Caso n. 5863/21 (Conto - vencedor do Desafio Lettera "Uma Imagem Vale por Mil Palavras")
A morte no hotel
Aquele parecia apenas mais um dia
típico na agenda de Liz. A mulher, acostumada quase uma vida inteira a dormir
somente algumas horas por noite tinha levantado cedo, antes mesmo de o sol
nascer, e tomou o cuidado de preparar o café com tudo o que encontrou de pó no
pote. Enquanto comia uma torrada com a última fatia de pão de forma, a bunda do
saco, começou o que seria uma lista de compras que ela esqueceria, minutos
depois, em cima da mesa. No papel, anotou: “ir ao mercado”.
Pela manhã foi em dois endereços sem
ligação entre si, apesar de próximos, na região leste de Ecila. A cidade era
famosa por suas ruas arborizadas, especialmente naquela área, projetada para
uma classe social mais abastada. Tudo ali era meticulosamente planejado e
arquitetado, ao contrário do que ocorria mais ao sul, na parte velha do
município.
Ao
sair do segundo prédio, que era todo espelhado e refletia a luz do dia de um
jeito curioso na calçada, Liz acenou, de longe, para o porteiro, que minutos
antes tinha autorizado sua entrada no local. Nada nela revelava quem era,
realmente, e o que fazia ali de fato. Usava uma calça jeans surrada na frente,
já quase rasgando no joelho, de tanto ela se abaixar (por motivos que
variavam), e uma camiseta preta desbotada, com a gola rasgada. No braço
esquerdo era possível ver metade de uma guerreira, tatuada. Ao contrário do
desenho, que vinha munido apenas de arco e flecha, Liz carregava na mochila
amarela uma pistola semiautomática calibre .40.
Passou
a tarde em companhia de Felipa, sua parceira de trabalho. À princípio todos
acharam que as duas namorariam, mas com o tempo ficou evidente que, de comum,
tinham apenas a sexualidade (ou nem isso, uma vez que Felipa se dizia bi). Na
real, as duas não se bicavam muito; Liz achava a companheira petulante e Felipa
a considerava uma pessoa fraca. Sabia que Liz se escondia dentro de vários
armários, vivia uma vida de mentirinha e achava isso absurdo (e até
desnecessário!). Apesar das rusgas, porém, todos as consideravam uma boa dupla,
suas linhas de raciocínio se complementavam, juntas funcionavam bem – mas eram
pessoas muito diferentes, e isso não é exatamente um facilitador para uma boa
convivência. Para piorar, Liz achava que Felipa sempre colocava suas ideias em
descrédito e isso exigia dela uma polidez que nem sempre encontrava.
Já
era tarde quando desligou o computador e se despediu dos colegas, o relógio que
também mostrava a temperatura, na porta da delegacia, marcava 19h em ponto. Liz
enfiou na jaqueta um objeto volumoso, e se esforçava para proteger da garoa,
que parecia ter esperado por ela para cair, graciosamente.
Apressou
o passo e foi a pé até um endereço que ela tinha anotado num pedaço de papel,
agora amassado no fundo do bolso da calça. Era uma casa vazia, quase isolada no
alto do Monte de Saraivá, e Liz fotografou todos os cômodos, iluminando os
espaços com a luz do flash. Dedicou mais tempo olhando para a vista da sacada,
fumando um cigarro, do que com a tarefa que tinha de desempenhar. Ecila, à
noite, era linda!
Dali
podia ver quase a cidade inteira, e fechando um pouco o olho, apontou em três
direções. Com o dedo vacilante, Liz direcionou para oeste, e fez um breve
movimento, que pareceu como se ela estivesse dando um tiro imaginário. “Aposto
tudo naquela direção”, ela disse, sozinha, antes de finalmente abaixar o braço.
Longe
de descansar, a mulher percebeu que ainda estava distante do fim do expediente,
pois seu celular vibrou, assim que entrava na estação de metrô, quando em
teoria voltava para casa. A mensagem de Felipa tinha apenas um endereço, e ela
rapidamente calculou a melhor rota para chegar ao hotel indicado, no menor
tempo. Precisaria andar cinco estações, com uma baldeação entre linhas. Já
tinha passado em frente ao Hotel ConfortOn várias vezes; ficava em uma viela no
distrito industrial, um local inusitado para um estabelecimento como aquele, já
que ficava distante do movimento dos carros e das pessoas (especialmente dos
turistas, público característico de acomodações desse tipo).
Liz
não ficou surpresa, e olhou no calendário apenas para se certificar de que,
mais uma vez (e infelizmente!), estava certa: era dia 17. Se tivesse apostado,
teria levado uma bolada! O problema é que aquela certeza foi recebida como
apenas um palpite por Felipa, não foi levada a sério e tinha acarretado a morte
de uma mulher. Liz ficou zangada por isso.
Subiu
o lance de degraus da estação, sem tempo para ir de escada rolante, e depois de
três esquinas adentrou no beco. Os comércios ali eram escassos, e àquela hora
já estavam fechados. As ruas estavam vazias e molhadas, depois de terem sido
lavadas pela chuva do final do dia.
- Eu
avisei – ela diz, assim que avista Felipa, que vira os olhos diante do
comentário.
-
Ninguém viu ou ouviu nada, como sempre não há testemunhas – a policial informa,
entrando no elevador com a colega – Uma camareira a encontrou, enforcada com
uma meia-calça. Liz, cuidado com o sangue.
O quarto estava forrado de
vermelho-vivo. Combinava com o toldo da entrada do hotel. Escorria da barriga
da mulher, deitada no canto do cômodo, e já quase chegava à porta.
Provavelmente ela estava ali há algumas horas, a estimativa de Rute, a perita,
era de no mínimo duas. Liz já tinha visto cenários semelhantes, sendo dois
pessoalmente, contando com aquele. Mesmo modus operandi: as vítimas eram sempre
enforcadas, mas o assassino fazia sempre questão, talvez como uma forma de
assinatura, de desenhar uma estrela de cinco pontas na barriga das mulheres,
sempre mortas sozinhas em quartos de hotel. A estrela não era a causa da morte,
mas manchava toda a cena do crime de sangue, que nunca guardava vestígios de
quem havia estado ali além da vítima. Não havia marcas de pisada, ou digitais,
apenas o mesmo modo de matar.
Liz e Felipa se entreolharam. Aquela
seria uma longa noite.
O
retorno de Jurema
-
Sempre há algo na cena do crime que identifica o assassino – Liz comenta,
passando os olhos pelo ambiente como se eles fossem uma máquina de escâner.
Falou com o tom de voz normal, calmo, mesmo diante da mulher enforcada ali no
chão, mas era como se falasse sozinha. Tinha colocado o distintivo pendurado no
pescoço, não queria mais ser advertida (como há alguns dias, quando foi
flagrada com a identificação enfiada no bolso traseiro da calça). Esse era o
tipo de coisa que fazia Felipa virar os olhos, em total desgosto. Como assim,
uma policial com vergonha de se assumir policial? E ela detestava admitir, mas
Liz era boa no que fazia.
- De
novo a estrela na barriga... – Felipa comenta.
- É,
mas não é só – Liz interrompe, levantando um dedo, como se o comentário
interferisse em sua linha de raciocínio. Se calou porque, apesar do que disse,
não sabia ainda o que era. Esperava que Rute pudesse ajudar nisso, e olhou para
a perita, que fotografava cada detalhe do quarto de hotel. Graças à sua
minúcia, Liz já conhecia bem a cena de três crimes anteriores iguais àquele,
que ela precisaria agora se debruçar para encontrar a semelhança, a principal,
que ainda não estava clara. Era uma questão de observação, a resposta estava
ali!
-
Sempre em quartos de hotéis, sempre enforcadas com a própria meia-calça, sempre
com uma estrela de cinco pontas rasgada na barriga – Felipa lista, também
buscando à sua volta algo mais que indicasse qualquer outro indício que
apontasse para o responsável por tudo aquilo. Não encontrou.
-
Preciso voltar para a delegacia, e ver os registros dos outros casos iguais.
Isso definitivamente é o suficiente para os associarmos, e instaurarmos um
inquérito considerando que o assassino é a mesma pessoa dos quatro crimes.
- A
Marcelle não se importa de você passar a noite toda fora? – a policial
pergunta, fingindo intimidade.
-
Minha namorada sabe que às vezes trabalho à noite. E em todo caso ela está
viajando, mas não que eu precise te dar alguma satisfação disso.
-
Nessas horas você brinca que é fotógrafa? – Felipa cutuca, mas só Rute ri. Liz
já havia saído do quarto.
Não
adiantava ela ficar ali, tudo o que precisa ver, já tinha visto. Agora era
aguardar o trabalho da perita, e depois do legista, que apenas confirmaria o
que Liz já sabia. Olhou para o relógio e deu uma corridinha até a estação de
metrô mais próxima dali. Era muito bom morar numa cidade cujo transporte
público, além de barato e eficiente, funcionava 24h por dia. Isso fazia de
Ecila a cidade com o menor índice de poluição de toda a região, já que os
moradores quase não usavam carros particulares.
Quando
Felipa a encontrou, alguns minutos depois, ela já tinha organizado algumas
fotografias em um mural de feltro que era destinado para este fim. Pregou com
tachinhas as fotografias das vítimas, mas em registros prévios à sua morte, e
era nítido que ao menos fisicamente elas não guardavam nenhum tipo de semelhança.
A vítima número 4, do Hotel ConfortOn, estava representada apenas com algumas
informações, ainda prévias, feitas com base na ficha do check-in do hotel. Já
tinha uma equipe em sua residência, e antes do amanhecer algumas lacunas
daquele quadro estariam mais bem preenchidas. Liz tinha sobre a mesa um mapa
aberto de Ecila, com adesivos vermelhos marcando o local de cada ocorrência, e
de caneta ela tinha preenchido uma linha, em azul, interligando-os, formando
uma espécie de estrela, cuja última ponta não era acompanhada de nenhum
adesivo. No alto do mapa, Liz escreveu 17, com um círculo em volta. Esta era a
data de todos os assassinatos.
- Ele
quer que a gente o encontre – Liz comenta, logo que a parceira chega – Nós
temos um mês para encontrar e prender esse arrombado.
Felipa observa o quadro montado pela
colega, tentando encontrar alguma pista que elas talvez tivessem deixado
escapar. A primeira vítima, morta no dia 17/03/2021, tinha 41 anos e era
professora de yoga. A segunda, assassinada em 17/04/2021, era revisora de
texto, e tinha 38 anos. A terceira, com 23 anos, morta em 17/05/2021,
trabalhava como vendedora em uma loja de roupas no shopping. Dentro de algumas
horas as policiais saberiam que a mulher assassinada naquele dia era médica. Nenhuma
ligação evidente.
Liz separou em outra mesa quatro
pastas, já etiquetadas, com todas as informações sobre o caso. Pretendia
direcionar equipes logo pela manhã, quando voltasse para a delegacia. Pensou
brevemente que precisaria cancelar todos os seus compromissos daquele dia.
- Acho
que por hoje não há muito mais o que fazer – Felipa sentencia, com a cara
cansada – Vamos, vai dormir um pouco e amanhã recomeçamos cedo – ela chama,
vendo que o relógio marcava 3h48 da madrugada.
Liz concordou, em partes porque
estava cansada também. Visualizou brevemente a sensação de chegar em casa e
tomar um banho quente, depois de um dia tão puxado, e depois merecidamente
dormir e descansar por algumas horas. Só não sabia se conseguiria; além de
estar com a cabeça a mil com todos aqueles crimes, lembrou que sua geladeira
estava vazia. Desejou que a namorada estivesse perto, gostava de chegar cansada
e encontrá-la nua em sua cama. Ela sempre levava janta. E era sempre mais fácil
dormir depois de uma boa gozada.
A dupla saiu junto da delegacia, e
antes que chegassem à estação de metrô, debaixo de uma chuva muito forte,
ouviram alguém chamar por Liz. Felipa acompanhou a policial à paisana correr
até o outro lado da rua.
-
Jurema! – Liz fala, feliz – Você está aqui!
As duas mulheres se beijam debaixo
de um poste de luz, alheias às gotas de chuva, gordas, que as encharcavam.
Entrelaçaram as pontas dos dedos , que escorriam, e Liz se deixou ser puxada
até a entrada da estação. Felipa a esta altura já estava dentro do trem,
devidamente embarcada, e se perguntava quem diabos seria Jurema. Estava
surpresa; não imaginou que Liz era do tipo que traía.
O
apagão
O
dia ainda não tinha amanhecido, e Liz já estava desperta há várias horas,
mexendo em seu computador, na cozinha. Já fazia algumas semanas que sua rotina
era essa: noites sempre insones e dias bastante atribulados, que iam até tarde,
com muito trabalho. Nos últimos tempos sua vida se resumia basicamente a
pesquisar e rever tudo relacionado ao caso 5863/21, e aquela vinha sendo uma
verdadeira corrida contra o tempo – que tinha corrido ligeiro, e novamente era
dia 17. Dezessete de julho. O grande dia.
- Oi,
Jurema! Te acordei? – Liz pergunta, ao ver a mulher entrar na cozinha, apenas
de calcinha e camiseta, da banda The Doors. Fechou rapidamente a tela do
notebook, antes que a namorada se aproximasse.
-
Amor, esse apelido é horrível, você sabe, né – Marcelle retruca, alisando o
rosto da mulher, bebendo um gole de seu café. Fingiu não perceber o cuidado de
Liz, desligando o computador antes que ela pudesse ver o que a outra estava
fazendo. Como se escondesse algo.
- Eu
adoro apelidos – Liz se defende, a puxando para o colo.
- Você
diz isso porque o seu nome é um apelido! – Marcelle retruca, se
desvencilhando – E aí, muito trabalho? – ela pergunta, sondando a mulher.
- Até
que não... Mas hoje quis começar cedo, estipulei uma meta muito difícil e
importante, que quero muito alcançar!
E ela ia conseguir êxito! Graças ao
seu raciocínio lógico, ao seu faro policial – e talvez, neste caso, graças à
ajudinha de Felipa. Uma pequena contribuição, claro. Afinal, foram horas
estudando fotos, relendo depoimentos e acessando informações que chegavam e que
mais a deixavam perdida do que mais próxima de solucionar o caso. Liz estava incomodada
porque algo ainda lhe escapava – e aquele era um detalhe fundamental para
resolver o crime e prender finalmente o assassino. Com sorte, antes da quinta
vítima.
Na
tarde anterior esteve discutindo o caso com Felipa, como sempre, que aparentava
nervosismo com a proximidade da data no calendário. Já tinha aceitado a teoria
da parceira, de que o assassino escolhia com cuidado o local do crime, no
intuito de formar uma estrela no mapa, semelhante à que deixava em suas
vítimas, e no dia seguinte teriam a oportunidade perfeita para abordá-lo.
-
Temos dois hotéis aqui – Felipa diz, apontando o mapa com uma caneta – Ambos
são próximos da estação de metrô, e se eu fosse apostar em algum hotel, seria
neste – ela circula de vermelho o local indicado – Esse outro é fora de mão,
essa rua é deserta, aqui se escuta só os passos das pessoas e até os seus
pensamentos, se duvidar, tamanho o silêncio.
E foi nessa hora então que Liz
desvendou o caso. Ela bateu as palmas das mãos, e fez um movimento como se
pretendesse socar a outra policial.
- É
isso! É esse o detalhe que faltava – ela exclama, sem contudo dizer ao que se
referia – Se eu fosse apostar em algum hotel – Liz repetia o tom da
outra mulher – Certamente seria neste – ela conclui, fazendo um círculo maior
no mapa, seguido de três setas, para deixar bem clara a sua opinião.
Aí
Liz achou justo que, por ter descoberto o que motivava o assassino, caberia a
ela ser a isca, no dia seguinte. Amanheceu, por isso, cheia de expectativa, o
que chamou a atenção da namorada, que fingiu dormir enquanto ela separava
algumas roupas e um sapato que nunca usava.
Marcelle
estava certa de que estava sendo traída, e era como se Liz sempre fornecesse
novos e novos motivos para aumentar a sua desconfiança. Para ela, aquele também
era um dia importante: pretendia flagrar a namorada com a amante.
Horas
mais tarde, ao trocar de roupa na delegacia, Liz se viu alvo de assovios entre
os colegas, que mexiam com ela, vestida de um jeito totalmente não usual: além
da maquiagem (inédita!), se equilibrava com desenvoltura em cima de 15 cm de
salto.
-
Senhores, como sabemos esta é uma noite importante, em que vamos tirar das ruas
de Ecila um criminoso perigoso – Liz começa, chamando a atenção dos presentes –
Reduzimos o nosso foco de atenção nesta área para esses dois hotéis. Nosso
objetivo é acertar o alvo antes que ele chegue aqui – ela aponta para o hotel,
onde tinha circulado mais cedo – Uma equipe fica aqui, outra vem para cá, e eu
quero uma terceira de prontidão aqui, caso ele tente fugir – o mapa foi
ganhando círculos, conforme ela falava, e os policiais, quase 30, movimentaram
a cabeça, confirmando entendimento.
Se dividiram em vários carros, sem
no entanto parecer um comboio. Não queriam chamar a atenção. Liz foi uma das
últimas a sair da delegacia, e logo que chegou à calçada foi flagrada por
Marcelle, que a esperava há horas.
- Eu
não acredito que você mentiu para mim – ela diz, e Liz ficou um tempo sem
reação, ao ver a namorada ali. Não tinha nem como inventar algo, já que o
bendito distintivo estava pendurado em seu pescoço.
-
Amor, eu posso explicar – ela começa, mas nem sabia o que dizer. Tinha mentido,
mesmo. A namorada jurava que ela na verdade trabalhava como fotógrafa. De
imóveis. Para uma imobiliária virtual. Atividade que Liz realmente
desempenhava, mas apenas como disfarce. Mas como explicar, naquele momento, que
não só ela era policial, como estava prestes a prender um assassino perigoso?
- Você
usa até salto! – Marcelle apontou para os pés de Liz, parecendo realmente
incrédula.
- Não!
Quer dizer... – Liz buscava as palavras, que tinham sumido (assim como seus
colegas, já a caminho da emboscada que ela própria tinha armado) – Amor, eu não
posso falar agora.
De repente, todas as luzes começaram a se apagar, progressivamente – das casas, dos comércios e dos postes. Desde o alto da Torre da Lua, virando a esquina dos Jardins do Paraíso, toda a região de Vilamaior, onde ficava a delegacia, tudo foi mergulhando rapidamente numa escuridão total. No breu, o que se via era a parca iluminação gerada por velas, que iam iluminando aos poucos as residência ao redor das duas.
Caso
encerrado
Este já era o terceiro apagão que
Ecila enfrentava, só naquele ano, e muitos atribuíam o problema ao fato de
aquela ser uma cidade muito populosa, com bastante consumo, e a rede elétrica
já dava mostras de estar com os dias contados. Então ninguém estranhava quando
de repente acabava a luz – até porque tudo se restabelecia sempre em questão de
minutos.
- Nós
precisamos ir – Felipa avisa, segurando o braço de Liz, ainda no escuro –
Depois você explica para a sua namorada que tem vergonha de dizer que é
policial, faz aquele discurso de que acha a corporação manchada, com fama de
corrupta etc. e tal. Mas agora temos que pegar um assassino. Vamos!
Marcelle viu a namorada correr até a
viatura estacionada ali perto, ágil, apesar do salto, e a achou um tesão! Estava
chateada pelas mentiras, mas se sentia aliviada, afinal, era melhor que a outra
tivesse outro tipo de ofício a ser traída. Com certeza ia querer saber de todo
aquele babado de assassinato depois!
Quis mandar uma mensagem de
encorajamento (não que ela precisasse!), para Liz ouvir mais tarde, e antes de
gravar o áudio, Marcelle ampliou a foto que a namorada usava como perfil (que
de perfil não tinha nada, e mostrava apenas parte de seu tronco e a mão,
segurando sua câmera). Admitiu que Liz devia realmente ter alguma questão muito
séria com a sua profissão, e reconheceu que devia ser bastante trabalhoso se
dividir em dois empregos, tão diferentes! E, no fim, naquela manhã acordou
acreditando estar sendo traída por uma fotógrafa freelancer, e ia dormir com
uma quase Vingadora, da Liga da Justiça.
Do outro lado da cidade, Liz
desembarcava próximo ao metrô, e caminhava devagar, mas não muito, pelos
arredores da estação, no sentido do hotel que era o seu palpite. Estava no dia
certo, na hora correta, e apostava tudo naquele ponto em que se encontrava.
Pelas câmeras de segurança, sabia como o suspeito se parecia – ficou mais fácil
encontrá-lo, quando soube a quem buscar. Tudo se esclarece de repente quando se
desvenda um crime, e os detalhes que sempre faltam se destacam, como grifados
de caneta marca-texto.
Enquanto caminhava, ciente de que
estava sendo bem observada pelos colegas, de prontidão e a postos, lembrou de
como tudo se elucidou diante de um comentário tão inocente de Felipa. Sem
perceber, deu a chave para aquele mistério.
Realmente todos os hotéis escolhidos
pelo assassino eram sempre aleatórios, em locais de pouco movimento. Mas isso
era só uma parte. A grande sacada era o som dos passos. Havia algo que
despertava a atenção do assassino nesse som, não de qualquer calçado, mas de salto
alto (que agora ela ouvia, de seus passos).
Lembrou que um ano atrás, quando ela
e Marcelle se conheceram, e a garota revelou seu discurso, coerente, sem
dúvida, feminista, esquerdista, abortista (ela se dizia satanista só para rimar
e causar), Liz se envergonhou de revelar sua profissão. Marcelle tinha ido a
diversos protestos, e cantava sempre uma marchinha que pedia o fim da polícia
militar (“não acabou! Tem que acabar!”). Ela era policial civil, mas achou
embaraçoso mesmo assim. E foi se enrolando nas histórias que inventava, achava
Marcelle uma delícia, e aí um dia, do nada, recebeu um convite por e-mail (que
por sinal até caiu na caixinha de SPAM). Uma mensagem despretensiosa de uma
imobiliária chamada Primeiro Andar. Perguntava se ela tinha máquina
fotográfica, se emitia nota, se tinha noções básicas de fotografia. Achou
perfeito!
Todos os dias recebia uma agenda,
nem sempre tinha muito trabalho na delegacia, dava para conciliar. Passou a
conhecer muito mais a cidade, e agora via tudo com outros olhos, até mesmo com
enquadramentos novos. Seu olhar ficou mais apurado! Bem ou mal, fotógrafo
enxerga tudo diferente!
Voltou-se para o caso. No silêncio,
qual passo é mais audível? De uma sandália, um chinelo ou um salto alto? Liz
revirou as fotografias. Acostumada a esconder das lentes a bagunça das casas
eventualmente mobiliadas (e bagunçadas!) que precisava fotografar, notou algo
até então despercebido: todas as vítimas estavam descalças. Conhecendo a
acurácia de Rute, buscou pelas fotos que revelavam o tipo de calçado, e bingo:
todas usavam salto.
Talvez ao longo do tempo, num futuro
breve, a mídia traria à tona que o assassino sofreu abusos na infância, que sua
mãe usava sempre saltos altos e que aquilo virou gatilho para ele. Mas uma que,
Liz não saberia, e duas que ela não se importava. Seu trabalho terminava quando
pegava o bandido. O resto era trabalho para outras pessoas, e ela confiava na
justiça de Ecila.
E embora publicamente não admitisse
sua profissão, não revelasse seus feitos na polícia, sua longa ficha de prisões
e investigações bem-sucedidas, Liz amava seu trabalho. Amava fazer exatamente
isso: se disfarçar para prender pessoas más. Sorriu, de um jeito malicioso,
enquanto o som de seus saltos naquela rua deserta era tudo o que ouvia. Cenário
propício para sua armadilha.
Ela ouviu um som de tropeço às suas
costas, e olhou brevemente para trás, por cima do ombro. Se visse em câmera
lenta teria sido mais fácil acompanhar exatamente tudo o que aconteceu naquele
momento, na ação coordenada e muitíssimo bem executada por pessoas que ela,
literalmente, confiava a sua própria vida. Pegaram o assassino antes mesmo que
ele esboçasse qualquer tipo de reação. Antes de Liz se virar completamente,
prenderam o sujeito, e agora outra equipe se encarregaria de coletar o
depoimento. Com ele foi encontrada uma faca, pequena, parecia mais um canivete,
que certamente seria facilmente relacionado ao crime, após a devida perícia.
Liz e Felipa se despediram com um
breve aceno de cabeça, e a mulher se perdeu na pequena multidão da estação.
Estava ainda alguns centímetros mais alta, e foi mais fácil se segurar dentro
do trem.
Ao chegar em casa, Liz encontrou Marcelle
à sua espera, seminua, quase de quatro na cama. Tinha junto dela um par de
algemas e outros objetos eróticos.
- Me
revista, senhora policial – ela pede, logo que a outra a vê.
Clique aqui para acessar o menu completo com todas as histórias.
Ajude esta escritora independente, clique aqui e faça uma doação!
Você não precisa se identificar, se não quiser! 💙