Quando chove a chuva
Tem gente que não gosta, diz que deprime, que é triste, que traz uma certa sensação de melancolia, mas eu particularmente adoro a chuva. Fico contentíssima quando acordo de manhã e vejo aquele céu carregado, bem escuro e molhado, me dando as boas-vindas para um dia chuvoso. Gosto de apreciar a beleza das gotas caindo em linha, o som da água cantando no telhado e observar as árvores que dançam, aparentemente felizes, vistas da janela do meu quarto. Tudo na chuva parece música e evoca melodias que só são ouvidas assim: quando a gente tem a capacidade de ver beleza até no que boa parte das pessoas aponta como sendo feio e introspectivo.
Mas isso nem sempre foi assim.
Quando eu era criança, vivenciei um vendaval na cidade onde cresci que me traumatizou por anos a fio. Foram ventos fortes que mataram gente, levantaram vacas, viraram carros, capotaram um ônibus e derrubaram inúmeras árvores, destelhando quase completamente o telhado da minha casa, que era bem alta, num bairro àquela época sem muitos vizinhos. O som do vento uivando na fresta da janela foi um dos detalhes que mais me marcou, além do barulho das telhas se chocando violentamente contra o chão de cimento lá embaixo. O ano era 1991 e na ocasião não existia internet, tampouco 3g, o que nos levou a ficar vários dias incomunicáveis, sem luz ou telefone. Só depois de um tempo descobrimos o tamanho da tragédia provocada por um tornado que teve a duração de 60 minutos e ventos de mais de 300km/h.
Fatalmente fiquei traumatizada, é claro. Eu, uma pepina emocionada que se marca por qualquer bobagem, passei anos depois disso apavorada ao menor sinal de garoa que fosse. O céu nublava e eu corria para fechar as janelas de casa, das venezianas aos vidros, incluindo as cortinas, que não abafavam o som da chuva, exatamente, mas me impediam um pouco de ver os clarões dos raios e relâmpagos iluminando o mundo lá fora diante de alguma tempestade.
Me curar disso envolveu basicamente duas etapas, importantes, com alguns anos separando uma da outra. Primeiro, quando tomei um banho de chuva num momento de descontração e brisa, no final daquele século, que só me fez reparar na gravidade do evento climático quando me deparei com duas colegas chorando, abraçadas debaixo de uma marquise, segundos antes de uma árvore centenária se espatifar diante de nossos olhos (que certamente enxergavam cenas diferentes naquele dia, eu sei). Lembro que era uma manhã de muito calor e eu tinha amarrado os cadarços do meu tênis em volta do pescoço, seguia feliz pelo caminho da água, no meio da rua, descalça, pulando nas poças de lama. Foi um momento importante e uma experiência bastante singela e especial, principalmente porque sobrevivi enquanto navegava na maré dos meus traumas, até então tão bem ancorados dentro de mim.
Anos mais tarde, com toda essa situação já devidamente assentada, ainda que não completamente curada, tive uma revelação importante num dia de chuva. Eu estava num lugar muito, muito bonito, que tinha um gramado que ficava mais verde e brilhante quando chovia, com as florzinhas coloridas salpicando as gotas que pareciam prateadas ao se prenderem na ponta das pétalas. Tudo me pareceu tão harmonioso e tão bonito, ainda mais embalado naquela atmosfera fresca que exalava um delicioso cheiro de terra molhada, que pude entender parte do conceito por trás de cada vida.
Sim, naquele dia, senti Deus através da chuva. Talvez não aquele deus que se pinta por aí, nos discursos repetidos sem emoção ou conscientização do que se profere. Certamente também não o deus que se teme nas esquinas e nos salões, como um barbudão mal resolvido que pune suas próprias criações. Não. O que senti (eu, que até então era descrente e me dizia ateísta) foi além do que cabe em palavras porque me confortou como mais nada jamais havia me confortado até ali, de um jeito que nada mais jamais me consolou depois daquilo. Porque passado esse dia, nunca mais me senti só, de verdade. Desde então, me reconecto com essa energia criadora e curadora, especialmente em dias de chuva.
Acredito que o cenário da vida é muitíssimo bem feito, no sentido de ser realista ao ponto de a gente se esquecer do que veio fazer aqui – o que, na tinha humilde opinião e sincera concepção, tem relação com experimentar tudo aquilo que a nossa existência traz para cada uma de nós. A gente taxa determinada situação como sendo “boa” ou “ruim”, “positiva” ou “negativa” porque nos limitamos a essa dualidade que insiste em nos forçar a medir as coisas com uma régua que só tem dois lados e nenhum meio-termo. Em outras palavras, tudo é benéfico e feito sob medida para você, ainda que num primeiro momento pareça fazer mal. Só que tem um ponto, importante: nenhuma vivência jamais será valorizada se você insistir ser algo prejudicial.
A chuva prova isso. Eu sou prova disso! Hoje acordei mais feliz e inspirada só porque estava chovendo.
Essa crônica pode ser ouvida: ouça caribu.
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