mas voltou a pensar na psiquiatra que deixou no aeroporto, porque apreciava também ter contato com pessoas que a deixavam reflexiva depois. Como ela.

                Ficou pensando em quais seriam os detalhes que teria na história que eventualmente falasse da sua vida, de sua rotina como motorista de aplicativo. Seria uma história realista ou fantasiosa? De aventura ou erótica? Se distraiu com os próprios pensamentos, os ouvidos invadidos pelas notícias do rádio e pelo telefonema do passageiro, no banco de trás.

– Oi, amigo. Já estou chegando. Sim, eu juro! A motorista pegou um atalho aqui. Pois é, bem que eu queria, mas me atrasei saindo do trabalho. Aham, também preferia quando meus chefes se pegavam... É! – ele dá uma risada alta, ardilosa, mas logo se contém – Que maldade! Sim, eu sei que é verdade, mas não te exime de queimar no inferno, bicha má. Tá bom. Combinado, até já. Beijo.

                Pensando bem, até que Beatriz tinha razão, Mayara pensou. As pessoas eram mesmo quase um universo, e caso fosse escrita um dia, necessariamente a sua história envolveria as distintas figuras que embarcavam em seu carro. Quem sabe seria um recorte de um único dia de trabalho, com passageiros vindos de universos diferentes, que de alguma forma estariam conectados entre si por causa dela. O tal “lugar certo, na hora certa”, tendo o carro de Mayara como elo.

– Moça, muito obrigado, viu, vou te dar já as estrelinhas no aplicativo – André fala, antes de desembarcar, logo que Mayara encosta o carro – E só porque nunca mais vamos nos ver, vou te contar que hoje eu descobri que minha chefe só largou o marido, que também é meu patrão, porque se apaixonou pela professora da filha. O bafo é esse. Tchau, tchau.

                Mayara vê o rapaz abraçar outro homem, que encontrou na calçada. Antes de virar a esquina, os dois ainda foram vistos rindo, refletidos nos espelhos do carro. Ela achou curioso; o passageiro era claramente gay, mas seu relato foi impregnado de preconceito.

Pensava nisso quando ignorou duas corridas nas proximidades e parou no primeiro estacionamento que encontrou aberto na Alameda Santos, rua que corre em paralelo com a Avenida Paulista, bem arborizada. Um café era bem-vindo e aquele trecho era convidativo para isso, embora um cafezinho muitas vezes custasse uma pequena fortuna, só porque era servido ali, numa área nobre.

Não estava frio, mas devido à garoa fina, Mayara tirou a jaqueta que ficava dobrada debaixo do banco do carona, dificilmente usado, e a vestiu antes de entregar a chave ao manobrista. Caminhou apressada até a padaria da esquina com a cabeça baixa, desviando de quem andava na calçada com o guarda-chuva aberto, respingando água debaixo das marquises.

Lá dentro estava abafado, com as janelas quase todas fechadas e várias mesas ocupadas. Mayara se sentou próximo ao vitrô e ligou para sua amiga Jackeline assim que o café lhe foi entregue, num copo americano completo quase até a borda, apoiado em cima de um prato raso que tinha junto um chocolatinho e um copinho com água com gás.

– Oi, Jackes – Mayara pigarreia – Tudo bem? Amiga, o que você acha que teria numa história que porventura eu fosse a protagonista?

– Oi, amiga. Seria o quê? A história da sua vida ou um dia na sua vida?

– Não sei. A psiquiatra não especificou.

– Nossa, Mayara. Já está nesse ponto? – Jackeline ri, do outro lado da linha – Bom, com certeza teria que constar o pitoresco fato de você ser uma motorista estressada...

– Não sou – Mayara interrompe.

– ... que ganha a vida no trânsito, dirigindo, mas que diariamente quer morrer por essas ruas...

– Mentira! – Mayara rebate mais uma vez. Estava rindo quando bebeu a água com gás em uma virada só.

– ... ou matar alguém, né. Aquele motorista da ambulância que o diga... – Jackeline provoca.

– O motorista da ambulância era um cuzão – Mayara afirma, com a voz mais baixa – Ele bateu na Mafalda e quis fugir!

– Isso também estaria na sua história, amiga. Seu apego aos carros, ao ponto de dar nomes, quase sempre no feminino. Ah, já sei! Podia ser um relato fantástico, onde você anda pelas ruas de uma grande metrópole carregando a carra no colo, com dó de sujá-la.

– Não tenho dó de sujar – Mayara bebe um gole de café. Estava do jeito que gostava: forte, com pouco açúcar e passado no coador. Algo meio excêntrico para a região, repleta de lanchonetes e cafeterias com nomes estrangeiros e café expresso de qualidade duvidosa.

– Quantas vezes você lava seu carro por semana, Maya?

– Isso não vem ao caso... – Mayara desconversa.

– Duas. Duas vezes por semana, amiga, numa época em que chove praticamente todo dia.

– Por isso mesmo.

– Não é “por isso mesmo” – Jackeline estava rindo de novo – Você lava para desinfetar das pessoas que carrega na Mafalda.

– Tá.

– Porque se pudesse – Jackeline continua, indiferente à interrupção da amiga – ... você seria Uber, mas sem ter que transportar pessoas. Podia virar caminhoneira, hein!

– Tipo aquela do caminhão de grelo? – Mayara estava rindo.

– Sim, daquela história que você inventou... – Jackeline ria também – Vai trabalhar até que horas hoje?

– Não sei, talvez até umas duas. Não pretendo passar das três.

– Toma cuidado, tá. Bom trabalho, mana. Beijo.

– Beijo, Jacke.

                Mayara terminou o café vendo a chuva escorrer no vidro da janela, as gotas competindo em uma corrida imaginária que só ela via. Seus olhos vagaram para a calçada, logo abaixo, e viu no chão uma poça que ia ganhando desenhos arredondados a cada nova gota que caía. Num rearranjo, um redesenho, pensou. Contínuo, como a vida.

                Comeu o chocolate distraída, os pensamentos indo embora para cantos que nem sempre permitia, por exemplo, o que de fato a havia levado a ser motorista e a ligação direta que isso tinha com sua insônia. Mas não possuía o costume de falar sobre sua vida para as pessoas, especialmente as estranhas, e mesmo que perguntassem; em geral, o que ocorria era de verdade o contrário, porque muitos atribuíam a ela o papel de ouvir seus problemas. Às vezes, ouvia questões profundas e existenciais, de gente que tanto faz. Que como disse o mocinho há pouco, Mayara nunca mais voltaria a ver.

Ao pagar pelo café, deixou uma gorjeta para a moça que a tinha servido, e se despediu dela com um gesto e uma piscadinha que sabia ser sexy. A atendente, ao contrário de muitos outros, era um rosto que eventualmente Mayara sempre voltava a ver, e gostava. O café ali era realmente bom.

– Maya! Olá! – uma voz conhecida a atinge distraída, rendida, junto com o perfume da dona daquela melodia perigosamente doce.

                A vida é curiosa. Traz de volta muitas vezes pessoas que a gente insiste em querer deixar nos arbustos do passado. Nos obriga a andar em marcha à ré, quase.

– Cibele!, olá – Mayara cumprimenta, ajeitando o cabelo e vendo a mulher encará-la de cima a baixo.

– Espera, para que tanta pressa? – a mulher a segura pelo braço, vendo que ela pretendia voltar a andar.

– Desculpa, estou trabalhando – Mayara para, e controla um suspiro impaciente. Puxou o celular do bolso da jaqueta só para aceitar uma corrida e sair logo dali.

– Você está bonita! – Cibele diz, só então a largando. Voltou a encará-la dos pés à cabeça.

– É, eu sei – Mayara empina o queixo, e seu celular emite um som – Eu preciso trabalhar. Se cuide.

– Maya, você sabe que a qualquer momento podemos reatar, né? – Cibele diz, depois que Mayara se afasta dois passos. O comentário a fez parar, mas ela não se virou – Ainda podemos tentar uma última vez. Você sabe que sendo motorista de Uber não vai encontrar ninguém.

– Tchau, Cibele – Mayara se despede, e caminha rápido até o estacionamento, sem olhar para trás.

                Quando entregou o tíquete para o manobrista, percebeu que sua mão estava um pouco trêmula e isso a irritou. Era sempre um desgosto perceber que Cibele ainda exercia algum poder sobre ela, embora acreditasse que na frente dela, até que disfarçava bem.

Por sorte, a corrida foi cancelada e Mayara não abriu mais o aplicativo até voltar às ruas. Vai saber qual foi seu livramento!

Contornou a Avenida Paulista e antes de virar na Rua Augusta, aceitou um chamado. Era uma mulher que tinha nota 4,5 e a aguardava próximo a um restaurante perto dali chamado O Bistrô. A passageira a faria atravessar a cidade até o Morumbi. Em termos de quilometragem não era nada muito absurdo, mas eram vias sempre muito cheias, então seria no mínimo uns 40 minutos até lá, chutando baixo.

– Boa noite, Bruna? – Mayara pergunta, parando o carro. A passageira devia ter por volta dos 40-45 anos e a aguardava na calçada. Deu um selinho em uma mulher antes de se despedir e embarcar.

– Boa noite, Mayara. Sou Bruna, isso – ela bate a porta do carro e manda um beijinho para a mulher, que permaneceu lá fora.

– Avisa quando chegar, Bru – a outra pede, e cumprimenta Mayara com um aceno.

– Aviso, sim. Um beijo, Celinha.

– Morumbi? – Mayara pergunta, colocando o endereço no GPS.

– Sim, vou para casa, chega por hoje – Bruna diz, se recostando melhor no banco, depois que o carro começa a se movimentar – Sexta-feira é sempre propício para uma esticadinha, mas hoje quero banho e cama. Nossa, o que foi que falaram? Aumenta o rádio, por favor.

                Mayara observa pelo espelho a passageira entrar em estado reflexivo com a notícia de um caso de feminicídio, ocorrido na noite anterior. Bruna deu um suspiro profundo, antes de pedir para que o rádio fosse desligado.

– Mulher não tem um segundo de paz nessa vida... – ela resmunga, depois de um tempo – Você é muito corajosa por ser motorista à noite.

– É, coincidentemente esta é a segunda vez que me dizem isso hoje.

 – Oh, e você acredita em coincidências? – Bruna sorri – Bom, crer no acaso é mais simples, mesmo.

– Não acha que seja?, à toa? – Mayara pergunta, encontrando no reflexo o olhar da passageira. Era uma mulher bonita.

– Não, eu acredito que tudo tem um porquê. Até mesmo eu estar aqui agora, e não em outro carro. E você estar comigo nesse instante, e não com outro passageiro.

– E qual seria? Digo... já perdi as contas de quantas pessoas transportei. Acha que cada uma teve um propósito?

– Acho – Bruna responde, sem pestanejar – Não um propósito de, ah, uau, transformou a sua vida. Mas cada um deixa um pouco com você, você deixa com cada um pouco de você também... E numa dessas, sim, por que não, quem sabe, até encontrar alguém que vai realmente justificar a sua profissão, sei lá? Talvez a graça seja a gente nunca saber ao certo. Mas acredito que todos os encontros têm um motivo.

– Muito poético – Mayara sorri, olhando para ela ao parar em um semáforo fechado. Pensou rapidamente em Cibele, no esbarrão que tiveram, minutos atrás, mas afastou o pensamento de maneira tão veloz quanto o viu chegar – Você é artista?

– Ah, não – Bruna sorri, divertida com a pergunta – Eu trabalho no ramo de hotéis. Na rede Etur Lux, conhece?

– Conheço, sim. Hoje mesmo peguei uma passageira lá no Itaim Bibi.

– Você foi no Plaza II, se foi perto da Marginal. Ou no ColiseUm, se foi mais para dentro.

– Plaza, esse mesmo – Mayara volta a acelerar quando o semáforo abre – Aquele prédio é muito bonito, imponente. Todo espelhado, tal.

– É, é muito bonito mesmo. É um dos mais luxuosos. Há muito tempo não me hospedo lá. O café da manhã de lá é um dos meus preferidos.

– Que prático trabalhar em hotéis, vi vantagem! – Mayara ri. Imaginou por um instante como seria ter um emprego assim.

– É, vantagens de ser a presidente... – Bruna comenta, não parecendo dar muita importância ao que dizia – De alguma coisa é preciso tirar proveito. Ainda que seja dormir no trabalho, literalmente.

– Com certeza. Você e sua esposa devem aproveitar bastante!

– Ah, não... – Bruna dá um sorriso. Pareceu no espelho mais triste que os anteriores – Você namora?

– Não, não. Essa vida não é para mim – Mayara é quem ri agora – Mulher dá trabalho demais, sai fora...

– Exato. Esse é o ponto que eu pretendia chegar. Em relacionamentos mais longos, esse fato dobra de peso. Minha esposa não tem muita... disposição. Ela não gosta de dormir fora de casa, é bastante metódica.

– Ah, entendi – Mayara olha para a mulher pelo espelho. Calculou que teria no máximo 50 anos e o comentário por algum motivo a deixou pensativa, com o semblante carregado.

– Mas... de novo: nada é por acaso. Está tudo certo. Amo minha esposa, não é à toa estamos juntas há mais de duas décadas.

– Uau. É bastante tempo, parabéns.

– É, muito tempo mesmo – Bruna acompanha com a unha a costura do banco do carro, pensativa – Eu tinha mais ou menos a sua idade quando Célia e eu nos conhecemos. Na época, estava solteira há muito tempo e pretendia permanecer por mais alguns anos, mas acabei me apaixonando e a partir disso a nossa história se desenrolou.

– Tenho chance, então – Mayara sorri, recebendo um sorriso da passageira de volta, pelo espelho – Digo, não que eu queira – ela se apressa em dizer, mas ainda sorrindo.

– Bom, boa sorte. Eu fico aqui. Grata pela companhia, Mayara.

– Eu que agradeço, Bruna. Ótima noite, bom descanso – a motorista se despede. Ouviu o celular apitar com a avaliação da passageira antes mesmo de chegar ao fim da rua.

                Mayara dá uma olhada para o relógio no painel do carro, bate  dois dedos no volante, pensando brevemente que rumo tomar, e liga o rádio antes de virar à esquerda. Nesses papos de “nada é por acaso”, aproveitaria onde estava para visitar uma amiga.

                Aquelas ruas residenciais eram conhecidas, Mayara tinha ganhado um bom dinheiro na época em que atendia os clientes do Balalaika, um bar meio retrô que ficava por ali, comandado por Jéssica Figueiredo, uma sapatão conhecida.

– Não! É realmente quem eu acho que é? – Jéssica exclama, ao vê-la entrar no bar – Por isso que não para de chover!

– Há quanto tempo mesmo, também estava com saudade – Mayara responde, a abraçando por alguns segundos.

– Sumida, sumida de tudo – a mulher demorou a soltá-la – E a Jacke? É outra, que nunca mais vi.

– Está bem, está namorando.

– Entendi, é por isso que desapareceu. Vocês são foda – Jéssica ri, apontando para uma banqueta, num convite para que ela sentasse, dando a volta no balcão – Nunca mais a vi. Aquelazinha.

– Hum? – Mayara pergunta, fazendo um movimento com a cabeça.

– Sua ex. “Cibele, a cobra”! – Jéssica cochicha no final, fazendo um movimento com o indicador, imitando o chocalho de uma cascavel.

– Ah – Mayara pega o suco que a mulher oferecia – Eu a vi, acredita?

– Mentira. Hoje?

– Quase agora, antes da última corrida.

– Que coincidência, amiga! Você se encontra com ela, não é picada!, e seu trabalho te traz justamente até meu bar? – Jéssica encosta um copo com água no suco, brindando.

– A mulher que transportei há pouco disse que não existe coincidência – Mayara se vira de costas para a amiga, quando a banda começou a tocar, no palco a alguns metros dali. Quando falou, foi num tom mais alto, e por cima do ombro – Não sei se não fui picada, Jessiquinha.

– Claro que não foi, Maya! – Jéssica se debruça no balcão, para que ela a escute – Prova disso é que está aqui e não na cama da cobra coral.

                Mayara não responde nada, só vira os olhos. Aquilo era verdade, mas não estava também nem perto do progresso que gostaria de ver em sua vida quando o assunto era Cibele.

– A passageira há pouco me disse estar casada há mais de 20 anos – diz, desta vez ela se esticando, para Jéssica ouvi-la – Duas décadas, e com uma mulher.

– Uau, sério? Que coisa boa!

– Fiquei pensando qual seria o segredo delas. Sabe, para dar certo.

– Vai saber, né, mana... Cada casal tem o seu. Mas o primordial, para começo de conversa, é que pelo menos sejam as pessoas certas uma para a outra, concorda? Nenhum relacionamento sobrevive a boicotes.

                Mayara resmunga, como se respondesse. Bebeu o suco em silêncio, ouvindo a música às suas costas, misturada aos seus pensamentos. Viu então o visor do celular acender no balcão. Era uma mensagem de Mauro, um passageiro fixo que atendia ocasionalmente.

– Amiga, preciso ir.

– Maya, volte mais vezes, poxa – Jéssica pede, segurando sua mão – Sinto saudade de conversar com você, vem com mais tempo. Precisamos colocar os papos em dia.

– Eu volto, prometo – elas se abraçam por cima do balcão.

                Se despediu com um aceno e deixou ao lado do copo uma nota de R$ 20, sob protestos da amiga, que ficou reclamando que ela não precisava pagar, e que era muito para um suco. Mayara saiu do Balalaika sorrindo, e ainda sorria quando entrou no carro. Só então respondeu à mensagem de Mauro, confirmando sua disponibilidade.                Atravessou alguns bairros, não muitos, até a delegacia da polícia federal para encontrar o delegado que sempre a chamava para levá-lo até Passarinhal, cidade a cerca de cem quilômetros da capital. Era um bom cliente, pagava bem, não puxava conversa fiada e permitia que ela dirigisse algumas horas em estrada de alta velocidade.

– Mayara, boa noite – ele cumprimenta, sentando no banco do carona, ao lado dela, como sempre fazia. Como de costume, a aguardava na calçada – Agradeço desde já por mais esta viagem.

– Boa noite, doutor Mauro. Claro, é sempre um prazer – ela pega um copo de isopor com tampa, que ele lhe entrega ao embarcar. Tinha outro idêntico, na outra mão – Grata, eu gosto desse café.

– Eu sei disso, minha querida – Mauro responde, com a voz séria, degustando seu próprio café.

                Esse foi todo o diálogo que tiveram até o destino, a casa do policial, na entrada da cidade, 1h27 depois de se encontrarem. Nesse período o delegado fez algumas ligações, inclusive para a filha, Isa, que aparentemente o esperava acordada. Pelo teor das conversas, Mauro estava envolvido em uma grande operação que pretendia colocar atrás das grades alguns políticos safados, mas sempre bastante discreto, não deu detalhes de nada em nenhum dos telefonemas realizados.

– É sempre um prazer viajar em sua companhia, Mayara – ele fala, entregando a ela três notas de dinheiro, assim que chegaram lá – Grato e até a próxima.

– O prazer é todo meu, doutor – ela guarda o dinheiro no bolso interno da jaqueta – Se cuide e bom descanso.

                A volta para São Paulo foi ainda mais rápida, àquela hora o tráfego era quase nulo na SP348, a Rodovia dos Bandeirantes. Nas poucas ultrapassagens que teve que fazer, a 120/km, Mayara tomou o cuidado de desviar dos olhos de gato instalados entre as faixas na pista, e de todas, atropelou apenas uma vez. Nos dois pedágios, foi do ponto morto a cem por hora em alguns segundos, o carro deslizando sem nenhuma dificuldade, respondendo com suavidade à pressão do seu pé no acelerador. A oportunidade de pisar fundo e ir trocando as marchas ate a quinta, sem obstáculos, era rara e bem aproveitada. Colocou Metallica, com The unforgiven, no máximo. A mão foi batendo no volante, no ritmo da música, que foi tocando em modo aleatório até o fim do álbum. Só abaixou o som e diminuiu a velocidade quando entrou na cidade pela Marginal Tietê. Quase duas da manhã e o trânsito era deliciosamente inexistente.  

– Última viagem da noite, vamos ver o que o dito acaso me reserva – ela diz em voz alta, dirigindo até a Vila Madalena, uma das áreas mais boêmias da cidade.

                Bancando a senhora do seu destino, Mayara cancelou as duas primeiras corridas. Já que era para brincar, brincaria direito. Quem sabe a desistência lhe daria a sorte de levar embora pessoas não tão bêbadas?, pensou, aceitando a corrida que vinha de um barzinho chamado Óbide. A solicitação era para quatro pessoas.

– Boa noite, Preta? – Mayara cumprimenta, encostando o carro perto de um grupo de mulheres.

– Oi, isso. Vamos, meninas. Nossa carona chegou – a mais alta anuncia, e puxa duas mulheres em direção ao carro. A terceira deu a volta e entrou pela porta da frente.

– Uau, que carro cheiroso – a passageira ao seu lado fala, afivelando o cinto de segurança com certa dificuldade. Só acertou o buraco na terceira tentativa e sua voz saiu como um murmuro alcoolizado, enquanto fungava com o nariz, fazendo barulho de cão farejador – Olá! – ela então a cumprimenta, como se apenas agora a visse atrás do volante – Você é mais cheirosa que o carro!

– Ritinha, se comporta aí, amiga – a mulher atrás pede. Era a mesma quem chamou o carro pelo aplicativo, e a que parecia mais sóbria do grupo – Moça, vou mandar nossos endereços, se quiser jogar no GPS...

– Claro – Mayara responde, batendo o dedo no celular. Enviou a primeira localidade para a tela com o mapa – Quer que siga à ordem dos endereços? – ela olha para a mulher no banco de trás pelo espelho.

– Ah, acho mais fácil, que aí você não fica indo e voltando.

– Eu passaria o resto da noite andando de carro com você – a mulher ao seu lado diz, fechando os olhos com demora – Sou Rita, e você?

– Mayara – a motorista responde baixinho, a olhando com o canto do olhos.

A mulher ao seu lado era uma jovem bonita, de cabelo cacheado e sorriso insistente. Provavelmente era ainda mais bela quando sóbria e debaixo de toda aquela maquiagem.

– Mayara – ela repete, fechando os olhos mais uma vez, um pouco teatral, os cílios compridos encostando na pele do rosto – A mulher mais cheirosa que eu já conheci depois de um porre!

– Ah, essa música é boa – alguém exclama atrás – Aumenta o som, motorista, por favor!

– Luana, esse som é o mesmo daquela vez, né? – Rita se vira para trás, e se esforça para ser ouvida. Ficou fungando, levantando o nariz para o alto, apreciando o perfume de Mayara.

– É, amiga! Daquela baladinha que a gente foi! Boa memória! – a resposta veio num tom alto também.

– Cheirosa demais, nossa, queria cheirar você inteira – Rita murmura, com a voz quase inaudível. Mayara não a olhou porque sabia exatamente qual expressão encontraria em seu rosto ébrio.

                As mulheres deram alguns gritinhos em pontos específicos da música, coordenadas com a batida grave e as palmas que elas bateram, juntas. O som permaneceu alto, mesmo depois que a música acabou, porque as que vieram na sequência pareceram agradar igualmente às passageiras. O volume só foi abaixado quando chegaram em frente à residência da mais quieta do quarteto. Mayara a aguardou passar pela portaria, as pernas trançando no percurso na calçada, até as grades do portão. A mulher acenou de maneira torta quando uma das passageiras que ficou atrás gritou algo, se despedindo.

– Miriá ficou louca, louca hoje – Preta comenta, rindo, logo que voltam a se locomover – Segunda-feira vai falar que não foi tanto, aposto!

– Ela fez bem em encher a cara – a outra mulher atrás rebate – A chefe tem trabalhado demais ultimamente... Periga até ter uma crise de estafa, ou até algo pior.

– Mas as férias dela foram marcadas, não é, Preta? – Rita questiona, por cima do ombro. No final da pergunta, respirou fundo e sorriu para Mayara – Moça, você é absurdamente cheirosa, de verdade.

– Marcadas, foram... Mas você sabe como as coisas na agência são sempre enroladas... – Preta responde, dando um bocejo barulhento.

– Atrás da sua orelha, no vão entre os seus seios, nos degraus das suas costelas, em volta do seu umbigo – a passageira do banco do lado foi listando. Talvez pontos que queria cheirar, mas não ficou muito claro.

Inevitavelmente, Mayara se perguntou há quanto tempo ela própria não tirava férias. Ia sempre emendando o trabalho conforme os meses dos anos avançavam, numa rotina que a consumia ao ponto de até se esquecer de descansar. Se alertou de que deveria ser uma boa chefe para si mesma, e se dar uns dias de férias. Em breve.

– Grata, Mayara – Preta agradece, logo que o carro estaciona em frente a um condomínio de prédios altos – Meninas, se cuidem. Nos vemos na segunda.

– E aí, Ritinha? – a passageira remanescente pergunta, do banco de trás, assim que ficam apenas as duas no carro. Se inclinou para a frente, colocando o corpo entre os dois bancos – Ainda acha que elas ficaram?

– Ai, Lu... Não sei, amiga. Às vezes eu acho que sim, porque elas dão muita pinta, mas em outros momentos, não sei, fico na dúvida... Porque ela e a Miriá podem ser só amigas, né.

– Podem, mas será que são? – ela volta a encostar as costas no banco – Eu shippo as duas como casal. Acho a Preta linda!

– Ela é mesmo, e a chefe não fica atrás no quesito beleza – Rita concorda, mantendo a cabeça na direção da motorista, um sorrisinho insistente enfeitando o rosto.

– Segunda nós falamos disso, quando estivermos sóbrias – a passageira diz, desembarcando assim que o carro parou – Grata, motorista. Tchau, amiga! Bom fim de semana!

– Agora somos só nos duas – Rita tinha uma cara meio de pervertida, com uma das sobrancelhas arqueada.

– Vou te levar para casa em segurança, Rita, não se preocupe – Mayara responde, abaixando ainda mais o volume da música.

– E será que eu ganho um beijo de despedida nesse instante? Não? – Rita estava rindo, antes mesmo de a mulher responder – Só uma bitoquinha, vai, Mayara... Só para eu ver se o seu gosto é tão bom quanto o seu cheiro!

– Você sempre pede beijos para desconhecidas quando está alcoolizada?

– Sempre!

– E ganha? – Mayara pergunta, a encarando depois que ela ficou em silêncio. Deu um sorriso mais largo, quando a mulher permaneceu quieta – Pois é.

– Isso diz muito de você, Mayara... – Rita resmunga, fechando os olhos. Desta vez, os manteve assim – E diz muito de mim, também...

                Mayara sorriu. Ao contrário do que em geral acontecia, esta bêbada em específico não a estava irritando. Pensou que a beijaria, se ela estivesse sóbria, se fosse em outra ocasião, se não estivesse durante o expediente. Lembrou de Cibele e suspirou.

– Minha casa – Rita abre os olhos, no momento em que o carro para – Em segurança, como você disse – ela sorri, os olhos turvos não focando em nada, exatamente. Foi ajudada a tirar o cinto de segurança, depois de não conseguir se soltar sozinha – Agradeço, cheirosa Mayara.

                Mayara a acompanhou abrir e fechar a porta do carro, a viu parar um instante e repentinamente seu corpo sumiu. Desapareceu, depois do que pareceu ser seu primeiro passo.

– Minha nossa, você se machucou? – Mayara desafivela o cinto e sai do carro. Deu a volta e encontrou a mulher caída na sarjeta, o pé virado na guia da calçada.

– Mayara! – Rita exclama, ainda no chão. Demorou uns segundos até aceitar a mão estendida em sua direção e se levantar – Nunca achei que te encontraria aqui, tão perto da minha casa – ela olhou confusa para o prédio à sua frente, e quase caiu de novo quando virou a cabeça para olhar até o topo.

– Vem, vou te ajudar a chegar pelo menos no portão – Mayara enrosca o braço na sua cintura e caminham juntas até a grade. A mulher era um pouco menor que ela, e se apoiou nela para avançar aqueles poucos passos – Você consegue sozinha? – pergunta, vendo que Rita tinha nítidas dificuldades para ficar em pé, após se escorar no portão. E provou isso quando tropeçou no primeiro degrau logo depois de entrar. O barulho de sua queda foi ouvido na outra esquina, certeza.

                Mayara deu um suspiro, a esta altura um pouco impaciente, e apertou o botão na chave do carro, para trancá-lo. Deu meia-volta e se aproximou novamente de Rita, que permanecia estirada no chão, metade do corpo esparramado em três degraus.

– Nossa, mas você é cheirosa demais – ela resmunga, passando o braço pelo pescoço da mulher, e se levantando com a sua ajuda.

– Vem, se apoia em mim – Mayara pede, fazendo esforço para mantê-la em pé. Não estava com sono, mas a esta hora o cansaço das horas de trabalho acumuladas já a abatia, e ela só queria entregar logo a mulher em casa e ir embora. Tinha sempre que aproveitar essas deixas para tentar dormir, mas estava um tanto distante do seu lar, e pela demonstração de Rita, ainda estava bem longe de encerrar o expediente.   

– Eu consigo, eu consigo – Rita foi dizendo até o elevador, mas a cada vez que Mayara a soltava um pouco, seu corpo mole dava a impressão de que ia desabar – Não consigo, não consigo – ela se emendava, sempre que sentia o braço de Mayara afrouxar.

– Estou te segurando – Mayara garantiu. E de fato não a soltou até que o elevador parasse de subir e abrisse as portas no décimo terceiro andar – É aqui?

Elas se encaminham até uma das portas do corredor e Mayara destrancou a fechadura, após Rita não conseguir encontrar a fechadura com a chave. A mulher aguardou a abertura enfiando o nariz no seu pescoço, e Mayara permitiu porque era nítido que a mulher não representava nenhum tipo de risco. Exceto para si mesma.

Mayara refletiu por um breve instante que o fato de ela ser mulher talvez deixasse Rita mais confortável em aceitar sua ajuda. Não quis pensar no que poderia ter acontecido com a moça alcoolizada, caso eventualmente fosse homem.

– Cinco estrelas, você – Rita resmunga, logo que entram. Ainda estava com o rosto encostado no pescoço de Mayara.

– Aqui, bebe um pouco – Mayara oferece para ela um copo d’água. Viu a confusão estampar os olhos de Rita, quando os abriu e a encarou. Estava com o corpo derretido no sofá, que foi o mais longe que chegou.

– Você tem o olho cinza! – ela exclama, antes de pegar o copo. Bebeu tudo de uma só vez, olhando para ela, sem piscar – Você é bonita, Mayara.

– Grata, Rita – Mayara sorri, um pouco acanhada, e pega o copo vazio de volta – Quer mais? Quanto mais água você beber, menos ressaca terá amanhã.

– Não... – ela faz uma careta, antes de bocejar – Salvou minha noite, moça perfumada!

                Mayara dá um sorriso, o peso do corpo mudando de perna enquanto pensa se já deveria ir embora. Já era tarde, afinal, e talvez ela até conseguisse dormir, se deitasse.

                Como numa enxurrada, alguns comentários que tinha ouvido nas últimas horas voltaram à mente, encerrando com o comentário mais cedo de Cibele: “você não vai conhecer ninguém sendo motorista”. Vaca!

                Olhou para Rita, que voltou a fechar os olhos e parecia até dormir, deitada toda torta no seu próprio sofá. Mayara sorriu porque, se tinha uma coisa que sua rotina propiciava, era justamente a oportunidade de conhecer pessoas.

                Ameaçou se virar para ir embora, mas Rita despertou e olhou para ela no mesmo instante, pela primeira vez com um olhar sóbrio, os olhos castanhos pareciam até brilhar. Um sorriso bonito pareceu iluminar todo o seu rosto, transformando seu semblante de um jeito que fez Mayara estancar no meio da sala daquela desconhecida.

– Você podia abusar de mim, mas vai embora? – ela pergunta, um cheiro etílico impregnando suas palavras ditas de maneira arrastada.

– Eu jamais abusaria de você – Mayara afirma, em tom sincero.

– Perfeita. E cheirosa! – Rita complementa, voltando a fechar os olhos – Abusa de mim quando eu ficar boa então, pô!

– Vou deixar meu cartão aqui – Mayara apoia um cartão preto em cima do braço do sofá – Me liga quando estiver bem e a gente conversa.

                Mayara se despediu com um sinal que Rita não viu, e fechou a porta com cuidado para não fazer barulho. Desceu no elevador lendo todas as avaliações recebidas durante o dia de trabalho e ficou satisfeita com os feedbacks. Acreditava que, por não pedir por aquilo, os comentários eram sempre genuínos e sinceros.

                Dirigiu até sua casa com o rádio desligado, avançando todos os semáforos vermelhos que encontrou pelo caminho, nos 12km até o seu portão. Ruas e calçadas estavam inteiramente vazias, a cidade toda quieta, e Mayara sabia que era mais perigoso parar a prosseguir.

Por estar bastante cansada, dormiu até a manhã seguinte, depois de um banho morno e um copo de leite quente. Foi quase direto, nem viu as horas passarem (a psiquiatra nem acreditaria se ela dissesse agora que sofria de insônia!). Acordou já perto das dez com a claridade invadindo o quarto, e viu no celular uma mensagem de Rita, a chamando para um “almoço seco”. Sem bebidas, segundo ela.

Nada por acaso.


 

Beatriz Nogueira (5 estrelas)

Motorista excepcional, boa conhecedora das vias da cidade. Me levou até o aeroporto em um espaço de tempo incrivelmente curto, num carro impecavelmente limpo. Recomendo.


André Felipe (5 estrelas)

Ótima motorista, me levou ao meu destino super rápido, num atalho por ruas que eu, que moro a vida toda na cidade, nem conhecia. Super discreta, não ficou puxando papo, como muitos fazem. O tipo de profissional que admiro.


Bruna Toledo (5 estrelas)

Uma grata surpresa ser atendida por profissional tão competente e prestativa. Elevou todos os meus conceitos.


Mauro Castro (5 estrelas)

Mayara sempre me atende de prontidão, me levando até em casa em segurança, conduzindo com responsabilidade vários quilômetros de estrada. Excelente profissional.


Preta Rodrigues (5 estrelas)

Minhas amigas e eu somos gratas pela corrida feita com exímia motorista, que nos levou alcoolizadas para casa. Muito gentil e cortês. Voltou no dia seguinte para me entregar minha carteira, que esqueci no banco do carro.


Rita de Cássia (5 estrelas)

Motorista maravilhosa, pessoa respeitadora e mulher muito (muito!) cheirosa! Daria cinco estrelas para o resto da vida, fácil!


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