Nas sombras da lei (conto)

Este conto foi escrito para o Desafio Uma Imagem Vale por Mil Palavras, do Projeto Lettera.

Sinopse:
Quando o empresário Roberto Prado Corrêa é encontrado morto dentro de sua boate, a policial Liz é designada para investigar o ocorrido. Porém, o que inicialmente parece ser apenas um caso simples de overdose se transforma em um enigma cada vez mais complexo, em que as aparências e os interesses de figuras influentes podem estar profundamente entrelaçados.
Neste jogo de poder e justiça, Liz se vê diante de uma decisão difícil, onde a linha entre o certo e o errado se desfaz, e a verdadeira justiça pode não ser aquela aplicada pela lei.


1 O silêncio da noite
    O celular de Liz a desperta às 2h43 da manhã, com o apito da notificação de uma nova mensagem. A madrugada ainda deveria ser a extensão de seu último dia de férias, mas ela entendia que, passada a meia-noite, já estava de volta ao expediente, mais uma vez. E o crime nem sempre respeitava suas horas de descanso.
    Cambaleante, saiu da cama sem dar atenção à Marcelle, que despreocupadamente ocupava mais da metade do colchão, como era de costume. Completamente indiferente às movimentações no quarto escuro, a namorada permaneceu dormindo, de maneira imperturbável.
    A mensagem da delegacia não dava detalhes sobre o ocorrido, apenas o endereço de uma boate que, pelo horário, estava no ápice da noite. Enquanto se vestia, Liz não dispensou tempo refletindo sobre a época em que ainda tinha disposição para se jogar na balada, tampouco se preocupou com sua aparência cansada, quando se viu rapidamente diante do espelho iluminado. Não havia deixado sua cama quente para se divertir na noite fria, afinal, então tratou de se focar no que realmente importava: seu trabalho na equipe de elite da polícia investigativa de Ecila, cidade conhecida por baixíssimos índices de criminalidade.
    Seguindo às diretrizes do GPS, dirigindo por ruas vazias, inevitavelmente Liz permitiu que seus pensamentos vagassem em direção à Paola, a menina desaparecida um mês antes de ela entrar de férias. Aquele era um caso que permanecia aberto e que certamente ocuparia espaço em sua mente enquanto não tivesse o devido desfecho. Por hábito, antes de estacionar a policial repassou novamente todas as pistas do crime, na tentativa de descobrir em que ponto havia falhado. Porque sabia que a falha era dela e esse peso permaneceria enquanto Paola não fosse encontrada.
    Ao chegar à boate, Liz imediatamente avista Felipa, no meio da multidão agitada, embalada pelas luzes difusas e coloridas. A mulher discutia com dois seguranças enormes, do tamanho de um guarda-roupa e sua voz se sobressaía mesmo com a música eletrônica tocando em volume máximo. 
    – Não me interessa que isso é uma festa privada. Mandei desligar tudo e ordeno que façam isso já. Quero que cada uma dessas pessoas fale com um policial antes de sair, incluindo vocês – ela diz, num tom impaciente. Ao ver a colega se aproximar, desfaz imediatamente a ruga que marcava sua testa – Você voltou! Bem-vinda de volta, parceira.
    – Voltei já na primeira hora. Qual o caso desta vez? – Liz pergunta, no instante em que a música é interrompida. O DJ, no fundo, usava o microfone para instruir as pessoas a seguirem às ordens das autoridades presentes no local, sem no entanto revelar os motivos para a ação inesperada.
    – O nome da vítima é Roberto Prado Corrêa. O dono desta boate – Felipa diz, sendo seguida pela policial até uma escada discreta, nos fundos da discoteca. Enquanto caminhavam em passos rápidos, foi possível ouvir murmúrios de protesto, vindo dos convidados que se aborreceram com o silêncio repentino, seguido pelo acender de luzes – Ele foi encontrado morto, há cerca de... 16 minutos – complementa, consultando as horas no relógio de pulso – A suspeita é overdose.
    A sala do empresário, na parte alta da boate, era ampla e envidraçada, visível apenas de dentro para fora, e oferecia uma vista completa da pista de dança. Em cima da mesa, ao lado de sua cabeça tombada, havia duas fileiras de cocaína, prontas para serem inaladas, o que justificava a suspeita inicial. A superfície suja de pó indicava que mais droga possivelmente havia sido consumida anteriormente.
    – Roberto Prado Corrêa estava comemorando seu aniversário nesta noite, era uma festa privada, restrita para convidados. Porém, tudo indica que mesmo cercado de gente, no momento da morte ele estava sozinho. Quem o encontrou foi um segurança particular, que disse ter se ausentado por menos de meio minuto, a pedido do próprio empresário. Assim que cheguei, ele me disse que o chefe não costumava fazer uso de nenhuma substância ilícita.
    – Bom, precisamos da lista completa de convidados, além do depoimento de cada uma dessas pessoas – Liz indica para a pequena multidão que permanecia agitada no salão. Movimentou-se com cuidado para não comprometer o ambiente e sem dizer nada registrou detalhes da sala com a câmera do próprio celular – Temos que saber quem ali embaixo não estava na lista e como conseguiu entrar. Esse segurança que o encontrou também precisa ser intimado, prioridade número um. O que o fez se afastar de seu cliente, instantes antes da morte dele? Além disso, precisamos checar as imagens internas e saber desde quando aquilo ali está desligado – ela aponta para uma câmera no canto da parede, perto do teto. O dispositivo não dava mostras de estar inoperante, mas sua expertise investigativa era tão afiada quanto sua intuição. Se era mesmo um caso de assassinato, dificilmente encontrariam imagens do responsável pelo crime perambulando no local. 
    – A Rute já está a caminho, vou pedir uma análise completa do corpo para a perícia – Felipa diz, iluminando as narinas do empresário com uma lanterninha que tirou de dentro do bolso – Visualmente, não há nenhum indício de consumo de drogas. É estranho, porque a cena toda parece ter sido plantada...
    – Peça por favor a perícia disso também – Liz solicita, indicando com a cabeça uma taça de vinho pela metade, próxima à mão do empresário. Seus dedos, que começavam a ficar com as pontas arroxeadas, seguravam o vidro fino numa demonstração de como havia sido seu último gesto em vida. Com o celular, Liz tomou o cuidado de fotografar o rótulo da garrafa, do outro lado da mesa.
    Ela estava longe de ser uma sommelier de vinhos, mas seu conhecimento, embora escasso, indicava que a garrafa era de uma safra especial que não era comercializada. Ou seja, tratava-se de uma bebida fina destinada a um público seleto, o que reforçava que a morte do empresário envolvia gente grande, figurões da alta sociedade. E Liz sabia como era difícil lidar com crimes assim. 
 
2 Verdade e poder
    Liz não voltou para casa em seu primeiro dia de volta ao trabalho depois das férias que foi obrigada a tirar. Em seu retorno, a policial adentrou a madrugada na delegacia estudando cada um dos depoimentos conforme chegavam e pela manhã já tinha montado um quadro com as principais pistas do crime. 
   À tarde, terminou de relacionar os depoimentos com a lista de convidados da boate e antes que a noite chegasse, Liz fez questão de ir pessoalmente terminar de interrogar o segurança que encontrou o empresário morto em sua sala. Algo na história dele não batia.
    – Como segurança, você era responsável por zelar pela vida de Roberto Prado Corrêa, mas deliberadamente o deixou sozinho minutos antes dele morrer – Liz comenta, pronunciando devagar cada sílaba. Pareceu excesso de foco, mas era apenas cansaço – E agora me diz que simplesmente não pode revelar o que foi fazer fora da sala?
    – Exatamente. Infelizmente, sim – o segurança responde, sem pestanejar – Faz parte do meu contrato de confidencialidade, como já informei para os colegas de vocês mais cedo, desculpe. Não tenho como colaborar com este caso.
    – Mas o seu cliente está morto! O seu contrato já era – Felipa afirma, parecendo impaciente. Seu tom de voz irritado contrastou com a aparente tranquilidade do interrogado, que manteve-se impassível diante das perguntas das policiais.
    – O Roberto está morto – o segurança retruca, absolutamente indiferente quanto ao fato. Parecia acostumado a lidar com perdas ou era apenas desapegado com as questões que envolviam seu ofício.
    – Ora, não me diga... – Felipa rebate, sarcástica.
    – Seu contrato é com a boate, então? Ou envolve sócios do empresário? – Liz questiona, ao mesmo tempo, falando junto com a parceira.
    – Isso também é algo que eu não posso responder, desculpe. Como já disse antes, mais de uma dezena de vezes, faz parte do meu...
    – Contrato de confidencialidade, tá – Liz o interrompe, levantando-se de maneira ruidosa, pegando o revólver que havia deixado em cima da mesa como forma de intimidá-lo – Tudo bem, eu já entendi.
    Ela guarda a arma na parte de trás da calça e deixa a sala, seguida de perto por Felipa. Nenhuma das duas se preocupou em tirar as algemas do segurança ou transferi-lo para uma cela. Em Ecila, qualquer interrogado podia ficar sob o domínio da polícia por até 72h e ainda estavam dentro desse prazo.
    – Precisamos urgentemente de uma cópia do contrato de trabalho dele. Mas só para nos certificarmos. Com certeza o empresário morto era só um dos empregadores... Meu palpite é que ele é um segurança exclusivo da boate, por isso a cláusula de confidencialidade se mantém. 
    – Como se o imóvel fosse uma pessoa física? – Felipa pergunta, lendo os relatórios entregues por uma policial baixinha, que aproximou-se e se afastou sem dizer nada.
    – Como se o imóvel tivesse uma pessoa dentro, sim... – Liz murmura, pensativa – Será que a Paola está lá?
– Nem todo caso tem a ver com a menina desaparecida, parça – Felipa a encara, com uma careta. Pareceu sem graça por ter que dizer o óbvio.
– Quero uma varredura completa no local – Liz responde, como se não a tivesse escutado; como se seus instintos falassem mais alto. No mesmo segundo, um trio de policiais acatou a ordem e se afastou – O que temos de novo?
– As imagens das câmeras internas mostram o segurança saindo da sala, mas depois ninguém mais entra.
– O que reforçaria a teoria de overdose...
– Exceto pelo fato de que ele não se drogou – Felipa garante, segura do que dizia – Eu vi.
– O resultado da perícia já chegou?
– Não que precise... mas não. Ainda não – Felipa olha para o celular, como se o gesto fosse suficiente para atrair uma ligação.
– Então nossa suspeita recai sobre os convidados – Liz afirma, como se a dupla pensasse em conjunto. 
– Todos na festa eram exclusivamente as pessoas da lista – Felipa aponta para os nomes organizados em ordem alfabética no quadro de Liz – Mas havia uma segunda lista.
– Claro que havia – ela observa a parceira riscar 90% dos nomes com uma canetinha vermelha – São VIPs – Liz complementa, numa afirmação.
– É, a pura nata da sociedade, podemos dizer. Os homens mais poderosos do país – Felipa observa os menos de dez nomes que não foram riscados e permaneceram intactos – Para eles, a festa começou mais cedo. Há registro de suas chegadas aproximadamente 3h antes da boate abrir.
– Só gente grande. Basta que apenas um segredo escape dessa rede para termos mais casos assim – Liz comenta, pensativa. Não disse mais nada porque o telefone de Felipa tocou.
– Oi, Rute. Sim, já tem o resultado da autópsia? Sei. Aham, eu já sabia.
– Pergunta sobre o vinho – Liz solicita, ciente do resultado informado pela perita, mesmo sem escutá-la.
– E o vinho, querida? Tem alguma novid... Ah, sim. Claro, uhum, entendi. Vou passar para a Liz. Grata, Rute.
– Negativo para overdose, inconclusivo para o vinho?
– Negativo para overdose, como eu já havia antecipado, sim, e o exame do vinho ainda não ficou pronto – Felipa responde, triunfante com seu bom trabalho.
– Eu tenho certeza de que o assassino está aqui – Liz aponta para os nomes que se destacavam em meio aos riscos vermelhos.
– Seria um caso e tanto, convenhamos. Só tem homem importante aí...
– É... – Liz murmura, espremendo os olhos. Estava prestes a completar 24h sem dormir em seu primeiro dia de volta ao trabalho, mas sua mente permanecia afiada, assim como sua visão – E no meio desse monte de homem importante temos uma única mulher – ela circula o nome de Vera Morana no fim da lista.
– Concordo com você, vamos atrás dessa pista – Felipa assente, demonstrando que nem sempre era preciso o uso de palavras para se comunicarem.

3 Sombras do passado
Liz estava no terceiro cafezinho quando finalmente o contrato de trabalho do segurança chegou no e-mail da delegacia. A madrugada avançava ligeira quando constatou que estava certa em suas suspeitas e que ele realmente era contratado da boate, por isso deu respostas tão evasivas em seu interrogatório. Saber disso reacendeu o alerta sobre o desaparecimento da menina Paola, quase dois meses atrás. 
A policial sabia, assim como a parceira havia alertado, que nem todo caso se relacionava ao sumiço ainda sem solução, mas era inevitável não ouvir o que sua intuição dizia. E Liz não costumava ignorar certos sinais.
– OK, recapitulando, o segurança é contratado da boate e você acredita que parte do trabalho dele era zelar por alguém mantido lá dentro como refém? – Felipa pergunta, com o semblante cansado – E quem poderia ter matado o empresário? No meio de uma festa, ainda por cima...
– Alguém que tenha motivos para querer se vingar – Liz analisa os nomes da festa VIP da boate, no quadro montado com os indícios do crime – Tudo depende do passado de Roberto Prado Corrêa e o de seus convidados mais próximos. E da análise do vinho que ele estava bebendo no momento de sua morte, também.
– Por isso você desconfia da tal Vera Morana? Acha que só uma mulher seria capaz de matar alguém poderoso no meio de uma multidão e passar despercebida? 
– É uma boa teoria... – Liz dá uma risadinha discreta, coçando os olhos com veemência – ...mas não. Além de ser a única mulher numa lista formada exclusivamente por homens, o que já levanta grande suspeita sobre ela, Vera Morana é uma enóloga famosa, muito conhecida na alta sociedade... E algo me diz que a morte foi por envenenamento. Precisamos levantar o histórico do empresário e cruzar com o dela. Já conseguiram localizá-la, a propósito?
– Ainda não, o que soubemos é que embora seu nome estivesse na lista VIP, ela não apareceu na boate – Felipa responde, com o rosto iluminado pelo computador – Mas veja que interessante: o sistema ultrassecreto de Ecila indica que Vera Morana originalmente se chamava Valéria Torana, antes de ficar famosa como especialista em vinhos. Que estranho...
– É, mudar o nome não é mesmo algo usual... O que consta aí sobre o empresário? – Liz pergunta, apoiando as mãos na mesa da parceira.
– Roberto Prado Corrêa passou os últimos anos sendo investigado por exploração sexual infantil. Foi acobertado primeiro pelo desembargador Jean Simões e o caso foi arquivado mais tarde pelo procurador Pimentel de Oliveira.
– Claro – Liz circula os dois nomes na lista VIP – E quanto a Orlando Lins Neto e Diógenes Leda? – a policial paira a caneta no ar, perto dos nomes dos juízes, também listados.
– Os dois magistrados foram acusados de receber propina de Roberto Prado Corrêa no passado, mas a segunda turma do Tribunal Superior impediu o avanço das investigações.
Liz foi circulando os nomes dos ministros que constavam na lista VIP da boate, até sobrar apenas o nome de Valéria Torana intacto. Ou melhor, Vera Morana.
– Um acusado de pedofilia é assassinado dentro de sua boate lotada, na noite em que comemorava o aniversário junto de convidados que garantiram sua impunidade... – Liz coça a cabeça, pensando em voz alta.
– Parece que alguém quis mesmo se vingar – Felipa assente, levantando os olhos da tela por alguns segundos – Um crime perfeito, podemos dizer.
– Seria perfeito se a vingança também atingisse os demais convidados – Liz reflete, sem no entanto querer compartilhar o pensamento com a colega.
– Atenção, todas as unidades – uma voz metalizada no rádio chama a atenção das policiais – Alerta laranja, repito, alerta laranja. Solicitamos apoio urgente na Boate Esplanada. Apoio urgente, todas as unidades, atenção.
Liz sorri para a parceira, sem precisar dizer nada. O alerta indicava a libertação de algum refém justamente na boate que algumas horas atrás havia sido palco da morte de um empresário influente e muito poderoso. Como só havia um único caso de desaparecimento ainda sem resolução na cidade, imediatamente soube que a polícia havia encontrado Paloma, a menina desaparecida antes de tirar férias. 
Agora, o segurança tinha muito o que explicar, se não quisesse se complicar como cúmplice de um sequestro. Desde quando Paloma estava presa na boate? Outras meninas já haviam passado por lá? O que mais ele sabia sobre os crimes de Roberto?
Mas Liz sabia que esse novo interrogatório poderia perfeitamente esperar. Já passava das 3h da madrugada e ela precisava descansar algumas horas que fossem. Aliviada por terem localizado a menina que tanto procurou, a policial dirigiu até sua casa resignada por ter sido obrigada a tirar férias depois de iniciada a investigação que lhe tirou muitas horas de sono e a levou à beira de um colapso mental, obrigando-a a se afastar por uns dias do trabalho. Ao parar o carro, sorriu porque, no fim, deu tudo certo. Naquela noite, Paloma finalmente dormiria como uma refém liberta.
Analisando as informações sobre o recente assassinato, Liz se perguntou se os demais convidados por acaso saberiam da existência de Paloma. Seria a menina parte das comemorações daquela noite? Quão doente era uma sociedade composta por criminosos que se interessam por menores de idade?
Exausta e com a cabeça a milhão, antes de entrar no banho Liz apoiou a cabeça no espelho e se questionou sobre o que faria se acaso descobrisse que Vera porventura havia envenenado Roberto Prado Corrêa no intuito de se vingar – porque tudo indicava que havia sido ela, só faltavam as provas que comprovassem isso. E se a mulher por acaso também foi uma vítima do empresário, assim como Paloma havia sido? Seria justo punir alguém que já fora castigada mais de uma vez? Porque a justiça evidentemente não era capaz de ser justa; prova disso é que o empresário estava morto e não preso.
Às vezes, Liz sinceramente se frustrava com seu trabalho de policial. 

4 O preço da justiça
Liz cochilou por algumas horas, apenas o suficiente para descansar um pouco. Seu retorno ao trabalho após rápidas férias foi agitado, com um assassinato inesperadamente solucionando um caso anterior. Paloma, que indiretamente a fez se afastar do trabalho após dias de intensas investigações inconclusivas, finalmente havia sido encontrada, nos porões da boate em que Roberto Prado Corrêa foi assassinado. O empresário certamente estava envolvido no desaparecimento da menina, embora os interrogados jurassem não saber de nada a este respeito. 
– Nenhum dos convidados afirma saber sobre a presença de Paloma no porão da boate – Liz comenta, em tom de bom dia, assim que a parceira chega na delegacia bem cedinho, na manhã seguinte – Ao mesmo tempo, todos garantem manter uma relação distante com o empresário, embora cada um deles tenha livrado Roberto das acusações de exploração sexual infantil e estivessem juntos na comemoração de seu aniversário.
– Homens sendo homens... – Felipa resmunga, desanimada – E eles vão se proteger até o fim, tenho certeza – a policial complementa, ligando o computador.
– Isso justificaria uma vingança contra ele, especialmente se promovida por uma antiga vítima, que viu seu algoz ser blindado pela justiça com o passar dos anos.
– O que quer dizer, Liz? Acha que Vera é uma espécie de Paloma do futuro? Virou enóloga só para poder acertar as contas do passado? 
– Apenas ela pode confirmar, mas sim. Esta é a minha principal suspeita. Alguma atualização sobre a perícia do vinho, por falar nisso?
– Sim, acabou de chegar. E parece que você tem razão... foi detectada a presença de cianeto de damasco no meio da bebida – Felipa responde, observando o laudo técnico disponibilizado via intranet.
– Sério? – o tom de Liz soa divertido, mas ela mantém-se séria. Puxou o celular do bolso e mostrou para a parceira a foto que havia tirado do rótulo do vinho em questão. Na ilustração, junto do nome da vinícola de Vera Morana havia o desenho de um damasco – Mais indiscreta, impossível.
– Ontem depois da nossa conversa eu pedi para o serviço de inteligência identificar o porquê da mudança de nome e o que eles apontaram é que Valéria Torana solicitou a troca assim que atingiu a maioridade. A ficha corrida dela indica diversos casos de abuso sofridos na infância. 
– Conforme imaginávamos, sei – Liz respira fundo, traçando mentalmente os próximos passos – Precisamos encontrá-la antes da polícia.
– Como assim, o que tem em mente? Por acaso pretende ajudá-la a fugir? – Felipa quase ri. A pergunta soou absurda demais.
– Seria muito errado propor isso diante da impunidade de Roberto? – Liz quis perguntar, mas se conteve. Sabia que, de acordo com o regimento interno da polícia, querer algo do tipo era muito errado, sim. Ainda que a justiça fosse falha.
– Você acha que os demais convidados também eram alvo da enóloga assassina? – Felipa insiste, diante do silêncio da parceira, totalmente convencida de que haviam desvendado o crime. Mesmo que fosse fiel seguidora das regras policiais, ela era humana, assim como Liz. Mais: também era mulher, tal qual a colega de trabalho.
– Imagine que no passado Roberto Prado Corrêa abusou de Vera Morana, que ao crescer viu não apenas um bando de homens poderosos o livrarem de possíveis penas como também participarem junto com ele de seus crimes sexuais. Supondo que ela soubesse da existência de Paloma nos porões da boate... sim. Acho, sim, que eles eram alvo também, mas por algum motivo o vinho não foi compartilhado. Por isso apenas o empresário foi envenenado.  
– Ousada... – Felipa suspira, sem especificar a quem se referia – Tá, então vamos encontrar essa mulher logo, antes que a polícia a ache – completa, ciente de que nem sempre a justiça podia ser feita por vias legais.
Ao se separar, a dupla acreditou que assim haveria mais chance de encontrar Vera rapidamente, a esta altura foragida da polícia. Felipa a procuraria na vinícola e Liz iria atrás dela em seu endereço residencial. Porém, no instante em que deixou a delegacia, Liz praticamente tropeçou na mulher, que se encaminhou até o local no intuito de se entregar. Por impulso, ao vê-la na calçada a policial imediatamente a agarrou pelo pulso, mas parou o movimento antes que sequer pegasse as algemas no bolso. Debaixo de forte chuva, Liz encarou Vera nos olhos e a troca, mesmo rápida, foi suficiente para sanar qualquer resquício de dúvida que porventura ainda pudesse ter. Era como se o olhar da enóloga a justificasse e dissesse algo como: “não tenho culpa, ele acabou com a minha vida primeiro”.
Liz a solta devagar, sem dizer nada. Não ordenou que Vera se entregasse, tampouco sugeriu que desse meia-volta e simplesmente fugisse para longe dali. Apenas a largou, numa espécie de permissão silenciosa, como se desse à vítima de Roberto a chance de realmente decidir o que fazer. Vera pretendia se entregar à polícia porque isso era considerado o certo, mas o que é errado numa história abusiva como esta? Quem faz justiça quando o vilão malvado se blinda com seu poder, dinheiro e influência, e se beneficia de um acesso privilegiado às brechas da lei?
Antes de largá-la totalmente, seus dedos tocaram nas digitais de Valéria, agora Vera, que provavelmente teria outro nome já no dia seguinte. Liz a imaginou como se fosse uma espécie de sucessora de Paloma, só que mais velha e muito mais empoderada, dotada de condições capazes de se vingar de pessoas ruins como Roberto Prado Corrêa. 
No fim, Felipa tinha razão; passado e futuro se mesclavam nas ações presentes, só que com mais eficácia e agilidade do que quando garantidas apenas por meios legais. Sem saber, Vera havia se vingado por ela, por Paloma e até mesmo pela própria Liz, que tinha em seu histórico familiar casos de abuso – sexual e também de poder. 
Liz fez sua escolha e permitiu que Vera fizesse o mesmo. O que viria depois já era outra história.


Gostou? Leia a primeira história de Liz: Caso 5863/21 (conto vencedor do Desafio Lettera "Uma imagem vale por mil palavras", edição 2021). Se interessar, a segunda história também está disponível: A justiceira (conto vencedor do Desafio Lettera "Uma imagem vale por mil palavras", edição 2022). Divirta-se!

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