Crônica crítica de uma lésbica futurista
Ultimamente eu não ando muito bem. Vida real, sabe como é... Às vezes
acontece de a gente ter que enfrentar determinados problemas que nos afetam,
atrapalham nosso sono, e há outras situações que são ainda mais graves do que
essas, que representam rompimentos de alguma forma com quem a gente era, para
que uma nova versão de nós possa surgir. Bonito, né? Nem parece que estou
falando de algo que tem me deixado cagada há mais de duas semanas!
Esses dias vi um meme falando que era perfeitamente possível notar quando
uma temporada da nossa vida acaba e outra começa. A rotina, segundo o meme, teria
o poder de indicar essa mudança: determinadas pessoas se afastam e algumas situações
drásticas acontecem de repente e nos fazem mudar de rota, mudar de plano, a
gente só não muda de planeta porque não dá (ao menos não geograficamente
falando). É como se fosse um seriado mesmo, quem está mais atenta até consegue
perceber as nuances dessa virada, que nem sempre é sutil.
Semana passada perdi o sono pensando nisso. Quer dizer, na verdade eu fui
acordada de madrugada porque o meu cérebro exigiu que eu refletisse a respeito
disso, às três da manhã. Quando reparei, estava eu lá, juntando as peças
aparentemente soltas do meu cotidiano e no final, com a cena toda montada, foi
impossível não constatar que vivo o começo do futuro dos meus dias. E aí me vi
diante de duas opções, aparentemente bem simples: ou eu toco a vida com a
responsabilidade de permitir que águas passadas não me banhem mais, ou me
mantenho parada e chafurdo na lama do tempo.
Se eu disser que a minha vontade é avançar, progredir e evoluir, me
tornar uma pessoa melhor, mais consciente e responsável, vou estar mentindo. Ou
melhor, até quero essas coisas, afinal sou adepta da teoria de que a vida é uma
sucessão de aprendizados contínuos, e de vidas, e que não se desenvolver significa
de alguma forma regredir. Se aqui nem sempre parece bom, imagina só ter que voltar...!
Mas a verdade é que o meu corpo, aqui representado pelo conjunto que inclui a minha
mente sabotadora, nem sempre atende às expectativas de evolução. Muitas vezes
eu só quero deitar e esperar o tempo passar. Como diria a poeta, “tem dias que
à noite é foda”.
No ano passado eu adotei o hábito de acolher meus sentimentos e é
incrível o poder de se fazer isso. Antes, quando eu me recusava a sentir
determinadas coisas e lutava contra aquilo, me desgastava duas vezes porque a
vida infelizmente não é um País das Maravilhas e querer impedir que uma torrente
de emoções surja pode nos afogar numa corrente de sentimentos. Então, agora eu
simplesmente fluo. Fluo e observo passar até a última gotinha de frustração, fico
ali na beirada de mim olhando tudo até que se cesse todo o mar de raiva e depressão.
Tem dias que isso demora bastante para acabar, mas não eu posso ter pressa se o
meu tempo é de acordo com o meu próprio relógio biológico.
Por causa disso, faz duas semanas que tudo o que eu faço é fluir. Isso
significa chorar em alguns momentos, gritar em outros, dormir em excesso e
correr mais rápido também (porque sou uma mocinha dúbia e contraditória nessas
horas). Meu apetite está completamente alterado, meu humor se encontra em frangalhos
e eu não consigo trabalhar. Não consigo fazer quase nada, na real, embora tenha
feito faxina todos os dias e a louça só tenha se acumulado suja dentro da pia
por no máximo dois dias. A única facilidade que tenho encontrado, durante todo
esse período, é conseguir voar para bem longe daqui, o suficiente para esquecer
quem eu sou e poder chegar pertinho de Trevon, a cidade futurística fictícia
que escolhi morar até que venha a próxima história.
Dois anos atrás numa noite quente eu recebi uma inspiração para escrever um
livro, que acabou parado no tempo quando outras histórias se impuseram, mais
urgentes (a Novelinha chegou por aqui que nem um caminhão, passando por cima de
tudo, inclusive de mim). Mesmo assim, ainda que envolta em outras realidades,
Trevon jamais se perdeu de vista.
Por sorte, eu tenho o hábito de cozinhar enredos mentalmente por bastante
tempo, até mesmo por anos. Isso aconteceu com Escrito na Gazeta e Caso 5863/21,
por exemplo, cujas histórias conseguiram ficar 18 anos sendo escritas
exclusivamente dentro de mim, até serem finalmente tatuadas num papel. Então,
deixar Trevon no cantinho da memória não foi exatamente um problema, porque
mantive todos os detalhes em “banho-maria” e mesmo quando estava distraída
acompanhei novos detalhes virem à tona. Durante os últimos 20 meses, pelo
menos.
No fundo, sempre houve um alerta me indicando que havia o sério risco de
a história se perder e eu me senti em vários momentos correndo o perigo de
realmente não conseguir escrever, embora soubesse começo, meio e fim das
personagens do futuro. Foram três temporadas da Novelinha com um olho no peixe
e outro no gato. Ou, com o foco em São Paulo, mas igualmente em Trevon, até que
chegasse o dia de tornar realidade uma ficção tão deliciosa.
Quando finalmente chegou o momento de voar com essa história, caí. Não
porque tropecei, eu fui é derrubada pelas minhas expectativas e por alguns
projetos pessoais que se desmoronaram, diante dos meus olhos incrédulos, com a
fragilidade típica das relações sociais que são orgânicas, vivas e
problemáticas, feitas por seres tão quebrados e tão fodidos quanto eu. E sem
querer comprovei aquele papo de que “tudo tem a hora certa para acontecer”
porque Trevon chegou bem a tempo de me transportar daqui e isso obviamente me levou
para dentro de outra espiral reflexiva, que acabou resultando nesta crônica.
Foi tudo milimetricamente cronometrado, essa é a impressão que eu tenho. Mais
uma vez sinto minha versão do passado beneficiando quem eu sou aqui no “futuro”
e é uma cooperação mútua, recíproca, ainda que eu não saiba explicar de que
maneira se estabelece de fato. Mas nem preciso entender o processo para me
favorecer com o resultado; o que importa nessas horas é reconhecer que tenho muita
sorte por ter uma caribu para me salvar de mim mesma!
Sinceramente, não sei como as outras pessoas fazem para lidar com seus
problemas. Eu sempre fugi – sempre, a vida toda, fosse fisicamente, fosse de
maneira mental. Agora mesmo me encontro lá no futuro, bem longe de tudo o que
me prende a um presente que não me agradada em nada, distante de tudo o que me
causa dor. Olhe lá na frente e você vai conseguir me ver. Ou então: leia Trevon
e você me encontrará.
Meu desejo sincero é que a nova temporada da moça que digita seja tão fantástica
quanto é Órion e tão genial quanto é Júpiter. Que a luz das minhas trevas seja
potente o suficiente para iluminar meu dom e me permitir viver em paz em
Trevon.
Essa crônica pode ser ouvida: ouça caribu.
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