3xTPM - O aniversário

  Essa é a quinta história da terceira temporada da Novelinha <3 

Se ainda não leu a quarta, "O Jardim", clique aqui.


A relação que cada pessoa guarda com seu próprio aniversário é bem subjetiva e particular. Há quem goste, assim como existe quem deteste, quase abomine. No lar do trisal TPM, por exemplo, tem de tudo: tem quem goste, tem quem deteste e tem até quem nem ligue, como é o caso de Tatiana. Ela inclusive foi a primeira a acordar naquela manhã de véspera de aniversário, como ocorria também nos outros dias, os de desaniversário.

Há tempos que não tinha uma noite decente de sono, desde a festa nO Bistrô. Era do tipo reflexiva, ficava às vezes semanas inteiras digerindo um determinado assunto, até que finalmente se sentisse pronta para debater, discutir. No caso, esse momento com Patrícia ainda não havia chegado, então no limbo ela emendava dias e noites em cochilos mal dormidos, o assunto cozinhando em seu coração. Não à toa, ao se levantar já estava exausta, as olheiras marcando bem a região de baixo de seus olhos. Para a sua sorte, não se envolveria nos preparativos da festinha de mais tarde, ou melhor, do jantar nO Bistrô, em mesa reservada com a presença da chef.

Embora se mantendo o tempo todo em contato com Zezé, que era muito eficiente em repassar relatórios completos, envolvendo até as fofocas de funcionários e clientes, Tatiana não tinha dado as caras no restaurante recentemente e suas breves idas foram bastante rápidas e pontuais, Patrícia nem a viu chegar ou sair. Para o jantar desta noite, pretendia comparecer como se fosse só mais uma convidada, pois não achava que a esposa andava merecendo sua presença por mais tempo do que isso.

Essa questão toda com Patrícia vinha servindo como uma ótima desculpa para que Tatiana tivesse de volta suas noites livres, muito bem acompanhadas por Mariana. Que ficava sempre trabalhando, é verdade, mas ainda assim era uma ótima companhia.

Mariana não gostava de fazer aniversários, não era o tipo de coisa em que ela se ligava, ao contrário de Patrícia, que era toda trabalhada em momentos ritualísticos que giravam em torno do que chamava de “Réveillon particular”. Ou seja, tudo bem chegar no restaurante só para comer; seria apenas um jantar.

– Oi, meu amor! Está tão cedo, já levantou? – Tatiana abre os braços, convidativa, e aninha Mariana em seu peito. Ao abraçá-la no meio da cozinha, ouve a mulher dar um gemidinho de satisfação, instantes antes de ela cheirar seu pescoço e depositar um beijo, como sempre costumava fazer quando se abraçavam.

– Bom dia, querida! Pois é, eu preciso terminar um trabalho hoje... – Mariana resmunga, de olhos fechados.

– Você trabalha demais, Mari – ela a solta apenas para servir café em uma caneca alta, estampada com o logo dO Bistrô – Hoje é sábado, gatinha...

– Eu sei, mas... – Mariana não termina de falar. Só se encosta na pia e fecha os olhos por trás das lentes dos óculos que embaçaram, quando ela assoprou antes de beber. Aí gemeu novamente, desta vez fazendo o som habitual após saborear o primeiro gole de seu café da manhã – Ai, que delícia! Eu amo o seu café, Tati.

– Bom dia, galera – Patrícia surge na cozinha, de chinelo e cabelo despenteado. A lateral do rosto estava amassada do colchão – Ah, você já fez o café? – sua pergunta veio com uma pontada de decepção.

– Bom dia, Pati – Mariana dá um beijinho em seu rosto, enquanto Tatiana só levanta os ombros e dá uma leve virada de olhos. Esta era uma dentre as várias demonstrações de desinteresse por parte dela. Não vinha fazendo muita questão de conversar com a esposa nos últimos dias, mas gostava de deixar isso claro, bem explícito.

– Vou fazer algo para a gente comer, então – Patrícia anuncia, puxando uma frigideira de dentro do armário, depois de enfileirar na bancada alguns ingredientes que tirou da geladeira. Prendeu o cabelo no alto da cabeça, antes de amarrar um aventalzinho com babado na cintura. Conhecia Tatiana, sabia que era inútil enfrentar seu comportamento hostil, então nem alimentava suas provocações silenciosas – Levantou cedo, amor... vai trabalhar hoje?

– Vou, preciso... tenho um projeto para entregar, o cliente já está me cobrando – Mariana responde, distraída com o celular, bebericando o café. Demorou alguns segundos para levantar a cabeça e olhar para a esposa – Combinei de almoçar com a Lola hoje.

– Ah, sim? – Patrícia pergunta, surpresa. Por estar de costas para as esposas, elas não viram a expressão em seu rosto.

Com a Lola? – Tatiana questiona, ao mesmo tempo. O tom de sua voz foi meio zangado, combinou com suas sobrancelhas arqueadas.

– É, ué – Mariana bebe mais café, observada pelas mulheres – Eu disse que ia tirar a limpo essa história do baile! Não sei o porquê da surpresa, acho até que demorei a fazer isso... – ela bebe mais um gole, antes de continuar – Só não fui antes porque tenho mesmo trabalhado muito – olhou para Tatiana enquanto falava e ao final mandou um beijinho no ar para ela – É que preciso me dedicar, amor, se quero que a firma cresça. E eu quero muito!

– Tudo bem, gata – Tatiana responde, devolvendo o beijo em forma de selinho, ao parar à sua frente e abraçá-la rapidamente. Puxou seu queixo com o dedo, a fazendo olhar para ela – Não me oponho a isso, sabe que torço pelo seu sucesso, pelo crescimento da sua empresa. Só cuida para não ter uma estafa, poxa, não quero que nada de ruim te aconteça. Senão, de que adianta trabalhar tanto?

– É, eu sei, mas... – Mariana resmunga, desviando o olhar. Aspirou o remédio da bombinha de asma, sorrindo para Percival, que se lambia perto da porta. O gato miou ao se sentir observado.

– Quanto à Lola... – Tatiana continua, se afastando um passo somente para entrar em seu campo de visão – Faz o que tiver que fazer, foda-se. Só fiquei surpresa, não imaginei que seria hoje.

– Vocês vão almoçar onde? – Patrícia quis saber, tentando abafar o que a mulher dizia. Fazia algo no fogão que estalava na panela quente, produzindo um chiado e um aroma maravilhoso.

– Não sei, Pati. Eu gosto de comer na Liberdade, talvez a gente vá até lá – Mariana volta a mexer no celular – Peraí, vou mandar um áudio – ela anuncia, junto com o som indicando o início de uma gravação – Oi, Ni! Bom dia, eu preciso que você finalize e me mande por favor aqueles arquivos que ficaram faltando ontem, lembra? Para a gente poder fechar logo o projeto e enviar para o cliente aprovar. Você conseguiu resolver o problema do seu computador? Se quiser, vem trabalhar daqui. Beijo, fico no aguardo!

– Vamos comer, mulher de negócios? – Patrícia chama, servindo três tapiocas em pratos iguais, acompanhadas de ovos mexidos e geleia caseira.

– Tá... – Mariana resmunga. Ao sentar, ainda olhava para o celular – Putz, a Nicole é foda... – ela reclama, apertando outra vez o botão do áudio – Traz seu computador, a gente dá um jeito de consertar. Vou te mandar meu endereço e o contato de uma motorista de Uber de confiança, gente boa. Ela mora perto, rapidinho você chega. Te espero, beijo, até já.

– Sua amiga vem trabalhar aqui em casa, Mari? – Patrícia pergunta, apontando para o prato da esposa, ainda intocado.

– “Amiga” – Tatiana ri, num comentário quase inaudível.

– Ué – Patrícia levanta os ombros, mostrando que tinha escutado – Amiga, funcionária... Tudo igual, mesma coisa – ela faz o gesto de novo, num claro desdém.

– Gente, é muito cedo para isso, por favor – Mariana resmunga mais uma vez, no meio das duas. Levantou a mão pedindo trégua, sua aliança dourada brilhando enquanto falava – E sim, a Nicole vem trabalhar aqui porque o HD do computador dela parece que queimou e a bonita não salvou arquivos importantes na rede que eu criei justamente para este fim.

– Ah, por falar nisso eu vi que amanhã uma parte da Avenida Paulista vai estar interditada, por causa de uma corrida – Tatiana fala, de boca cheia – É a Nicole que corre, né?

– Ela mesma. A bicha corre mais do que nós três juntas andamos em um ano inteiro – Mariana sorri, apesar do que dizia – Vão fechar a avenida lá em cima, perto dO Bistrô, Tati? É amanhã que você vai fazer aquela limpeza no estoque do restaurante? – ela pergunta agora para Patrícia, que misturava uma gotinha de café em uma caneca cheia de leite.

– A avenida toda – Tatiana informa.

– Sim, preciso, já adiei muito isso. Não posso esperar mais... – Patrícia responde, dando duas batidinhas no prato de Mariana com o próprio garfo. Voltou a falar quando a mulher finalmente começou a comer – Só não vou se, sei lá, acontecer algo muito grandioso que me impeça de ir.

– Até meio-dia vai ficar fechada – Tatiana continua, fingindo não ouvir o que Patrícia dizia.

A limpeza de estoque, assim como a primeira faxina do ano no restaurante, era algo que costumavam fazer juntas. Mas não desta vez, ineditamente, porque Tatiana ainda não tinha desculpado a mulher.

– Entendi – Mariana diz, mastigando, sem especificar com quem exatamente falava. Mantinha a cabeça baixa porque seu celular estava no colo, ligado – Não vou prometer de te ajudar porque não sei se consigo folgar amanhã – ela complementa, apoiando a mão na perna de Patrícia.

– Mas amanhã é dia 23 e... – a mulher começa a falar, mas para.

– Eu sei, prometi que comemoraríamos. Mas, Pati... – Mariana também não termina de falar, porque seu celular toca.

– Eu entendo que a empresa tem que crescer e tal, mas ela trabalha demais mesmo assim – Tatiana comenta, num raro tom confidente, ao falar com Patrícia. Esperou que ficassem a sós, depois que Mariana saiu para abrir a porta para a colega, que já havia chegado.

– E você, Tati? Também não pretende estar disponível? – Patrícia pergunta, fingindo não escutá-la. Cruzou os braços ao indagar, mas rapidamente os descruzou e mudou de postura.

– Vou ao jantar hoje no restaurante, se essa é a sua pergunta. E não estou muito em clima de festa, caso seja isso que realmente queira saber...

– Está certo, Tatiana – Patrícia retruca, seca. Se levantou e quis jogar o prato vazio dentro da pia, mas se conteve e só o apoiou na cuba. Na verdade, sua vontade mesmo era de gritar, nem que fosse para provocar uma briga de verdade e fazer Tatiana falar logo tudo o que ela precisava falar, para poderem se resolver de uma vez. Mas se segurou. Não pareceu apropriado.

– Olá, bom dia! Com licença – Nicole cumprimenta, ao entrar na cozinha, um pouco tímida. Olhou primeiro para Tatiana, sentada de cara feia, depois para Patrícia, que estava em pé, com cara de poucos amigos. Ambas mudaram rapidamente de expressão ao vê-la, mas lhe pareceu que estavam brigando até alguns segundos atrás.

– Oi, Nicole! Bom dia! – Patrícia foi a primeira a cumprimentá-la, com um beijinho no rosto – Você aceita um café, quer comer alguma coisa? Senta, fica à vontade!

– Bom dia, Nicole! Seja bem-vinda, prazer em conhecê-la – Tatiana a cumprimenta na sequência, repetindo o gesto da primeira esposa, com um beijo rápido no lado do rosto.

– Ah, eu aceito um cafezinho, se não for atrapalhar – Nicole sorri para Mariana, que devolve o gesto. Se a chefe estava zangada com ela, não deixou transparecer em nada. Talvez porque suas esposas eram muito bonitas e cheirosas. Quem consegue ficar brava num ambiente assim?

– A Mari estava comentando há pouco que você corre, né? – Patrícia puxa papo, gentil, entregando uma caneca cor de rosa e fumegante para a mulher, que permaneceu em pé no meio da cozinha, com a mochila nas costas – Muito legal, parabéns pela disposição! Você vai participar da prova que vai ter amanhã? Vão fechar a Paulista, né?

– Sim, até meio-dia – Tatiana repete a informação, como se fosse nova.

– É, ama... amanhã tem duas corridas na cidade – Nicole gagueja, um pouco nervosa com tantos olhos em sua direção. Não estava preparada para encontrar com uma das esposas de Mariana, que dirá duas! – Eu vou participar da maior, de 13km.

– Treze, uau! – Tatiana exclama. Assim como a outra mulher, costumava sempre ser bastante atenciosa com as visitas.

– Bom, meninas, nosso papo está muito bom, mas bora trabalhar, Ni? – Mariana fala, interrompendo a interação.

– Vamos, claro – Nicole responde, segurando a caneca com as duas mãos. Bebericou um gole curto, parecendo pouco à vontade por estar ali.

– Daqui a pouco eu levo um lanchinho lá em cima para vocês – Patrícia diz, ganhando um beijo rápido de Mariana.

– Não precisa, amor. Tchau, gatinha – ela beija agora Tatiana, que estava novamente sentada em frente à bancada – Até já.

– Tchau, Mari. Bom trabalho para vocês – Tatiana se despede, só agora terminando seu desjejum. Sentia-se um pouco indisposta nesta manhã, talvez por conta da ansiedade. Isso a desregulava inteira.

– A Mariana nunca comentou que essa Nicole era bonita... – Patrícia reclama, meio cochichando.

– Você a achou bonita? – Tatiana retruca, devolvendo outra pergunta. Cerrou os olhos ao encará-la, enquanto esperava a resposta.

– Só estou dizendo que não sabia que a minha esposa tinha uma funcionária tão bonita... – Patrícia resmunga, sem responder de verdade, evitando olhá-la de propósito.

– A Mari me disse que elas duas nunca ficaram – Tatiana revela – Não precisa ter ciúmes.

– Não é ciúmes, é... – Patrícia faz uma careta e não completa a frase.

– Sei – Tatiana rebate. Estava com dor de barriga e o último golinho de café incendiou seu estômago, que já estava ardendo antes de ela comer. Isso fez com que levasse uma das mãos até o local que a incomodava.

– Está tudo bem? Posso fazer algo por você?

– Não, não há muito o que possa ser feito – Tatiana responde, de um jeito um pouco dramático, antes de deixar a cozinha. Se referia ao mal-estar, mas poderia estar falando delas também. A esposa ficou sem saber.

Sozinha na cozinha, Patrícia imaginou que a mulher estivesse com alguma indisposição intestinal, provocada principalmente por sua alimentação desregulada dos últimos dias, somada à ansiedade que a crise provocava. Tinha encontrado vários vestígios de que Tatiana andava comendo o que não devia, como chocolates e até refrigerantes, que para ela funcionavam como veneno. A conhecia há muitos anos, sabia que era assim que ela dava vazão aos incômodos de sua vida; extravasava sempre na comida. Pensar nisso a fez se sentir culpada, como vinha se sentindo nos últimos dias, desde o incidente com Lola. Era a primeira vez que Tatiana ficava brava por tanto tempo.

Refletir sobre o ocorrido com a bartender momentaneamente desviou o foco de sua mente para Mariana, que trabalhava no andar de cima com sua funcionária bonitona. Reconheceu internamente que estava, sim, com ciúmes, mas o incômodo era ainda maior com o almoço entre a mulher e Lola. Patrícia tentou imaginar a conversa que teriam, mas não conseguiu.

– Ué, vai sair? – ela pergunta, ao ver Mariana pegar a chave do carro que ficava pendurada perto da porta que dava acesso à garagem.

– Sim, vou levar o computador da Nicole para uma amiga minha dar uma olhada. Talvez ela consiga recuperar pelo menos uma parte dos arquivos – Mariana beija a esposa, um estalinho rápido, sem direito a abraço de despedida. Parecia a nova moda entre elas, desde o ocorrido na noite do apagão, na festa da Agência Rubi.

– Amiga? – Patrícia pergunta, se esforçando ao máximo para não deixar o ciúme transparecer na voz – Eu a conheço?

– Acho que não, amor... – Mariana responde com a cabeça um pouco inclinada. Não disse nada porque Nicole estava ali, mas reconheceu o tom daquele questionamento. Quase conseguiu ouvir a esposa dizer algo como “Mariana e suas amizades...”. É o que ela teria dito, se por acaso estivessem a sós – Não pretendo demorar, torce para dar certo.

– Boa sorte, Mari. A gente se vê à noite, né? Lá nO Bistrô? Você vai ao jantar?

– De aniversário, né, uhum, vou – Mariana responde, piscando um dos olhos para ela – Até mais tarde, amor. Beijo.

– Deve ser incrível ser casada com uma chef de cozinha – Nicole comenta, prendendo o cinto de segurança ao embarcar no carro alto de Mariana – Dona de restaurante, ainda! Um sonho chamado “nunca mais ter que cozinhar” – ela ri, segurando a mochila entre os pés.

– É, a Pati manda muito bem no fogão, acho a comida dela uma delícia. Mas eu ainda cozinho, não se iluda.

jura?

– Claro, almoço em casa a semana inteira. Patrícia fica no restaurante, Tatiana passa o dia na escola... Aí na janta, agora a gente reveza, a Tati e eu. Mas até esses dias eu me virava toda noite, porque ficava sozinha, as duas estavam sempre lá nO Bistrô.

– A janta também? – Nicole parecia sinceramente decepcionada.

– De vez em quando dá para filar uma boia no restaurante, mas não é sempre. Aí como um miojo, uma lasanha congelada, peço um lanche...

– Nossa...

– Mas não conta para a Pati porque para ela eu digo que janto arroz e feijão, salada... Ela nem sabe que tenho o aplicativo do Ifood instalado no celular.

– Pode deixar, não será por mim que vai descobrir – Nicole ri – Em geral as corridas me deixam com muita fome. Tanta que eu seria capaz de jantar um O Bistrô inteiro, em duas servidas. Ou seja, daria um baita de um prejuízo se me casasse com uma Patrícia na vida.

Mariana ri com o comentário, mas não diz nada. Não pareceu de bom tom revelar para Nicole que se sentia mal sempre que ia ao restaurante, como se todos os funcionários a julgassem, o que a mantinha um pouco afastada de lá. Tudo porque um dia teve um relacionamento aberto com Andreia, uma das garçonetes, numa época em que nem imaginava que O Bistrô pudesse existir, ou sua chef e esposa. Muito menos que fosse se casar com as duas.

Andreia fazia o tipo ressentida e nitidamente até hoje ainda não a havia perdoado por ter aberto o relacionamento delas sem antes ter tido a decência de comunicá-la. Em sua defesa, Mariana dizia que jamais lhe prometeu monogamia. Ou fidelidade. Mas eram afirmações internas; com Andreia mesmo não conversava há anos, porque a mulher não queria nenhum tipo de aproximação ou contato. Especialmente agora, tanto tempo depois, com ela sendo casada com Patrícia. Logo Mariana, que a vida toda se dizia dona de si mesma e vivia com um discurso antimatrimonial na ponta da língua. Sabia que era isso que Andreia alegava! Hoje era disso que ela tinha raiva.

Não bastasse tudo, depois que sua amiga Lola tinha lascado um baita de um beijo em Patrícia, hoje seria a primeira vez que Mariana voltaria a pôr os pés no restaurante, e só porque antes já tinha marcado de almoçar com a bartender, responsável por vários dias de climão dentro de sua casa, após o ocorrido.

Curiosamente, Mariana era a responsável pela manutenção tanto de Andreia quanto de Lola no quadro de funcionários dO Bistrô. Em vários momentos ambas as esposas quiseram demiti-las, por variados motivos, todos relacionados a ciúmes, mas ela segurou a peteca das duas, numa óbvia demonstração de que não era nem um pouco rancorosa e tinha um bom coração.

Dirigiu em silêncio o restante do trajeto, listando as tarefas do dia, distraída, pensando no trabalho. Pretendia resolver logo o problema com o computador de Nicole para assim entregar o projeto e ficar livre para seu encontro com Lola. Mesmo não gostando, sabia o quanto Patrícia apreciava as comemorações de aniversário, então era seu dever ir ao jantar à noite e principalmente conseguir folgar no dia seguinte. Pelo bem da harmonia e paz de seu lar.

Parou o carro depois de alguns minutos numa rua tranquila, no centro da cidade. Antes de desligar o motor, o GPS indicava que estavam no bairro da Bela Vista, perto da Avenida Nove de Julho. Ao desembarcar, acompanhada por Nicole, Mariana apertou um interfone barulhento no número dez. Esperaram alguns segundos até verem um movimento colorido atrás do vidro.

– Oi, Tatá – Mariana a abraça, assim que a mulher abre a porta de ferro pesada do prédio. Estava exatamente igual à quando tinham se visto pela última vez, anos atrás, exceto pelo fato de agora ela estar com a cabeça raspada.

– Oi, Mari! Há quanto tempo, gatíssima, que bom te ver! – Tamara a abraça por alguns segundos, esfregando a mão em suas costas – Oi, tudo bom? Prazer – ela olha para Nicole, que a cumprimenta com um sorriso e um movimento sutil com a cabeça – Entrem, vamos subir! Achei que vocês iam demorar mais para chegar – ela diz, em tom de desculpa – Nem arrumei o apartamento...

– Imagina, mulher! Tem nada que arrumar, não, que isso, eu hein. Te agradeço muitíssimo por me ajudar em pleno sábado – Mariana fala, subindo a escada logo atrás dela.

– É, mas me deixa ver se vou mesmo conseguir auxiliar, antes de começar os agradecimentos – Tamara olha para as duas por cima do ombro e dá uma piscadinha para Mariana.

Ao entrarem no apartamento, o único no andar sem nenhum tapete na entrada, uma névoa perfumada de incenso se dissipou com o movimento da porta se abrindo. Um cinzeiro todo fumegante no chão era a prova de que mais coisa queimava por ali.

– Foi mal, meninas. Achei mesmo que iam demorar mais para chegar, estava aqui só de boa, fumando um, curtindo um som... – Tamara se abaixa para pegar o cinzeiro e aproveita o movimento para tirar do chão duas almofadas que combinavam, com estampa de flor. Aquilo era um indício de que tinha se levantado com pressa para atender o interfone. Ela aponta para o sofá, para que as duas se sentassem, e se acomoda numa poltrona preta perto da porta da varanda. O espaço era pequeno e estava impecavelmente organizado.

– Tudo bem, Tatá. Pode continuar fumando, fique à vontade, não se incomode com a gente. A Ni também aprecia essas coisas.

– Ah, então arrasou – Tamara reacende o baseado, entregando-o para Nicole depois de duas tragadas curtas. Tinha na mesinha ao seu lado uma caixa de ferramentas, de onde tirou um estojinho com chaves de fenda. Escolheu uma de cabo laranja, após um brevíssimo momento de indecisão.

– Eu me mudei de casa – Mariana comenta, vendo a mulher abrir o notebook por baixo, desparafusando – Por isso que hoje cheguei aqui mais rápido.

– Ah, é mesmo! Tinha esquecido, você se casou! É verdade, é verdade – Tamara repete, balançando a cabeça em consonância – Mariana está casada – ela continua, parecendo pensar em voz alta até se virar para Nicole, sentada no sofá ao lado – Uns anos atrás, se alguém me dissesse que isso aconteceria eu jamais ia acreditar.

– É, as pessoas mudam... – Mariana retruca, baixinho.

– Ou continuam exatamente iguais, mas se casam com duas mulheres! – Tamara dá uma risada alta, jogando a cabeça para trás – Desculpa, Mari. Prometi para mim mesma que não tocaria nesse assunto.

– De casamento? – Nicole pergunta, envolta na fumaça, sem entender o que estava sendo dito. Desconhecia completamente o passado entre as duas sentadas pacificamente perto dela.

– É, a Mariana abominava a ideia de se casar – Tamara ri.

– Eu não usaria essa palavra – Mariana se defende – Só não era a hora.

– Claro, claro... – a mulher retruca.

– E naquela época você vivia enrolada com a ex da Camilinha – Mariana continua – Aquela espevitada, como ela se chama mesmo? Cibele – a resposta veio acompanhada da própria pergunta.

– Cibele – Tamara responde também, junto com ela. Sua voz saiu parecendo um murmúrio, mas estava sorrindo.

– Pera, você saía com a ex da ex dela? – Nicole pergunta para Tamara, tentando acompanhar o fio. Apontou primeiro para o ar e depois para Mariana.

– Aham. E a gente se pegava também – Tamara ri outra vez, tirando uma peça de dentro do notebook desmontado em cima de suas pernas – Rebuceteio que chama, né?

– Caramba... – Nicole resmunga, pensativa, pegando o baseado que Tamara lhe passava. Ficou tentando localizar onde ela própria estaria, no meio desse complexo emaranhado sapatão.

– Por falar em rebuceteio... – Tamara solta a fumaça que mantinha presa no pulmão, tossindo um pouco – ...essa semana encontrei por acaso a Tuca na rua. Um tempão que não a via.

– Maravilhosa! Ela foi outra que me salvou, recentemente, no meio de um fim de semana também. Me arranjou um gerador em cima da hora, Santa Ifigênia inteira fechada – Mariana comenta, puxando a mão de Nicole, evitando que o baseado voltasse para Tamara. Deu um trago profundo antes de continuar falando – Inclusive está dentro do porta-malas do meu carro até agora.

– Ela falou – Tamara comenta, com a testa enrugada. Olhava de perto a peça tirada de dentro do computador, até desviar e se focar em Mariana – Quer dizer, falou que te emprestou um gerador, não que você ainda não devolveu – ela ri.

– Sei, então quer dizer que as senhoras falaram de mim? – Mariana se finge de ofendida, mas ri.

– Claro, Mari. Impossível não falar – Tamara responde, distraída. Quando percebeu o que havia dito, pigarreou e voltou a olhar para ela – Digo, você se casou com um casal! Não é algo que se vê todo dia.

– Ahn – a concordância soou como um resmungo meio gemido – Mas isso foi há mais de um ano, já.

– É que fazia tempo que a gente não se encontrava – Tamara justifica – Da última vez, a Tuca e a Furacão ainda eram um casal, e você, não. Trisal, né?, quando são três. 

– Trisal, sim – Mariana responde com a voz mole. 

– Trisal... – Tamara repete, pensativa – A Tuca é uma querida, né. Uma pena que ela e a Katrina tenham terminado... Achava que as duas formavam um casal tão bonitinho! Não quando brigavam, é claro, aí eram um casal horroroso.

– É, elas combinavam mesmo – Mariana assente, dando outro trago no baseado, antes de passar adiante – É que mulher é difícil, né... – ela complementa, mas não diz mais nada, só deixa o comentário no ar sem especificar ao que se referia exatamente.

– Sim, mulher é foda mesmo... – Tamara concorda, fazendo fumaça, se perdendo em seus pensamentos.

Por não conhecer nenhuma das pessoas destacadas na conversa, Nicole também fica quieta, refletindo que precisaria escrever todos os nomes num papel, interligando esse monte de mulher à Mariana. Talvez ficasse mais fácil de entender a rede que as conectava de verdade.

Mariana namorou Camilinha, que era ex-namorada de Cibele, que costumava ficar com Tamara, que por sua vez de vez em quando pegava Mariana. E Nicole desconhecia completamente o fato de que a tal de Tuca era uma peguete em comum entre Mariana e Tamara, assim como sequer podia conceber que a mencionada Cibele espevitada tinha um passado em comum com Mayara, a Uber que a levou mais cedo à casa de Mariana – que por sinal também a conhecia, ainda que ela não soubesse exatamente em que nível ou profundidade. Para finalizar, nem de longe Nicole também teria condições de supor que Katrina/Catarina, a última a ser mencionada no papo entre Mariana e Tamara, trabalhava com Estela, a fotógrafa que a convidou para sair ao se conhecerem no baile dO Bistrô, mas que nunca mais disse nada a respeito. Realmente, ela precisava de um quadro para conseguir entender todo esse rebuceteio!

– O que você acha, Nicole? Contribua com a sua opinião, queremos ouvir o que pensam as mais jovens sobre o assunto – Tamara pede, depois de um tempo, assoprando a peça em suas mãos do jeito que se fazia antigamente com os cartuchos de videogame que paravam de funcionar.

– Bom... – Nicole joga a fumaça para o alto, após o pedido inesperado – Eu acho que às vezes existe uma romantização exagerada em torno dos relacionamentos. Sei lá, a gente espera uma perfeição que não existe, afinal, as pessoas são falhas e cheias de defeitos.

– Isso é verdade – Tamara concorda, enquanto Mariana assente com a cabeça, os olhos já vermelhos de erva.

– Além disso, o que noto é que muita gente se frustra achando que a outra pessoa é quem vai resolver os conflitos que internamente a gente leva a vida inteira para solucionar. Quando consegue!

– É, o ser humano se acha evoluído, mas é todo fodido da cabeça... – Mariana brinca.

– ... a frustração vem também porque há quem pense que namorada/esposa é propriedade – Nicole continua, empolgada por expressar o que pensava sobre o assunto – E nós somos fluidas, com interesses diversos, que mudam toda hora! Que mal tem de se querer beijar outra, por exemplo, mesmo estando com alguém? É só um beijo.

                Por este ser um ponto bastante sensível, Mariana fica quieta e não diz nada. Reconheceu naquela brisa que só tinha ouvido verdades, Nicole disse coisas que faziam sentido para o que vinha vivendo dentro de casa, com suas mulheres. Era difícil raciocinar, mas ainda que acreditasse piamente que Patrícia não teve a intenção de beijar Lola, e se teve? O que um beijo em alguém de fora realmente mudaria na dinâmica delas?

– Era disso aqui que vocês estavam precisando? – Tamara pergunta, a trazendo de volta ao presente. De alguma forma, sem que Mariana percebesse, outro computador passou a mostrar parte dos arquivos até então perdidos e aparentemente corrompidos.

– Ai, que beleza! – Mariana bate palmas três vezes – Eu sabia que se alguém no mundo era capaz de recuperar isso, esse alguém seria você, Tatá.

– Nossa, arrasou! – Nicole exclama, contente pelo feito. Sua voz saiu melosa porque já estava brisada – Eu achava que não ia ser possível! Me salvou muito, grata!

– Ni, mas você precisa, por favor, usar aquela rede que eu criei – Mariana pede, em um tom ao mesmo tempo de comemoração e suplício – A gente não pode ficar tendo esse tipo de emoção...

– Eu vou usar, chefinha, prometo. Posso mexer aqui um minutinho? – Nicole pega o laptop de Tamara e digita algo, bem rápido – Pronto, já salvei tudo lá. Vou chamar um Uber e termino em casa, já pedi o computador da minha tia emprestado. No máximo em até duas horas te envio tudo já pronto para a aprovação.

– Ótimo, o dia foi salvo pela Tatá – Tamara ri, se recostando em sua poltrona.

– Grata, Tatá – Mariana agradece, entregando o baseado para ela.

– É um prazer, gata. Tenho outro aqui para a gente fumar, está a fim? – Tamara oferece, pegando uma caixinha listrada de metal.

– Não posso, marquei de encontrar com a Lola, a gente vai almoçar.

– A Lola voltou para o Brasil? Sério? Faz tempo?

– Tem uns meses, já, sim. Ela está trabalhando lá nO Bistrô.

– Ah... – Tamara fica alguns segundos com a boca aberta, pensativa – Bem que me falaram que tinha uma bartender trabalhando lá que se parecia com ela! Não à toa: é ela! Que legal, adoraria vê-la.

– Meu motorista chegou, gente – Nicole anuncia, se levantando de repente – Tatá, mais uma vez agradeço a ajuda! E a brisa também, depois vou querer o seu contato!

– Claro, vou pegar seu número com a Mari e te mando uma mensagem no WhatsApp – Tamara abre a porta e se despede com um beijinho no rosto. Ao sair, tinham mais intimidade do que quando Nicole chegou – Para abrir lá embaixo é só apertar o botão, tá?

– Tá bom, tchau! Tchau, Mari!

– Tchau, Ni – Mariana se despede, sentada no sofá.

– Uma gracinha ela, achei – Tamara volta a sentar perto de Mariana – Suas mulheres não têm ciúmes?

– Não, elas são bem tranquilas. As duas são bastante seguras.

– Que bom, né! Deu sorte, menina – Tamara rebate, sendo sincera. Pensou que nem dava para ser diferente, se elas tinham se casado com alguém com tanto passado como Mariana.

– Você vai fazer alguma coisa agora à tarde? Pensei de, sei lá, chamar a Lola, a gente come por aqui. Preciso conversar com ela, mas nada que você não possa ouvir – Mariana fala, a observando preparar outro baseado. Este parecia mais grosso que o anterior, que já não era fino.

– Não, hoje eu tenho compromisso só à noite. Marquei encontro com uma dominatrix.

– Uau, que exótico. Legal, então vou chamá-la – Mariana puxa o celular e digita uma mensagem para Lola, seguida de sua localização.

Estavam na metade do baseado quando Lola chegou. Mariana se sentia entorpecida quando a viu entrar, abraçada com Tamara. Seu estado a impediu de continuar zangada com a amiga, embora ainda sentisse ser necessário ter com ela uma boa conversa.

– Lolita, você beijou a minha mulher, poxa vida... – ela começa, sem preparar exatamente a introdução daquele assunto. A abordagem pouco convencional espantou Lola, que estava careta, e fez Tamara rir.

– Amiga, eu juro que não quis – Lola se ajoelha ao seu lado no sofá, em vez de se sentar no assento livre – Estava loucaça naquela noite, tomei uma paradinha que não deveria antes de ir trabalhar, sem querer... Eu jamais faria algo para te magoar, Mari. Você é minha mana!, jamais!

– Você pegou a mina dela? – Tamara ainda parecia rir – Mancada, Lola.

– Tomei uma balinha velha, fui burra... – ela se levanta e pega o baseado, para então se sentar no sofá – Já me critiquei tanto desde então, faz noites que não durmo direito...

– É, lá em casa a coisa não está muito diferente... – Mariana resmunga.

– Eu sinto muito, Marimar. De verdade – Lola entrega o baseado para ela – Achei que me afastando do restaurante amenizaria um pouco...

– Você se afastou?

– Sim, a Patrícia não te falou?

– Não – Mariana responde, prendendo a fumaça – A gente não tem conversado muito. Mas... acho que a Tati comentou alguma coisa... A Zezé contou para ela, parece, só que na hora que ela contou eu estava distraída, depois até achei que tinha ouvido errado.

– Não, ouviu certo. Estou só com as aulas de inglês, está sendo OK, sou produtiva quando estou descansada. Assumi uma turma nova ontem.

– Olha só, Lorraine teacher! – Tamara zomba, mas parecia orgulhosa. Antes de viajar para o exterior praticamente tudo o que Lola sabia fazer era preparar drinques. E beijar muito gostoso! – Arrasou, mulher. Congrats.

– Valeu, Tatá – Lola agradece e cutuca a costela de Mariana com o cotovelo – Vamos ficar amigas de novo, vai? – ela aponta o dedo mindinho em sua direção, num gesto de reconciliação bem infantil.

                Aquilo bastou não para que Mariana simplesmente se esquecesse completamente do ocorrido, mas ao menos relevasse. Acreditava que Lola, assim como Patrícia, não tinha agido por maldade, talvez porque confiava demais, talvez porque não era tão maldosa quanto Tatiana, que tinha dificuldade de pensar diferente.

                Mas é claro que provavelmente jamais revelaria em casa o desfecho do desentendimento entre elas. Que era relativamente simples: Lola estava louca na noite do baile, se atrapalhou toda no escuro, pediu desculpas, fim. Não à toa o cigarrinho é da paz!

                As três passaram uma tarde absolutamente agradável, colocando os papos em dia, depois de um hiato de alguns anos sem contato. Atualizaram todas as fofocas do brejo enquanto fumavam e compartilhavam da mesma brisa, por horas e horas, com assuntos e risadas que se emendavam e despertavam novos temas, que tinham ou não conexão com a conversa anterior.

Mariana era a mais despreocupada delas, especialmente depois de receber a notificação de que Nicole havia encaminhado o projeto finalizado para aprovação do cliente. Nem isso precisou fazer, o que foi bom, porque possivelmente ela não conseguiria sequer mandar um e-mail. Desacostumada, fumou como se não houvesse amanhã, acompanhando Lola e Tamara, fumantes muito mais ativas.

                No fim do dia, quando Tamara começou a criar coragem para se levantar, tomar banho e se arrumar para seu encontro, Mariana constatou que não tinha a menor condição de dirigir até O Bistrô, o que a fez chamar Mayara, já perto das sete da noite. O jantar seria servido pontualmente às 19h30 e ela estava transtornada. Se sentindo maravilhosamente bem, super leve, mas extremamente entorpecida.

                A confirmação demorou alguns minutos e outros vários foram necessários até que Mayara finalmente chegasse ao endereço, mas Mariana não se importou de esperar porque não estava disposta a embarcar brisada no carro de algum estranho. O que não faltavam eram histórias de assédio em situações assim.

                Enquanto aguardava, escolheu uma camiseta no guarda-roupa de Tamara porque achou que a sua estava com cheiro de fumaça. Perdeu alguns minutos na frente do espelho, se encarando num reflexo que parecia diferente. Pensou em mil coisas enquanto isso, sem ter condições de se lembrar de algo depois. Da próxima vez, anotaria! Se lembrasse.

As três mulheres se despediram na calçada assim que o veículo branco encostou. Mariana seguiu para seu destino no banco de trás do carro perfumado da Uber, sua nova amiga desde que havia batido nela, duas semanas atrás, num semáforo fechado. Isso a fez lembrar do gerador no seu porta-malas, pensou em Tuca e daí o pensamento migrou para Tuca e Tatá. Ficou imaginando o que mais as duas teriam dito a seu respeito, no tal encontro por acaso, no meio da rua. Uma tossezinha de Mayara foi o que a trouxe de volta ao presente.

– Menina, mais cedo eu falei para Nicole te chamar e só agora estou aqui pensando que você não trabalha de manhã, só à noite! – Mariana comenta, enquanto subiam a Rua Augusta – E mesmo assim você foi! – o comentário final fez a motorista rir no banco da frente.

– É, mas tudo bem. Quando vi que quem estava pedindo corrida era a Nicole, fiz questão de abrir uma exceção – Mayara responde, a olhando pelo espelho retrovisor. No recorte, suas sobrancelhas bem feitas se destacavam.

– Ah, vocês se conhecem? Ela não comentou, não sabia... Que mundo pequeno!

– É, uma vez a socorri depois de um acidente de trânsito. Não faz muito tempo, coisa de alguns meses. Foi como reencontrei minha atual namorada, inclusive. A Taís trabalha como socorrista de ambulância, ela que nos levou ao hospital.

– Olha, que acaso maravilhoso! É aquela moça que estava com você no baile, né? Muito bonita.

– Ela é linda, mesmo – Mayara tinha um tom envaidecido – Só trabalha demais, mas ninguém é perfeita, né.

– Pois é, minhas esposas falam a mesma coisa de mim.

– O quê? Que você não é perfeita? – Mayara sorri pelo espelho, antes de virar à esquerda na Avenida Paulista. O trânsito àquela hora estava bem tranquilo, com poucos carros e a motorista se manteve com a mão direita apoiada no câmbio.

– Não, elas falam que eu trabalho demais – Mariana sorri também. Patrícia e Tatiana igualmente diziam que ela era perfeita, mas não quis comentar – Amanhã vou folgar.

– Faz bem, amanhã é domingo... As pessoas costumam descansar nesse dia.

– É... Mas estou sendo um pouco obrigada a isso, confesso. Estou cheia de trabalho, mas tenho que comemorar um aniversário.

– Hum, e você não gosta muito de festas?

– Não sei se saberia gostar! – Mariana dá uma risada triste, vendo a tela do celular em seu colo se acender ao receber uma mensagem que ela não leu – Cresci numa família religiosa, em casa a gente não comemorava aniversário, natal, nada. Aí é difícil hoje em dia, depois de velha, me acostumar com certas coisas. Tipo isso. Parece sempre que é algo forçado, sei lá.

– Entendi. Sei bem como é, a minha família é Testemunha de Jeová. Depois que saí do Salão a gente praticamente perdeu o contato, virei uma estranha, mas foi bom porque passei a comemorar meu próprio aniversário. Foi meio o que me fez ser motorista hoje. Digo, uma coisa foi levando à outra... Confesso que até hoje não aprendi a beber!

– Ah, então você sabe mesmo como é. A minha família também é toda metida com essas coisas, meus pais, meus parentes, todo mundo é bitolado – Mariana tira os óculos e esfrega as lentes na barra da camiseta, numa tentativa de limpá-las – Mas ao contrário de você, uma das primeiras coisas que aprendi a fazer foi a beber.

– E mais alguém, além de você, agora é do mundão? – Mayara diminui a velocidade, parando num semáforo vermelho. Aproveitou a pausa para olhar a passageira mais uma vez, agora por cima do ombro. Seus movimentos liberavam parte de sua fragrância no interior do carro.

– Eu e um primo. Um primo trans. Nós dois fomos expulsos juntos da religião muitos anos atrás, ainda éramos adolescentes. Meu pai pegou a gente dando um selinho atrás de casa. Meu primo ainda se chamava Elis naquela época, isso foi o que me trouxe à São Paulo. Sou do Paraná.

– Uau – a motorista exclama, engatando a primeira marcha – É, não é fácil, mas que bom que vocês se têm. E você não é velha, Mariana! Dá para se acostumar com o que é bom. Suas esposas gostam de festa?

– Uma mais que a outra, mas sim.

– Então, aproveita, boba! Curte a vida! Foda-se a sua família e o que eles fazem ou deixam de fazer. A gente tem que superar certas questões, senão não avança na vida.

– Sim, você está certa. Eu vou, mesmo. As comemorações já começam hoje, vai ter um jantar daqui a pouco. Que já deve estar começando, inclusive.

– E você ainda está a caminho, na brisa de Jah – Mayara ri.

– Pois é, quis me amortecer um pouco, mas acho que me amorteci foi muito – Mariana ri também – Se até você percebeu...

– É que eu sou muito observadora – ela pisca um olho, pelo espelho – Talvez ninguém mais perceba.

– Duvido – Mariana para de sorrir quando o carro estaciona em frente aO Bistrô – Se tem um lugar em que sou dissecada como se passasse num aparelho de Raio-X, é aqui.

– Então boa sorte – Mayara, ao contrário dela, ainda sorria.

– Grata, Maya. Valeu pela corrida também, se cuide e cuidado com as malucas no trânsito – Mariana se despede, abrindo a porta para poder desembarcar – ...elas costumam bater em carros parados!

– Pode deixar – Mayara ri, afinal foi assim que se conheceram – Até a próxima, Mari. Bom fim de semana!

                Mariana acena e entra no restaurante. Ao passar pela porta giratória, se ordenou caminhar o mais ereta que conseguisse, sem chamar muita atenção. Mas assim que pisou no salão, derrubou sua bombinha de asma no chão, a tampa foi parar debaixo de alguma mesa mais à frente, ela nem viu qual.

– Oi, a Patrícia está te esperando. A Tati também – Zezé anuncia, tão logo a vê. Foi ela quem se abaixou para pegar o remédio – O jantar ainda não foi servido – completa, caminhando um pouco mais à frente, meio que abrindo caminho até onde as mulheres estavam.

– Que bom, me atrasei um pouquinho – Mariana se justifica, ciente de que não devia nenhum tipo de explicação. Para todos os efeitos, estava trabalhando, não fumando maconha na casa de ex.

                O relógio na parede do restaurante marcava 20h15. Enquanto seguia Zezé por entre as mesas, todas ocupadas e com o tilintar típico de copos e talheres em pratos, Mariana sentiu o celular vibrar dentro do bolso duas vezes e nem precisou pegar o aparelho para saber de quem eram as mensagens. De longe, mesmo com os óculos sujos, viu Tatiana com o rosto iluminado pela tela do celular. Ela pareceu pressentir sua chegada e seus olhares se cruzaram como se Mariana a tivesse chamado. Se derreteu um pouquinho por dentro porque achou o sorriso de Tatiana deslumbrante no meio daquela brisa.

                A última mesa do salão, perto da passagem para o bar, nos fundos, estava arrumada para um jantar festivo e todas as cadeiras estavam ocupadas. Na cabeceira, Patrícia conversava com Ramona, seu amigo gay do topete alto e energia esquisita, e seu rosto se iluminou em câmera lenta ao ver Mariana chegar. Por algum motivo, Patrícia achou que a mulher não viria e ficou tão satisfeita por ter se enganado que tentou não reparar que ela estava um pouco alta.

– Agora, sim, essa festa está completa – Tatiana diz, se levantando para beijar a esposa, antes que ela chegasse à mesa. Estava bonita, com o cabelo todo arrumado e maquiagem – Você fumou antes de vir para cá? – pergunta, enquanto ainda estavam abraçadas, cheirando a gola de sua roupa. Mariana se contorceu um pouquinho e se arrepiou, ao sentir a respiração da mulher tão perto. Estava toda sensível!

– Só um pouquinho, uhum. Só um peguinha ou dois – Mariana mente, evitando encará-la para não ser pega de calça curta.

– De quem é essa blusa? O que aconteceu com a sua? – ela inquire, baixinho, se afastando alguns centímetros para ler o que as letras pequenas diziam, perto do peito: “Feminista. Esquerdista. Abortista. Não mexe comigo, pois não ando só!” – Mari... – Tatiana resmunga, mas não diz nada. Só ri.

– Minha blusa ficou fedendo a fumaça – ela se explica, parecendo só agora ler o que a malha branca dizia em letras pretas garrafais.

– Sei. Depois de dar um peguinha ou dois? – Tatiana ainda estava rindo. De todas as possibilidades, não tinha pensado neste desfecho para a noite.

– É, amor! – Mariana a abraça, respirando fundo ao ficar perto do cabelo dela. Não reparou se alguém as observava, pois ficou inebriada. Tatiana tinha um cheiro bom e ótimo gosto para escolher perfumes.

– Tá, vem falar com a sua esposa, que achou que você tinha desistido de vir – Tatiana fala, um segundo antes de soltá-la do abraço. Deu um beijo em sua bochecha, até realmente separar seus corpos.

– Oi, oi, boa noite! – Mariana acena com a mão, cumprimentando os presentes, antes de beijar Patrícia e se sentar ao seu lado. Fez questão de olhar no rosto de cada um, que pareciam borrões em volta da mesa, depois que tirou os óculos e os prendeu na gola da camiseta, tampando parte dos escritos – Cheguei!

– Que bom, senti sua falta. Achei que você não vinha – Patrícia diz, baixinho, num volume que apenas Mariana ouviu. E Tatiana, que do outro lado da mesa fez leitura labial e acenou com a cabeça, concordando.

– Até parece que eu não viria... você insistiu tanto em fazer esse jantar – Mariana cochicha também, dando um selinho na mulher. Manteve seu rosto próximo ao dela por um instante, porque daquele ângulo a achou lindíssima. Era raro ver Patrícia “desmontada” nO Bistrô, e sempre um choque prazeroso encontrá-la assim, ali.

– É, ué. Aniversário é só uma vez no ano, a gente tem que comemorar enquanto está viva – Patrícia se justifica, usando o mesmo argumento utilizado nos últimos dias.

– Tudo bem, vamos comemorar, então – Mariana assente, levantando o braço para iniciar um brinde, com um copo vazio – Só nós, vem cá, vem cá – ela olha para Tatiana, que encurva o corpo na cadeira, para se aproximar – Um brinde ao nosso casamento, ao amor...

– Ela fumou maconha – Tatiana balbucia, mas Mariana capta.

– Eu percebi – Patrícia responde, a olhando com os olhos retraídos – Lembrei da última vez, na virada do ano.

– Péssima viagem... – Tatiana resmunga.

– O hotel era maravilhoso – Mariana diz, ao mesmo tempo – E a gente aproveitou horrores aquela banheira. Saudades, inclusive – o comentário faz as mulheres rirem – A gente precisa fazer as pazes logo, estou com saudade de ser marmita de casal.

                Patrícia e Tatiana riram ainda mais alto ao ouvirem aquilo, fazendo alguns dos convidados olharem para elas. Pedro apareceu na mesma hora e serviu as taças vazias, tomando o cuidado de colocar água no copo de Tatiana, que parecia mais leve do que quando havia chegado, cerca de uma hora atrás. O garçom tinha uma teoria de que Mariana amenizava o estresse entre a chef e sua esposa, e segundo os relatos de Andreia, conseguia entender de que maneira. 

                Secretamente, tinha crush em Mariana. A achava despojada, além de dona de uma beleza única, envolta num ar de gente distraída. Combinava com Patrícia e Tatiana, tão sérias e tão focadas, e o trisal era o sonho de metade das pessoas que passava por ali, a começar por ele.

                A distância, lhe pareceu que o mal-estar que obviamente havia entre elas desde a última festa começava a se dissipar. Talvez só Tatiana ainda se mantivesse um pouco de guarda alta, mas naquele jantar deu a impressão de estar menos na defensiva.

Pedro estava terminando de tirar os pratos, antes do cafezinho e a sobremesa, quando uma cliente que jantava em outra mesa se aproximou das três. De soslaio, o garçom percebeu sua caminhada determinada, em passos firmes.

– Boa noite, desculpa, não quero atrapalhar vocês – a mulher diz, parando bem ao lado de Mariana e Patrícia – Não achei que te veria aqui no salão, não pude deixar de vir cumprimentá-la.

– Oi, Alê. Que surpresa! – Patrícia se levanta para um cumprimento informal, depois de alguns segundos. Acenou para a acompanhante de Alessandra, que permanecia sentada, e Antonieta retribuiu o gesto.

– Tati... – Alessandra diz.

– Alê... – Tatiana responde, a cumprimentando no mesmo tom.

– Essa é Mari, nossa esposa – Patrícia apresenta e Mariana acena com a cabeça. Pela linguagem corporal de Tatiana, era o que deveria fazer.

– Prazer, olá – Alessandra a cumprimenta, antes de sua atenção se voltar integralmente para Patrícia – Não vou tomar seu tempo, só vim mesmo falar um oi, ver como você estava. E, claro, te desejar um feliz aniversário, Patrícia. Parabéns por mais um dia 23!


A Novelinha continua clicando aqui.

Sabia que ao comprar o livro físico da Novelinha, além de contribuir com esta autora, você tem acesso a uma história exclusiva?


Clique aqui para acessar o menu completo com todas as histórias.

Ajude esta escritora independenteclique aqui e faça uma doação
Você não precisa se identificar, se não quiser! 💙


Postagens mais visitadas