Renovação de contrato
No dia 28 de outubro de 2017, me mudei de mala e cuia e cã para um
apartamento alugado em um bairro chamado Jardim Paraíso. Trouxe desmontados debaixo
do braço os poucos móveis que me sobraram depois da última mudança e tinha o
sincero objetivo de me montar aqui. Na ocasião eu estava quebrada em mil
pedaços e honestamente não tinha muitas perspectivas para o futuro, então
querer me consertar foi fundamental para o processo todo dar certo.
Assim como acontece com tudo, não tenho como sequer imaginar como teria
sido se por acaso não tivesse vindo para cá. Principalmente porque seis anos
atrás não dava nem para cogitar que teríamos um isolamento social logo à
frente, e que eu me trancaria para o mundo justamente no endereço que consta no
contrato que foi renovado essa semana.
Claro que isso não me impediu de me consumir nas probabilidades que se
criaram na minha cabeça, em todos os cenários recheados de “e se” que pipocaram
aqui e ali. E se eu morasse em outra cidade? E se nem tivesse saído de São
Paulo? E se nenhuma curva tivesse me derrubado, como seria? Muitas
possibilidades pensadas enquanto a realidade acontecia onde tinha que ser. Ou
onde acabou sendo e ainda é.
Sempre tive uma certa dificuldade com a questão do pertencimento porque cresci
numa cidade interiorana e provinciana do estado de São Paulo que valorizava muito
a questão do sobrenome. Além de Silva, sou filha de cariocas, só aí já cabem
dois preconceitos e eu enfrentei vários (sou lésbica, né, você sabe do que
estou falando). Então, ainda que tenha ficado por lá até depois de me formar na
faculdade, nunca pude me dizer parte da população, de verdade, porque nunca me
senti pertencente à cidade. Sempre fui uma forasteira, e olha que morei lá por mais
de 20 anos!
Por isso, sair não foi difícil. E foi fácil fixar residência em outros
estados, como Mato Grosso e Mato Grosso do Sul porque além de tudo sempre fui
desprendida com a questão familiar também. Isso sem dúvida foi um facilitador
para eu bater asas tão longe do meu ninho, e ainda assim sempre acabar
retornando e ficando por perto.
Nessas, nunca planejei exatamente um lugar para viver o resto dos meus
dias porque meio que sempre me deixei ao sabor do vento, me permitindo levar
pela brisa do destino. Ironicamente, dizia que poderia morar em qualquer local,
menos São Paulo. Sempre me senti intimidada por São Paulo. E foi lá que acabei
tendo os anos mais felizes da minha vida, morando num ponto cinza do Brás – o
mais colorido do mundo, mesmo assim.
Hoje, que já me distanciei alguns anos de tudo aquilo, fico refletindo
como seria se a gente tivesse spoiler da própria vida. Como agiríamos e
de que forma conduziríamos a rotina, caso por acaso soubéssemos o que vem na
página seguinte, o que nos espera no capítulo adiante. Porque assim como acontece
nos livros, na vida real também existem as emoções, os pontos altos, as viradas
de chave de personagens que, quase sempre, só vêm depois de elas se foderem
bastante. Minha conclusão, muitas vezes, é que fiz o melhor que pude e
aproveitei cada minuto de um presente maravilhoso que infelizmente hoje está lá
no passado.
Na tal “vida que segue”, vim parar num lugar que tem o mesmo nome do
bairro onde cresci em Itu. Coincidência?, acho que não, mas tem quem diga que
se a gente procurar, acaba achando sinal em tudo quanto é canto, até onde não
existe... Mas gosto de acreditar que, de algum jeito, sempre soube que viria
para cá, que aqui seria o lugar para me refugiar não só da pandemia, mas da
minha própria vida, dos monstros que se escondiam debaixo da minha cama. E na
semana passada, quando me vi diante da possibilidade de ter que me mudar,
constatei que me sinto bem aqui e que desejo continuar.
Não sei se vale muito porque eu estava sob pressão, ou se vale mais
justamente por isso... só sei que tive uma crise de ansiedade, pois claramente
sou refém dos meus pensamentos, que nessas horas viram putinha das minhas
emoções, e eles me encurralaram depois que a imobiliária me enviou a proposta
de renovação do contrato de aluguel. Uma proposta que incluía um aumento
exorbitante no valor, é verdade, mas nada justifica minha reação. Digo eu
agora, calminha.
Além dos gastos com mudança, com cheque caução, com tudo o que envolve uma
troca de endereço, sofri por ter que deixar minha vista, por ter que sair do
meu bairro, onde desfilo como se fosse uma burguesa safada, por ter que
abandonar minha vizinha – isso sem dúvida foi o mais doloroso! Aí percebi que
eu, que sempre gostei de voar, criei gosto em cultivar raiz. E que, aluguel por
aluguel, aqui é meu lar enquanto mantenho os boletos em dia – e mantenho,
todos, sou uma ótima inquilina.
Negociei um novo valor, que foi aceito, e de lá para cá já fiz três
faxinas. No domingo passado, limpei até as janelas. Entrei no período do meu
inferno astral com tudo brilhando, cheirando a cera e desinfetante. Agora tenho
pela frente no mínimo 12 meses obrigatórios morando aqui, num total de 30, até
nova negociação. A meta é me organizar e conseguir me mudar para o meu rancho,
que sei que existe em algum lugar, inclusive temporal. E como acredito que o
tempo é realmente mera questão de percepção, acalento, daqui, quem eu era
quando me mudei para cá, tão fragilizada e despetalada, ao tempo em que recebo
forças de quem serei ao sair, muito mais forte do que me sinto agora.
Para finalizar, quero dizer que sou grata pelas escolhas que fiz no
passado e que me perdoo caso eventualmente sinta que poderia ter feito algo diferente.
Fiz o melhor que podia e que estava ao meu alcance, e embora ainda não seja a
mulher almejo ser, me conforto por conseguir o máximo que posso para ser cada
vez melhor. Porque não importa o endereço: a gente vai sempre morar com a gente
mesma. Que seja pacífico, então.
Essa crônica pode ser ouvida: ouça caribu.
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