Vilão
Por acaso alguma vez você já se perguntou
como é que se parecem os vilões da vida real? Queridinhos por muitos autores, os
vilões dos livros são sempre personagens relativamente fáceis de se
identificar, seja por suas características, apresentadas no enredo, seja
principalmente por suas ações duvidosas, mostradas no desenrolar de uma trama.
Mas e fora da ficção? Como fazer para reconhecer e distinguir o mocinho do
bandido?
Infelizmente esta não é uma pergunta com
resposta fácil. Num mundo predominantemente machista como o nosso, eu
arriscaria dizer que a propensão de alguém nos fazer mal sendo homem é muito
maior do que de uma mulher fazer o mesmo – o que não significa, nem de longe,
que não existam mulheres más, que fique bem claro, porque existem, aos montes,
infelizmente. Só que as chances de um homem acabar com você (no sentido
inclusive de destruir completamente o seu emocional, mas não só isso) são muito
maiores, mesmo que você não seja do tipo heterossexual e não tenha o costume de
se envolver com pessoas do sexo masculino. Não importa se você é lésbica (há
casos em que isso é até mesmo um agravante), porque se existe algum meio, ainda
que uma mera possibilidade de um sujeito ruim foder com você, esteja certa de
que ele vai fazer isso. Ainda que você seja uma completa desconhecida, embora
eles gostem bastante de atormentar também quem é próximo, alguém do seu círculo
de amizades ou até mesmo de sua íntima convivência, como a família.
Porque é assim que o vilão age na vida
real: como se fosse uma pessoa comum, como se fosse alguém normal, muitas vezes
até arrotando regras e se dizendo “defensor dos bons costumes”, entre outros
elementos típicos de um discurso conservador. Este é até mesmo um detalhe explícito
que sempre faz acender um grande alerta dentro de mim: essa galera que se diz
muito correta tem quase sempre bastante lixo escondido debaixo do próprio
tapete. É raro, mas acontece com frequência.
Então, mesmo sabendo que ser mulher não
exime ninguém de cometer alguma atrocidade, eu diria que boa parte dos vilões
do mundo real são homens. Tá, vou reformular: no meu mundo real, feito de
pessoas que não estão nos livros, praticamente todos os vilões são homens. E
homens poderosos, considerando o potencial de destruição que eles carregam vida
afora, travestidos de cidadãos de bem.
Essa semana acompanhei uma trend
nas redes sociais que questionava o que era melhor: estar perdida no meio de
uma floresta e encontrar com um urso ou se era preferível encontrar um homem,
nessa mesma situação. Com muito pesar, constatei que quase todas as mulheres
responderam preferir encontrar o urso, que no máximo o que poderia fazer seria matá-las.
Algumas diziam até que o urso pelo menos não estaria depois nas festinhas
familiares, ou que ser atacada por um urso não faria depois ninguém duvidar
sobre o ataque em questão. Isso me tocou de maneira profunda porque diz muito
sobre o ambiente em que vivemos. Fala muito sobre os vilões também.
Quando eu era mais nova, vivia a utopia de
ver em vida o progresso da humanidade. Achava que teria a sorte e a honra de
acompanhar um momento de virada, de mudança, de evolução, que nos levaria à
revolução de nos tornarmos uma sociedade mais justa, equilibrada e sadia. Mas a
verdade é que conforme o tempo foi passando eu fui endurecendo enquanto mudava
de ideia porque entender o contexto em que estamos inseridas é algo cruelmente
doloroso, e infelizmente é um aprendizado que não se esgota; dia após dia sou
obrigada a constatar, até hoje, como tem gente ruim no nosso entorno, como os
vilões da vida real sabem ser ainda mais ardilosos e odiosos que os vilões das
histórias inventadas. E principalmente como o “final feliz” muitas vezes passa
ao largo, bem longe de quem é realmente bom, beneficiando quase sempre gente
que é definitivamente ruim.
Isso me faz compreender que não há um
escritor por trás das nossas histórias pessoais. Não existe ninguém que tente
ser justo, ou que se empenhe em dar um mínimo de coerência para a vida real. Enquanto
na ficção existe a preocupação de passar uma mensagem minimamente verossímil,
no mundo aqui fora é um “salve-se quem puder” geral, onde somos esmagadas todos
os dias, a cada instante, sem muitas possibilidades de não nos afogarmos nas frustrações
e injustiças da vida. E esta é uma comprovação que ao mesmo tempo em que choca,
desperta. Porque me permite enxergar tudo com uma lente mais apurada, que não
se deixa enganar pelas máscaras usadas por todos os vilões.
O problema é só que ainda não aprendi o
que devo fazer depois que essas máscaras caem. Não sei lidar com o que eu sinto
quando descubro um vilão vivendo tão perto de mim, se fazendo de mocinho, pelo
simples fato de que nunca aprendi a fazer esse tipo de coisa, não é algo que
nos é ensinado, embora devesse ser. E enquanto tateio, às escuras, um terreno desconhecido,
com o coração na mão, em frangalhos, me pergunto como sempre o porquê de tudo.
Sem querer romancear nada, não creio que as dificuldades existam apenas para
que a gente fique mais forte. Em realidade, estou cada vez mais convencida de
que explicações não cabem na vida real e, se há justificações, estas desculpas
são sempre usadas como argumentos pelos vilões, que continuam por aí, cometendo
atrocidades de todos os tipos, indiferentes aos sentimento alheio, mostrando
como a realidade pode ser absurda e insensata.
Ainda que seja tentador, não vou encerrar
esse assunto agora, tampouco finalizar a discussão, por ora, alegando algo como
“morte aos vilões”. Não. Morrer não é o que desejo porque seria muito fácil morrer
e supostamente se redimir, e duvido um pouco que esse final garantiria algum
tipo de ponderação, arrependimento ou até mesmo incentivo para se buscar o
perdão.
Ciente de que tudo o que eu desejo é capaz
de voltar para mim, sei também que o que é justo é justo, e esta é a minha
blindagem para dizer que meu desejo sincero é o sofrimento. Desejo o
isolamento, a rejeição e o asco de todos, permeando os julgamentos que farão
contra os atos praticados por um vilão. Sua derrota será a minha satisfação e
me servirá de consolo, sempre, até essa história acabar. Se fode aí sozinho,
garotão.
Essa crônica pode ser ouvida: ouça caribu.
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