Lado B, Lado A
Aparentemente,
tudo na vida tem dois lados. Não falo com certeza porque desconfio que há coisas
nesse mundo que a gente só fala por falar, e fala tanto que passa a ser uma
verdade, como essa, de que tudo na vida tem dois lados. Porque, pensa comigo, é
perfeitamente possível que em cada situação existam três lados, pode ser que
sejam cinco, ou até mais, da mesma forma que também pode ser que não tenha
outro senão um só. Mas acreditar nessa dualidade, porque em geral os dois lados
em questão são opostos, antagônicos do tipo “bem” e “mal”, é romântico e
bonitinho. Eu gosto! Gosto tanto que escrevi esse ensaio, poético, sobre dois
lados de uma situação cotidiana.
Lado
B
Desde
criança, eu sempre gostei muito do céu. Do jeito apaixonada, mesmo, se
deixassem eu ficava horas contemplando o mundo acima da minha cabeça. Era uma das
raras oportunidades que eu fazia isso, inclusive, porque poucas vezes eu ficava
quieta. Mas com o céu, sei lá, eu me sentia hipnotizada. Fascinada, essa é a
palavra. Eu era fascinada pelo céu, em especial pela lua, seguramente o
primeiro amor da minha vida. O segundo foi uma goiabeira, mas outro dia eu
conto essa história.
Aí,
por volta dos meus três, quatro anos de idade, eu ficava dando rolê de velocípede
no quintal de casa, por horas, cantando para a lua. Uma mini eu emocionada, muito
prazer. Não era nada demais, meus versos se resumiam a “a lua no céu,
pumpumpumpumpum, a lua no céu, pumpum...” e por aí vai. Noite adentro, se
deixasse, porque eu sempre fui muito cheia de energia e disposição para xavecos
– desde novinha, ao que tudo indica.
Na
adolescência eu passei a ter o costume de ir dormir mais tarde quando criei o
hábito de sair à noite, para as baladas. “Baladas” bem entre aspas porque
cresci numa cidade do interior, provinciana, que num determinado momento nem
cinema tinha, depois que o cinema faliu. Mais tarde abriu um shopping, com várias
salas e tudo mais, que existe até hoje, mas na minha época o que tinha
para fazer no sábado à noite era dar volta no quarteirão no centro da cidade
até ter idade suficiente para frequentar as baladas de verdade, que lá eram
chamadas de “clube”. Um deles tinha um evento especial chamado “noite da espuma”,
que eu honestamente nunca fui. Quando comecei a frequentar lugares assim, dava
preferência para outros tipos de espumas, e batia cartão em festas como as “noites
do chopp”, onde eu bebia várias, beijava horrores. Eu, uma filhotinha de
caminhão alcoolizada (que beijava meninos porque nessa triste época ainda não
sabia quem eu era de verdade e só seguia o baile. Literalmente!).
Como
era uma cidade sem muitas opções de lazer, no fim de semana a gente caçava
coisa para fazer. Aí, quando atingi uma determinada idade que alguns amigos já
dirigiam, meu programa preferido era me embrenhar quilômetros adentro em
estradas de barro só para beber no meio do mato e ver estrelas. Nisso, minha
amiga, você vê cada coisa... coisas reais e irreais, e imaginárias, e
fantasiadas, e milhares de outras coisas que no dia seguinte você nem se lembra
mais. O que eu mais gostava de ver era estrela cadente.
Ver
uma estrela cadente é uma situação muito emocionante, mas que também coloca em xeque
absolutamente tudo. Até, e principalmente, a sua capacidade de ver realmente uma
estrela cadente. Porque é muito mágico, mas é um lance também bastante rápido,
quase instantâneo. Quando vê, já foi, já caiu, já acabou e nem fica um rastro
no céu para comprovar que você viu de verdade. E nessas situações de beber no
meio do mato de galera, ser a única pessoa a ver uma estrela cadente te
coloca em xeque, é uma situação em que você quase cai em desonra, de verdade. Conheço
muita gente que ia nesses rolês e que nunca viu nada, mas é algo relativamente simples
de se observar quando se é alguém fascinada pelo céu. Eu sempre fui!
Na
vida adulta inverti meus horários, provavelmente porque vivo um tipo de “esquenta”
para a velhice, um preparativo para o dia em que finalmente vou levantar cedo só
para varrer calçada. Por ora, levanto cedo e corro, mas já sabemos o que me
aguarda.
Por
causa disso, durmo cedo, acordo cedo e aí me sobram os céus diurnos para
apreciar. Sozinha, todos os dias contemplo os segundos preciosos da manhã em
que as luzes todas se acendem em tonalidades fascinantes mescladas de rosa,
laranja e outras que nem sei nomear, que me deixam boquiaberta enquanto falho miseravelmente
na vã tentativa de capturar magia com câmera de celular (que bobinha). Os
amanheceres são meus favoritos, também porque é quando a vida ainda está adormecida
em silêncio, com exceção dos passarinhos e a caralha de um alarme, que todo dia
dispara em tom de cocoricó.
Pôr
do sol é bonito também, mas isso a minha janela não mostra. Aqui, a programação
infelizmente vai só até umas quatro da tarde.
Eu tenho
a sorte de morar próximo a uma espécie de bosque, não sei se posso chamar assim,
é um clube privado, uma grande área verde que privilegia bastante a minha
vista, contrasta bem com os prédios construídos bem ao lado. Nunca tenho dúvida
sobre qual direção olhar, mas o brilho da manhã deixa bonito até estrutura de
concreto, eu fico passada. A natureza consegue coisas que só ela é capaz.
Nesses
instantes de quase meditação, porque não deixa de ser meditativo, se esvazio
minha mente e me encho da energia da manhã, ainda que debruçada na janela do
meu quarto numa cidade metropolitana, às vezes acontece de eu ter a oportunidade,
a honra, o mérito e o prazer de ver uma das espécies mais bonitas de pássaros
que existe no Brasil, e que somos privilegiadas e merecedoras de termos a rica oportunidade
de vermos essas obras de arte voando livres no céu, e não confinadas em
zoológicos e espaços do tipo. Estou falando dos tucanos.
A
primeira vez que vi um tucano assim, solto em seu habitat, voando com seu
belíssimo bico que parece cuidadosa e delicadamente pintado à mão, foi quando
eu morava no Mato Grosso. Na ocasião, estava na estrada com amigos, indo em
direção a uma cidade chamada Nobres, onde conheci a cachoeira mais maravilhosa
de toda a minha vida, com 70 metros de queda d’água e uma vista linda, linda,
linda, com 348 tons de verde e uma fábrica imensa de cimento no meio, provavelmente
para mostrar que todo lugar que o homem chega, caga (ou para comprovar
paisagisticamente que tudo tem dois lados, isso agora me ocorreu...).
No
caminho, vi um tucano. Pertinho, sobrevoando o horizonte. Quando percebi que
era um tucano eu quis gritar. Quis chorar também porque imediatamente fui
tomada por uma emoção que não sei descrever, tampouco decifrar, porque foi um
bagulho que tocou meu coração de um jeito único, especial. Talvez por isso eu
só consegui me calar. Emocionadíssima, como mais nada jamais me deixou. Exceto
quando vi outro tucano, alguns anos depois.
Na
ausência das estrelas cadentes da minha adolescência, toda vez que vejo um
tucano eu faço um pedido. Que é o mesmo pedido de quando assopro as velas de
aniversários, o mesmo mais ou menos desde a época das canções apaixonadas para
a lua (sou um pouco previsível em alguns aspectos, a começar por este).
Aqui
de manhã na janela eu tenho a sorte de ver vários tucanos, quase toda semana
consigo ver um. E a sorte é em dobro porque em geral tucanos voam de parzinho. Então,
se vejo um, são grandes as chances de ver outro logo em seguida. E eles passam em
voos rasantes que combinam muito com o cenário, é de verdade muito bonito.
Enfeitam tanto o meu dia que só por isso recomeço a vida sempre mais feliz.
Lado
A
Tucanos
são grandes predadores na natureza. Seus bicos são usados principalmente como
ferramenta para saquear ninhos alheios. Tucanos gostam de comer ovos e filhotes
de outras espécies.
Essa crônica pode ser ouvida: ouça caribu.
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