TPM - Capítulo 4: A fake news

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Um dos principais e mais valiosos ensinamentos que Patrícia recebeu nos primeiros anos de sua existência é que tão importante quanto o que ocorre na vida de alguém é a maneira como a pessoa reage diante do fato. É mais ou menos como aquela máxima que diz que “se por acaso a vida te der limões, faça limonada”. Em seu caso, optou por fazer suflê de batata com queijo e um ingrediente especial; esta foi a primeira receita que aprendeu, aos sete anos de idade, muito antes de ser chef de verdade. Foi assim que Patrícia virou cozinheira: ao ser abandonada pela mãe quando ainda era criança.

A cozinha desde então passou a ser ao mesmo tempo uma espécie de refúgio e também um santuário; rapidamente virou seu lugar-comum – fosse a cozinha de casa ou a de seu restaurante, anos mais tarde. Naquele ambiente encantado e encantador, seu primeiro abrigo contra o abandono, ela não apenas encontrava-se consigo mesma como também ativava o poder de se esquecer de quem era de verdade, num paradoxo que lhe permitia se conectar a uma personalidade que vivia longe dos problemas comuns, banais, típicos do cotidiano. Em meio às panelas, envolta no aroma delicioso de temperos refogados no calor confortável do fogão, Patrícia de alguma forma acessava seu alter ego. E aí se transformava numa mulher acima do bem e do mal. Uma supermulher. Imbatível.

Na infância, passou a cozinhar devido à completa falta de um adulto funcional em seu lar, já que seu pai demorou bastante tempo para aceitar aquilo que a vida lhe impunha, o que o levou a deixar de fazer o básico, por exemplo, alimentá-la. Até hoje Patrícia não sabia se a reação de seu genitor (ou a simples falta de ação) foi porque ele não queria ou se apenas não sabia ser cuidador.

O fato é que embora presente fisicamente, em boa parte do tempo, Cássio conseguia ser ausente de várias maneiras, a começar emocionalmente, mas havia outras, muitas outras. E mesmo novinha Patrícia entendeu que os adultos sabem ser imaturos. E perigosamente irresponsáveis.

Quem a salvou do completo abandono nos primeiros anos foi dona Amélia, sua avó materna, que por sorte morava no prédio ao lado de onde Patrícia residia. A mulher foi a responsável por zelar por ela enquanto crescia, embora a distância (em vários níveis), e também foi quem ensinou o que havia de mais valioso naqueles dias tão sombrios: os primeiros conceitos de culinária, fundamentais para que ela pudesse resistir aos desafios que sua jovem vida já lhe impunha. Patrícia aprendeu com ela a fazer arroz, temperar feijão, montar e desmontar uma panela de pressão e outras coisinhas importantes que sua avó chamava de “o básico”, ou “o bê-á-bá”.

Amélia ensinou até mesmo a não chorar, caso eventualmente ela se queimasse. E no começo se queimou, de várias formas, porque tudo era muito grande para uma pessoa ainda tão pequena, como era na ocasião. Depois, as marcas serviam para lembrá-la de não encostar no forno quente, ou tomar mais cuidado com o óleo que respingava da panela fervente.

Embora significativa, quiçá até fundamental para sua sobrevivência, Amélia era uma mulher de idade, velha demais para ter outra filha, o tipo de pessoa que não costuma ser muito paciente com os outros. Ainda que aparentemente tivesse boas intenções, Patrícia entenderia anos mais tarde, na terapia, que a avó ecoava o narcisismo presente também na filha, no caso sua mãe, com um tom constante de desdém disfarçado de preocupação em toda e qualquer ajuda que oferecesse, sempre encoberta de frieza.

Sobrevivência foi o que a levou para a beira do fogão, na ponta dos pés, testando combinações que tirava da própria cabeça, valendo-se dos ingredientes que encontrava pela frente. Ali não somente desenvolveu suas excepcionais habilidades culinárias, como também adquiriu uma espécie de resiliência enquanto alimentava o desejo de criar algo que trouxesse um pouco de conforto, além da mera nutrição. Tudo porque compreendeu cedo que era a responsável por oferecer a si mesma doses de bem-estar, já que o mundo parecia privá-la disso.

A culinária, inicialmente uma necessidade de sobrevivência, ganhou camadas mais significativas à medida que o tempo passou, se transformando também numa forma de se comunicar, ainda que com palavras que muitas vezes ela mesma precisava escutar, num tipo de autocuidado. Na cozinha, Patrícia não apenas fugia para longe de si mesma como também se aterrava, já que tudo o que preparava era exatamente o que a mantinha por aqui. E essa experiência se incrementou depois que cresceu e se casou, também porque as esposas tinham o dom de fazê-la sentir-se igualmente viva, graças às fortes emoções proporcionadas tanto por Tatiana quanto por Mariana, às vezes de maneira simultânea, como agora.

Talvez por isso, ainda hoje, já adulta e bem resolvida, quando vez ou outra se via envolvida em questões que não queria lidar, por exemplo, a mudança repentina de Mariana para outro lugar, Patrícia simplesmente corria para a cozinha, seu esconderijo especial; seu subterfúgio preferido.

Além de tudo, estar ali era sempre um bom motivo para não ter que socializar nem precisar interagir com ninguém, o que era perfeito para poder meditar, refletir e colocar a cabeça no lugar. E, em todo caso, as pessoas têm que comer para viver e alguém precisa cozinhar para alimentar, e era ela quem desempenhava essa função entre as três, por vontade própria. Adoraria ficar de cochicho no sofá, como as esposas estavam agora, mas satisfazia-se também em poder cuidar. Preparar um lanche não deixava de ser uma forma de se conectar com as duas e expressar o que as palavras nem sempre eram capazes de exteriorizar.

Compreensivelmente, por tudo o que havia vivido e construído a partir de suas experiências pessoais, o alfabeto da linguagem do amor de Patrícia era composto por comida, de todos os tipos. Das simples refeições básicas aos banquetes fartos e bem elaborados. E ela amava cozinhar para Tatiana e Mariana, que tinham hábitos alimentares tão... peculiares. Tão iguais, embora diferentes.

Mariana tinha o paladar infantil e, se deixasse, comia só arroz e batata (era basicamente este seu cardápio diário, quando ainda era solteira). Já Tatiana, que convivia com uma restrição alimentar severa que lhe permitia comer basicamente apenas batata e arroz, agia feito criança quando vez ou outra sentia-se ansiosa. Talvez por isso se davam tão bem.

A boa convivência entre elas era tamanha que não seria nenhuma surpresa descobrir por acaso que as duas guardavam segredos que Patrícia desconhecia. Tampouco seria um choque se de repente as flagrasse se pegando no sofá no meio do dia – ou até mesmo agora, em pleno caos. Tatiana era uma safada e Mariana tinha um apetite sexual voraz, dava uma mistura boa.

Pensar nisso quase a fez sorrir, mas Patrícia permaneceu séria, pois estava concentrada. Também porque sentia-se chateada com a decisão de Mariana em querer partir, o que a impedia de pensar em outros assuntos que não fosse este. Respeitaria, é claro, porque era tudo o que lhe restava fazer, mas a situação era incômoda demais, diria que até broxante. Afinal, a mudança não apenas afetava completamente a dinâmica familiar como também reverberava profundamente em suas emoções, especialmente as do passado.

Mariana ainda insistiria dizendo ser algo temporário, repetiria várias vezes nas próximas horas que aos finais de semana estaria em casa, que até mesmo antes da sexta voltaria, sempre que pudesse, mas Patrícia sentia o baque da novidade de um jeito mais visceral. Natural, já que tudo isso inevitavelmente evocava memórias dolorosas e um medo inconsciente de repetir todo o ciclo de perda que havia marcado sua juventude.

Por isso, se esforçou ao máximo para abafar o assunto e deixá-lo de lado, ao menos enquanto preparava algo que pudessem comer. Sabia que as esposas não tinham jantado, então se focou em providenciar algo rápido, que servisse também para alimentar a conexão entre as três. Elas precisavam.  

Seu lanche incluiria brusquetas de pão sem glúten, cortado em fatias generosamente grossas, com tomate sem casca e manjericão, para agradar Tatiana; rolinhos de tiras de abobrinha cozida recheada com húmus de grão de bico, porque Mariana gostava; e salada de quinoa com cenoura e molho de limão, sua preferida. Para beber, chá de camomila com hortelã e café. Eram opções simples, saborosas e de acordo com o que tinha dentro da despensa e na geladeira. No dia seguinte, como era de costume, Tatiana iria ao mercado, então enquanto cozinhava Patrícia aproveitou para ir anotando na lista os itens que ela precisava comprar.

Embora o tempo todo mantivesse uma ruga marcando o meio da testa, que indicava toda a chateação que sentia naquele momento, seu intuito era que a refeição servisse como uma espécie de bandeira branca, um tipo de ato de pacificação. Patrícia sabia que agora era o pior momento para inventar de brigar; na hora da raiva perigava gritar mais do que devia e não era justo não dar pelo menos uma chance para Mariana falar.

Depois, de barriga cheia e com a cabeça mais calma, discutiriam sem pressa quais seriam os termos desse novo modelo de relação. Porque claramente Mariana estava propondo/impondo um formato diferente!

Ela aproveitaria a ocasião para também jogar na roda a questão relacionada à ansiedade de Tatiana. Afinal, a mulher ainda lhe devia uma explicação, desde aquela manhã, quando deliberadamente se entupiu de pão antes de ir para o trabalho, sem querer revelar o que estava por trás do ato. O que havia acontecido para deixá-la tão ansiosa? Qual era o nome dela? Porque Patrícia sabia que envolvia uma mulher.

Confrontada, Tatiana teria que falar tintim por tintim, mas não sem antes Mariana dizer quem era a Fulana com quem havia se encontrado para beber em horário comercial e por que ela postou a foto da mulher em rede social. Esta seria uma longa noite, portanto.

A urgência de resolver tudo fez com que seus movimentos, embora precisos, parecessem carregados de um ritmo apressado e um tanto brusco, com gestos rápidos e impacientes, como se cada tarefa fosse um desafio a ser superado o mais depressa possível. Porém, mesmo na meta de ser breve e até profissional, Patrícia se permitiu ser humana e descontou no armário um pouquinho de sua frustração (só um pouco), ao fechar a porta usando uma força desproporcional. A falta de zelo ao atirar três panelas sobre o fogão foi pela mesma razão.

Mas esse foi todo o ruído que produziu. Em um silêncio quase meditativo, se concentrou nos preparativos que imediatamente preencheram a atmosfera da cozinha, impregnada de tensão, com um delicioso aroma de temperos frescos. A melhor parte foi espremer o limão da salada, porque pôde usar uma força que chegou a dar satisfação, mas até o pão foi cortado com um pouco de agressividade.

Com o rosto endurecido, Patrícia manteve as mãos mais firmes do que o necessário enquanto cortava uma cenoura grande em fatias finas, depois em minúsculos cubinhos, numa constância que marcava o compasso de sua irritação. Cada pedaço fragmentado do legume parecia simbolizar a angústia que tentava processar enquanto cozinhava, com a cena de Mariana ecoando dentro da cabeça, com ela anunciando que iria se mudar.

Seus olhos estavam contraídos e visivelmente úmidos, revelando a mistura de sentimentos que fervilhavam dentro dela: ciúme, raiva e uma pontada generosa de desespero. Mas logo as panelas começaram a chiar, enchendo o ambiente com cheiro de azeite quente refogando alho e cebola, e o aroma, tão familiar, serviu para confortar seu coração apertado.

Em questão de minutos, Patrícia desacelerou o próprio ritmo e seus movimentos tornaram-se mais leves, quase suaves. Internamente, tratou de aceitar o inevitável: Mariana precisava trabalhar em outra cidade, o que se pode fazer? Ao menos ainda seria sua aos finais de semana e, com sorte, nos feriados.

Na tentativa de se convencer e ser prática, Patrícia alegou para si mesma que, bem ou mal, ela própria trabalhava bastante, saía de casa sempre cedo e voltava só depois de fechar o restaurante, após o último cliente finalmente ir embora, às vezes perto de meia-noite. Seus momentos em casa basicamente se resumiam às noites de sono e aos domingos, quando Mariana estaria em casa também.

Pensando bem, tudo poderia ser bem pior e a esposa ter que ir trabalhar, sei lá, em outro país. Aí nem os finais de semana existiriam.

Ela então tratou de canalizar toda a raiva que outrora a movia lavando a louça, algo que detestava fazer, mas ao esfregar os utensílios debaixo da torneira aberta, buscou se ancorar na resignação enquanto escoava pelo ralo os pensamentos mais intensos e carregados. Cabia a ela, afinal, transformar aquele bolo de sentimento em outra coisa ou se deixar ser consumida por aquilo – o que estava totalmente fora de cogitação. Patrícia sempre assumia o controle da situação, afinal, qualquer que fosse.

De propósito, deixou para moer os grãos e coar o café por último, depois que o lanche já estava pronto e a mesa toda posta, de maneira convidativa. Ela sabia que o aroma serviria como isca para atrair Mariana e Tatiana até a cozinha, e foi exatamente neste instante que as duas apareceram.

Tatiana tinha o semblante típico de quando passava mal o dia inteiro, depois de comer o que não devia. Abatida, estava com os olhos fundos, o tom da pele um pouco pálido e o rosto cheio de bolinha. O canto de sua boca mantinha-se contraído, do jeito que ficava quando estava chateada. Na verdade, ela já chegou da rua agitada, na defensiva, mas agora dava para ver que também estava aborrecida.

Em segundos, inevitavelmente Patrícia listou os motivos para a esposa ter se enchido de pão. Ou tinha sido cortejada por alguém, o que a deixava desconfortável, ou teve problemas mais uma vez com a tal colega que gostava de pegar no pé dela. Qual era mesmo o nome da mulher que fazia bullying com Tatiana? Rosana. Rosana Valcourt.  

Em outras ocasiões, se dedicaria a interrogá-la, com muito amor e um chazinho de erva-doce ou gengibre, até descobrir qual era o episódio da vez, o que a tal professora de Matemática havia aprontado agora – caso fosse este o motivo do descontrole alimentar de Tatiana, é claro, e não qualquer outro, que obviamente exigia uma abordagem diferenciada.

Pensar nisso fez Patrícia se lembrar que, naquele momento, a mulher era sua aliada. Começar a conversa com Mariana depois do jantar, portanto, era mesmo a melhor opção.

Entretanto, Mariana, por sua vez, permanecia com a respiração acelerada, como se tivesse aspirado tanto o remédio de asma nas últimas horas que agora sentia o efeito contrário. Suas mãos estavam trêmulas e seu corpo todo agitado, mesmo depois que se sentou, abrindo os botões de cima da camisa branca, como se quisesse respirar melhor. Um fio de suor marcava o cabelo em frente à orelha, ou então ela havia chorado e uma lágrima passara por ali.

Em suma, as duas pareciam debilitadas, cada uma a seu modo. “Paciência”, Patrícia pensou. “Não é por isso que vou deixar questões importantes de lado”. Inclusive porque, embora abatidas, um brilho em comum no olhar delas mostrava uma cumplicidade meio descortinada. Como se algo nos últimos minutos as tivesse conectado mais do que estavam instantes atrás, quando Mariana chegou da rua descabelada, que nem um furacão, dizendo que já na segunda-feira iria se mudar.  

– Não é bem uma mudança – Mariana fala, na primeira oportunidade que encontrou. A frase foi dita de boca cheia, enquanto ela mesma se assoprava – Aos finais de semana eu estarei sempre aqui em casa.

Patrícia não respondeu nada porque se esforçou para engolir – o que comia e as palavras que teve vontade de cuspir. Apreciaria muito se a mulher seguisse seu roteiro mental e só conversassem depois do jantar.

– Mari... – Tatiana a chama, balançando a cabeça – Vamos... jantar primeiro, apreciar a refeição em paz... e aí depois falamos. Pode ser? – complementou, dando uma piscadinha para ela, como se fosse capaz de ler os pensamentos de Patrícia.

– Claro, só falei porque eu... Claro – Mariana diz, olhando de canto para a mulher.

Patrícia sorriu pela primeira vez durante a refeição, agradecida, quando seu olhar se encontrou com o de Tatiana por cima da mesa. Por sorte, não seria ela quem passaria os próximos meses fora, mas jamais diria algo assim em voz alta. Especialmente porque isso de maneira alguma alterava sua contrariedade em ver Mariana partir.

Para piorar, Mariana estava com três ou quatro botões abertos da camisa social e conforme ela se mexia seu decote ficava mais sedutor, escondendo o que em realidade exibia – alguns centímetros de pele, nada mais que isso, só que muitíssimo bem delineados. A abertura em forma de V destacava o vale entre os seios e deixava de fora a pontinha branca do sutiã rendado, que contrastava com a formalidade da peça impecavelmente bem recortada. Uma delícia!

Patrícia não soube dizer se aquilo era mesmo por motivos de asma ou parte de alguma estratégia. Servia para distraí-la, isso é fato.

– Eu juro que é provisório – Mariana afirma, ao terminarem de comer, enchendo a caneca de café, movendo-se de um jeito que até Tatiana olhou. Ou seja, o decote era mesmo uma armadilha.

Aparentemente alheia aos olhares (ou não), Mariana era nitidamente a mais ansiosa em querer resolver a situação e foi a única que não optou em beber chá. Provavelmente porque Patrícia se zangaria de novo com Tatiana caso ela fosse de café também, o que levou a outra esposa a acompanhá-la na infusão de camomila com hortelã.

– Volto às sextas, toda sexta. Prometo. E também durante a semana, sempre que der.

– Sei... – Patrícia resmunga, encarando-a da borda de sua xícara florida fumegante.

Embora mantivesse uma postura pacífica, com os braços relaxados, Patrícia tinha os olhos contraídos, como uma felina prestes a arrancar a cabeça de sua presa, que nem se vê nesses programas de vida selvagem que passam na tevê no domingo à tarde. No caso, Mariana era a gazela distraída, com tendência a virar um banquete fácil.

– Essa ideia de passar a semana fora é só porque me comprometer e dizer que vou voltar diariamente pode acabar nos frustrando, e eu não quero que vocês fiquem chateadas comigo... – Mariana complementa, sem perceber o olhar espreito da mulher. No final da frase, fez uma careta que revelou sua covinha na bochecha, sempre eficiente para desarmar Patrícia, em qualquer discussão. Ela estava sem os óculos e olhava para as esposas com os olhos miúdos, fechadinhos, o que também servia para serenar todo tipo de situação, até as mais tensas, como agora. Sem falar no decote. Ah, aquele decote...

Mais chateadas – Tatiana a corrige, como se fosse blindada às belezas da mulher.

– Sim, mais ainda... – Mariana desliza sobre a mesa lentamente, deitando a cabeça em cima do braço esticado, deixando o cabelo escorrer em direção à toalha. Ela respirou fundo e fechou os olhos, parecendo realmente cansada, o que servia como prova de que dirigir tantos quilômetros todos os dias estava mesmo fora de cogitação. Além de exaustivo, também era perigoso.

– Eu jamais vou te dizer que fico confortável com algo assim – Patrícia comenta, acariciando a mão de Mariana, por cima da mesa. Embora aborrecida, era completamente apaixonada pela mulher e se compadecia de seu sofrimento. Se para ela e Tatiana esse papo já era bem difícil de digerir, tinha certeza de que para Mariana era ainda mais complicado de engolir – Inclusive porque nesta história ainda tem o rolo da sua nova chefe ser ex de não sei quem... – Patrícia complementa, porque este era o momento perfeito para expor os fatos. No entanto, não conclui a própria frase. Preferiu apenas balançar a cabeça negativamente.

– Da Cacá, sim. Mas que culpa eu tenho, Pati? Fala para mim! Amor, foi ela que me indicou essa empresa, então que bom que as duas namoraram – Mariana argumenta, sem largar a mão da esposa, mesmo quando Patrícia quis soltar – Confesso que fico até agradecida por ter rolado esse rebuceteio todo! É tudo obra do destino, olha que perfeito!

– Pera, por que, “rebuceteio”, Mari? – Tatiana questiona, demonstrando que apesar de permanecer mais quieta, estava bem atenta à conversa em volta da mesa – Você nunca disse que teve um passado com essa Cacá.

– Como assim, Mariana? Vai me dizer que você e essa tal de Carmen já se pegaram? – Patrícia pergunta, ao mesmo tempo. Como de costume, sua voz sempre sobressaía, mesmo quando se controlava para permanecer calma e ponderada.

– Não, galera... Calma, é só um modo de falar! A gente nunca ficou, eu juro.

– “Galera”... – Tatiana repete, rindo. Como geralmente acontecia, ela acatava com facilidade tudo o que Mariana dizia. E ainda deixava o ciúmes todo para Patrícia sentir sozinha.

– Não sei porque as suas histórias sempre têm que ter tantos detalhes, Mari, tantas coisinhas, tantas mulheres, tanto... – Patrícia resmunga, puxando a mão de volta à sua xícara – Agora ainda me inventa de passar a semana inteira longe, na companhia de uma devassa que enche a cara em plena luz do dia, sabe... Complicado!

– Não, amor, na verdade eu vou trabalhar enquanto aquela devassa enche a cara – Mariana ri, mas imediatamente se contém – E em sua defesa, ela estava trabalhando enquanto bebia no meio da tarde. Cada tuíte que a Cacá escreve vale uma grana! Diz ela que sóbria não é tão engraçada...

– Estou morrendo de rir mesmo, rará – Patrícia rebate, cruzando os braços. O gesto foi acompanhado por uma virada de olhos, bem pontual.

– Amorzinha, vem cá – Mariana se ergue da mesa e arrasta ruidosamente a cadeira no chão, para ficar mais perto. Tomou o cuidado de puxar a camisa para que seu decote voltasse à baila e deu um sorrisinho quando Patrícia desceu os olhos para contemplar – Você quase não vai sentir minha falta, gata, de segunda a sexta o tempo costuma voar... você sempre chega tarde do trabalho, sai sempre cedinho, junto com a Tati – ela dá um beijo no rosto da esposa, de levinho, só um estalinho – Volto para casa toda sexta, eu juro, Pati – Mariana a beija novamente, agora mais próximo à boca, demorando um pouco mais no contato – A gente pode criar uma nova “quarta do trisal”, que tal? – ela dá um último beijinho, desta vez encostando a ponta da língua no lábio inferior da mulher, que abriu a boca com a proximidade, rendida – Hum? A gente inverte as coisas e vocês aparecem lá para me ver, no meio da semana...?

– Só você mesmo para pensar em sexo numa hora dessas... – Patrícia diz, mas sem parecer que reclamava – E você também! – ela aponta para Tatiana, que encarava as duas com um sorrisinho sacana enfeitando o rosto.

– Então estamos de bem? – Mariana estica o dedo mindinho, querendo selar as pazes.

– Eu seria muito hipócrita de pedir para você não fazer nada disso, para abrir mão do seu trabalho... – Patrícia entrelaça os dedos nos dela, amorosamente – E fazer algo do tipo seria injusto até com você, Tati, que há tantos anos me pede para que eu faça o mesmo, sem que eu te atenda – ela dá a outra mão para Tatiana por cima da mesa, que não diz nada, mas consente – Eu entendo o porquê da sua decisão, Mari...

– E...? – Mariana pergunta, quando a esposa se cala, claramente ocupada com os próprios pensamentos.

– E eu respeito, ué, mesmo sem gostar da ideia – Patrícia completa, após alguns segundos – Jamais viraria as costas para você, então é claro que te apoio na sua empreitada. Mesmo a contragosto.

– Grata, amor. Isso é muito importante para mim. É tudo o que preciso, na verdade – Mariana dá um selinho em Patrícia – Te amo – ela gira na cadeira e beija Tatiana – Não quero que jamais pensem que estou abrindo mão de vocês, porque não estou, não mesmo. Nunca na vida cometeria uma insanidade deste tipo – Mariana fala, fechando o elo entre as três ao dar a mão para Tatiana também – E acho que quando tudo isso acabar, no fim do ano, a gente precisa fazer uma viagem bem longa, de vários dias, para comemorar a nova temporada nessa casa, que vai incluir mais momentos entre nós e menos horas a sós, no trabalho.

– Tá, a gente vê, a gente vê... – Patrícia responde, em tom de desconversa. Este era o momento ideal para negociarem muitas coisas, mas nem por isso pretendia colocar o dela na reta.

– Tá... – Mariana resmunga, fazendo um biquinho. Não pareceu querer insistir na proposta talvez porque sabia que depois teria bastante tempo para isso. Sem falar que já havia conquistado pelo menos uma vitória nesta difícil batalha. A mais significativa.

– Com relação ao novo “dia do trisal”... – Patrícia então diz, ganhando imediatamente a atenção da mulher – Pode ser, podemos tentar, mas com uma única condição, Mari: primeiro você vai vir aqui, no meio da semana, depois que tiver se mudado. Você é quem vai inaugurar essa nova fase.

– Gostei, parece justo – Tatiana diz, puxando a cadeira de Mariana para perto de si, encaixando o corpo da mulher entre as pernas, se prendendo inteira nela – Vem aqui transar com a gente e então nós vamos lá só para trepar com você – ela mordisca o pescoço da esposa, de um jeito provocante, depois de levantar seu cabelo um pouco para o alto. O gesto a arrepiou inteira.

– Ai, amor... – Mariana dá uma gemidinha e se empina sem perceber, se oferecendo – Fechado, eu topo.

– É claro que topa – Tatiana ri – Safada gostosa – ela beija a boca da mulher, com gosto de café.

– Hein, agora me fala... Vamos nos focar no que é mais importante no momento, Mariana: onde você vai ficar lá nessa cidade, como é que vai ser, de que forma você vai se virar? – Patrícia indaga, querendo ser prática – Já pensou nesses detalhes?

– Bom... a assistente da Simone disse que me ajudaria a ver algo para alugar na segunda, mas pensei em ir até lá amanhã para resolver isso por conta – Mariana responde, servindo-se de mais café.

Ela manteve-se exageradamente perto de Tatiana, como se necessitasse daquele contato, com as costas apoiadas no tronco da mulher e um dos braços roçando na pele dela. Tatiana, por sua vez, apoiou o rosto no ombro de Mariana enquanto acariciava seu punho, encoberto pelo tecido da camisa. Vez ou outra dava um beijinho na esposa, quando ela se movia para bebericar o café, logo retornando à posição original.

– Não sei, pensei em comprar o básico, amor... – Mariana continua, sem parecer realmente preocupada. Sua respiração voltava a ficar compassada, como se o amor de Tatiana fosse mais eficiente que uma bombinha de Budesonida – Vou providenciar, sei lá, um colchão, geladeira... um micro-ondas, essas coisas... Eu provavelmente vou ser consumida por esse trabalho, então só vou parar para dormir, mesmo. Não preciso de muita coisa além disso.

– Tá, mas você tem que pensar nos primeiros dias também, gatinha. Semana que vem, por exemplo, você pretende ficar num imóvel vazio, sem móveis? Vai dormir sem cama? Sem falar que lá não é São Paulo, meu amor, a entrega desses móveis pode demorar até mais do que só uma semana...

Apesar de preocupada, aparentemente até mais que Mariana, Patrícia recosta-se na cadeira para contemplar a cena à mesa. Adorava ver a interação entre as esposas, as manifestações despretensiosas e constantes de carinho e afeto entre elas. Não à toa colecionava tantas fotos da dupla, em momentos descontraídos, quando as duas estavam distraídas. Havia poesia no amor entre elas.

Tatiana mantinha-se com a boca levemente retesada, nitidamente aborrecida com tudo o que estava acontecendo dentro de casa e o laço firme ao redor de Mariana comprovava isso. Ela a segurava com uma considerável força, trançando os braços sobre seu tronco, como se quisesse impedir que a mulher fosse para qualquer lugar longe dali. Mariana, por sua vez, permitia-se ficar presa em seus braços, no aconchego de seu abraço, evidenciando que sua mudança repentina era provocada por um motivo maior, totalmente alheio à sua própria vontade de se afastar.

Sem querer, até Patrícia acabou pensando em sexo diante da cena, quando considerou que uma trepadinha de reconciliação agora até que viria a calhar. Podia ser até mesmo ali, na cozinha, como já havia acontecido tantas vezes.

O pensamento a fez se lembrar da primeira vez que saboreou Mariana em cima daquela mesa, como se a mulher fosse um delicioso e apetitoso banquete e, ela, uma faminta convidada de honra. Logo em seguida, suas memórias trouxeram à tona a lembrança do dia em que a chupou enquanto Mariana lavava a louça, se ajoelhando no chão como uma súdita, apoiando uma de suas pernas sobre o ombro, ressignificando completamente e para sempre o ato de arear panelas.

Talvez por isso aquele ambiente, até então mergulhado numa energia caótica, repleto de aborrecimento e tensão, agora parecia um ninho de ternura, seu lar, novamente, com o silêncio sendo preenchido apenas pelo som do tilintar das xícaras, ao fim daquele lanche noturno. A luz amarela sobre a mesa iluminava o rosto das três, ampliando a sensação de acolhimento, aconchego e intimidade.

Patrícia seria capaz de passar o resto da noite ali. Mais: passaria o fim de semana inteiro confinada naquele espaço, em meio às pessoas mais importantes de seu mundo. Mas ver Mariana cerrar os olhos, entregando-se ao conforto daquele abraço, ainda que em cima de uma cadeira dura da cozinha, a fez se lembrar que muito precisava ser feito. Para isso, antes elas precisavam dormir.

– Uhum, sim... Eu sei, amor, amanhã vou pensar nessas coisas todas – Mariana resmunga, abrindo os olhos devagar, percebendo o movimento da esposa, que se levantava. Ao ver que Patrícia a observava, já em pé, sorriu para ela, espremendo ainda mais os olhos – Você vem com a gente, né?

– Para a cama? É claro – Patrícia responde, se fazendo de desentendida, esticando as mãos para as duas a acompanharem.

– Não, amanhã. Falta no trabalho, amor – Mariana pede, como se miasse, soltando-se dos braços de Tatiana apenas para abraçar Patrícia por trás, afundando o rosto em seu pescoço para poder cheirá-la – Vamos nós três até Campinas, vocês me ajudam a escolher uma casa, a comprar as coisas... A gente almoça junto, tipo uma despedida – sua voz saiu abafada, pois ainda aspirava a nuca da mulher.

– Não tem nada de despedida, Mari – Tatiana reclama, colocando a louça suja dentro da pia, olhando para ela por cima do ombro – Não estamos nos divorciando e nem você morreu.

– Além do mais, amanhã eu trabalho – Patrícia a lembra, apagando as luzes da cozinha.

De propósito, manteve Mariana junto à lateral de seu corpo e subiram as escadas juntas. Tatiana vinha logo atrás, com Percival no colo, completamente alheio a tudo o que estava acontecendo naquele momento dentro de casa.

– Só um diazinho, Pati, vai – Mariana insiste, parando em frente à porta do escritório lá em cima, no começo do corredor – A partir de segunda eu vou passar a semana fora... – ela complementa, acendendo o interruptor – Pensei que podíamos aproveitar o fim de semana para ficarmos juntas, só nós.

– Pera, você vai trabalhar? – Patrícia questiona, incrédula, vendo Mariana ligar o computador sobre a mesa.

– Vou só ver meus e-mails, é coisa rápida – Mariana resmunga, puxando um punhado de papéis da bancada de Tatiana, logo ao lado – Ah, você lembrou de trazer seus desenhos! Uau, Tati!

Patrícia tinha uma resposta de protesto prontinha, na ponta da língua, mas assim como Mariana, também se distraiu imediatamente com os desenhos feitos por Tatiana com carvão. Repetindo o gesto da mulher, alisou com a ponta do dedo a textura do papel Canson, observando o desenho bruto, quase selvagem, com sombras e contrastes que destacavam cada curva de uma bela mulher. Havia se esquecido de como Tatiana era genial!

Incapaz de tecer qualquer comentário, exprimindo apenas sons que não diziam nada, exatamente, mas ainda assim resumiam tudo, Mariana logo passou para o desenho seguinte, numa ansiedade que Patrícia não compactuou pelo simples fato de que não conseguiu se desprender daquele primeiro. Porque a imagem era sensacional, incrível ao ponto de nem caber em adjetivos, e também porque ela foi capaz de ver a esposa ali, no traço, na sutileza da força usada por sua mão, na escolha de onde empenhar mais ou menos luz e até mesmo no respeito ao retratar alguém que ela não conhecia.

Puxando a cadeira gamer de Mariana sem conseguir desviar o olhar, igualmente sem condições de falar qualquer coisa, Patrícia se sentou enquanto seus olhos escaneavam o desenho de cima a baixo, de um lado a outro, ávidos em capturar cada detalhe da imagem que parecia saltar do papel. Havia algo de íntimo na maneira como Tatiana capturou a pose, desde o ângulo do quadril ao contorno dos ombros, registrando numa folha A4 a sensação de entrega da modelo. Simplesmente fantástico!

A escolha pela gramatura do papel e pelo carvão certamente faziam toda a diferença na pequena, porém potente obra de arte. Os riscos cobriam a textura porosa do Canson, a levando a imaginar o que teria passado na cabeça de Tatiana enquanto desenhava, especialmente porque no momento da captura ela lidava com a questão relacionada ao ciúme de Patrícia, que tinha bons motivos para se sentir desconfortável com a esposa frequentando aquele curso. Ainda assim, o resultado ficou sensacional, destacava bem sua veia artística.

Mas o segundo conseguia ser ainda melhor, como se o primeiro desenho tivesse sido apenas um aquecimento, um simples rascunho desimportante, já que o registro seguinte tinha muito mais riqueza de detalhes. Os pelos pubianos da modelo bem no centro da folha eram apenas um dentre os vários destaques e Patrícia só não se enciumou porque não teve reação para isso. Suas emoções estavam todas absolutamente focadas na arte feita pela mulher, retratando as belezas de um corpo feminino. A perspectiva das pernas cruzadas, a mão repousada sobre o joelho, o tronco e os seios enquadrados logo atrás, tudo era tão belo que, não fosse isso, certamente procuraria naqueles traços de carvão algum risco de emoção. Mas Patrícia entendeu de imediato se tratar de um valioso exercício artístico. Aquilo era a manifestação da alma de Tatiana.

– Ah, não acredito, amor! Que engraçado, de tanta coisa que você tinha para desenhar, escolheu logo o banco? – Mariana pergunta, divertida, chamando a atenção de Patrícia, fazendo-a erguer os olhos em sua direção.

Ao olhar para as esposas, que permaneciam em pé, Patrícia viu que atrás do desenho nas mãos de Mariana alguém havia anotado um número de celular e um nome, e isso infelizmente despertou mais interesse do que ver o próximo desenho feito com carvão, com a modelo em cima do banco com o corpo arqueado para trás.

– O que é isso? De quem é esse telefone?  – Patrícia pergunta, se levantando, encarando Tatiana, que permaneceu quieta – Miguel? O Miguel? – ela insiste, puxando a folha de Mariana, virando o papel duas vezes para verificar a anotação e o desenho de duas mãos segurando um banco, feito com lápis 2B – Você desenhou o Miguel nu, Tati? – Patrícia pega o restante dos desenhos de Mariana, reconhecendo o rosto do modelo na segunda imagem – É sério isso? E não falou nada a respeito?

– Quem é Miguel, amor? – Mariana pergunta, sem especificar com quem falava.

– Ele pousou nu para você reproduzi-lo e ainda anotou o telefone dele no desenho depois? Para que, para um encontro?! – Patrícia pergunta, dois tons mais alto. Ela nitidamente perdia as estribeiras de maneira muito mais fácil quando o foco era a esposa mais antiga.

– Eu não tinha como saber de nada disso, Pati – Tatiana finalmente responde, com o rosto corando junto de suas palavras. De maneira instintiva, deu um passo para trás, colocando-se atrás de Mariana – Eles não fornecem uma lista anunciando quem é o modelo que vai posar, quem vai conduzir as aulas quando o professor se afasta, nada disso, e eu não sou adivinha! Além disso, ninguém posou para mim; foi para a turma toda, não se tratou de nenhuma sessão privada.

– Olha, eu juro que não sei o que dizer... De novo! – Patrícia diz, claramente frustrada – Vocês duas... – ela complementa, mas não termina a frase. Preferiu sair de perto e ir tomar banho, ou poderia se arrepender depois do que porventura viesse a falar. E havia bastante coisa para verbalizar neste momento, de preferência aos berros, para extravasar tudo o que sentia, que era muito também.

Sinceramente, no geral considerava bastante confortável ser parte de um relacionamento poliamoroso, era prático ter mais gente no casamento para partilhar não apenas amor e carinho, mas também perspectivas e responsabilidades, o que de certa forma ampliava a sensação de segurança dentro de seu lar, ingrediente primordial para seu bem-estar. Mas tudo parecia simplesmente desmoronar quando percebia que a comunicação entre as três apresentava problemas, fosse porque uma não dizia que iria se mudar, fosse porque a outra escondia um encontro nada casual com o ex.

Debaixo do chuveiro, sentindo a pressão forte da água em cima da cabeça, Patrícia refletiu que num cenário perfeito Tatiana entraria no banheiro e, envolta na névoa de seu banho quente, explicaria o porquê de não ter contado sobre Miguel posar pelado para ela. Valia alegar qualquer coisa, Patrícia já havia elaborado uma resposta, então mal iria escutá-la. Só que quem apareceu no box, nua, foi Mariana.

– Oi! Ah, o chuveiro já estava ocupado? Foi mal, nem reparei – Mariana brinca, encaixando-se nela, debaixo da água.

– Sabe... – Patrícia responde, depois de um suspiro profundo, permitindo-se ser abraçada por trás pela mulher – Duas coisas me intrigam no nosso casamento. A primeira é como pode ser possível reagirmos às mesmas situações de maneiras tão diferentes e, a segunda, que tem total relação com a anterior, é como você e a Tatiana conseguem não se importar, simplesmente, com eventos tão... importantes.

– Você está falando do desenho da Tati?

– Também.

– Amor, eu só não dou tanta importância para o passado... – Mariana se defende, virando-a em sua direção.

– Sim, e nem a Tati dá tanta importância para o futuro. Eu já entendi, mas não deixa de ser intrigante. Assim como o fato de que vocês duas não se importam em manter segredos. Aí além de tudo ainda me sinto boba porque eu sempre exponho tudo.

– Você não é boba, meu bem – Mariana a beija, brevemente.

– Sou o que, então? – Patrícia meneia com a cabeça, diante da falta de resposta – É muito frustrante ficar o tempo todo tentando adivinhar o que se passa com vocês quando percebo que nem tudo é dito. Eu crio teorias, Mari. Imagino cenários, faço suposições.

– E se desgasta...

– E descubro verdades muito piores do que a minha pobre imaginação é capaz de conceber! – Patrícia diz, virando os olhos – Eu acho... Acho, não, tenho certeza que para que a gente dê certo é preciso que haja sempre um diálogo limpo, sincero e direto. Não gosto de me sentir insegura, detesto ficar desconfiada... Essas omissões, esses segredinhos, é tudo muito cansativo e confesso que me faz questionar sobre a gente. Sobre o futuro da nossa relação.

– Amor... – Mariana mia, mas não diz mais nada.

– Vamos ver como serão os próximos meses – ela finaliza, encerrando a conversa. 

Naquela noite, Patrícia foi se deitar sozinha. Mariana decidiu trabalhar (ou “precisou”, tanto faz) e Tatiana optou por lavar a louça, ainda que não tivesse que fazer isso já de madrugada. Provavelmente preferiu encontrá-la apenas quando não estivesse mais acordada, o que não deixou de ser uma decisão acertada. Além de tarde, ela estava bastante cansada e o melhor que tinha a fazer àquela altura do dia era de fato se recolher, descansar e dormir. Na manhã seguinte, quem sabe, caso se encontrassem antes de ir para o trabalho, aí voltariam a discutir.

Fazia dias que Patrícia procurava por uma forma, uma forminha, pequenininha de metal, estampada com o desenho de um gatinho. O utensílio foi seu principal aliado nos primeiros anos de cozinha e combinaria com este momento de sua vida, já que recentemente havia decidido recriar uma importante receita do passado, ensinada pela avó, na época em que descobriu que nem todas as combinações entre diferentes ingredientes haviam sido testadas, provadas e, vez ou outra, aprovadas.

Não era comum lançar novidades no cardápio dO Bistrô assim, no meio do ano, sem testar antes com convidados especiais, como costumava fazer em dezembro, desde antes da inauguração do restaurante. Mas acometida por uma inquietação gerada no momento em que a esposa decidiu fazer um curso para desenhar pessoas nuas, se viu impelida a recriar a comida que mais a confortava. Isso sem ainda saber que dias depois teria novos motivos para revisitar seu passado gastronômico, com o anúncio da mudança de Mariana.

O problema é que não encontrava a forma em lugar nenhum. Já tinha revirado a cozinha de sua casa e a despensa do restaurante, e nada. Isso não apenas a frustrava, embora não atrapalhasse em absolutamente nada na reprodução da receita originalmente medida naquele utensílio, como também a levava a trabalhar mais, já que nos intervalos do serviço ao invés de descansar ela se dedicava a procurar pelo tal objeto. Já estava há vários dias nessa busca.

Ainda assim, mesmo cansada, percebeu quando a primeira esposa veio se deitar, cerca de uma hora e meia mais tarde, pois Tatiana tinha o hábito de encostar o pé gelado para dormir. Na falta de Mariana, que só foi para a cama perto do amanhecer, a mulher aproximou-se de Patrícia para poder pegar no sono, meio que inaugurando a nova fase vivida sobre aquele imenso colchão. Ou voltando aos tempos em que apenas as duas dividiam o mesmo teto.

Mas Mariana deixou claro que ainda estava por ali, ao se enroscar no meio das duas algumas horas depois, despertando as esposas que, sonolentas, a abrigaram entre elas, como era de praxe ocorrer. Tatiana a abraçou por trás, se escorando em suas costas, depois que Mariana se aninhou no peito de Patrícia, com o nariz afundado na pele macia de seu pescoço. Com as pernas sobre o corpo da mulher, deu espaço para que Tatiana mantivesse os pés entre os de Patrícia, o que serviu para embalar o sono das três.

No dia seguinte, coisa de cinco segundos antes de o despertador tocar, Patrícia acordou e sorriu ao perceber que elas se mantinham praticamente na mesma posição. Debaixo daquela coberta perfumada estava tudo tão quentinho e satisfatoriamente confortável que ela quase se excitou. Mariana permanecia com a perna esquerda apoiada em cima de sua pélvis, pressionando toda a região do quadril, o que era muito propício para engatilhar tesão. Tatiana, mesmo atrás dela, mantinha o indicador esquerdo preso no cós da calça de seu pijama, em direção à virilha, num contato sutil e igualmente prazeroso. Tudo a levou a pensar em sexo, tão logo acordou. Era gostoso demais despertar na companhia de duas pessoas que ela tanto amava.

Mas acabou que permaneceu no “quase” porque junto do apito chato do celular ela se lembrou da dura realidade: nos próximos tempos, este aconchego com suas mulheres aconteceria somente com dia e hora marcados. Aí não houve tesão que suportasse o duro choque da realidade.

Provavelmente a constatação foi o que a levou a abrir uma exceção incomum e especial naquele sábado, quando decidiu faltar no trabalho. Ou foi porque, descansada, Patrícia percebeu que todos os minutos nas próximas horas eram importantes, até mais que O Bistrô e os pratos a serem preparados. Talvez só por isso considerou, antes mesmo de sair da cama, que poderia ser uma boa opção conversarem com Bruna, antiga amiga do casal, hoje trisal. A mulher era dona de uma rede de hotéis, afinal, certamente poderia indicar um quarto para Mariana dormir em seus primeiros dias na cidade. Não era nem tanto pelo desconto, que Bruna indubitavelmente ia oferecer, e sim pela segurança de ficar num lugar apropriado.

Como método de sobrevivência, Patrícia sentia-se segura em traçar todas as possibilidades que um evento tenso propiciava. No caso, bastava ter que lidar com o fato de a esposa dormir numa cidade distante, praticamente todas as noites dos próximos meses, tendo que ficar em hotel nos primeiros dias. Para eliminar as preocupações iniciais era fundamental se assegurar de que enquanto não se mudasse, Mariana estaria minimamente em segurança, podendo dormir tranquila sem o risco de aparecer depois em gravações não autorizadas, exposta na internet, como era comum de acontecer. Os hotéis de Bruna eram bastante confiáveis e bem avaliados, e sua rede era uma das poucas que ainda não havia se sujado com escândalos envolvendo câmeras escondidas.

Depois, conforme as questões fossem se apresentando (e ela tinha certeza de que aborrecimentos surgiriam, de todos as ordens, de um jeito ou de outro), decidiria então como se preocupar. Primeiro, se dedicaria ao que vinha antes.

Propositalmente, revelou que acompanharia as esposas somente após o café, quando elas já estavam prestes a sair. Por acaso, coincidiu de Mariana comentar algo sobre aproveitar o presente, pareceu um momento oportuno para dizer que iria junto com elas, sacrificando o dia de trabalho.

A expressão de sincero espanto e alegria que estampou o rosto de Mariana ao ouvir àquilo serviu para comprovar que, assim como Tatiana, que sequer considerou de verdade a companhia da mulher até a outra cidade, ela também já dava a causa como perdida. Afinal, as duas sabiam que Patrícia jamais faltava, dava expediente mesmo quando ficava doente, tudo indicava que não deixaria o posto de comandante dO Bistrô, mesmo com um bom motivo para não ir trabalhar.

Tatiana, por sua vez, não expressou nenhuma reação, exatamente, ainda que tenha ouvido as mesmíssimas palavras e em geral se animasse quando estavam juntas. Mas longe de sorrir ou até mesmo acenar de algum modo comemorando a decisão, a mulher permaneceu imóvel, inclusive na feição, parada feito um poste perto da porta de um jeito como se dissimulasse, parecendo que ainda escondia algo. Foi uma reação ao mesmo tempo fria e encenada, levou Patrícia a considerar que desenhar o ex completamente nu não foi o verdadeiro motivo que a levou a comer pão na manhã anterior.

Então, mesmo sinceramente preocupada com seu restaurante, com a equipe, com os clientes e a avaliação que eles faziam de maneira gratuita na internet, e que poderia ser negativa e destruidora ao ponto de arruinar sua reputação, principalmente se houvesse motivos que ela não teria como contornar por não estar lá, Patrícia se convenceu de que abrir mão do serviço por um único sábado seria vantajoso porque, estando por perto, Tatiana não teria como fugir. Até o fim do dia, saberia o que havia acontecido. Seria ótimo se Mariana a ajudasse, mas mesmo sozinha descobriria.

Isso a fez pensar na sequência dos fatos. Ou melhor, na ordem dos desenhos. Na primeira semana de curso, Tatiana contou sobre o assédio envolvendo o professor e a modelo nua. Foi o desenho que ela fez com carvão. Ontem, portanto segundo dia, a mulher desenhou o ex, mas se encheu de pão pela manhã, horas antes de ir para a Escola de Artes. Ou seja, o que quer que fosse, aconteceu na quinta-feira à tarde.

Puxando na memória, Patrícia se lembrou de que naquela noite elas duas quase discutiram. Sim, porque a mulher já chegou da rua esquisita, sem querer muito papo. Aí, para não brigarem na frente de Mariana, foram dormir separadas, depois que Tatiana resolveu deitar mais cedo, o que levou Patrícia a ir dormir bem mais tarde, já de madrugada. Foi nessa noite que ela revirou todos os armários de casa atrás de sua forminha, sem sucesso.

– Meu amor, acredite: o mundo não vai desabar se você faltar um dia. Muito menos O Bistrô vai pegar fogo ou os clientes vão passar a te odiar só porque você não estará lá – Mariana diz, feliz com a surpresa, apesar de suas palavras nada entusiasmadas, trazendo Patrícia de volta ao presente.

Ela preferiu não responder porque soaria bobo revelar em voz alta que aquelas eram preocupações reais que fervilhavam em sua mente inquieta. Não que literalmente considerasse que a cozinha do restaurante fosse incendiar, mas problemas infinitos poderiam acontecer ao longo do dia e ela jamais se desculparia se não estivesse lá para apaziguar e resolver qualquer que fosse o B.O.

Por outro lado, fez o que gostaria que fizessem, caso fosse ela a se mudar. Considerou que às vezes era importante deixar claro o que era realmente prioritário em sua vida e Mariana precisava de apoio neste momento, incluindo o dela.

Bruna não apenas indicou o melhor hotel para Mariana ficar, como ofereceu um quarto que era reservado para ela, quando eventualmente passava pela cidade. Ficava no subsolo de um dos três empreendimentos de sua rede – por sorte, o mais próximo de onde Mariana ia trabalhar – e segundo a mulher era uma cópia exata da suíte presidencial. O que diferenciava é que o outro quarto ocupava a cobertura e, o de Bruna, era ocupado apenas por ela. Antes mesmo de chegarem à cidade, por volta das 9h, as três combinaram de ir até lá para conhecer, quem sabe até passar a noite em Campinas, usufruindo juntas de um bom quarto de um hotel de luxo.

Mariana havia anotado o nome de uma imobiliária no centro da cidade e foi este o endereço que colocou no GPS, antes de partirem. Ela dirigiu o próprio carro, com Tatiana ao seu lado e Patrícia logo atrás. A trilha sonora foi o segundo álbum da banda The Smiths porque tinham como regra que a pessoa que conduzia tinha o poder de decidir a playlist. Mas a música tocou baixinha porque tinham muito para conversar nos 123 km de deslocamento entre as duas metrópoles.

– Ontem à noite vi uns anúncios na internet, antes de ir deitar – Mariana diz, depois que deixaram a Marginal Tietê para trás. Tomou o cuidado de incluir Patrícia na conversa, olhando para a mulher pelo retrovisor – Vi uns apartamentos até que legaizinhos e num valor bom, pertinho de onde vou trabalhar. Assim que escolher um adequado, depois de assinar o contrato e pegar a chave, pensei de já mandar telar.

– Ué – Tatiana diz, olhando para ela, tentando assimilar o que ouvia.

– Como assim, “telar”? – Patrícia perguntou, ao mesmo tempo – Tipo colocar tela nas janelas? E quem disse que vai precisar?

– Mari, você não vai levar o Percival! – Tatiana volta a se manifestar, depois de finalmente entender.

– Gente, como não? – Mariana pareceu realmente surpresa com a reação delas. Até mais espantada do que quando Patrícia anunciou que iria acompanhá-las naquela manhã.

– Claro que não, isso nem foi negociado! Pode esquecer! – Patrícia rebate, num tom indignado.

– Amor, você mesma diz que vai ser consumida por esse trabalho, fala que só vai parar para dormir, não quer nem providenciar um sofá... – Tatiana diz, se valendo de bons argumentos – Vai tirar o rei do seu próprio castelo para quê?

– Não, garota, suas decisões afetam só você, deixa o gato fora disso – Patrícia fala, junto com ela. Serenamente, optou por apenas resmungar. O carro estava com as janelas todas fechadas, nem havia sentido gritar. Mas quis, achou de uma audácia!

– Tá bom, ei, tudo bem – Mariana retruca, obviamente rendida. Só não levantou as mãos porque estava dirigindo. Aspirou duas vezes a bombinha de asma que manteve no colo e pigarreou antes de continuar – É só que vai ser a primeira vez que vou me mudar sem que meu Nômade me acompanhe, mas ok. Entendi!

– Mariana, você não está se mudando – Patrícia rebate, do banco de trás, num tom de voz límpido e perfeitamente audível – E espero de verdade que esse trabalho te consuma bastante, ao ponto de você só parar para dormir, justificando o porquê de não voltar para casa à noite. Assim como também desejo que em todas as horas você seja capaz de se lembrar de que não é uma mulher solteira.

– Que delícia, repete isso mais tarde, no meu ouvido? – Mariana dá uma risadinha, olhando para ela pelo espelho retrovisor – Teria que ser muito doida para me atrever a querer outra coisa, se tenho vocês – ela puxa a mão de Tatiana para cima de sua perna direita e entrelaça os dedos – Ainda mais duas defensoras dos direitos do meu “filho querido amado, filho da minha... de mim. Meu filho” – Mariana completa, modificando a voz, mas só ela ri – É aquele meme que te mandei na semana passada, amor. Que na versão em desenho a mulher se transforma numa chaleira.

– Ah, sim – Tatiana ri, com atraso.

– Ah, é? Vocês se mandam meme? – Patrícia pergunta, inclinando o tronco para a frente.

– Hum... sim – Mariana responde, um pouco titubeante – A gente troca memes, fotos aleatórias, selfies...

– Sério? Não sabia que faziam isso... Eu mesma nunca recebi – Patrícia cruza os braços, virando o rosto em direção à janela.

– Ah, amor... é só que...Você trabalha bastante, Pati, está sempre distante do celular, sempre ocupada – Tatiana diz, olhando para ela por cima do ombro. Com o movimento de cabeça, deu antes uma rápida encarada em Mariana, que suspirou – Não é nada demais, se quiser eu te mostro.

 Ela entrega o aparelho e observa dois segundos de vacilo emitido pela mulher, que considerou brevemente se queria mesmo ver aquilo. No terceiro segundo, no entanto, Patrícia pega o celular da mão de Tatiana. Mesmo enciumada, ficou curiosa para ver o que tinha na conversa entre elas.

– Me parece bastante coisa... – resmunga, passando as fotos para o lado – Não sei se adianta muito você salvar nossos contatos apenas com letras se guarda tanta foto, inclusive comprometedoras desse jeito – ela vira a tela, mostrando um nude de Mariana vestindo gravata e óculos. Apenas.

– Salvei o contato de vocês desse jeito por uma questão de segurança. Caso clonem meu celular, jamais vão saber quem é casada comigo para tentar passar golpe. Com relação às fotos, estão todas bem guardadas, na nuvem, em total segurança. Ou seja, não precisa ficar com ciúmes da gente.

– Não, né? Sei... – Patrícia devolve o aparelho – Bom, acredito que diante de tudo, este seja o melhor momento para colocar um ponto em discussão – ela fala, levando Tatiana a abaixar ainda mais o volume do som – Acredito que pode ser uma boa ideia a gente criar um grupo no WhatsApp. O que foi, qual é a graça? – ela emenda, quando as duas riem diante da proposta.

– Nada, Pati – Tatiana responde, dando uma apertadinha na mão de Mariana, breve, como se transmitisse uma mensagem elaborada num tipo de Código Morse. Foi sutil, mas Patrícia viu.

– Não é nada, amor. Só achamos que fosse algo sério – Mariana diz, ainda com risadinha, pegando a saída 86 da Rodovia Bandeirantes, sentido Campinas – Vamos sim, criar um grupo. Já faz isso agora. Acho que pode ser uma boa ideia mesmo.

– Pensou que eu falaria algo sério como o quê? – Patrícia rebate, aproveitando a brecha perfeita – Algo como a Tatiana desenhar o ex-namorado pelado, por exemplo, e não falar nada a respeito? Que bobagem, sabemos que você não se importa com o passado!

– Ai, amor... – Mariana resmunga, baixinho, virando a saída do ar-condicionado em direção às mãos, que começaram a suar ao perceber que uma briga se armava dentro do carro.

– Estava demorando! – Tatiana resmunga também, nitidamente aborrecida – É sério? Achei que você esperaria pelo menos a gente chegar lá – complementa, olhando para Patrícia por cima do ombro mais uma vez.

– Quem é esse cara, afinal, amor? – Mariana pergunta, desta vez direcionando o questionamento à esposa sentada ao seu lado. De relance, entendeu como Patrícia se sentia, sabendo que as duas guardavam segredos dela. De certa forma, muito das mulheres também lhe era desconhecido.

– Foi só um namoradinho que eu tive, alguém do passado, nada demais – a mulher responde, no mesmo instante.

– “Nada demais”? Até parece! – Patrícia retruca, brava – Alguém como ele jamais estará na categoria dos desimportantes, Tatiana.

– Ai, Patrícia... Você é que coloca tudo em termos errados, enfia as pessoas em caixinhas desproporcionais à importância que elas de fato representam. O tempo passou, amor, supera. Eu já virei essa página, por que não faz o mesmo?

– Por isso você não falou nada? Sobre desenhá-lo sem roupa? – Patrícia insiste – Um dia antes você já não sabia que seria ele? Na quinta-feira você foi até o estúdio resgatar seus desenhos e cancelar sua matrícula. Até então estava decidida a não voltar mais para o curso, o que te fez mudar de ideia se não o fato de saber que ele posaria no dia seguinte?

– Como assim? A Mariana me convenceu a não desistir! Eu nem sabia sobre ele – Tatiana retruca, parecendo zangada – Como já falei outras vezes, Pati, acho que você merecia um problema realmente sério para se preocupar, porque com a cabeça à toa fica inventando história, se preocupando sem necessidade...

– Você fala tanto esse tipo de coisa que se por acaso algo sério acontecer comigo eu de verdade vou acreditar que é porque você me rogou praga – Patrícia fala, num tom magoado. Como não disse mais nada na sequência, ficou claro que agora ela estava ainda mais chateada do que antes de pegarem a estrada.

Exclusivamente por consideração à Mariana, não voltou para São Paulo assim que chegaram em Campinas. Mas antes mesmo de estacionarem o carro perto da imobiliária, Patrícia estava absolutamente convencida de que tudo aquilo era um erro; já se arrependia amargamente de ter faltado no trabalho, ainda mais porque seu objetivo também era, além de acompanhar Mariana, descobrir o que havia se passado com Tatiana na última quinta-feira.

O problema é que a mulher insistia em dizer que não fora informada previamente sobre a presença de Miguel na aula e Patrícia já não sabia se gostaria mesmo de descobrir o verdadeiro motivo que a levou a fugir da dieta na manhã anterior. Ainda agora ela parecia abatida por conta do mal-estar, ou seja, não se tratava de uma deslizada casual. Foi um ato doloso, intencional. Assim como era proposital que Tatiana simplesmente não revelasse para Mariana quem era Miguel, afinal, na fila do pão.  

Porém, mesmo aborrecida com a mulher, Patrícia se distraiu com as visitas aos três apartamentos que fizeram e, por já estar muito longe, considerou que seria tolice simplesmente virar as costas e voltar. Inclusive porque se por acaso fizesse isso, Mariana é que teria que pagar por algo que Tatiana cometeu. Qualquer que fosse o “delito” praticado.

Tatiana, por sua vez, não disse nada, nem mesmo quando Patrícia recusou um dos imóveis, por considerá-lo devassado. Em um nítido esforço para não contrariá-la, antes do almoço ela já tinha até criado um grupo no WhatsApp, especialmente para as três. Se baseou nas siglas dos nomes para batizá-lo, mas até que ficou bom: TPM, junto de um coração azul.

Apenas quando pararam para comer, depois que assinaram o contrato na imobiliária e pegaram a chave de um apartamento bonitinho com um quarto e varanda, perto de uma avenida movimentada, é que Patrícia tirou o telefone do bolso e viu que agora fazia parte de um novo grupo. Não tinha mesmo o hábito de ficar no celular, uma vez que não entendia a graça da maioria dos memes e morria de preguiça de rede social. Mas uma vez que não quis se sentar em cima do aparelho, ao colocá-lo sobre a mesa a tela se acendeu, revelando 27 mensagens enviadas por Zezé.

De início, o que sentiu foi o puro creme do pânico. Apenas algo muito sério faria a gerente enviar um SMS que fosse, que dirá mais de 20 áudios. Isso a levou a ser invadida por um completo desespero, enquanto listava mentalmente todos os problemas que poderiam ter acontecido nO Bistrô, um pior que o outro. Quando clicou para ouvir a primeira das várias mensagens, seus sentimentos estavam quase em combustão; a mistura combinava com sua mão trêmula e com o fio de suor que escorreu rente às orelhas.

– Oi, Patrícia, desculpa te incomodar, você disse que eu só deveria entrar em contato se acontecesse algo sério e é por isso que estou te mandando esse áudio... – a mensagem dizia, numa voz um tanto incerta, nos segundos iniciais – Tivemos um problema muito, muito sério... sei que está longe, mas gostaria que viesse para cá. O mais rápido possível, por favor.

Patrícia nem se deu ao trabalho de ouvir as outras mensagens. Mal se explicou para as mulheres quando simplesmente se levantou, pegando a chave do carro de Mariana, mandando um beijinho no ar após dizer que precisava trabalhar, pois tinha um incêndio para apagar. Deixou o restaurante antes mesmo de fazer o pedido, com a cabeça zunindo, preocupada por antecedência. Apenas quando afivelou o cinto de segurança e deu partida no motor é que foi ouvir as outras mensagens de Zezé. Conforme os áudios foram tocando, foi espremendo o volante, tomada por uma sincera aflição.

– Estamos sendo vítimas de uma terrível fake news, Pati – Zezé dizia, na segunda gravação – Hoje recebemos logo cedo a visita daquele jornalista intragável, nojento... aquele, que é fã de fofoca, que tem um canal no YouTube. Não sei se você vai saber... é um que viralizou uns meses atrás, depois que vazou a notícia que envolvia aquele jogador de futebol, sabe? Que deu aquela repercussão toda?

– Vai, Zezé, fala logo, direto ao ponto... – Patrícia resmunga, pulando para o próximo áudio.

– ...aí ele criou até uma hashtag, o cretino... – a gerente dizia na mensagem seguinte, partindo de um ponto que Patrícia não escutou, por causa da ansiedade – Horrorosa, por sinal: #plagícia. Ele está te acusando de não ser original, Pati! Divulgou para os seguidores dele que você plagiou uma das receitas aqui do restaurante.

Já prestes a pegar a rodovia, Patrícia se esforçou para esfriar a cabeça e por um momento considerou que não haveria de ser nada grave. Bem ou mal, de tempos em tempos era sempre acusada de algo sem sentido, como agora. Provavelmente se tratava apenas de algum frustrado querendo pegar carona em seu sucesso, nada novo no horizonte.

O que a fez mudar de ideia, porém, foi a ligação nervosa de Mariana, alguns minutos depois. A mulher, muito mais antenada às questões digitais, foi quem a informou de que o assunto já estava entre os mais discutidos no Xuitter. Desconhecidos e anônimos estavam chamando Patrícia de “chef do ‘copia e cola’” na internet, e já haviam criado dezenas de memes com seu rosto e o logo dO Bistrô.

Sem querer, enquanto dirigia por uma estrada parcialmente vazia, Patrícia lembrou-se de Tatiana dizendo que ela merecia algo grande com o que se preocupar. Isso sem dúvida tinha pinta de ser colossal, especialmente por ser algo que ainda por cima seria enfrentado sem o auxílio próximo da segunda esposa.

Aliás, por falar nela, em seu primeiro mês morando longe, Mariana não voltou nem um único dia para casa. 


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