Intolerante
Me descobri intolerante. Parece assunto velho, mas é novo. Me descobri
intolerante e ainda estou digerindo o fato de que levei tanto tempo para
constatar o óbvio. Ou talvez já até tivesse constatado, mas me faltava admitir.
Eis então minha mea-culpa.
Há muito tempo defendo a ideia de que viver nada mais é do que evoluir
enquanto a gente se experimenta em determinado tempo e espaço travestida de um
certo corpo, em um dado contexto histórico, político e familiar. E graças ao
isolamento social que começou na pandemia e que eu simplesmente não soube
colocar um fim, o que mais faço nos últimos anos é me observar, e me analisar,
e me estudar seja enquanto estou distraída, seja quando reajo a algo que me
acontece – e é incrível como ocorrem diversas situações, mesmo que eu me recuse
a sair de casa.
Descobrir determinada intolerância tem seus prós e contras que incluem
jogar luz em cima de algo que faz mal, e isso consegue ser ao mesmo tempo bom e
ruim. É positivo porque ter ciência de algo maléfico nos mantém afastadas
daquilo, e é negativo pelo mesmo motivo. Afinal, é muito terminativo constatar que
determinado elemento agora vai ter que ficar para sempre longe de você, para o
seu próprio bem. E ser adulta muitas vezes significa você mesma se impedir de
cometer atos que te prejudiquem. Bom, ao menos em teoria.
Durante anos considerei que o meu problema era com glúten. Isso começou
mais ou menos quando adquiri o hábito de ler as embalagens dos produtos
industrializados e ainda no supermercado constatava o quanto a indústria gosta
de socar farinha de trigo até no que em teoria nem precisaria, por exemplo,
sorvete de chocolate e salgadinho.
Depois, passei a acreditar que o meu problema também tinha relação com lactose.
E ficou fácil perceber como tem leite em praticamente tudo o que a gente consome
quando tentei ser vegana – empreitada que obviamente falhei completamente, uma
vez que a minha dieta na época já era super restritiva e não incluía glúten.
O fato é que levei vários anos, a duras penas, para descobrir que a minha
intolerância é muito mais abrangente, engloba alimentos que fermentam e gente. Sim, pessoas,
seres humanos, famílias, principalmente.
Imagine só, “altas aventuras do barulho vividas por alguém teoricamente
sociável com paladar infantil”... Daria um bom título, se não estivéssemos
falando da minha vida. Por sorte, para a síndrome do intestino irritável existe
um tratamento que não cura, mas que controla e gera um bem-estar que me permite
comer pão todos os dias – e eu sou muito feliz comendo pão, o que me inspira a
enfrentar todo o resto.
Esses dias fui assistir uma apresentação musical. Pela primeira vez, fui
ao teatro acompanhar uma orquestra sinfônica, numa noite especial, regida por
uma maestrina e várias musicistas que homenagearam uma compositora brasileira
chamada Dinorá de Carvalho. Incrível, a música, a compositora (transgressora,
para sua época), e também a maestrina, a cantora de ópera... Enfim, tudo muito
bonito, perfeito, talvez até o fato de a plateia estar vazia. Minha amiga e eu
sentamos num lugar ótimo e degustamos de uma noite agradabilíssima, nem pareceu
que enfrentamos todo um estresse antes de sair, naquela dura luta por uma roupa
decente para dar rolê fora de casa.
Na semana seguinte, repetimos o feito. Mesmo teatro, mesma maestrina, praticamente
a mesma orquestra, mas com uma programação de ópera que homenageava um
compositor campineiro chamado Carlos Gomes. Aí havia mais tenores e sopranos e
pessoas na plateia. Estava lotado, nos separamos praticamente nas últimas
cadeiras disponíveis e sentamos num andar acima, que eu nem sabia que existia. Aí
achei que seria só mais uma noite musical, mas foi na verdade um grande teste.
Entendo que “quem procura, acha”, mas mesmo sem buscar por nada encontrei
logo de cara uma mulher sentada com um bebê. Sim, um bebê numa ópera. E tinha
mais, contamos pelo menos outros dois. Aí dizem “ai, mas a mãe não pode se
divertir?”, gente, claro que pode, mas já inventaram babá, né. E classificação
etária baseada em bom senso, convenhamos. Se bem que isso não se restringe à
idade porque atrás de mim tinha um casal de idosos que não calou a boca e ficou
tirando foto com flash a noite inteira. Foto com flash de um musical que não
podia ser filmado ou fotografado! Foi anunciado no começo que era proibido, mas
talvez eles estivessem conversando na hora. Para contrapor, tinha uma jovenzinha
de uns 12, 13 anos sentada atrás que também achou que estava assistindo algo na
sala de sua casa, e teceu comentários que eu nem queria ouvir, mas tive que
escutar. Tudo isso enquanto desviava dos chutes de um bebê entediado.
O autocontrole é talvez uma das ferramentas mais poderosas que nós temos,
desde que saibamos usá-lo, é claro. Aquele tal de “contar até dez”, não mandar
um estranho se calar, sabe? É lindo, quase tão poético quanto um bom musical.
Mas confesso que me controlei focando no pão que eu deliciosamente comeria ao
final do espetáculo. Pois é, minha gente, mantive meu réu primário intacto
graças a um pão que no fim eu nem comi, porque a padaria já estava fechada
quando a noite terminou.
Já tem um tempo que a minha bateria social acaba rápido. Eu acreditava
que era coisa de dois, três dias, mas talvez seja questão de duas, três horas –
se chega a tanto! E foi um pouco chocante chegar a essa conclusão porque a vida
toda acreditei que para ser feliz, ou minimamente completa, eu necessariamente
precisava ter alguém do meu lado o tempo inteiro. E quando me vi sozinha não só
aprendi a apreciar a minha própria companhia como parece que fui além,
exagerei. Agora, me incomodo com as pessoas em geral. Com o barulho que fazem
nas horas impróprias, com seus comportamentos inapropriados, quando agem em
desacordo com o que estabeleci como certo.
Ou seja, virei uma chata. Prova disso é que quando comentei com a única
pessoa que ainda aturo que pretendia escrever essa crônica para falar de
intolerância, a resposta dela foi “você devia era voltar para a terapia”.
É, acho que devia mesmo. Mas foi muito bom escrever!
Essa crônica pode ser ouvida: ouça caribu.
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