Presente de Natal (conto)

ATENÇÃO: contém temas sensíveis. Recomenda-se precaução. 

Giulia caminha rapidamente para longe da festa, os passos apressados ecoando na rua escura e deserta. O calor úmido de dezembro a envolve como um abraço indesejado, transmitindo um bafo quente e sufocante, mas ela não parece se importar. Nem o fato de estar calçando um par de botas que vão até os joelhos, num verão de quase 40º, mesmo à noite, dá a impressão de incomodá-la.

Na mão, a mulher segura firme a sacola com a fantasia de Mamãe Noel enfiada ali dentro de qualquer jeito, o tecido vermelho ainda molhado de suor. A festa parecia distante agora, mas os ecos das risadas e da música natalina ainda reverberam em sua mente, no volume máximo.

A jovem se afasta um pouco mais, sem olhar para trás, até que finalmente não ouve nada além de sua respiração acelerada. Ela então observa a fantasia amassada, sentindo uma sensação satisfatória de alívio, que a faz sorrir sem perceber. O peso sobre seus ombros, o peso daquela noite, de repente tudo começa a desaparecer.

Ele estava morto.

Giulia respira fundo e para por um momento, tentando se restabelecer. O calor não dava trégua e, ao se escorar num poste, gotas de suor caem em direção ao chão no mesmo instante em que a lâmpada amarela pisca lá no alto, como se sua energia de alguma forma pudesse interferir na rede elétrica. Estava finalmente sozinha, longe de todo aquele espetáculo de risos e falsidades que a festa representava, e logo sua mente volta a analisar cada detalhe, cada sorriso e cada gesto que Walter Monteiro Bueno fez para atrair atenção e enganar todo o mundo com sua fachada de empresário bem-sucedido.

A sacola com a fantasia de Mamãe Noel pesava em sua mão, como uma lembrança do que havia acabado de acontecer. A certeza de que sua missão finalmente havia se cumprido gera uma satisfação estranha e ao mesmo tempo profunda, uma mistura de alívio e algo mais. Não era arrependimento nem dúvida, mas um vazio, uma ausência, uma vez que sua vida foi quase toda direcionada para este momento. Embora Giulia não soubesse definir, sabia que a sensação não desapareceria facilmente. Ela enfim concretizara seu plano e o matara, e agora precisaria encontrar meios para obter paz consigo mesma. 

Seus olhos varrem o quarteirão e se fixam na rua vazia. As luzes de Natal piscavam em algumas casas, como se o bairro não tivesse percebido o que havia acontecido naquela noite, minutos atrás. A calmaria festiva era tamanha que pareceu que o crime era apenas parte de um sonho. Mas ela sabia se tratar da realidade, um presente sem volta. O passado de Walter Monteiro Bueno não podia ser perdoado e Giulia tinha plena consciência de que depender da justiça dos homens não resultaria em nada. Por isso agiu.

Ela então se recorda de quando viu Walter de perto, depois de adulta, na ocasião de quando entrou para a empresa para trabalhar como Jovem Aprendiz. A maneira como o empresário a olhou, com um misto de desprezo e prazer, como se Giulia fosse apenas mais uma peça qualquer de seu jogo, foi degradante e asquerosa. Especialmente porque ele não pareceu se lembrar dela. A situação foi tão absurda que, mesmo distante, ainda permanecia viva em sua memória, tão fresca quanto as lembranças de minutos atrás, com o empresário agonizando, engasgado com a tentativa de cuspir suas últimas palavras, impregnadas pelo próprio sangue.

Com um movimento brusco, Giulia abre a sacola e puxa a fantasia de Mamãe Noel. Ela a olha mais uma vez, como se estivesse revendo uma parte de si mesma através do disfarce que a escondeu e a protegeu naquela noite. Em retrospectiva, lembra-se de como atraiu Walter para sua emboscada, com um sorriso falso e a mesma jovialidade que ele sempre usava. Giulia recorda-se então da sacola de doces e especialmente do pirulito batizado. Uma pequena dose de veneno e ela acabou com tudo.

Por anos, Giulia se dedicou a estudar e planejar cada passo, calculando os mínimos movimentos. Não havia chance de erro; ele não ia escapar. O homem que destruiu tantas vidas, que manchou tantas almas, que levou tanta gente às lágrimas… finalmente havia pagado o preço. Walter Monteiro Bueno não era mais uma ameaça e nunca mais poderia ferir outra pessoa, ou esconder suas atrocidades sob o manto da riqueza e do poder, que sempre o blindou.

Com satisfação, Giulia joga a fantasia numa lata grande de lixo. O tambor, de metal, reproduziu o som dos adornos da roupa, os últimos a queimar. Seus olhos reluziram ao incinerar a fantasia junto com o descarte fedorento, liberando uma fumaça que só não era mais tóxica que Walter Monteiro Bueno. O agora defunto Walter Monteiro Bueno.

– Ele está morto – Giulia diz, pela primeira vez em voz alta – Morto – repete, com o rosto imediatamente sendo transformado por uma risada que se emenda numa gargalhada, quase um grito. Alívio, tensão e prazer se misturam em um único som, que vibra gostosamente em sua garganta, liberando tensões acumuladas em seu peito durante anos a fio.

Naquela noite, quando chegou na empresa, Giulia já sabia o que fazer. Após trabalhar ali durante três anos, tinha familiaridade com cada um dos corredores, incluindo aqueles de acesso restrito, fechados para circulação durante a festa de fim de ano. Ela sabia exatamente onde o empresário ficava, onde ele se escondia e, o mais importante, tinha pleno conhecimento de como Walter Monteiro Bueno se divertia com suas “brincadeiras” nas festas de Natal. Embora ficasse rodeado de pessoas que o bajulassem, como se fosse o grande herói do universo, em dado momento ele escapava dos olhares para satisfazer seus prazeres sórdidos e criminosos. 

A questão é que Giulia sabia a verdade e conhecia bem o homem por trás da máscara. Para sua sorte e para a eficácia completa de seu plano, porém, Walter Monteiro Bueno jamais desconfiou de suas más intenções. A jovem sabia que naquela noite ele a veria apenas como mais uma entre as mulheres à sua disposição, usadas como distrações em suas festas. O empresário jamais desconfiaria dela, tampouco se recordaria de seu rosto como sendo o daquela garota tímida e esforçada que ele via apenas como um rosto comum entre tantos outros à sua volta, povoando seu pequeno reinado. 

Mas Giulia estava muito, muito longe de ser alguém comum. Porque ela se preparou por anos, apenas aguardando o momento certo para agir e especialmente porque seus motivos estavam intimamente ligados aos crimes do empresário. Ou seja, seus atos eram puramente uma reação à ação de Walter.

Naquela festa, quando o viu com seu terno impecável e aquele sorriso forçado, o sangue dela ferveu, mas Giulia manteve-se calma e tranquila, ciente de que era hora de agir. Fantasiada de Mamãe Noel, aproximou-se dele com sua sacola de doces e com o pirulito batizado na mão, fingindo ser apenas mais um gesto gentil, uma oferta inocente. Ele aceitou o doce sem pensar duas vezes, como fazia com tudo o que lhe era oferecido, achando-se intocável, imbatível, acima do bem e do mal. Um pequeno gesto típico de sua arrogância e ele selou o próprio destino.

 O veneno escolhido tinha ação discreta e, após ingerido, começou a agir lentamente. Giulia ficou por perto, fingindo docilidade, como se fosse realmente parte da festa, observando cada mudança no rosto de Walter. Primeiro, notou a sensação de incômodo, que o levou a afrouxar o nó da gravata, como se o ambiente se tornasse repentinamente mais quente. Depois, observou a tontura amolecer seus membros, ao que ele tentou disfarçar com um gole de uísque, enquanto conversava com alguns bajuladores. Giulia sabia que ele jamais suspeitaria dela e do pirulito ofertado instantes atrás, e isso a manteve o tempo inteiro extremamente calma, ainda que seu coração batesse mais forte a cada segundo.

Walter se afastou do grupo após alguns minutos, assim como Giulia havia previsto. O veneno fazia efeito e ele precisava de um lugar mais reservado, onde pudesse respirar sem chamar atenção. Giulia o seguiu discretamente, mantendo-se fora de vista, mas perto o suficiente para garantir que ele não escapasse de seu radar. O empresário então entrou no corredor restrito, aquele que Giulia sabia que seria usado como rota de fuga, e foi direto para o banheiro privativo ao final, quase correndo. Só não o fez porque, a distância, Giulia viu que suas pernas se trançavam, como as de um ébrio.

No banheiro, Walter começou a sentir os efeitos mais graves. Ao encontrá-lo, Giulia viu que suas mãos tremiam e gotas de suor escorriam pela testa de maneira abundante, encharcando o colarinho de sua camisa social, deixando o tecido mais escuro nesta região. Ele até tentou abrir a torneira e jogar água no rosto, mas seus movimentos estavam descoordenados. Foi então que a viu pelo espelho. Giulia, parada na porta, ainda segurava a sacola de doces, com os olhos fixos nele e um sorriso de satisfação enfeitando o rosto.

– Você... – Walter tenta falar, mas a voz sai fraca. Ele se abaixa lentamente, encostando-se na pia, na tentativa de se equilibrar – O que foi que você fez? – questiona, encarando a sacola vermelha nas mãos da mulher, no mesmo instante em que seus joelhos se dobram e ele cai no chão, provocando um estampido seco no contato dos ossos com o porcelanato.

Giulia não responde nada de imediato. Saboreando algum tipo de vitória, ela deixa a sacola cair no chão e dá um passo à frente, com uma calma assustadora. Sua expressão é fria, quase inexpressiva, mas seus olhos brilham com uma determinação inabalável. Transmitem sentimentos que, em sua confusão, Walter não consegue identificar.

– Você sempre achou que podia fazer o que bem entendesse, não é? – Giulia pergunta, entredentes, com a voz firme, mas muito baixa, parecendo um sussurro raivoso – Sempre achou que ninguém teria coragem de te enfrentar. Cadê seu poder agora, seu bosta?

Walter tenta se mover, mas suas pernas não respondem e ele acaba caindo, meio de lado, o rosto colado na base do vaso sanitário. Ofegante, arregala os olhos em pânico ao ver Giulia se ajoelhar à sua frente, abaixando-se até ficar na altura de seu rosto.

– Sabe o que é mais irônico? – ela continua, inclinando-se um pouco mais – Você sempre viveu cercado de luxo, todo poderoso, intocável atrás das paredes do seu império... e agora vai terminar aqui, nesse chão sujo, se afogando na sua própria podridão. Bem apropriado, não acha?

Walter tenta dizer algo, mas tudo o que consegue é emitir um som gutural. Seus lábios tremem e seu rosto começa a ficar pálido, no desespero de se ver naquela situação e graças ao efeito do veneno, que a esta altura fazia seu trabalho final.

– Agora você finalmente entende o que é ser impotente – Giulia fala, com a voz carregada de desprezo, levantando-se sem pressa. Ao ficar em pé, deu um chute nele que nem precisou ser muito forte para fazê-lo tombar ainda mais – Isso é por cada vida que destruiu, senhor Monteiro Bueno, por cada criança que você atraiu com doces para depois roubar a inocência delas – Giulia respira fundo, com o olhar queimando de fúria, fuzilando o empresário, que se contorce no chão, abraçando a privada – Você se fodeu por causa de um pirulito. Curioso, né? Foi isso que sempre usou para enganar tantas crianças, inclusive para me enganar e destruir a minha infância... E é isso que no fim vai acabar com você.

Walter tenta dizer algo, mas com o esforço ele apenas tosse, o corpo convulsionando no chão frio. De sua boca sai um jorro espesso e vermelho, que no mesmo instante mancha o mármore branco. O sangue rapidamente se mistura com o suor em seu rosto, criando uma máscara nojenta que escorre até o queixo e pinga, uma gota por vez, lembrando uma ampulheta macabra que marcava seu fim, tingindo ainda mais o tecido fino de sua engomada camisa social.

Os olhos arregalados do empresário refletem uma mistura de dor, desespero e algo que finalmente se assemelha a um medo verdadeiro, enquanto o líquido viscoso desce por seus lábios, sufocando as palavras que ele jamais dirá.

Giulia o deixou ali, sozinho, e saiu pelo mesmo corredor por onde tinha entrado. Não olhou para trás nem uma vez; sabia que ele não sobreviveria. Soube disso no momento em que ele aceitou o pirulito – ou até muito antes disso, quando ela ainda tinha oito anos e viu sua infância ser despedaçada graças às atitudes pedófilas do empresário, numa festa de Natal.

Ao retornar para junto dos convidados, Giulia pegou suas coisas e saiu da empresa sem levantar suspeitas. Agora, ao voltar a caminhar pela rua deserta, deixando para trás o calor da fantasia sendo queimada no latão de lixo, ela sente que o peso daquele dia tão distante e ainda assim tão pulsante em suas lembranças começa a desaparecer, mesmo que sua mente ainda esteja cheia de ecos, traumas e imagens. A cada passo, o mundo parece um pouco mais leve, um pouco mais livre.

Walter Monteiro Bueno estava morto. E Giulia finalmente sentia-se viva.


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