O tombo
No meu último treino, no Dia de Finados, saí de casa às 7h, toda
felizinha, para me despedir do meu tênis de corrida, e no meio da rua acho que quis
fazer uma homenagem póstuma, em vida, e no quinto quilômetro quase fui “de
arrasta pra cima”. Mentira, não chegou a tanto, mas eu só sei disso agora. Na
hora, quando bate o desespero, a gente sempre acha que o pior vai acontecer e
que chegou a hora de morrer. Bom, eu sempre penso...
Parece exagero comparar uma situação de quase morte com o tombo que eu levei
no meio da rua e é exatamente sobre isso que eu quero falar. Que sim, é
exagero, mas que tudo bem, porque enquanto a queda ainda está acontecendo a
gente fica meio no escuro, mesmo, sem saber o que vai rolar logo depois. No meu
caso, ralei o joelho, a palma da mão e machuquei meu ego, que ficou todo feridinho
depois do capote, que teve testemunhas (sempre tem). E foi O capote!
O interessante dessa história é que antes de cair, deliberadamente eu decidi
mudar o caminho no meio do rolê. Acredite, conscientemente virei numa esquina
que nunca viro e simplesmente fui, sem rumo, o que me faz pensar do que
realmente desviei, qual foi meu livramento por não ter feito o caminho que
sempre faço, no mesmo lado da rua, toda vez. Sim, eu caí, é verdade, e só caí
porque desviei o trajeto, mas o que é que tinha lá? Diz aí se não é algo para
se pensar...!
Eu sou muito metódica. Talvez porque seja uma pessoa bastante dispersa,
aí me imponho pequenos rituais que me obrigo a cumprir e acabo fazendo isso de
um jeito sempre muito igual, até que um dia me dá algum tilti e eu decido
mudar. Isso vale para tudo, desde os cuidados com a casa, com dias e horários
certos para a faxina, a rega das plantas, por exemplo, à metodologia que
apliquei no meu trabalho, incluindo a ordem que acesso os sites dos clientes,
os e-mails e tal. E a minha mania obviamente engloba a corrida, que inseri na rotina
como parte dos meus dias e que tenho o dever, o comprometimento e a obrigação
de manter.
É que nem parar de fumar, sabe? Não basta só parar, a cada dia é preciso
resistir e persistir no objetivo de parar. É quase como parar todos os dias.
Correr também. É maravilhoso que se tenha a iniciativa de correr, mas é preciso
persistir, insistir e até se obrigar a continuar. Até porque correr cansa muito
mais do que fumar.
Devo dizer que comigo vem dando certo. Agora no final de novembro
completo sete anos sem cigarro (depois de ser fumante por quase 20) e esse é
meu segundo ano correndo. Tenho acumulado quilômetros e experiências que se
aplicam às provas e aos testes, de modo geral. Cada vez que visto meu top, calço
o tênis e saio de casa aprendo mais sobre correr, respirar, sobre pensar pouco
e até a cair. É importante saber cair.
O curioso é que toda vez que eu caio parece que, enquanto estou no ar, me
programo para cair da melhor maneira. Pode ser rolando, se for numa reta ou,
como foi o caso, me projetando para o lado da calçada, na descida, com tempo
suficiente para calcular o impacto com as pedras, ao invés do asfalto, mas
consciente do grau de segurança disso, muito mais elevado do que arriscar de levar
uma pneuzada na cabeça. Também sempre existe uma preocupação em poupar o lado
esquerdo do meu corpinho, porque eu uso uma meia de compressão só nessa perna e
a meia é muito cara, então prefiro rasgar a pele do outro joelho, que sai mais
em conta. E isso tudo é pensado em milissegundos (é uma loucura como o tempo
muda conforme a percepção e a situação vivenciada, né, fala aí).
Ontem levei meu terceiro tombo, mas pela primeira vez caí num lugar inédito.
Pois é... eu consegui ter a capacidade de cair duas vezes no mesmo lugar e
rolei que nem uma tatu bolinha em ambas... uma situação muito chata e muito desagradável,
sabe, rolei no meio de uma ciclovia que fica no meio de uma avenida
movimentada, são três faixas de carro em cada lado... Na primeira vez ainda
juntou dois caras em cima de mim, um de bicicleta fez a volta para me “socorrer”,
e eu lá falando “tá tudo bem, tá tudo bem”, enquanto me levantava sacudindo o
pó da rua com sangue, quando na verdade minha vontade era falar “sai macho, sai
daqui, carai”... Nesse dia, inclusive, eu fiquei tão brava que saí em disparada
na sequência, bati recorde de tempo, foi minha meia-maratona mais rápida na
ocasião. Foi também algo que me fez pensar bastante depois. Faz, ainda.
Eu sempre tive uma brisa frequente relacionada a isso. Quer dizer, não a
isso, exatamente, mas a reações que tenho em momentos de apuros. A brisa em
questão é que eu não tenho exatamente uma “voz de menina”, sabe, fininha?, aí fico
brisando que se um dia estiver em perigo, ao invés de gritar “aaaaah”, vou
gritar “oooooh”. E essa “preocupação” se incrementou quando me senti tão
ofendida depois que dois estranhos quiseram me ajudar. Acho que isso fala muito
sobre mim, e a minha dificuldade em receber ajuda.
Ou seja, tão importante quanto saber cair é, aparentemente, pegar algo do
chão antes de se levantar. Que seja uma reflexão como essa, está ótimo, já está
valendo muito.
E embora seja um tanto quanto pessimista sair sempre preocupada com a possibilidade
de cair, acredito que seja importante estar sempre pronta para tudo, até para
isso. Porque, como eu disse para a mulher que me perguntou se eu estava bem
depois de tombar no feriado, viver/correr é se arriscar; ficar deitada na cama
não machuca, mas também não agrega nada.
E outra: a gente até cai, mas também levanta sempre. Depois a situação
ainda vira história para contar.
Essa crônica pode ser ouvida: ouça caribu.
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