caribu – uma história da contadora de histórias

ATENÇÃO!

Essa crônica aborda assuntos sensíveis que podem gerar gatilhos.


Eu sou uma contadora de histórias. Sempre fui, desde criança, então sempre contei muita história, sempre escrevi muita história e, não sei, talvez por associação, sempre ouvi muita história também. Porque de alguma forma as pessoas parecem se sentir confortáveis em me revelar coisas que geralmente eu não pergunto – não porque me falte interesse, que fique claro, porque se tem algo que eu gosto de fazer é ouvir um bom causo, uma boa prosa, que sempre tem como pano de fundo as pessoas. Sim, gente normal, como eu e você, viram personagens de histórias fantásticas ou absurdas, a depender do ocorrido. E nisso, os acontecimentos, embora totalmente importantes em qualquer narrativa, viram meros detalhes quando o protagonismo é integralmente exercido por quem estava envolvido no que quer que seja relatado.

Por tudo isso, de tanto refletir sobre o que ouço, penso e imagino, eu pude perceber ao longo dos anos, enquanto avançava me aventurando nessa sinuosa estrada chamada Vida, que o ponto de vista é o que faz toda a diferença, sempre, em qualquer história. Em outras palavras, “pimenta no cu dos outros é refresco”, como sabiamente afirma o dito popular. Porque ainda que eu me cubra de empatia para ouvir um determinado relato, sentir as coisas na pele altera absolutamente tudo.

Por exemplo, posso ouvir alguém revelar como foram conturbados os dias quando a pessoa teve, sei lá, dengue. Vou escutar, acenar e concordar, talvez até me compadecer, se a história me comover, mas só vou saber de verdade o que está sendo narrado quando eu própria vivenciar aquela experiência que está sendo relatada – o que vai muito além de simplesmente ser picada por um mosquito infectado. Eu dei esse exemplo, que pode parecer bobo, mas ele se aplica a tudo. Infelizmente. E esta é a história que decidi contar hoje, nesta crônica.

Teve um momento na minha vida que eu fiz faculdade de Jornalismo. E nessa época eu decidi, contra a vontade de praticamente todos os meus professores, escrever como trabalho de conclusão de curso um livro-reportagem sobre homossexualidade feminina. Na ocasião, achei que era a melhor forma de produzir aquilo que eu gosto e sei fazer (que é contar história), dentro de um tema que eu já tinha familiaridade (o lesbianismo), na área que eu estudava e sozinha (porque já naquele momento eu era um tanto quanto antissocial). Nesse livro, optei por escrever sobre as fases que a mulher lésbica passa, desde o momento em que se descobre lésbica, propriamente dito, passando por quando se apaixona, se casa, se desilude, enfim, até as músicas daquela época que abordavam a temática, os símbolos, as gírias do pajubá e tudo mais que cabe nesse diversificado balaio. Isso num contexto e num recorte histórico em que o termo “homossexualismo” (sic) tinha acabado de entrar em desuso e o Conselho Federal de Psicologia ainda debatia sobre a homossexualidade ser ou não uma doença (eu sou velha, desse jeitinho, sim). E hoje sei que o meu livro não seria tão incrível se não fossem as meninas que aceitaram participar do projeto e que me relataram momentos das suas vidas de acordo com os capítulos que estavam participando. Porque as pessoas são o que dão o toque para qualquer história, lembra?

Foi escrevendo o meu livro-reportagem, que inclusive calou a boca de quem dizia que eu não saberia ser imparcial, tirou nota 10 e ganhou o prêmio de melhor projeto experimental da faculdade, em 2006, que eu comecei a observar o número assustador de mulheres, moças e meninas que enfrentaram casos de abuso sexual, quase todas dentro de suas próprias casas. Tudo começou quando uma das entrevistadas, que era minha amiga, revelou, durante a entrevista, ter passado por uma situação de abuso na infância. Isso não tinha nada a ver com o assunto que a gente abordando, o livro nem fala a respeito, mas as pessoas realmente me contam coisas que eu não necessariamente pergunto, como já relatei.  

Depois de formada, uma das coisas que eu mais fiz na minha profissão foi ouvir as pessoas, porque do lead (as seis perguntinhas básicas que toda matéria jornalística responde nas primeiras linhas – quem, o que, quando, onde, como e por que), o “quem” sempre é importante, porque sem esse personagem dificilmente uma reportagem se sustenta. Isso me levou a ouvir todo tipo de história que você possa imaginar, das mais amenas às mais cabeludas. E os abusos sexuais, principalmente contra crianças, inacreditavelmente sempre estavam presentes nos relatos, nas entrevistas, nas confissões e boletins de ocorrência, o que me convenceu bem cedo de que habitamos um mundo terrível, dominado por machismo e impunidade, e povoado por pessoas tortas e traumatizadas. E mesmo hoje, depois de tanto tempo atuando em outra área, fazendo outro tipo de trabalho, fora do Jornalismo, me deparo constantemente com várias e várias situações do tipo, com pessoas me contando terem sofrido abuso na infância, e muitas revelando esconderem isso das pessoas até hoje (seja da mãe, seja do marido; tem de tudo). É um problema descaradamente pandêmico, generalizado. Tanto que arrisco dizer que muito provavelmente todas nós conhecemos alguém que sofreu algum tipo de abuso. As minhas observações me levam inclusive a crer que, no nosso universo sapatão, os números são ainda mais altos e alarmantes.

O triste disso tudo é que embora familiarizada com o tema, de uma maneira até um pouco forçada, colecionando diversos e diferentes relatos sobre o assunto, essa foi uma pedra que entrou só agora no meu sapato, em pleno 2024. E o meu choque, mesclado da mais pura indignação, é que ainda que seja absolutamente comum a gente ouvir que quem pratica atos assim são sempre pessoas acima de qualquer suspeita, eu jamais desconfiei de quem era acima de qualquer suspeita dentro do meu círculo familiar. E mesmo autodenominada como “a mina das palavras”, me faltam palavras para descrever o que eu sinto nesse momento. Porque sinto tudo, misturado com um nada que me paralisa de um jeito inédito e devastador; me impede de dormir, de comer e até de escrever. Nunca imaginei que entrar para as estatísticas fosse tão dolorido e tão doloroso. Preferia mil vezes ver as meninas da minha família cercadas por mil ursos, a ter que vê-las encarar um único parente agindo assim. Ainda mais por ser alguém tão próximo de mim.

Para terminar, acho válido dizer que eu sei que esse assunto jamais vai ser considerado página virada enquanto essa história perdurar. Mas aqui decreto que decidi seguir, porque o tempo não vai esperar até tudo se ajeitar. A vida não para, nem mesmo depois de nos atropelar. E eu definitivamente não nasci para rastejar; tenho asas, vou voar.

 

Essa crônica pode ser ouvida: ouça caribu.

Sempre que possível, denuncie: disque 100.


Clique aqui para acessar o menu completo com todas as histórias.

Ajude esta escritora independenteclique aqui e faça uma doação
Você não precisa se identificar, se não quiser! 💙


Postagens mais visitadas