50 tons

 

Eu sou uma pessoa estressada. Sou irritada, nervosa, tenho o tal do pavio curto, nunca levei desaforo para casa e já me meti em várias situações envolvendo, principalmente, discussões. Por sorte, sempre fui muito boa de argumentos, tenho o raciocínio rápido o suficiente para listar uma série de palavras organizadas num esculacho qualquer em cima da hora, de improviso; sei falar de um jeito coerente, mesmo quando sou provocada (especialmente nesses casos). Talvez eu seja assim porque o meu senso de justiça é gritante e não suporto ver desrespeitos de nenhum tipo (coisa de sagitariana), talvez eu seja só barraqueira, não sei. Hoje percebo que já fui muito pior, ainda que me falte bastante para melhorar. Minha expectativa é que nesta encarnação eu dê conta de aparar as várias arestas que faltam para eu ajeitar...

Mas vamos aos fatos: o tempo pode até ser relativo, como dizia Einstein, mas a cada segundo que passa avançamos nas horas e sentimos esse progresso. O meu corpinho mesmo a cada dia me surpreende, porque é literalmente orgânico e sabe ser belo como são as minhas plantas, que recebem aplausos a cada novo broto, a cada nova flor. E assim como adubo o meu jardim, fertilizo também quem eu sou. Fisicamente falando, percebo as rugas e as manchas de sol que pipocam a cada corrida no meu rosto, mas da mesma forma, noto que determinadas emoções também se acumulam aqui e ali e esse é um problema muito mais sério que o meramente estético. Por isso decidi descer 50 dos 348 tons da minha escala de irritabilidade. Agora é real: comecei uma reforma pessoal!

É bonito declarar assim, né? Eu tenho para mim que sempre que a gente fala algo em voz alta, as palavras, que têm incontestável poder, ficam ainda mais fortes. Então, declaro: “eu quero me tornar uma pessoa melhor!”. Sabe o que a vida me diz em resposta? “Ah, é, biscatinha? Então prova!”.

Em algum momento já comentei que o trânsito é o maior dos meus testes, a vida toda incita confusões de vários tipos, tem determinados motoristas que cruzam o meu caminho que tenho vontade de descer do carro só para bater. Nem sou violenta, mas fico querendo socar, juro, me tiram do sério! Tenho a teoria de que o trânsito só reproduz, no micro, o que a sociedade faz no macro, ou seja, as pessoas são escrotas pacarai, egoístas, horrorosas. Tenho preguiça de humano, cê é loco. Aí, como decidi descer 50 tons e ser alguém melhor, parei de dirigir.

Não, mentira, ainda dirijo porque toda sexta saio para comer pastel, depois de ter almoçado pamonha e prefiro ser eu a comandar o volante porque a vizinha tem delay na hora de buzinar quando é eventualmente fechada e isso me deixa um pouquinho incomodada. Mas agora a minha condução é menos agressiva, é mais defensiva, e se xingo é só porque estou no automático, mas imediatamente me corrijo com alguma desculpa do tipo “isso é o que eu diria se não tivesse descido 50 tons”. Quando chegar no zero dessa escala terei virado uma dama, você vai ver só.

Só que o meu problema não se restringe só ao trânsito – antes fosse!, tudo seria muito mais fácil de se corrigir. Mas não. Assim como você, também sou um ser dito social, vivo em comunidade, moro num prédio de 15 andares que me obriga a hora ou outra ter que encontrar com algum vizinho no corredor, ou lá embaixo, no pátio perto do portão. Aí é aquilo, é “bom dia”, é “boa tarde”, é um “não, ela só é gorda”, quando perguntam se minha cã, idosa, está prenha. Protocolos, sabe como é... etiquetas, convenções. Enquanto isso, a Nani decidiu que começaria a fazer xixi dentro do elevador, porque sim, e agora sou obrigada a atravessar a vizinhança toda equilibrando uma cachorra obesa no colo.

Dia desses entrei numa espiral reflexiva que começou com um pensamento de “como seria se eu fosse uma personagem?”, qualquer uma, tipo caribu (uma alce alada e colorida que tem uma moça que digita à sua disposição). Pensei: será que eu cortaria mesmo os meus dilemas?

Tenho vários, se quer saber. Milhares de conflitos também e infinitas questões a serem resolvidas – no âmbito pessoal, no campo familiar, tenho traumas, complexos, hematomas variados que, de um jeito ou de outro, resultaram em quem sou hoje: uma mulher de carne e osso, real, que chora por qualquer coisinha e que decidiu se melhorar. Ser alguém melhor não para o mundo porque, honestamente, quando o circo pega fogo eu quero mais é que tudo se exploda, mas resolvi ser alguém para mim, para ser uma boa companhia para mim, uma boa amiga, uma parceira leal que na hora do sufoco bate no peito e mata: “deixa comigo, minha companheira, eu cuido da gente”. “Eu resolvo essa parada para nós!”. “Confia!”.

Que o universo seja generoso comigo durante esse processo, amém.

 

Essa crônica pode ser ouvida: ouça caribu.


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