A pianista (conto)

 

Há certas pessoas que dão a impressão de que, antes de nascer, simplesmente decidem entrar mais de uma vez na fila da sensibilidade. Aí, ao chegarem por aqui, se destacam seja pela aptidão daquilo que compõem, seja pela habilidade que têm de criar e recriar. Alissa sem dúvida é um caso deste tipo. Dona de um ouvido quase absoluto, tem a capacidade de reconhecer sons onde quer que sejam escutados. Mais: é capaz de sentir a inspiração, de um jeito que somente poetas conseguem sofrer, ou melhor, fazer.

Sim, porque caminhar na delicada corda bamba da arte nos torna vulneráveis ao que, para os outros, não chega nem a fazer cosquinha. A emoção do ser sensível faz com que um caminhão de sentimentos nos atropele enquanto reproduzimos a beleza da vida enfeitada com os detalhes do cotidiano. E o preço pago para isso custa alto e é inflacionado com uma boa parcela de saúde mental.

Viver pode ser conflitante se a rotina te toca de um jeito mais profundo, se você é capaz de absorver até o que há de mais negativo no mundo – e tudo é captado se é no contraste que a coisa toma forma e o conjunto ganha cor. Se não houver atenção, vontade e habilidade para se manter a salvo na superfície dos dias, o essencial naufraga, o todo afunda. E aí, quem poderia tocar o céu acaba se roçando no chão.

Por isso, Alissa se focava na música. Alimentava-se do som produzido em seu piano, que não era daqueles de cauda, mas que com certeza tinha alma e se fundia a ela no instante em que seus dedos ganhavam uma extensão, musical. Tocar era tão natural quanto respirar e com certeza era o que a impedia de endoidar, em especial nas horas intensas, quando o mundo não se digere e você se sente sufocar. É fácil enlouquecer quando um propósito beira um dom, e a gente se perde mesmo, principalmente se ninguém te segura a mão!

Aí, o piano virou sua válvula de escape, sua gangorra mágica e multidimensional, que a levava para longe da dor e para perto do amor. Para um canto que ecoava em seu arredor sempre que tocava.

Nessas horas, tudo se encaixava e ficava absolutamente em equilíbrio e harmonia: a maciez perfeita das teclas, o conforto gostoso do som, a cadência ritmada da música que fluía por Alissa sempre que a mulher se permitia se despir de Alissa; quando deixava de ser quem esperavam que fosse e assumia sua autêntica essência, deixando o dó e voltando a si, passando por sol, lá e mi, vibrando em sustenidos, friccionando em semitons.

Harmoniosa, isso que ela é, no fundo e no todo, inclusive por debaixo da desafinada máscara social com a qual é obrigada a se apresentar publicamente enquanto se rege de modo tão reservado e particular. Sozinha, de posse apenas de sua própria companhia, Alissa se transforma num concerto, é a maestra, vira a orquestra inteira. E se aplaude ao final, na falta de uma plateia, porque dedilhando em seu piano é quando mais se sente real. Musical, para não dizer divina, angelical.

Tive o prazer de conhecer Alissa uns dias atrás. Me servi como palco para ela performar (nua, é claro, como você deve imaginar). E decidi escrever esta notação porque somente mulheres sensíveis têm a graça e a capacidade de arrancar suspiro e ovação (sinfonias completas!) travestidos de gemidos excitados, empapados de uma melodia sexy que soa bem aos ouvidos de qualquer uma. E a galera vai à loucura e pede bis quando as mulheres em questão são donas de mãos ágeis e dedos desembaraçados, bem acostumados a alisar e acariciar diferentes tipos de teclado. Tudo isso ao som de um sotaque jeitoso, exclamando uns “nossa” de Minas Gerais.

Se abrir para alguém é mergulhar também um pouquinho nos acordes da pessoa e Alissa está bem longe de ser música de uma nota só, tampouco se restringe a um único álbum, um único gênero. E a pianista me tocou de um jeito que atravessou minha brisa e provocou quase uma reflexão existencial. De repente, me vi pensando em bemol, em espelho e até em fractal.

O metrônomo da nossa dupla performance foram as batidas por minuto do meu coração entusiasmado, emocionado, que de imediato quis se lavar naquela torrente de inspiração que brotou dessa grade instrumental, da bandinha que repete no coreto o toque inteiro quando eventualmente considero a possibilidade de viajar para uma nova turnê musical.

Agora, assentado o fogo, passados uns dias, quando me volto numa frequência específica eu também ouço as antenas de tevê tocarem música urbana em cima dos telhados e na parede da minha memória o quadro que guarda a lembrança mais latejante e pulsante é da primeira canção autoral que ouvi de Alissa, tocada bem gostoso no pé de ouvido, à capela, de um jeitinho que me deixou até sem fôlego, arriada daquela maneira que a gente só fica quando se permite, sabe?, se despir para uma completa estranha que toca um harpejo naquele seu ponto que vibra mais forte e intenso? Então... Me vi rodar e girar, num baile íntimo que me inspirou. É claro que inspirou!  

Minha constatação, ao final, não poderia ser outra senão vir aqui exclamar de maneira mais ou menos rimada e retumbante, e sem medo de ser redundante: como é inspiradora essa tal de experiência humana! Deliciosa, ainda que às vezes soe insana, mas é também surpreendentemente abundante, desviou até o rumo pretendido para este conto, que de erótico passou para poético, ou seja, foi elevado e subiu duas escalas na minha regência criativa e ficcional. Foi de verso para prosa, de um jeito bem simbiótico, quiçá exótico, peculiar.

Talvez no futuro eu componha uma versão número dois para essa história, quem sabe escrevo o que tinha me programado antes de ter meu raciocínio todo desviado. Ou não, talvez eu deixe assim e tudo o que se saberá desse dueto será isso que foi cantado por mim.


 

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