3xTPM - Ano novo (conto)

Esta é a quinta história da Novelinha.

Se ainda não leu a quarta, Happy Hour, clique aqui.


                Tatiana acorda e encara o teto do quarto por um breve instante, os olhos ainda se acostumando à pouca claridade do cômodo enquanto o corpo dá uma esticada, sutil, se alongando alguns centímetros no colchão. A julgar pela luz que escapava por debaixo da porta do banheiro, imaginou que devia ser umas seis da manhã. Talvez mais cedo. Ouve ao seu lado, na cama, o leve ressoar de alguém dormindo em sono profundo, um som prazeroso que a faz sorrir antes de se levantar, sem olhar para o relógio na mesinha de cabeceira, não se importando com a hora. Mesmo de férias, nunca conseguia dormir muito além do horário a que estava acostumada a acordar, há mais de uma década, e há tempos tinha deixado de insistir em ficar na cama até mais tarde. Por isso, sempre que acordava, já levantava. Mesmo que cedo e estivesse de férias, fosse feriado ou fim de semana.

                Hoje ao menos tinha afazeres, então era até válido acordar tão cedo: era o último dia do ano e elas viajariam em algumas horas rumo a um Réveillon distante de casa e da agitação dos fogos de artifício. Passariam a virada do ano em um hotel fazenda afastado de tudo, numa cidadezinha chamada Santa Ana de Catandara, localizada a quase 200km de casa. Era longe, e as fotos no site prometiam a privacidade que queriam, inclusive porque depois de se acomodarem não pretendiam deixar o quarto até que o ano novo se iniciasse.

                Ao sair da cama pela beirada, caminhou na ponta dos pés e fechou a porta do quarto com cuidado, para não fazer barulho. Lavou o rosto no lavabo do corredor, como estava habituada. Tinha todo um ritual matinal, com cremes e sabonetes obrigatórios, e foi assistida de perto por Percival, o gato de Mariana, que finalmente a aceitava como parte da família. Provavelmente porque Tatiana o alimentava todas as manhãs, há quase um ano, desde que tinham se casado.

A adaptação foi muito menos do gato à casa nova do que de Tatiana e Patrícia à rotina que pela primeira vez incluía um animal de estimação, que soltava pelos por onde quer que passasse – e até por onde não passava, por exemplo, dentro do closet. Suas roupas, as escuras, especialmente, agora viviam cobertas de pelos que, de tão finos, pareciam plumas. Infinitas plumas, em todos os lugares.

Mas tudo era mesmo só uma questão de tempo e costume, como Mariana tanto dizia no começo. Dela, de Percival e de Patrícia, também, embora fosse a que menos ficasse em casa. E Tatiana constatou isso, mais uma vez, quando desceu a escada seguida pelo gato peludo e branco, que a acompanhou enquanto miava, animado, parecendo conversar. De todos da casa, era quem acordava mais feliz.

Mariana chamava o bichano de Nonô, que era um diminutivo para “nômade”. Ambos já tinham morado em alguns vários endereços, mas a mulher evitava esse assunto. “Passou, é passado” era uma frase que repetia, sempre que o assunto vinha à tona. E só porque ela desconversava de um jeito bonitinho, ninguém insistia para saber os detalhes. Era realmente passado, passou. O importante é o hoje.

                A casa de dois andares estava mergulhada num silêncio típico, só o relógio na cozinha fazendo seu ruído característico, ditando o ritmo do dia que ainda estava clareando. O som dos segundos foi abafado quando a cafeteira ligou, liberando um aroma de “bom dia”. O primeiro jato de café foi despejado direto em sua caneca nova, um presente de Mariana, dado a contragosto de Patrícia. Cafeína é praticamente proibida em sua dieta, e a esposa acreditava que ter uma caneca térmica justamente para beber café era uma ideia terrível. Mas Mariana é assim. Autêntica e atrevida. Na caneca de Tatiana estava escrito “Saboreie escondido”, mas a palavra vinha riscada, e no lugar aparecia “devagar”. “Saboreie devagar”. Traduzia seu casamento. Elas se saboreavam como ao café: sem pressa, com gosto. Mas escondidas.

                Tatiana sorriu de novo ao ler aquilo, ao lembrar da expressão de Patrícia e especialmente a de Mariana, com aquela cara linda que ela fazia, levantando só uma sobrancelha, provocativa. Foi um ótimo presente, e veio embrulhado na intimidade delas, Tatiana pensou, colocando a jarra da cafeteira no lugar da caneca. Ficou olhando o líquido escorrer, seus sentidos despertando com o primeiro gole da manhã. Entendia o mal que aquilo lhe fazia, mas quem vive sem café?

                Patrícia vivia, e por isso Tatiana encheu a chaleira para preparar seu chá e a levou ao fogão, que ficava numa ilha, no meio da cozinha de chão claro. Estava apoiada na pia, vendo as bolhas na panela transparente começarem a dançar, pensando que tinha que ser rápida e beber o café antes que a mulher acordasse. Ainda não tinha nem concluído o pensamento quando Patrícia apareceu na porta, com o rosto todo amassado de sono e o cabelo despenteado. Vestia apenas calcinha e a camiseta do pijama que era conjunto com a calça que Tatiana estava usando. Ao contrário dela, estava com chinelo nos pés.

– Quanto tem de café aí dentro? – Patrícia pergunta, em tom de cumprimento. Abriu a porta do armário do alto e pegou uma caneca roxa, antes de abraçar Tatiana – Bom dia, querida. Acordou cedo, Tati!

– Bom dia, meu amor! Eu ia levar o seu chá lá na cama – Tatiana fala, sem responder tudo, de propósito – Acordei muito cedo, e você estava roncando tão gostosinho... Te deixei dormir.

– Não estava roncando, não – ela resmunga, se aninhando no ombro da mulher, que era ligeiramente mais alta que ela. Apoiou a caneca vazia na pia, atrás delas, e antes de pegar o copo da mão de Tatiana, deu uma ligeira balançada, para ver quanto havia lá dentro – Tati, a nutricionista disse que era para você cortar o café da sua vida, você disse que não conseguia e que ia beber só meia xícara... Mas aqui tem muito mais que isso!

                Tatiana tentou impedi-la, mas Patrícia se afastou dois passos dela, e tirou a tampa do copo térmico. Fez uma careta de desgosto ao encará-la, decepcionada com o que via. O copo estava quase cheio.

– Assim é difícil, né... Meio litro de café e são 6h07.

– É difícil mesmo, Pati... – Tatiana se defende, se virando para ela, colocando a erva do chá no infusor colorido e despejando a água quente. O calor fez a cor da caneca mudar para rosa, liberando um cheiro doce de gengibre.

– Eu falei para a Mari te dar outro presente no natal, mas não... Tinha que dar uma caneca de um litro... – Patrícia cruza os braços, brava, mas logo descruza. Considerou que ainda era muito cedo.

– A culpa não é dela, Patrícia. Quem bebe café sou eu – Tatiana afirma, a encarando por cima do ombro. Abaixou o tom da voz, porque não queria discutir – É muito difícil viver com restrição alimentar – ela complementa, entregando a caneca para ela – Eu gosto de café, amor.

– Eu sei, minha gatinha – Patrícia também estava com a voz mais branda – Só me preocupo de você não ficar bem. A gente vai viajar, já pensou, ter que passar a virada do ano no banheiro, se sentindo mal?

                Patrícia volta a abraçá-la, agora mais forte. Deu um beijo em sua boca, emendando um “eu te amo” que só Tatiana ouviu. Depois bebeu um gole do chá, vendo a esposa colocar ração no potinho do gato, que ainda não tinha recebido seu desjejum. Percival ignorou solenemente Tatiana e continuou se lambendo, perto da geladeira.

                Ao contrário do gato, Patrícia tinha fome e por isso colocou a frigideira no fogo. A panela estalou quando os ovos batidos foram despejados, acrescidos de temperos coloridos, que ela remexeu com uma colher de cabo comprido. Tinha as mãos habilidosas e preparou o café da manhã, cheiroso, se dividindo em várias atividades.

Tatiana estava colocando os pratos no balcão que seguia a superfície do fogão quando Mariana entrou na cozinha. Vestia apenas um short rosa, minúsculo, de cetim. Ao vê-la, Percival correu em sua direção, se enroscando em suas pernas, e ganhou os primeiros afagos da mulher.

– Meus amores, numa linha de produção matinal – ela fala, com um sorriso meio de lado, os óculos equilibrados na ponta do nariz com a marca da sua digital no canto de uma das lentes – Não me canso dessa cena, ainda que preferisse que vocês me acordassem, poxa! Não gosto de sempre ser a última a sair da cama...

                Mariana abraça e dá um beijo em Tatiana, que passa a mão em seus cabelos da mesma forma que ela tinha acabado de acariciar a cabeça de Percival. Depois deslizou alguns passos e abraçou Patrícia por trás, porque ela ainda comandava o fogão. Deu um beijo em seu pescoço, após fungar seu cangote.

– Já estava indo te chamar, querida – Tatiana fala, servindo café para ela. Antes de lhe entregar a caneca, bebeu um gole sem que Patrícia visse – É que você estava roncando tão bonitinha, fiquei com dó...

– Não estava, não – Mariana rebate, rindo. Pegou o café e deu uma piscadinha para a mulher, de maneira cúmplice – Quem ronca é a Pati, sabemos.

– De novo essa história... – Patrícia se finge de zangada, mas estava rindo também. Tirou duas panquecas e serviu em dois pratos – Até outro dia eu não roncava, agora a Tatiana deu de dizer isso...

– Quem está dizendo isso sou eu, amor – Mariana comenta, dando um selinho nela. Sentou na banqueta em volta da ilha e se espreguiçou, fazendo barulho. Voltou a falar no final de um bocejo – E aí, animadas com a viagem? – olhou também para o gato, e deu uma piscadinha que só Percival viu. Mas ele não parecia empolgado em sair de casa.

– Não gosto muito de lugares públicos, fico aflita... – Patrícia resmunga, mas as duas a ouvem – Quer dizer, vai ser ótimo, o hotel parece muito bom – ela se emenda, desligando o fogão e servindo os ovos mexidos nos pratos iguais. Na sequência, acrescentou mel em dois deles, em cima das panquecas, e no terceiro, alguns biscoitos de arroz.

– Estamos indo lá para descansarmos, Pati. Vai ser bom – Tatiana a lembra, sentando ao lado de Mariana e puxando o prato com biscoito – Você pode dormir no trajeto, a gente se reveza na direção, né, Mari?

– Claro, amor – Mariana puxa outro prato, e depois a banqueta à sua esquerda. Fez um gesto para Patrícia sentar, colocando o último prato à frente da esposa – Eu posso dirigir até lá, de boa. Nem é tão longe e dormi bem, estou descansada – ela bebe mais um gole de café, geme baixinho, de satisfação, e antes de comer, prende o cabelo em um rabo de cavalo – Ontem à noite estava vendo o trajeto antes de dormir, é tranquilo, uma linha reta, quase. Só chegando lá é que preciso de ajuda para ver o mapa. Tem uma curva que é certeza que vou me perder.

– Eu te ajudo, baby, claro – Tatiana fala, ao mesmo tempo que Patrícia.

– Quer chá, Tati? – a mulher pergunta, puxando o copo de café de Mariana para perto de si, oferecendo para Tatiana uma caneca vazia, que pegou do armário antes da resposta – Esse chá novo de limão e gengibre é muito bom – Patrícia continua, colocando água quente em cima da erva perfumada – Eu vou preparar os lanchinhos da viagem, algumas coisas para você comer lá, também. Vai que não tem...

– Está bem, amorzinha. Agradeço – Tatiana pega a caneca e toma um golinho. Faz uma cara de satisfação, nitidamente para agradar à mulher, e Mariana sorri com a cena.

– Vai ser bom viajar, termos essas horinhas para descansar. Vocês têm razão – Patrícia volta a dizer, segurando brevemente a mão de Mariana, que sorri para ela em concordância.

– Vai sim, querida – Mariana responde, juntando mel com um pedaço de panqueca – A gente vai com o meu carro, que é mais espaçoso. Você vai atrás com os travesseiros e o Nonô, a gente liga um sonzinho... vai nem sentir o tempo de trajeto.

– Ô, Mari – Tatiana chama, já balançando a cabeça, em negativa – Meu carro é muito mais econômico, gata. Vamos nele, que tem também o treco de passar direto no pedágio.

– Ah, amor, não gosto de dirigir seu carro... – Mariana resmunga. Agora era Patrícia quem sorria, vendo a interação entre as esposas.

– Só porque o câmbio é manual... – Tatiana vira os olhos, mas manda um beijo para ela, no final – Fresquinha!

– Vamos com o meu, que é econômico e automático, tem o Sem Parar e é confortável. E você gosta de dirigir – Patrícia dá um sorriso primeiro para Mariana, depois para Tatiana – É sempre um prazer resolver os impasses das senhoras – comenta, juntando as migalhas do prato com o dedo e lambendo. Se levantou e continuou falando, de costas para ela – Mari, sei que já perguntei, mas confirma se você separou todas as suas coisas, benzinha. Seu remédio para dor de cabeça, a bombinha da asma, sua escova de dente. Lembra da última viagem...

– Eu separei, amor, mas tá – Mariana termina de beber o café e levanta também. Apoiou o prato dentro da pia e deu um beijo na bochecha de Patrícia, que lavava a louça – Vou terminar de arrumar minha mochila. Saímos às oito? – ela olha para o relógio na parede, igual ao que havia pendurado nO Bistrô. Os ponteiros, grandes, giravam sem números.

– Às oito – Tatiana responde, se aproximando também da pia, beijando o outro lado do rosto de Patrícia – Você vai levar biquíni, Mari? – ela pergunta para Mariana, antes de saírem da cozinha.

– Biquíni, Tati? Pretende ir à piscina? – Patrícia estava incrédula.

– Nunca se sabe, amor – Mariana responde, junto com Tatiana, e por isso as duas riem.

– Por precaução, então – Tatiana responde, e as duas saem rindo, juntas, conversando sobre saídas de banho.

                Patrícia não diz nada e guarda toda a louça, depois de lavá-la. Era realmente, afinal, uma viagem para descansarem e curtirem o hotel fazenda, e ela não queria ser a responsável por azedar os planos do trisal. Bastava a sensação que tinha de já fazer isso no cotidiano delas, Patrícia pensou, guardando o copo térmico de Tatiana bem no fundo do armário, escondido atrás das taças de vinho. Era sempre a mais preocupada das três, mas talvez porque sentisse que Tatiana e Mariana eram tranquilas demais.

Antes de deixar a cozinha, trocou a água do pote de Percival, que finalmente estava comendo, e afagou o bichano depois de separar seus apetrechos dentro de uma sacola com estampa de gatinho. Quanto a isso não estava preocupada porque esta seria a segunda viagem que fariam na companhia do gato, que se comportava de maneira exemplar – no trajeto e também no hotel.

Refletia a respeito disso quando passou pela sala e viu Mariana deitada em cima da mochila, no sofá. Ela sorria, vendo algo no celular.

– Você vai viajar assim? – Patrícia pergunta, desistindo de subir a escada depois de dois degraus, se sentindo impelida a voltar para a sala.

– Aham, só vou calçar o tênis – Mariana responde, sem olhar para ela.

Ela vestia um short mole de corrida, que usava às vezes para dormir, e uma camiseta cavada, sem sutiã por baixo. Antes que Patrícia falasse algo, viu Tatiana descer a escada e entrar na sala com uma roupa idêntica. O que diferenciava era só a cor do short.

– Imaginem se fura o pneu no meio da viagem... Que linda a cena de vocês trocando o estepe no acostamento da estrada vestidas assim, com essas roupas tão curtinhas... – Patrícia tinha um tom de preocupação, mas seus olhos estavam sorrindo.

– A gente checa a calibragem antes de ir – Tatiana fala, em seu tom calmo – Temos que viajar confortáveis, Pati.

– Que roupa você vai vestir? – Mariana pergunta, ao mesmo tempo, as fazendo rir. Tatiana foi quem mais se divertiu; Mariana tinha o dom de amenizar qualquer situação.

– Não vou trocar o pneu sozinha, bonita! Se é isso que está insinuando... – Patrícia garante, cerrando os olhos, como se estivesse ofendida – Vamos checar a calibragem, amor, é uma ótima ideia – ela olha então para Tatiana, que senta ao lado de Mariana, vendo o que a mulher estava assistindo no celular.

                Patrícia deixa as duas na sala, ambas rindo de algo que fazia rir também quem tinha gravado o vídeo que agora elas assistiam. Percival estava lá em cima, deitado na cama arrumada visivelmente por Mariana, dada a disposição dos travesseiros. Patrícia não comentava, mas dava para saber quando certas coisas eram feitas por ela ou por Tatiana. Como a arrumação da cama, por exemplo.

                Colocou uma mala de lona aberta em cima da colcha e enfiou dentro dois pares de cada roupa: camiseta, short, calça, até casaco achou prudente levar. Do armário do banheiro, trouxe escova de dente (inclusive uma reserva), a nécessaire com xampu e demais coisas de banho, e na passagem, pegou o remédio de asma de Mariana. Se tem uma coisa que a deixa nervosa é quando a mulher tem crise e, por algum motivo absurdo, não se encontra uma bombinha no meio da noite – cena que já aconteceu pelo menos meia dúzia de vezes, desde que conheciam Mariana.

Saiu do quarto depois de 20 minutos, já com a mala pronta, acompanhada por Percival, e encontrou a esposa sozinha no sofá. Seu celular subia e descia em cima do peito, numa respiração tranquila, como se Mariana dormisse em sono profundo. Estava de óculos, e uma das pálpebras tremia embaixo da lente. O gato se aninhou nela.

                Tatiana estava na garagem. Tinha aberto o tampo do carro de Patrícia e estava com metade do corpo enfiado debaixo do capô, numa postura que até convenceria quem não a conhecesse. Mas Patrícia sabia que a esposa entendia zero de mecânica, ainda que fazer aquela “vistoria” fosse um costume, sempre antes de pegarem estrada.

                A mulher estava distraída, o pensamento envolto em vários assuntos, seus olhos nem estavam exatamente focando em nenhuma parte específica do motor. Aquele automóvel era o mais novo dos três na garagem, então viajar nele era uma escolha acertada. Fechou o tampo com um estampido seco e alto, quando viu Patrícia.

– Não há com o que se preocupar, meu bem – Tatiana fala, como se lesse os pensamentos da esposa, parada na entrada da garagem, com uma ruga unindo as sobrancelhas – É uma viagem para você relaxar! Pare de se preocupar.

– Não consigo... – Patrícia cede ao abraço de Tatiana, encontrando em seu cheiro o amparo que sempre a acalmava – Sempre fico aflita achando que algo vai acontecer, que vamos colocá-la em risco – ela diminui o tom de voz, para que Mariana não as escute – Nos colocar em risco, Tati, em algum tipo de perigo.

– Amor, não vai acontecer nada! – Tatiana falou séria, e firme.

                Ela manteve seus corpos unidos, mas afastou o tronco o suficiente para encará-la. Só voltou a falar quando recebeu a atenção de Patrícia, que desanuviou o olhar ao encontrar seus olhos.

– Confia, Pati. É um hotel lá no meio do mato, no meio do nada!, foi escolhido a dedo. Você mesma levou dias analisando cada detalhe, até decidirmos. É seguro, amor.

– Eu sei, mas... – Patrícia volta a resmungar, mas Tatiana a interrompe.

– É um bate-volta, gata. Amanhã mesmo a gente já está de volta, no máximo no meio da tarde. Não vamos demorar, eu prometo. O que de mal pode nos acontecer em apenas algumas horas?

                Porque Tatiana parecia sincera, Patrícia não retrucou. Voltou a abraçá-la e antes de sair, trocaram um beijo rápido.

– Vou acordar nossa motorista, que disse há pouco que estava “super descansada” – Patrícia imita a voz de Mariana, e Tatiana ri – Já trago as coisas para você ajeitar na mala.

                Tatiana apenas concorda com a cabeça, e suspira depois que Patrícia sai. Entendia a preocupação da mulher, que já era encanada com assédio e homofobia quando eram só elas duas, e ficou muito mais quando passaram a ser três. Mas compreendia também que isso não podia impedi-las de sair. Ainda mais para um lugar que tinham tomado o cuidado de escolher, bem afastado. E seria mesmo apenas por algumas horas, só para a virada do ano e logo retornariam.

                Ainda pensava nisso quando Mariana e Patrícia surgiram na garagem, conversando sobre o clima. Percival vinha junto e miava, como se interagisse também. O gato foi o primeiro a embarcar.

                A porta da garagem abriu depois de três minutos, com Mariana ao volante e Tatiana no banco do carona. Patrícia estava atrás, com Percival deitado ao seu lado, e não foram precisos nem cinco minutos de viagem para a aventura começar. Tatiana constatou isso quando viu a motorista bater a mão na lateral do corpo, na altura do bolso, num gesto já bastante familiar.

– O que, Mari? – Tatiana pergunta, os olhos de relance nela, no volante, na rua e nela de novo. A camiseta que a esposa usava tinha a gola baixa, deixava de fora uma pinta que ela tinha no peito, acima do seio esquerdo, e a pinta subia e descia, num movimento rápido.

– Vou parar em uma farmácia – Mariana responde, com a mão levantando brevemente para acalmá-la, mas ela nitidamente fazia força para respirar.

– Amor, você trouxe a bombinha da Mariana? – Tatiana pergunta, por cima do ombro, e só então Patrícia percebe que há algo errado.

– Não, só peguei a noturna... – Patrícia inclina o corpo para frente, o tronco indo o máximo que o cinto de segurança permitia. Sua voz estava mais alta, quando voltou a falar – Encosta o carro, Mari! Tatiana... – ela chama, como fazia sempre que algo assim acontecia.

– Mariana – Tatiana fala, tocando seu braço de leve. Não disse mais nada porque ela virou o volante e estacionou em frente a uma farmácia grande, de esquina.

                Tatiana foi quem desceu, e tentou ser o mais breve naquela missão. Voltou com o remédio depois de alguns instantes, e ficou parada na porta do carro, vendo Mariana aspirar profundamente, o peito inflando com o efeito quase imediato do broncodilatador.

– Não vou dizer que você não pode fazer isso com a gente... – Tatiana resmunga, vendo sua respiração normalizar.

– Você não pode fazer isso com a gente! – Patrícia fala, ao mesmo tempo, do banco de trás. Esperou que Mariana estivesse respirando normalmente para falar, e sua voz saiu bastante alterada – Você ainda me mata do coração fazendo isso, Mariana!

– Desculpa... – Mariana diz, olhando para ela por cima do ombro – Desculpa, amor – ela diz, agora para Tatiana.

– Tudo bem, mas presta atenção, ô cabeça – Tatiana já estava com a voz amena e deu a volta para embarcar novamente.

– Dirige você, Tati – Patrícia pede, ainda com o corpo espremido entre os dois bancos do carro.

– Não, Pati, eu já estou bem – Mariana afirma, voltando a afivelar o cinto de segurança. Ligou o som do carro, tentando reestabelecer a harmonia para a viagem delas, e bateu na tela do celular, preso perto do painel, ao lado do volante. A foto do trisal sumiu e o mapa do GPS voltou a ser exibido, junto com os primeiros acordes de “Amorfa”. O tempo de viagem estava estimado em cerca de três horas e elas não comentaram mais nada sobre o incidente. A bombinha de asma passou a viagem toda no colo de Mariana e não foi mais usada até chegarem.

O hotel tinha uma fachada em estilo colonial, lembrava as antigas fazendas de cana-de-açúcar, com a volta toda avarandada. Era uma construção alta com acesso por uma escada central parecendo rústica, tudo pintado de azul e branco. Ao lado era visível um lago, de águas calmas, e um menino pescando, sentado na beira, parecia parte de uma pintura. O estacionamento consistia em um pátio largo, ladeado por árvores bem altas, e Mariana escolheu a sombra maior, bem-vinda naquele sol de quase meio-dia. Assim que ela estacionou, Tatiana guardou a bombinha de asma (que Mariana deixou no banco do carro) no bolso do short, e se comprometeu em pensamento a sempre tomar esse cuidado, por todas elas.

Alongou as pernas logo que desceu, respirando fundo um ar sem cheiro, ouvindo o canto de mais de um pássaro. As árvores pareciam centenárias e pairava no local um silêncio quase absoluto, interrompido só pela natureza. Era um dia quente, mas ali estava fresco e de imediato lhe pareceu um lugar perfeito para o Réveillon. Sorriu porque Patrícia e Mariana pareciam pensar a mesma coisa.

                Tatiana deu a volta no carro e estava com o corpo enfiado no porta-malas, ainda com o sorriso no rosto. Estava puxando as bolsas e a caixa de transporte de Percival quando ouviu uma voz alterada, estranhamente perto delas. De início, se assustou. Depois se irritou, quando assimilou o que estava acontecendo.

– ... isso tem que acabar! – um homem gritava, da janela de seu carro, parado atrás delas. O motor ficou ligado e os demais ocupantes do veículo permaneceram quietos. O sujeito apontava bravo para o adesivo colado no porta-malas do carro delas – ... essa ditadura gayzista, essa imposição que vocês fazem aos bons costumes, à família tradicional! – ele bradava, nervoso.

– Não fala nada! – Tatiana pede, erguendo uma das mãos, vendo Mariana avançar um passo e proteger Patrícia com o corpo. Seu tronco ficou meio de lado, com Percival impedido de acompanhar à cena.

Por reflexo, Tatiana seguiu o olhar do homem até o adesivo, dO Bistrô, confeccionado em comemoração ao mês do Orgulho Gay. O adesivo não tinha nada demais; era apenas o logo do restaurante, com as cores da bandeira do arco-íris. Embaixo, a frase: “O amor sempre vence!”.

– Vocês deviam queimar no inferno! – o homem berrou, antes de sair levantando uma poeira vermelha com os pneus – Aberrações!

                Tatiana entrega a bombinha de asma para Mariana, antes que a esposa batesse a mão no bolso, à sua procura. Até ela ficou com falta de ar, tomada por uma raiva paralisante. Não valia revidar, nenhuma provocação que fosse, sabia, mas ficar calada também exigia um preço bastante alto. Evitou o olhar de Patrícia, de propósito.

– Vamos fazer o check-in – ela disse, finalmente abaixando o braço, que permaneceu erguido, tentando transmitir calma em sua voz – Lá dentro conversamos, venham.

                Mariana e Patrícia a seguiram, inicialmente de maneira meio robótica, quase automática. Tatiana foi na frente, puxando a mala pequena de rodinhas, com seu short de corrida e camisetinha cor-de-rosa. Era sempre dela a iniciativa de conduzi-las, principalmente em situações que envolviam algum grau de tensão. O choque do ar-condicionado na recepção as trouxe de volta, e as mulheres se olharam, quando tiraram os óculos escuros.

O verde das írises de Patrícia estava num tom mais forte, e mesmo com a vista contraída, Mariana percebeu que a esposa estava com os olhos vermelhos. Reconheceu a raiva naquelas cores e quis abraçá-la, mas se conteve. Conhecia Patrícia e os limites que ela tinha para gestos e afeto em público. A breve troca de olhares, entretanto, quase valeu por um carinho.

– Olá, sejam bem-vindas – a recepcionista cumprimenta, analisando as três mulheres brevemente, depois de pegar o documento de Tatiana. Olhou para a tela do computador por um instante e voltou a encará-las – Espero que tenham feito uma boa viagem! – complementa, não transparecendo na fala a surpresa ao ver as novas hóspedes. Definitivamente não eram nada como ela tinha imaginado.

– Foi sim, grata – Tatiana responde, apoiando a carteira no balcão – Esse agradável senhor que por acaso encontramos no estacionamento há alguns segundos está hospedado aqui? – perguntou, e a funcionária pareceu surpresa.

– Ele... – a mulher dá uma gaguejada, piscando rapidamente – Ele estava de saída, na verdade. Aconteceu algo? Está tudo bem?

– Tudo perfeito – Tatiana responde novamente, mas ao falar olhou foi para Patrícia, e depois Mariana – A reserva está no meu nome, sim? Estou com minhas esposas – ela entrega os documentos de Mariana e Patrícia.

– Sim... – a recepcionista pareceu gaguejar novamente – Claro, dona Tatiana, mas é que aparentemente houve um mal-entendido... – ela digitou algo no computador.

– Sim? – Tatiana levantou uma sobrancelha, ouvindo às suas costas um suspiro de Patrícia, irritado.

– A reserva foi feita para três pessoas, mas não três... adultos – a recepcionista diz, em tom de desculpa – Aqui está a chave. Vou agora mesmo conversar com o gerente e resolver isso imediatamente.

                As três mulheres se entreolham, mas não dizem nada. Não até chegarem no quarto e se depararem com uma cama de casal ao lado de outra de solteiro, menor, nitidamente para ser usada por crianças. Permaneceram em silêncio, sentando-se quietas, cada uma num canto do quarto espaçoso. Percival foi o primeiro a se manifestar, assim que foi liberado da caixa de transporte.

                Mariana sentou na cama menor e se deixou cair para trás, levando um dos braços para cima da cabeça. Patrícia recostou no canto da cama maior, com a lateral do corpo apoiada na cabeceira. Na parede oposta, Tatiana sentou na poltrona, perto da janela. Viu no vão da cortina que a vista era esplêndida, mas não sentiu ânimo para comentar nada a respeito – nem disso e sobre mais nada. Ficaram quietas e o silêncio foi interrompido por uma batida na porta. Tatiana abriu com Percival no colo, para que o gato não escapasse.

– Oi! Sou eu, Elza! – a recepcionista cumprimenta, com um sorriso meio sem graça – Conversei com o gerente e o Hotel pede sinceras desculpas por todos os inconvenientes. Vou levá-las até a suíte principal, é nosso quarto com a maior cama. Vocês ficarão confortáveis e não será cobrado nenhum adicional por isso, é claro – ela sorri para o gato no final da frase – Precisam de ajuda com as malas? – pergunta, vendo que as três não se mexiam.

– Imagina, Elza. Agradeço – Tatiana pega a chave que a recepcionista oferecia, e dá um sorriso gentil – Nós já estamos a caminho, grata novamente – disse, fechando a porta.

– Eu queria ir embora, voltar para casa... – Patrícia resmunga, e todas já esperavam pelo comentário, exatamente no tom em que foi feito.

– Eu sei, amor. Mas ficaremos, e vai ser bom, Pati. Vamos para o outro quarto, isso já foi resolvido, o cara do estacionamento já foi embora, então está resolvido também. Nosso plano era só aproveitarmos um pouco das comodidades de um hotel. Vamos aproveitar. Vem, meu amorzinho – Tatiana estende a mão para Patrícia e para Mariana, que parecia igualmente desanimada.

                As duas cedem porque Tatiana tinha razão. De alguma forma acreditaram que os perigos da viagem estavam todos sanados e seguiram quietas até o terceiro e último andar do hotel. O elevador moderno contrastava com a rusticidade dos móveis lá fora, todos de madeira, típicos de fazendas antigas. O novo quarto ficava no final do corredor atapetado e era ainda maior que o anterior, tinha quase o dobro do tamanho.

A cama grande ficava perto da janela, por onde entrava uma brisa fresca e dava para uma vista privilegiada para o lago, que praticamente dava a volta no casarão e parecia se emendar com a piscina com tobogã, localizada mais nos fundos, alguns metros afastada. Desta vez, quem se admirou contemplando a paisagem foi Mariana, enquanto Tatiana folheava o cardápio que encontrou perto da tevê e Patrícia tirava os tênis.

– Amor, eu sei que você precisa comer, mas eu não saio daqui até o ano que vem – Patrícia diz, deitando na cama. Abriu os braços para Mariana, de maneira convidativa, quando ela a olhou, e a mulher deitou ao seu lado, se aconchegando dentro do seu abraço.

Nós precisamos comer – Tatiana corrige, sentando perto delas – Mas podemos almoçar aqui, não me oponho nadinha a ficarmos enfurnadas neste quarto – ela deixa o cardápio de lado e tira o tênis também. Cruzou as pernas em cima da cama, ainda com as meias – Podemos pedir para que a ceia seja igualmente servida aqui – Tatiana se encosta nas pernas de Mariana, e volta a pegar o cardápio no instante em que Patrícia passa a mão em seu cabelo.

– A Tati reservou a ceia e mesmo assim você trouxe lanchinho para ela? – Mariana pergunta, depois de alguns segundos, com o rosto enfiado no pescoço de Patrícia. Sua voz saiu abafada.

– Esta é a nossa mulher! – Tatiana responde, sorrindo, em tom de gracejo.

– É, porque ela precisa comer direitinho, ué – Patrícia diz, junto com a esposa.

– Você são umas graças – Mariana responde, sorrindo antes de inclinar a cabeça e beijar Patrícia, mais acima, no travesseiro.

– Por quê?, só porque eu me preocupo com ela? – Patrícia estava sorrindo. Deu uma piscadinha para Tatiana, que sorria também, e entrelaçaram os dedos – Como a Tati tem esse negócio no intestino, se comer comida errada, fermenta, aí passa mal... Não gosto de ver vocês doentes – complementa, com um biquinho.

– Ela já era assim antes, Mari – Tatiana revela, ainda de olho no menu – Você acha que ela abriu um restaurante por quê? Era ou isso ou eu teria que comer por todo o mundo.

– Acho que fez muito bem, então – Mariana se vira, e puxa Tatiana para que ela se deite também. A mulher se encaixa às suas costas e com o movimento, o cardápio foi parar debaixo da cama – O Bistrô precisava existir, para a gente se achar!

– A gente daria um jeito de te encontrar, amorzinha. Não tenha dúvidas – Patrícia afirma, dando em Mariana um beijo bem molhado. Com a mão desocupada, puxou Tatiana para ainda mais perto, por cima da mulher, prensando-a no meio delas.

– Ou então você nos acharia de algum jeito, que eu sei – Tatiana complementa, a beijando também, quando Mariana se virou em sua direção – Amo você, meu amor.

– Amo também – Mariana responde, a voz saindo num fio. Os beijos de Patrícia deslizavam em seu pescoço e as mãos de Tatiana percorriam suas pernas – Te amo, Pati! – ela consegue dizer, baixinho, as palavras transbordando sinceridade e desejo.

– Também te amo, querida. Muito! – Patrícia responde, gemendo sem querer. Voltou a falar após alguns segundos, depois de mais um beijo em Mariana – Mas não podemos nos empolgar muito, meninas... Tati precisa comer, já deu o horário – sua fala saiu entrecortada pelos beijos que dava e recebia. E ainda que dissesse uma coisa, agia de maneira completamente oposta e ainda alisava as duas mulheres na cama.

– Uhum... já, já a gente come – Tatiana resmunga, atrás de Mariana. Puxou a camiseta da mulher para cima da cabeça, beijando suas costas, provocando gemidos e arrepios em toda a extensão da pele – Vamos comer, sim, Pati... Vem!

– Ai, Tati... – Patrícia geme, junto com Mariana, ao sentir a boca da esposa sugar seu mamilo, suavemente, mas com nítida vontade – Muito gostosa, mas precisamos mesmo comer.

                Patrícia interrompe as carícias e levanta de repente, entregando a camiseta para Mariana, que permaneceu despenteada sobre os lençóis. Sua respiração estava agitada, mas de um jeito bom. Patrícia sorriu quando Tatiana resmungou, fazendo uma careta, e foi consolada por Mariana, que a beijou de maneira demorada.

– Vai, me ajuda a escolher a comida – Patrícia cutuca Tatiana com o cardápio, depois de encontrá-lo no chão, perto do tênis da esposa – Vai, amor – ela insiste, quando as duas não interrompem o beijo – Vamos ter tempo para isso depois...

– Ah! – Tatiana pareceu irritada, mas durou dois segundos – Nunca imaginei que a restrição alimentar fosse englobar também essa delícia – ela lambe a boca de Mariana, que sorria para ela, com a cara que sempre fazia quando estava com tesão. Depois lambeu seu pescoço, o colo e o seio esquerdo – Gostosa!

– Sobre o almoço, Tati... – Patrícia parecia impaciente, mas tinha a sobrancelha levantada de um jeito amigável. Ficou balançando o menu perto delas.

– Sim. Almoço antes. Sobremesa só depois! – Tatiana pisca para Mariana, que ri com o comentário – Esse prato aqui parece bom, ó, estava vendo agora há pouco. Podemos só pedir para tirar o feijão, por garantia – ela aponta para o cardápio, e beija Patrícia na sequência – Eu quero muito comer você, Pati!

– Eu sei que quer – Patrícia estava rindo – Mari, você divide comigo, ou quer escolher? Aqui diz que serve duas pessoas.

– A gente divide, aham – Mariana responde, de olhos fechados. Ainda estava com o dorso nu e seu cabelo subia, acompanhando a direção dos braços, escorados na cabeceira da cama – Pati, eu quero te comer também... – ela resmunga, tirando bem devagar o short e a calcinha. Tatiana aplaude, satisfeita em ver a cena.

– Abriu ainda mais meu apetite, uau, que gostosa! – Tatiana exclama, contornando o corpo da mulher, que chutou a roupa para o chão – Bela entrada, Mari! Um banquete inteiro! – ela pula entre as pernas de Mariana, a abrindo sutilmente, e a lambe com gosto, de baixo até em cima, arrancando da esposa um gemido profundo e sincero.

– Oi, serviço de quarto? – Patrícia falava ao telefone, sentada ao lado, e tampou o bocal do aparelho quando Mariana gemeu – Isso, quero pedir dois pratos do menu. É, quero que entregue no quarto, por favor. Posso falar?

Patrícia fez o pedido do almoço com o olhar cheio de lascívia, vendo de camarote a chupada que Mariana satisfatoriamente recebia antes de comerem. Tatiana estava empenhada entre suas pernas, meio de cócoras sobre o colchão, segurando a bunda da mulher com uma das mãos, a outra sustentando o próprio corpo na cama. Mariana mantinha o tronco elevado, o corpo apoiado sobre os cotovelos. Sua cabeça pendia um pouco para trás e os olhos, entreabertos, pareciam dois riscos, duas fendas curtas o suficiente apenas para encará-la, sorrindo. Sua feição era um convite que Patrícia jamais recusava; amava ver tanta luxúria em seu olhar. O cabelo balançava conforme Mariana rebolava, e os movimentos eram coordenados com os sons que surgiam do fundo de sua garganta, de dentro do seu âmago. Puro gatilho! Uma cena fantástica, Patrícia nunca se cansaria de assistir.

– Quanto tempo? – Tatiana ergue a cabeça quando a esposa desliga o telefone. Seus olhos pareciam pegar fogo e ela tinha no rosto uma expressão selvagem. Combinava com o cabelo bagunçado.

– Pouco tempo, temos pouquíssimo tempo... – Patrícia responde, com malícia, pulando na cama e beijando Tatiana antes de passar a língua onde a mulher estava lambendo. O novo toque fez Mariana gemer de novo, alto, como anteriormente, e abrir um pouco mais as pernas, se oferecendo para elas – Mariana atiça o apetite mesmo, que mulher gostosa!, bem que você disse. É um verdadeiro banquete de ano novo, digno de se comer com vários talheres – ela sorri, antes de se abaixar e encostar a língua mais uma vez no mesmo local, que pulsava com o contato. O movimento arrancou um suspiro também de Tatiana, que tirou a blusa de Patrícia antes de beijá-la.

– Temos que ser rápidas, se temos pouco tempo – Tatiana cochicha, tirando a camiseta também. A fala fez Mariana gemer em expectativa, e de novo, quando Tatiana voltou a se posicionar entre suas pernas – Vem, amor, vamos daquele jeito que ela goza rapidinho.

                As duas se abaixaram ao mesmo tempo e Mariana ficou acompanhando à cena apoiada nos cotovelos, o sorriso insistindo em não abandonar o rosto, traduzindo parte do que sentia naquela tarde ensolarada. A respiração das mulheres estava bem próxima à fonte do seu tesão, que vibrou com a presença delas ali, tão perto e ao mesmo tempo tão longe de onde desejava que estivessem.

Mariana era a única a estar inteiramente nua, e se contraiu quando Tatiana e Patrícia voltaram a se erguer e se beijaram. Foi um beijo longo, demorado, seus braços enlaçando os dois corpos como cadeados, cheios da cumplicidade que só um relacionamento como o delas conseguia proporcionar. Mariana gostava disso; adorava quando as duas se beijavam assim, sempre tinha vontade de participar – do beijo e do casal. Foi um beijo entre elas que a fez querê-las, afinal.

                E agora, como sempre, o que mais desejava era que a beijassem também. De preferência antes de o almoço chegar. Por isso deslizou pelo colchão, se esfregando nas mãos delas, de um jeito bem explícito. O gesto fez as duas sorrirem, e Mariana conseguiu a atenção que desejava.

Primeiro, Patrícia passou a língua em volta de seu clitóris, como sempre fazia antes de sugá-lo de leve, pressionando com a ponta dura da língua. Quando Mariana gemeu mais alto ela parou e Tatiana assumiu o beijo, passando a língua quente bem no meio, no ritmo rápido que só ela conseguia. Elas se revezaram assim por duas ou três vezes, deixando Mariana encharcada, gemendo cada vez mais alto. Ela só não gozou porque bateram na porta.

– Não! – Mariana reclama, num tom de lamento, quando o garçom voltou a bater na porta, desta vez mais forte, anunciando o serviço de quarto – Amor... Não, por favor...

– Um minuto! – Patrícia fala em direção à porta, mas seu olhar estava deitado em Mariana – Um minuto! – repetiu mais baixo, agora para Tatiana, que sorriu com malícia e voltou a se empenhar no que vinha fazendo.

                Desta vez, Mariana sentiu as duas a beijarem ao mesmo tempo, sincronizadas, quase, junto com sábios dedos que deslizaram de maneira estratégica e coordenada, do jeito que só as esposas sabiam. Elas conheciam muito bem o seu corpo, que se contraiu inteiro com a movimentação e Mariana sorriu sem querer quando ouviu uma tossida vinda do outro lado da porta. Tinha só alguns segundos e não demorou a gozar, em silêncio, sua mão tampando a própria boca para não fazer barulho, apenas a respiração passando entre os dedos.

O único som que ouviu durante os espasmos do orgasmo foi o do seu próprio coração batendo forte e os suspiros de satisfação vindos das mulheres que amava. As duas ficaram ainda alguns segundos agachadas entre suas pernas, sugando dela o tesão que parecia agora vir a galopes, em contrações que refletiam na ponta dos dedos dos pés.

Antes de se vestir e levantar para atender à porta, Patrícia se arrastou até a cabeceira e beijou Mariana com vontade. O mesmo desejo foi sentido no beijo que ela ganhou de Tatiana, na sequência, quando a mulher deitou ao seu lado e as cobriu até a cabeça com o lençol, antes que o garçom entrasse com as refeições. Ambas permaneceram quietas, Mariana ainda com a respiração agitada. Tatiana ficou a encarando com cara de faminta.

As duas saíram da “cabaninha” improvisada com o lençol quando Patrícia fechou a porta, depois que o garçom deixou o quarto.

– Ganhamos um mimo de Réveillon do hotel – Patrícia mostra uma garrafa de champanhe, que ela tirou de uma cesta de vime.

– Queijo, vinho, uva, espumante... – Tatiana foi retirando os itens da cesta – Isso é um mimo ou eles querem nos embriagar?

–  É ano novo. Óbvio que nos querem bêbadas – Mariana afirma, colocando a calcinha e levantando a tampa dos almoços. Pegou uma batata frita de um dos pratos – Amor, você podia beber com a gente hoje – fala, para Tatiana – Só hoje, Pati – ela se apressa em dizer, encarando Patrícia – É ano novo!

– Isso não é motivo para exceções – Patrícia diz, ajeitando os pratos na mesa redonda que ficava no canto do quanto. Pelas marcas que viu no tapete, a terceira cadeira não fazia parte do arranjo usual – É? – pergunta para Tatiana, que permanecia quieta, o que geralmente era um tipo de resposta.

– É ano novo, posso abrir uma única exceção, pontual – Tatiana responde, para a alegria de Mariana.

– Isso, garota! Amanhã a gente que lute, de ressaca!    

– Não se empolgue tanto, Mari... – Patrícia pede, puxando duas cadeiras, para elas sentarem – Nem você, Tati.

– Não vou – Tatiana manda um beijo para Mariana, que ainda fazia uma dancinha, comemorando.

– Nem precisa – Mariana fala, finalmente se sentando – A Tati nunca bebe, o pouco que beber vai ser o suficiente. Vai ficar louca do cu – ela balbucia para Tatiana, e brinda batendo seu suco no copo da mulher, que sorri – O mínimo é a gente beber tudo o que ganhou – ela indica com a cabeça a cesta cheia de álcool, enviada pelo hotel.

– Não dá para prometer isso – Patrícia diz, antes da primeira garfada.

– É o mínimo, fechou – Tatiana responde, simultaneamente. Parou de sorrir com o brinde, quando viu a cara que a esposa fazia.

– Não vou ser eu a estraga-prazer dessa festinha – Patrícia diz, depois de engolir – Vocês são adultas, sabem bem o que fazem – ela olha para Tatiana e levanta os ombros.

– Isso, amor. A festa é nossa – Mariana retruca, de boca cheia. Foi a única na mesa que não notou a mensagem não-verbal que Patrícia enviava com o seu gestual.

– É uma exceção de ano novo, alguns drinques com minhas mulheres, num hotel no meio do mato, e nada mais. Estamos seguras, Pati – Tatiana fala, remexendo a comida com o garfo. Sentiu um aperto que não atribuiu de imediato à síndrome do intestino irritável.

– Eu trouxe um baseado – Mariana revela, num tom confessional, falando bem baixinho.

– Você... – Patrícia largou o garfo no prato, olhou de relance para Tatiana e voltou a encarar Mariana – ... trouxe maconha para o hotel? Está maluca? E se a polícia parasse a gente na estrada? E se eles têm cães farejadores? Onde você escondeu essa droga, Mariana?

Um baseado – Mariana fez uma careta, amenizando o discurso sério de Patrícia. Olhou rápido para Tatiana, que permanecia séria, antes de continuar – O Percival inibiria a ação dos cachorros. Polícia rodoviária não costuma ter cão farejador, amor! – ela fala depressa, rindo – É só um baseadinho, Pati. Está bem escondido, polícia nenhuma acharia.

– Eu não me responsabilizaria... – Patrícia resmunga – Responsabilizo! Não me responsabilizo por vocês! – ela se corrige, voltando a almoçar.

– Não sei, não, Mari – foi a vez de Tatiana se manifestar – Da última vez, dona Patrícia fumou maconha e ficou meio transtornada, me deu muito trabalho. A não ser que você se responsabilize por ela.

– Hum, será? – Mariana estava rindo de novo – Posso pensar no caso dela! Será que você me daria trabalho, dona Patrícia?

– Tudo para vocês é piada, tudo é engraçado – apesar do que dizia, Patrícia estava rindo também – Come, amor.

– É, come, amor – Mariana repete, vendo que Tatiana mal tinha encostado na comida – O que foi?

– É, não sei – Tatiana leva a mão à barriga. Assim como Mariana, também estava sem camiseta – Algo não caiu bem, eu acho...

– Não sei o que pode ter sido – Patrícia remexe o prato dela com seu garfo. Não havia nada ali “proibido” – Foi o tempo, Tati – ela constata, na sequência – Você ficou um período muito grande de tempo sem comer. Por isso que eu não gosto de sair da rotina, bagunça tudo!

– Já vai passar – Tatiana diz, mas para Mariana, que segurava sua mão.

– Por isso que me preocupo em trazer lanchinho – Patrícia resmunga, quando Tatiana sai para o banheiro – Mas não adianta se ela não come!

– A culpa é minha. E do hotel, que errou o nosso quarto! – Mariana diz, enchendo a boca – Atrasou tudo, foi isso. Seja gentil com ela, amor.

– Eu sou! – Patrícia se defende.

– Eu sei! Só estou dizendo... – Mariana levanta os ombros, vendo a esposa retornar ao quarto – Melhor, amor?

– Estou, um pouco, minha gatinha – Tatiana para atras dela e dá um beijo no topo de sua cabeça – Você está certa, amor, foi o tempo – ela diz para Patrícia. Ao sentar, beijou a face da mulher – Vou tomar mais cuidado, prometo. Farei lanches regulares. Curta seu dia de férias, não se preocupem comigo.

                Ela volta a almoçar, talvez mais para agradar às mulheres, porque se sentia sinceramente sem apetite, e a comida já estava fria.

– A banheira parece bastante convidativa – Tatiana diz, no fim do almoço – Podíamos tomar banho depois da digestão.

– Podíamos ver um filme, fazendo a digestão. E depois banho de banheiro, quero – Mariana fala, bocejando.   

– Você vai acabar dormindo se a gente assistir tevê – Patrícia diz, passando a mão em seu rosto – Já está quase dormindo, e ainda está sentada.

– Uhum – Mariana resmunga, apoiando a cabeça na mão do afago – Eu tiraria um cochilo, mesmo. É cansativo viajar – ela boceja de novo – Deita comigo?

– Claro, querida – Patrícia dá a mão para ela – Vem, amor.

– Vou, já, já – Tatiana responde, sem tirar os olhos do celular. Estava pesquisando qual das bebidas era menos danosa à sua saúde, para ver o que beberia mais tarde. Pretendia se embebedar, mas não morrer.

                Ela acabou se distraindo e ficou longos minutos entretida com o aparelho. Era sempre fácil se render aos encantos da internet e Tatiana só percebeu a passagem do tempo quando bateram na porta, para retirar as bandejas. Viu que Mariana dormia apoiada no peito de Patrícia quando as cobriu, antes de se vestir e abrir para o garçom.

– Amor, vou dar uma voltinha, tá? – ela cochicha para Patrícia, que assistia um programa de reforma de residências – Vou conhecer o hotel, volto já.

– Leva o celular, Tati – Patrícia balbucia, tomando o cuidado de tampar a orelha de Mariana com a mão.

                Tatiana manda um beijinho no ar e fecha a porta. Seu chinelo foi afundando no tapete do corredor, e ela decidiu descer de escada, que tinha um corrimão dourado e gelado acompanhando os degraus.

                O hotel era bastante silencioso, tudo o que se ouvia era só um ruído eventual, vindo de alguma máquina distante dos olhos. Lá fora, Tatiana constatou que ainda que houvesse a ausência de barulho, a quantidade de sons era muito maior. Ao sair do saguão por uma porta lateral, notou que o lago que circundava o hotel nascia de uma fonte, aparentemente natural, que fazia brotar um fio de água no meio das pedras. Caminhou até a beira apreciando a natureza, e nem percebeu que não estava sozinha.

– Muito bonito, né – Elza diz, sentada na grama. Ela estava descalça e com as costas apoiadas no tronco de uma árvore.

– Sim, é demais – Tatiana responde. Quase não reconheceu a recepcionista sem o uniforme do hotel, e de cabelo solto – Sombrinha boa essa que você foi arranjar, hein! Nem te vi aí!

– É, esse é meu cantinho especial. E privilegiado! – a mulher sorri, dando uma mais tragada no cigarro, antes de continuar – Tenho que aproveitar as horas de pausa, antes do plantão de ano novo.

 – Ah, você vai trabalhar...

– É, mas já me acostumei. Não tenho datas festivas desde que comecei a trabalhar em hotel. Faz parte. E por sorte, além de vocês, só tem hóspede em mais dois quartos, então vai ser tranquilo.

– É, sei como é. Com exceção do Réveillon, não temos muitos feriados em família também. Nós temos um restaurante.

– Ah, que demais! Vocês gerenciam juntas?

– Não, na verdade só a minha esposa Patrícia trabalha lá. Ela é a chef. Eu sou professora de Artes, na rede pública. A Mariana tem uma empresa de TI – ela complementa, depois de alguns segundos.

– Que versáteis, adorei! – a mulher pareceu sincera.

– O lago se emenda na piscina? – Tatiana pergunta, com a mão sobre os olhos, tentando ver até onde a água ia.

– Sim e não. Tem uma emenda no meio. É muito bonito, à noite fica tudo aceso. As luzes lembram estrelas, só que na água.

– Boa, Elza. Espero me lembrar disso mais tarde – Tatiana sorri, mas muda a expressão ao ver dois homens vindo em sua direção. Desviou o olhar quando o maior a encarou – Bom descanso e bom trabalho mais tarde – ela diz, e entra no hotel.

                Apressou o passo para pegar o elevador sozinha, avaliando em milésimos se deveria correr escada acima. Que bobagem, Tatiana, ela pensou, se sentindo de novo uma menina com medo de fantasmas, depois de apagar a luz. Só que crescida, e durante o dia.

                Em geral não era tão antissocial, mas se sentia ressabiada, preferiu evitar contato com estranhos, e apertou o botão do terceiro andar várias vezes, até que a porta do elevador começasse a fechar. Foi então que suspirou, o corpo todo se desarmando da posição de ataque, de fuga. Às vezes era preciso concordar com Patrícia: sair de casa parecia sempre tão arriscado!

                O pensamento desanuviou ao abrir a porta do quarto e ser recepcionada por Percival, que miou como se a cumprimentasse. O gato estava mesmo apegado a ela, era fato!

– Ah, acordou – ela diz, vendo Mariana desperta, embora parecendo ainda sonolenta, com a cabeça apoiada no ombro de Patrícia, que acariciava seu rosto.

– Sim, e aí não te vi! Onde a bonita estava? – Mariana pergunta, se fingindo de zangada – Estava de papo com alguma sirigaita, na beira do lago, né. A Pati viu.

                Tatiana riu. E riu de novo, quando Patrícia permaneceu séria.

– Era a recepcionista, falamos amenidades. Que ciumentas! – Tatiana riu de novo.

– Amor, você não invente de trazer mais gente para esse casamento, hein – Mariana tentou falar séria, mas riu ao final – Já tem muita mulher para você dar conta – ela se levanta e a abraça. Lambeu seu pescoço, antes de beijá-la.

– Muita mulher, uhum – Tatiana concorda, dentro do beijo.

– Eu não me oponho a mais uma – Patrícia brinca, saindo da cama também. Riu alto quando as duas pararam de se beijar e a encararam – Que caras maravilhosas, nossa, merecia uma foto! – ela enquadra as duas com os dedos, como se as fotografasse – É brincadeira. Já tem muita mulher mesmo para darmos conta – deu a mão para as duas, e foram juntas para o banheiro.

                A banheira de hidromassagem era moderna, e se destacava no ambiente amplo e branco. Era tão grande que tinha espaço para até cinco pessoas e ficava estrategicamente posicionada perto da janela, de quina, com vista particular para o topo de alguns coqueiros, que preservavam a privacidade. Mais ao fundo, antes do morro, era visível parte da piscina.

– A gente vai passar a virada aqui, sim ou com certeza? – Mariana tirou a calcinha e entrou na banheira, que enchia rapidamente – Vamos brindar, quero postar uma foto segurando a taça com essa vista de fundo – ela fica em pé, a água já quase no joelho.

– Bela vista de fundo – Tatiana tira uma foto, pegando a bunda de Mariana de propósito. Mostrou o celular para Patrícia, que se despia.

– É, incrível! Não é muito cedo para beber, Mari?

– Só um brinde, Pati – Mariana responde, virando-se para elas. Sentou apoiando os braços nas bordas da banheira – De ano novo.

– Qual vai ser a desculpa quando janeiro chegar? – Patrícia quer saber, sentando no espaço ao lado dela.

– É ano novo até fevereiro – Mariana ri – Ah, essa é a minha garota! – ela exclama, quando Tatiana entra no banheiro com uma garrafa de vinho e três taças, presas pelas hastes entre os dedos – Me lembra de tirar a foto depois, amor.

– Já tira, Mari. Depois a gente sempre esquece – Tatiana recomenda, entregando para elas duas taças servidas até quase metade. A sua tinha menos de um dedo.

– Assim você não vai se embebedar... – Mariana reclama, ajustando o foco do celular na melhor inclinação para a foto.

– Com vinho eu preciso ir devagar mesmo, gata – Tatiana justifica.

– Ela já quase morreu com vinho! – Patrícia fala, brava com ela.

– Pati... – Tatiana repreende, no instante em que Mariana abaixa o celular. Ela não diz mais nada, mas balança a cabeça, em reprovação.

– Desculpa – Patrícia pede, primeiro para Tatiana, depois para Mariana – Desculpa, amor. Só não estou confortável com a ideia de vocês beberem.

– Talvez porque esteja sóbria – Mariana rebate, sorvendo um longo gole de sua bebida. Ficou encarando a mulher por cima da taça, com uma sobrancelha levantada – Bebe comigo, Pati.

– Ainda está dia... – Patrícia alega, levantando os olhos.

– E? – Mariana volta a beber mais vinho, e completa a taça antes de saborear mais um gole bem servido – Último dia do ano. Bebe comigo. A Tati é café com leite, mas você não. Ou você tem medo?

– Eu não sou café com leite! – Tatiana senta entre as duas mulheres.

– Medo do quê? – Patrícia pergunta. Seus olhos sorriam, mas seus lábios se mantinham sérios.

– De entregar o controle, Patrícia.

                Tatiana ri, porque o argumento de Mariana era válido. Se segurou na borda da banheira e foi até o outro extremo, para vê-las por um ângulo melhor. Apreciava que Mariana tivesse sempre boa munição e disposição para entrar em discussões que ela mesma já não se arriscava mais sequer iniciar.

– Eu não tenho medo – Patrícia finalmente fala, e bebe um pouco do vinho.

– Ótimo. Temos as três garrafas que ganhamos, os dois champanhes que trouxemos e o baseado – ela bate na tela do celular, para ver as horas – Temos até meia-noite para bebermos tudo, o que nos dá... – Mariana levanta a cabeça, a lente dos óculos respingada com a água da banheira refletindo contra a luz – Uma garrafa por hora, ou duas taças e meia a cada 45 minutos, se bebermos no nosso ritmo normal.

– Ok, mas saiba que ninguém vai zelar por nós, se estaremos as três bêbadas – Patrícia vacilou alguns instantes antes de segurar a mão que Mariana oferecia para selar o acordo.

– A ideia é essa – Mariana ri.

– Estamos bem, num hotel quase vazio, segundo a recepcionista – Tatiana volta a se movimentar para perto delas e puxou as pernas de Patrícia para o seu colo.

– Ao descontrole, então – Mariana brinda, encostando o vidro na taça das esposas – Vamos tirar uma foto, enquanto estamos bem ainda.

                Ela desbloqueia o celular e o entrega para Patrícia, na ponta da banheira, antes de se ajeitarem. Sorriram para um registro só delas.

                As três passaram horas mergulhadas numa água que foi se renovando conforme a noite foi chegando. Saíram depois esvaziarem três garrafas, devagar porque o chão parecia meio instável.

– Esse hotel é mesmo maravilhoso – Mariana diz, com a voz embargada, andando nua pelo quarto – O quarto é muito bom, a cama, boa, a banheira, então... boa também – foi listando nos dedos, conforme falava – Queijo? Bom. Não, queijo ruim! – ela se emenda, vendo Tatiana comer.

– Só um pedacinho – Tatiana enfia mais três pedaços de queijo na boca.

– É a exceção dela. É a culpa sua – Patrícia diz, se embolando com as palavras, apontando o dedo para Mariana – Desregula a dieta dela.

– Para, Pati – Tatiana pede. Levantou a mão pedindo calma quando comeu mais queijo – Para, Mari – complementou, antes que Mariana dissesse algo também – E o baseado?

– Se antes de fumar já está comendo como um dragão, imagina depois de fumar – Patrícia desabou na cama, sem roupa. Riu quando Mariana se jogou ao seu lado, literalmente pulando na cama.

– Vamos fumar depois da ceia, dragão – Mariana riu para a esposa – Senão você se estraga muito, a chefia tem razão. A chef – ela se corrige, mas porque riu, Patrícia entendeu que a fala não tinha sido um engano.

                A quarta garrafa estava na metade quando bateram na porta, para a ceia. Mariana ficou encarregada de se vestir e receber a comida, e a última refeição do ano foi saboreada sem que usassem roupas.

– Falta uma hora para o ano novo, uma garrafa de champanhe e um baseado – Mariana diz, a voz mole por conta do álcool já consumido. Piscou demoradamente depois de um soluço, ouvindo no corredor os pratos do jantar sendo empurrados dentro do carrinho do hotel.

– Deixou por último o champanhe com o maior teor alcóolico – Patrícia diz, sorvendo um gole do espumante que tinha em sua taça.

– Exatamente – Mariana volta a piscar de maneira demorada, concordando com a cabeça. Se esforçou para se levantar e tirou de dentro da mochila uma bolsa de pano, e de dentro, um par de meias, embolado numa espécie de bolinha, e de dentro sacou o baseado, meio amassado – Abrimos o champanhe quando der meia-noite, fumamos agora? – a pergunta saiu num tom de afirmação.

– Tá, mas deixa eu me preparar. Por favor, coloquem roupa. Não quero vocês loucas e peladas andando pelo hotel, no meio do mato – Patrícia resmunga, vestindo a blusa com certa dificuldade.

– Não, ninguém nua – Tatiana concorda, e vê Mariana separar o biquíni de dentro da mochila – Biquíni vale – ela pega a peça que a esposa lhe entrega, mas não veste – Amor, está do avesso.

– Ah... – Patrícia puxa a etiqueta da roupa, logo abaixo do queixo.

– Gente, pera que eu não trouxe isqueiro – Mariana tira tudo de dentro da mochila, até as mínimas coisas, guardadas nos bolsos laterais – Será que na recepção tem? Cadê o menu?

– Parece um sinal – Patrícia brinca – Parece, ué! – ela insiste, quando as duas a encaram – Puxa aí o telefone, Tati. Vamos ver se a sua amiga tem fogo – provoca.

– Ela tem. Ela fuma cigarro! – Tatiana se apressa em dizer – Mas no serviço de quarto deve ter também.

– Oi, recepção? – Patrícia pergunta e Tatiana vira os olhos enquanto Mariana ri – Oi, Elza. Tudo bem, e você? Que bom, queria ver se você poderia nos ajudar, nos emprestando um isqueiro. Ah, você faria essa gentileza? Que ótimo, maravilha, agradeço! – ela desliga o telefone – A amiga da Tati vai trazer aqui.

– Você está mais vestida, dona avesso. Pode buscar – Tatiana aponta para a roupa de Patrícia, levantando a coberta para se esconder com Mariana na cama.

– Eu acho incrível a quantidade de vezes que vocês duas discutem sem falarem nada – Mariana cochicha, baixo o suficiente para que só Tatiana a ouvisse. Patrícia estava na porta, falando algo com a recepcionista do hotel.

– Faz parte, amor... – Tatiana tenta desconversar.

– Não, não estou criticando. É só uma observação – Mariana vê um clarão através do lençol, do isqueiro aceso na mão de Patrícia, e por isso se descobre – Hora da velinha.

                Ela senta na cama, acompanhada de Patrícia e Tatiana, que sentam ao seu lado. Ficaram olhando a mulher acender o baseado, com atenção aos movimentos que ela fazia.

– Quem me deu garantiu que essa erva é da melhor qualidade, diz que dá uma brisa boa – Mariana diz, puxando a fumaça e segurando.

– Por ser forte? – Tatiana quer saber.

– Quem que te deu? – Patrícia pergunta também.

– É forte, sim – Mariana responde, passando para Tatiana – Um amigo me deu, amor. Você não conhece – ela fala para Patrícia – Sentiu o gostinho, amor?

– Sim, é bom, mas não sei se sei tragar ainda – Tatiana fala, puxando um trago forte, tossindo na sequência, se engasgando com a fumaça.

– Vai devagar... – Patrícia começa a dizer, mas logo se cala – Ou não – ela se emenda, antes de pegar o baseado das mãos de Tatiana.

– Dá pegão, Pati – Mariana a estimula, já com os olhos baixos – Fuma sem dó, vai.

                Patrícia deu. Puxou forte, sentiu o gosto da maconha enquanto Mariana a incentivava a fumar, mesmo. E a voz da mulher ficou ecoando na sua cabeça durante um tempo, quando o próprio tempo começou a passar diferente depois que ela deu o primeiro trago naquele baseado. Depois, foram as risadas de Tatiana que começaram a ricochetear em sua mente, animadas e emendadas à sua própria risada e à de Mariana, que riam não se sabe do quê.

                Os acontecimentos passaram a vir em forma flash, desde as conversas até o fim do beque, passando pelo champanhe aberto à meia-noite, depois de uma contagem regressiva particular, às risadas (foram muitas!), elas se vestindo e saindo do quarto, rindo, ao chão macio do corredor, que Patrícia sentiu com a pele da bochecha. Tatiana disse algo sobre estrelas na água, e caminharam determinadas para a parte de fora do hotel, mas levaram uma infinidade de tempo descendo as escadas, foram parando a cada degrau. Faltava forças para andar; estavam muito bêbadas e riam muito, de tudo.

                Quando se deu conta, estava em pé na beira da piscina, uma das mãos apoiadas na saída do toboágua. A taça em sua mão estava vazia, e brilhou quando a água respingou nela, depois que Tatiana e Mariana pularam na piscina.

– Oh, não – ela disse, primeiro, rindo. As duas estavam de biquíni, Mariana vestia uma camiseta branca, que ficou boiando na água. Depois, Patrícia viu ao fundo o que pareceu ser o formato de dois corpos, que nitidamente se esconderam quando ela os viu – Oh, não – repetiu, agora em outro tom, mais preocupado. Foi como se de repente ficasse sóbria, a pele na frente das orelhas ficou estranha e rapidamente gelada, num sinal de alerta que ela não poderia jamais ignorar, mesmo que estivesse embriagada – Vem! – Patrícia disse, a voz saindo mais baixa e mais fraca do que gostaria – Amor, Mari.

Patrícia as chama, mas as mulheres não a escutam e ela se desespera ao ver dois homens se aproximarem da área da piscina. Sentiu a etiqueta da camisa arranhar o queixo quando virou o pescoço, avaliando se deveria pular para salvar as duas, ou se seria mais útil na superfície. Ainda estava analisando o que fazer quando o primeiro pulou na água. O segundo, maior, ficou do lado de fora, mostrando os dentes como se sorrisse, mas para Patrícia, pareceu mais uma ameaça.

– Amor... – ela balbucia, e vê Mariana se assustar com a presença do estranho. No mesmo instante, viu a mulher puxar a mão de Tatiana e as duas nadarem em direção à escada, mas pararam quando o outro cara se posicionou no alto dos degraus – Deixe-as em paz! – Patrícia gritou, levantando o limpador de piscina, que tinha o cabo comprido, ameaçando o sujeito que permanecia seco.

– O que, maluca? – o rapaz pergunta, instintivamente levando a mão ao rosto, estranhando a reação da mulher. Olhou para o amigo dentro da água, que parecia confuso também.

– Pati, tudo bem – Mariana senta na borda da piscina e sai. Caminhou em sua direção depois de auxiliar Tatiana a sair da água também – Vamos para o quarto, vem.

                As três seguiram descalças para dentro do hotel, andando rápido e compartilhando da sensação de uma estranha e repentina sobriedade. Um choque de realidade nada bem-vindo, capaz de despertar até os sentidos mais dormentes e alcoolizados.

– Foda ser mulher – Tatiana reclama, trancando a porta do quarto.

– Foda, sim, a gente nunca se sente segura, em nenhum lugar – Patrícia concorda, vendo Mariana tirar do bolso do short molhado o isqueiro da recepcionista. A mulher colocou os óculos para ver melhor o estrago, e constatou que o isqueiro não acendia mais. Patrícia sorriu vendo a cena.

– Que a gente sempre tenha locais seguros para nos protegermos. Juntas – Mariana diz, soltando o isqueiro e segurando as mãos das duas – Amanhã a gente volta cedo para casa, e se der passamos a próxima virada do ano ainda mais isoladas. Ou nem saímos, ficamos por lá mesmo...

– Sinto muito, querida – Patrícia diz, dando um beijo nela.

– Tudo bem. O importante são vocês. O lugar é o de menos – Mariana afirma, dando um beijo também em Tatiana.

                As três dormiram enroscadas, ainda um pouco embaladas pelo álcool, presente em seus organismos. Na primeira manhã do ano, quando Tatiana acordou, precisou se esforçar para resgatar as lembranças da noite anterior. Ainda estava puxando os detalhes da memória quando pediu para entregarem o desjejum no quarto, e quando bateram na porta, alguns minutos depois. Serviu uma xícara quase até a borda e despertou devagar, vendo a vista calma do lago.  

                Patrícia e Mariana não acordaram até que o café terminasse, e Tatiana foi chamá-las, mesmo não gostando de acordar nenhuma das duas. Mas queria ir para casa, não tinha dormido muito bem, se sentia cansada, mesmo de férias, num hotel maravilhoso.

                Na saída, entregou para a recepcionista um cartão dO Bistrô, pediu para que ela as visitasse quando eventualmente passasse pela cidade, e lhe prometeu um isqueiro novo, quando o encontro acontecesse. Elza riu e prometeu conhecer o restaurante assim que fosse possível.

                A volta para casa foi mais silenciosa, embora com a mesma playlist da ida. Cada uma ficou o trajeto todo entretida com seus próprios pensamentos e resoluções de novo ano, suas promessas e renovações de votos particulares e internos. Quem mais “falou” foi Percival, que parecia contente em voltar para casa.

– Vou dar uma passadinha rápida nO Bistrô, tudo bem? – Patrícia pergunta, desviando da rota de casa assim que entram na cidade – Só quero ver se está tudo bem.

– Claro, desde o ano passado que não vamos lá – Mariana sorri. Talvez pela primeira vez, desde que acordaram. Deu uma olhada para Tatiana, sentada no banco de trás e sorriu novamente – Vou fazer um café quando chegarmos porque estou morrendo de sono.

                Patrícia estacionou na vaga em frente ao restaurante, onde sempre deixava o carro. A rua estava vazia, todos os comércios com as portas fechadas e o tráfego era quase inexistente. Estava destrancando a porta quando ouviu uma freada de carro e alguém estacionando ao lado delas. De onde estava, acompanhou uma mulher saltar de dentro do carro preto, com adesivo do Uber, carregando uma caixa. Ao vê-la, Mariana deu dois passos para trás, cambaleante como estava na noite anterior.

– Finalmente te encontrei – a mulher diz, o cabelo loiro caindo na frente dos olhos. Ela tinha um olhar afiado na direção de Mariana. Parecia perigosamente magoada.

– Gi... – Mariana falou, mas na sequência ficou quieta, vendo a mulher avançar em sua direção, entregando a caixa em suas mãos.

– Toma, suas coisas – ela diz, no momento em que a motorista do carro preto desembarca, e fica parada próxima à porta – Você não se deu ao trabalho nem de ir em casa buscar as porras das suas coisas. Me disseram que eu te encontraria aqui, mas eu não quis acreditar – a mulher pareceu só então perceber a presença de Tatiana, perto de Mariana, e Patrícia, logo atrás, parada com a mão na maçaneta da porta giratória do restaurante. Olhou para as duas de cima a baixo, com um pouco de desdém – Nem os trecos do seu gato você foi pegar. Qual seu problema?

– Ei – Tatiana diz, vendo a mulher se aproximar demais.

– Moça – a motorista a chama, preocupada com uma possível agressão na calçada – Vamos, você disse que entregaria a caixa e era só.

– Cuidado, viu – a mulher diz, antes de dar meia-volta e entrar no carro – A Mariana não sabe se relacionar com as pessoas. Não estranhem se ela desaparecer de repente, sem nem se dar ao trabalho de se despedir, ou pegar as próprias tralhas.

– Mais uma faceta do passado de Mariana que desconhecíamos – Patrícia brinca, depois que o carro sai, com a motorista se desculpando, como se tivesse responsabilidade naquela cena toda. Finalmente destrancou a porta e as três entraram nO Bistrô, com Percival.

– Gi, né? – Tatiana provoca, cutucando Mariana com o dedo. Patrícia as deixou no saguão e foi até a cozinha, mais nos fundos.

– Passou, é passado – Mariana apoia a caixa de papelão em cima de uma das mesas – Olha, um isqueiro! – ela acende e o objeto se ilumina em sua mão – Já temos para devolver para a sua amiga, quando ela vier conhecer o restaurante.

– Até parece que ela vai vir aqui... – Tatiana ri, mexendo na caixa de Mariana. Jogou um rato de fricção no chão, que foi ignorado pelo gato.

– Ué, duvida? Tanta gente que já veio aqui e você não sabe... tanta gente que ainda vai vir! – Mariana fala, pensativa.

– Tipo a Gi? – Tatiana provoca.

– Sim. Ou tipo sua amiga recepcionista, ou tipo a motorista do Uber...

– Muita sapatão para comer nO Bistrô – Tatiana estava rindo.

– Muita! – Mariana ri também – Sorte a minha, que como, e também me farto, e me lambuzo, e se não me sacio, como de novo! – ela faz uma cara de safada, vendo Patrícia voltar – Vamos para casa?


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