O dom da fofoca
Eu sou fofoqueira. Assim, sou uma mulher curiosa, sabe? Gosto de fazer
análises e conjecturas, sou bastante interessada pelos acontecimentos do mundo,
em especial aqueles à minha volta, que me chamam a atenção de uma maneira que
às vezes é impossível não observar ou não querer apurar para saber o que foi
que aconteceu. Por isso, qualquer barulhinho na rua eu já corro para a janela
para espiar, sempre dando graças por ter tido a sorte de não morar virada para
a avenida. Se com a vista sendo morna eu já faço plantão no batente, imagina só
se realmente tivesse coisa para acompanhar! Nunca mais ia trabalhar, certeza.
O mais curioso dessas minhas análises urbanas que têm toda essa pegada
científica/social e antropológica é que as pessoas quase nunca se percebem
observadas. E o ser humano é capaz das mais loucas coisas quando ninguém está
vendo! Ou quando acha que ninguém está vendo, porque eu, como disse, estou
sempre de olho, atenta aos mínimos detalhes e movimentos de todos os tipos.
Esse ponto contrasta um pouco com aquilo que nós fazemos quando eventualmente
os outros estão nos olhando, e nós agimos muito em detrimento do meio em que
vivemos e das pessoas com quem interagimos e dialogamos. A sociedade da qual
fazemos parte lapida nossos comportamentos sem que, muitas vezes, a gente nem
perceba. Eu mesma tenho uma brisa, terrível, nessas horas de interação social,
em geral quando estou falando com alguém no elevador, porque eu sou um verdadeiro
bicho do mato que nunca sai da toca, então as minhas relações se restringem
quase todas aos “bons dias” e “boas tardes” que sou obrigada a direcionar a
vizinhos que nem sei o nome, embora morem no mesmo endereço que eu. São sempre
ocasiões que não dá para falar muito, afinal, eu moro no quarto andar, daqui para
o térreo são dois pá, então as conversas são sempre muito breves, geralmente
têm relação com o clima ou com a obesidade da minha cachorra (sim, as pessoas
adoram falar disso). E o problema nessas horas é que, ainda que sejam diálogos
curtos, quase instantâneos de tão espontâneos, são conversas que descambam para
sorrisos amarelos, porque quando duas pessoas não se conhecem parece há sempre um
incentivo ao riso, e nós mostramos sempre os dentes de uma forma cordial e
gentil. Só que a minha brisa é nem sempre saber se estou de fato retribuindo o
gesto. Sim, tem vezes que preciso checar se estou sorrindo. E depois envio o
comando para ficar séria de novo, porque se depender da minha cabeça, sigo com
cara de boba. Com cara de “é, São Pedro está maluco, o tempo anda mesmo uma
loucura...”.
Mas voltemos às ações realizadas numa suposta surdina, vamos nos
concentrar naquilo que nós fazemos quando ninguém está olhando. Você já parou
para pensar quais são os seus gatilhos nessas horas? Eu tenho a teoria de que
nesses momentos é que a gente age exatamente de acordo com a nossa essência,
que pode ser civilizada ou não; pode ter bom senso ou ser totalmente sem noção.
Como eu sou a pessoa com quem mais convivo desde que nasci, um dos meus
esportes favoritos é me analisar, porque considero essa proximidade, essa
convivência forçada, uma rica oportunidade de estudar quem eu sou, independentemente
de quem eu digo ser. Aí faço essas observações assim, quando estou distraída,
mas quando estou desperta também. E em geral não falo muito a respeito porque
para me taxarem de louca é “um, dois”, rapidinho chega alguém aqui querendo me
prender numa camisa de força, dentro de uma sala acolchoada, mas como minha
intenção com essa crônica é falar da ação de alguém que não sou eu, me pareceu
justo começar por essa primeira pessoa.
Achou exagero? Tá, vou ilustrar. Tem vez que saio na rua e no meio do
caminho tenho que bater a mão no meu corpo para ver se me lembrei de me vestir.
Sim, minha querida, eu me preocupo de ser maluca o suficiente para simplesmente
sair na rua só de calcinha. Ou só de cueca, dependendo do dia. E embora não
ligue a mínima para o que dizem sobre mim (bom, talvez me importe um
pouquinho), eu fico sempre pensando no que pensariam, se me vissem assim. E
disso emendo pensamentos que me levam para trilhas que vão ainda mais longe,
por exemplo, de que outras maneiras eu não me desnudo aos olhos de todos, por
puro excesso de mim. Só por eu ser quem eu sou.
É, além de fofoqueira, eu penso demais e nem sempre o que penso tem muita
coerência...
Mas vamos lá. Dia desses fui andar com a cã, que se mantém de dieta, mas
que agora passeia dia sim, dia não, porque ela não aguenta mais sair todos os
dias. E como está muito velhinha, ela caminha muito devagarinho, o que me dá vários
minutos extras de pura pesquisa de campo. Moro numa região movimentada, então o
que não falta aqui é coisa para olhar! Vejo motoristas egoístas, pedestres descuidados,
ciclistas avoados, moradores de rua enlouquecidos, motoqueiros que não param mais
no semáforo... e vejo sempre um cara, passeando com um labrador. Na verdade, o
cara passeia com dois labradores, e no dia em que descobri isso fiquei passada.
Como pode, logo eu, tão “fifizinha da Estrela”, nunca ter reparado que eram
cachorros diferentes? Pois é, mas consegui a façanha.
Eu não sei o nome desse sujeito, não sei onde ele mora, desconheço até as
alcunhas dos dois cachorros diferentes que todos os dias ele leva para passear.
Mas sei que já tem um tempo que o vejo, a gente se cruza na calçada, eu sempre
desvio porque minha catiora é mais antissocial que eu, adora uma briga (ou
gostava no passado e eu finjo que é assim até hoje porque é um pouco doloroso
constatar que a minha gordinha se transformou numa idosa cansada de ser vida
loka). Aí a gente se cumprimenta. “Oi”, “oi”, “bão?”, “bão!”, desse nível.
Em linhas gerais, eu não teria absolutamente nada para falar desse moço,
que já é um senhor, deve ter lá seus 60, 70 anos. Talvez pudesse mencionar algo
caso ele tivesse a mania que muitos tutores de pet têm, que é de deixar o cocô
do cachorro lá no meio do caminho, às vistas de todos, mas a questão é que o
problema é justamente o inverso. Flagrei uma cena esses dias que eu preciso te
contar porque uma fofoca só se completa quando é passada adiante.
Você acredita que embora o cara estivesse carregando uma sacolinha de
plástico, na hora que o cachorro cagou, ele catou tudo com a mão? Com.a.mão! Bolinha
por bolinha, e nem teve pressa! Fez lá a limpeza que ele achou conveniente,
tacando o foda-se para o que eu ou qualquer outra Maria Fifi fosse pensar a
respeito. Achei tão simbólico que quis fazer o mesmo. Não com bosta, claro.
Meu desejo mais sincero neste ponto da minha vida, e da minha sanidade, é
ter o merecimento de não ficar doida antes da hora, não começar a sair por aí
sem roupa ou esquecer como é que se age diante de uma conversa. Mas
especialmente quero a paz de espírito de enfiar a mão na merda caso seja
necessário e fazer a minha parte independentemente do que os outros vão pensar
ou achar. É um exercício difícil, mas aceitei o desafio. Isso e jamais
cumprimentar o cara do labrador com um aperto de mãos.
Essa crônica pode ser ouvida: ouça caribu.
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